sicride um retrato das a es contra o desaparecimento de crian as no paran
DESCRIPTION
texto sobre crianças desaparecidas no ParanáTRANSCRIPT
-
1SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
2 3
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
3SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
SICRIDE Um retrato das aes contra o
desaparecimento de crianas no Paran
-
4 5
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
Todos os direitos reservados aos autores.Maring, 2012
EdioRosane Verdegay de Barros
EditoraoIsadora Casavechia
CapaThiago Ximenes
FotosAna Luiza Verzola
David Souza (p. 43)
-
5SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
s mes, aos pais e a cada pessoa que luta incessantemente em prol do combate ao
desaparecimento de crianas, dedicamos este trabalho.
-
6 7
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
7SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
Eu acredito que, nas ruas do mundo, o grande desafio olhar
para ver. E olhar para ver perceber a realidade invisvel - ou
deliberadamente colocada nas sombras. Olhar para ver o ato
cotidiano de resistncia de cada reprter, de cada pessoa.
Eliane Brum
-
8 9
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
9SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
SUMRIO
CAPTULO UMA ltima lembrana ................................................................... 11
CAPTULO DOISMudana de rumos ................................................................... 71
CAPTULO TRS1995 a 1997.............................................................................. 81
CAPTULO QUATRO1997 a 2003 ............................................................................. 99
CAPTULO CINCO2003 a 2007 ............................................................................. 119
CAPTULO SEIS2007 a 2008 ............................................................................. 141
CAPTULO SETE2008 a 2011 ............................................................................. 151
CAPTULO OITODezembro de 2011..................................................................... 177
CAPTULO NOVETer um filho desaparecido ter a vida suspensa ....................... 187
-
10 11
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
11
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
PRIMEIRO CAPTULO
-
12 13
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
A LTIMA LEMBRANAAntes de 1995, 12 crianas do Paran estavam desaparecidas. Em 1992, seis sumiram. A mais
antiga, de 1980, de Foz do Iguau.
-
13
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
14 15
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
1991
Acordou apressada, arrumando-se rapidamente e mal aproveitando
o caf da manh. Era preciso chegar ao trabalho, afinal, uma nova jornada
se materializava diante da nova semana. Dona de olhos castanhos e do
cabelo de mesma tonalidade bem ajeitado, na altura dos ombros, Arlete
lembrou-se de uma tradio que a acompanhava sempre que saa de
casa, todos os dias: dirigia-se ao quarto onde repousavam dois amores
incondicionais o filho, de 8 anos, e a prpria me, que fazia aniversrio
naquele mesmo dia, completando 67 anos. Ela encostaria os lbios na
testa do primognito, desejando estar logo em casa para desfrutar da
companhia da famlia. O horrio de almoo no deveria tardar era o
momento que Arlete reservava para os entes queridos e tambm para
aprontar o lanche da criana, que cursava a 2 srie do primrio. Entretanto,
naquela manh, o ato materno no se repetiu. Havia a urgncia em chegar
na hora certa ao trabalho. Ela saiu da residncia de fachada em tom pastel
e janelas grandes, localizada na rua Osrio Duque Estrada, nmero 850,
no Jardim Social em Curitiba. Arlete fechou o porto pensando no beijo
que no havia dado no pequeno Guilherme.
O expediente se estendia no Banestado, hoje banco Ita, onde
ocupava o cargo de secretria executiva. O telefone tocou por volta
das 10h. Arlete atendeu e reconheceu a voz de criana do outro lado
da linha. O filho perguntou onde estavam os trocados que achara no
passeio realizado no fim de semana. Tentou convencer a me, com uma
exaltao tpica da idade, de que tinha bons planos para o dinheiro. No
-
15
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
se contentava com os brinquedos espalhados no quarto que dividia com
a av, nem do gato e do cachorro que circulavam pela casa. Considerou
que seria prudente dividir sua afeio por animais com um futuro bicho
de estimao, que seria comprado com aquela quantia, que ele calculou
ser razovel para a aquisio: um coelhinho branco seria o novo membro
da famlia Tiburtius. Acordo feito. No havia como fugir da persuaso
de uma criana to doce. Arlete sentiu a alegria irradiando mesmo por
telefone. Criana no contm sentimentos, no reprime felicidade
transborda qualquer emoo, de forma sincera. E era certo que Guilherme
estava acompanhado de uma empolgao contagiante naquele momento.
Mandou-lhe um beijo pelo telefone sem imaginar que seria a ltima vez
que ouviria aquela voz.
***
Aps 21 anos, relatar as ltimas lembranas do filho j no um
desafio insuportvel para Arlete Ivone Carams. Embora jamais tenha
perdido as esperanas de reencontr-lo, j se v a ausncia de emoo ao
repetir a histria tantas vezes solicitada ao longo desses anos. Os olhos
no ficam marejados, a voz no embarga nem mesmo proferida. Uma
documentao de quatro pginas empurrada sem muita vivacidade pela
mesa, em direo aos reprteres. A sala comercial do edifcio Minerva
Baro, na rua Jos Loureiro, regio central de Curitiba, abriga a Organizao
No Governamental (ONG) presidida por Arlete desde a criao, em
1992. No espao, esto espalhadas algumas fotos de um menino com o
cabelo escuro, a pele branca, os olhos brilhantes e espertos. possvel
ver, em todo o cmodo, fotos que projetam a imagem de como o garoto
seria com 13 anos, 19 e hoje, j adulto, com 29 anos. As novas geraes
podem at ter ouvido falar, mas talvez no se recordem dos detalhes que
permanecem nas lembranas dessa me que est sem o filho h mais de
A LTIMA LEMBRANA
-
16 17
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
duas dcadas. A dor do desaparecimento no cabe na classificao de
um luto familiar. No se sabe o que aconteceu com a criana, se est viva
ou morta. Traduzir em palavras o pnico que aflige os pensamentos e ao
mesmo tempo aquece as esperanas de uma luta que perdura sem muitas
pistas, baseia o futuro em hipteses. Amedronta e castiga. E por qu?
Quando l fora h fome chuva frio desabrigo
violncia Para os pais, o simples ato de comer, de se cobrir,
de se vestir e at de sorrir, um ato doloroso. Como comer,
se o filho pode estar passando fome? Como se agasalhar,
se o filho pode estar passando frio misria desamor
sofrimento e violncia? Como sorrir se o filho pode estar
chorando?
(Trecho de carta escrita por Arlete quando completou 14
anos do desaparecimento do filho)
***
O dia 17 de junho de 1991 nascia ensolarado, renovando as
atividades que comeavam naquela segunda-feira. Guilherme acordou
animado, refletindo toda a energia tpica das crianas que fazem os
adultos pensarem: De onde vem tanto pique?. Saiu de casa para
cumprir a rotina que tinha antes de ir para a escola, mas no foi muito
longe - a misso era dar uma volta de bicicleta na quadra, percurso que ele
j havia feito muitas outras vezes. Calava chinelos de dedo e vestia uma
bermudinha combinando com uma camiseta listrada em azul com botes
de cor amarela, tal qual o sol daquele dia. O passeio demoraria o tempo
de a barriga clamar pelo almoo feito pela av. Enquanto o estmago
no resmungasse, ele aproveitaria ao mximo a tranquilidade do bairro
e o frescor do bosque que ficava logo do outro lado da rua, como uma
-
17
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
extenso dos jardins bem cuidados das residncias. Sueli Carams, a av,
saiu de casa em direo ao porto. Segurou firme na grade e chamou pelo
neto, avisando-o que o almoo estava pronto. A fome no batera porta
ainda e Guilherme Carams Tiburtius resolveu pedalar mais um bocado
pelas ruas largas e arborizadas que contornavam as moradias. Sempre
gostou de bicicletas, esta no era a primeira que tinha, embora fosse a
que mais gostava. De cor preta, ao mont-la fingia ser uma motocicleta,
e pilotava com desenvoltura o brinquedo que havia domado sozinho. Um
esportista nato, que cedia emburrado aos limites impostos para suas
aventuras. A recomendao da av era clara: s podia andar na quadra
de casa. O Jardim Social, onde moravam, era um bairro nobre e pacato
da capital paranaense, estritamente residencial e com habitantes de alto
poder aquisitivo.
- V, vou dar mais uma voltinha e j venho! avisou, encostando a
bicicleta na calada em frente de casa para respond-la.
***
Guilherme era fruto de uma gravidez tardia, de risco e muito
desejada por Arlete, que tinha quase 40 anos quando decidiu que
assumiria a responsabilidade que mais quis ter na vida: a de ser me.
Arlete percebera, ao segurar o menino nos braos pela primeira vez, que
dar a luz no era um papel restrito apenas s mes a criana quem
vinha a iluminar toda a famlia. Certa de que a idade representava um
risco para outras gestaes, aps Guilherme ter vindo ao mundo Arlete
optou por uma operao que tornaria o amor da famlia exclusivo ao
nico filho, a alegria da casa. Como bons tesouros que devem ser bem
guardados, o medo de que o garoto lhe fosse tomado do seio familiar era
o que mais atormentava a vida de Arlete, que trabalhava fora e no podia
se dedicar integralmente funo que elegeu como prioridade: cuidar de
A LTIMA LEMBRANA
-
18 19
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
Guilherme. A educao e a ateno dadas ao menino eram divididas entre
a me, a av e o pai, Ewaldo Oscar Tiburtius.
***
Com a comida j posta mesa, dona Sueli resolveu apressar o neto
que iria para a escola no perodo da tarde e ainda precisava tomar banho
antes de sair. Arlete j estava para chegar e ele tinha de estar arrumado
para pegar o nibus. Saiu ao porto antes mesmo de o desespero soar a
campainha.
- Guilherme!
Sem resposta. Por onde andaria o menino? Esperou.
- Guilherme!
Sem resposta. Teria desobedecido aos avisos e ido mais longe de
casa?
- Guilherme!
Ao no ouvir a voz do neto, nem avist-lo, Sueli refez o trajeto
j natural ao menino, sem encontr-lo. Ele nunca mais foi visto desde
ento.
Aps constatar o desaparecimento do menino, dona Sueli
avisou a filha por telefone do que havia acontecido. Imediatamente, a
iniciativa que Arlete tomou foi percorrer o bairro procura do filho o
pensamento frequente era a expectativa de que Guilherme estivesse na
casa de algum vizinho, brincando com algum amiguinho do bairro. No
perodo, predominava o mito de que, para acionar a polcia em caso de
desaparecimento de qualquer pessoa, era necessrio aguardar 24 horas
para registrar o boletim de ocorrncia. Em casos de crianas, o mesmo
tempo tambm era erroneamente respeitado. O lao familiar do chefe
de Arlete, Heitor Wallace de Mello e Silva, ento diretor do Banestado,
primo de Roberto Requio, governador do Estado na poca, favoreceu o
-
19
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
drama familiar com o qual se depararam - por conta dessa proximidade,
Silva no poderia deixar a funcionria na mo em uma situao assim. O
acionamento da polcia ocorreu no mesmo dia, pouco depois de terem
verificado que o menino poderia ter sido sequestrado.
A partir das 13h30 daquela segunda-feira, uma equipe de polcia
averiguava o desaparecimento na regio da capital paranaense por ora
considerada tranquila. Ces farejadores, carros, parentes e uma legio
frustrada pela falta de pistas, que no apareceram. Nem sequer a bicicleta
foi encontrada. Um mistrio que devastou a famlia, outrora estruturada, e
o prprio Paran na ocasio. Guilherme no foi o nico a ter seu paradeiro
desconhecido pelos pais e pela polcia e infelizmente no ser o ltimo
caso a provocar comoo pblica em condies to intrigantes.
Em um primeiro momento, aps superar o baque inicial de que
o filho estaria longe de sua proteo, Arlete foi encaminhada para a
Delegacia de Homicdios de onde partiu o choque que a mobilizaria
por uma mudana. A impresso que se tinha era de que a busca se dava
por um corpo j sem vida, e no pelo sorridente Guilherme. Durante os
sete meses seguintes, Arlete abdicou do emprego e passou a se dedicar
a uma causa que, ainda no sabia, a acompanharia para caminhos que
destoavam do que ela esperava como me, e de toda a vida que imaginou
quando o filho ainda estava no prprio ventre. No tempo decorrido do
desaparecimento de Guilherme, ela fez questo de acompanhar de perto
as investigaes da polcia. A cada ligao, o corao palpitava e um
jorro de esperana inundava aquela me em constante aflio. A nsia
desaguava em mais lgrimas de inconformidade pela falta de notcias
sofreguido dimensionada pelas ligaes annimas que se deleitavam com
o desespero alheio. Foram centenas de chamadas que nunca resultaram
em uma soluo ou pista que se concretizasse. Aps um tempo, o arquejo
das ligaes foi substitudo pela repulsa de comentrios negligentes.
A LTIMA LEMBRANA
-
20 21
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
Tenho umas 24 fitas gravadas de trote. Digo que trote
porque nunca chegaram a uma concluso. Um dos ltimos
que tenho de uma menininha que ligou para casa, na
poca eu tinha bina [identificador de chamada], dizendo que
o Guilherme estava enterrado no sei aonde. Ela no sabia
que eu tinha bina e retornei a ligao. Era de uma igreja, a
filha do pastor. Uma menininha. Coisa da cabea deles, de
criana. Mas tinha um monte de trote. Logo que o Guilherme
desapareceu, no dia seguinte, uma pessoa ligou falando
estrangeiro, uma voz meio enrolada, dizendo que estava
com ele. Ligou vrias vezes, mas nunca se chegou a ele.
Outro detalhe: a polcia gravava e 15 dias depois eu recebia a
gravao de onde era a ligao, e no resolvia nada.
A indignao no era restrita quela me. Antes mesmo de o filho
desaparecer, outras famlias paranaenses j enfrentavam a dor de um
ferimento que no estanca. No se cura, no cicatriza e fica margem do
tempo, na espreita de uma esperana que no finda. Antes do Guilherme,
quatro crianas j estavam longe do afeto familiar. Depois, mais sete
desapareceram at que uma mudana de fato, acontecesse.
-
21
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
22 23
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
1980
Reza a lenda que as margens do rio Iguau, alm do contorno da
mata, tambm era contornada por ocas de uma tribo de ndios caingangues.
A fbula perpetuada em Foz do Iguau conta que Napi, uma bela ndia
de cabelos escuros e longos, chamava a ateno pela beleza natural, to
intrnseca quanto a fauna e flora que conviviam harmoniosamente com
os atributos da moa, filha do cacique chamado Igobi. A tribo em questo
cultuava um deus chamado MBoy, que era representado pela imagem
de uma serpente o deus era filho de Tup, deus do trovo. Os traos
delicados e marcantes da filha de um dos lderes da tribo fizeram com que
ela fosse dedicada ao deus protetor assim que nasceu.
O destino dela poderia terminar na entrega a MBoy, no fosse
um jovem do grupo perceber que estava perdidamente apaixonado pela
moa. Entre os caingangues havia um guerreiro chamado Tarob, que
se encantou por Napi to logo conheceu a bela ndia. No era o nico
a ficar encantado com a leveza de seus movimentos somada s suas
caractersticas joviais quando esta se debruava na beira do rio para
ver o prprio reflexo, as correntezas cessavam, estagnando para que as
guas tambm pudessem apreciar os traos de seu rosto. Tarob teve
seus sentimentos correspondidos pela menina, que decidiu fugir com ele
durante um festejo de sua prpria consagrao.
Enquanto o cacique e o paj compartilhavam uma dose de cauim,
uma bebida a base de milho fermentado, a aldeia toda danava em clima
de celebrao. Os amantes aproveitaram a distrao para fugir em uma
-
23
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
canoa, navegando pelo rio que se arrastava por um longo percurso. O deus
MBoy, ao perceber que a jovem havia fugido, no mediu sua frustrao.
Enfurecido, adentrou os sulcos mais ngremes da terra e retorceu todo
o corpo, criando uma abertura que resultou em uma imensa catarata. A
prpria gua que os arrastava rumo felicidade abraou o jovem casal,
fazendo com que cassem de uma grande altura. E, juntos, desapareceram.
A lenda relata de maneira ldica como foi a criao do principal
ponto turstico da cidade fronteira com o Paraguai e Argentina: as
Cataratas do Iguau. Localizadas no Parque Nacional do Iguau, hoje so
reconhecidas como uma das setes maravilhas da natureza. As centenas de
quedas dgua encantaram os internautas do mundo inteiro nos ltimos
anos, e culminou no resultado da eleio promovida pela fundao sua
New Seven Wonders, responsvel pelas votaes que tambm resultaram
nas novas sete maravilhas do mundo moderno, entre outras aes
realizadas pelo grupo. A cidade habitualmente quente abriga 256 mil
habitantes, de acordo com dados apresentados pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatstica (IBGE) em 2010. Seja qual for a explicao
para o fato, o nmero da populao encolheu em 2000 o mesmo censo
apontou 258 mil moradores. Para uma das famlias, dcadas antes, pouco
importava se Foz do Iguau comportava dois mil habitantes a mais ou a
menos, desde que o filho fizesse parte de tal contabilizao.
Em abril de 1980, Elenilde Alves da Silva e Antonio Carlos da Silva
comemoravam o aniversrio do filho, que completava 4 anos no dia 11
daquele ms. Ao assoprar as velinhas azuis posicionadas no centro do
bolo feito pela prpria me, Mikelangelo Alves da Silva observava atento
s chamas danando pouco a frente do rosto em formato oval. A criana
no pensou em nada que pudesse desejar de pronto. Ele mantinha os
olhinhos fechados, e a me notava como seu menino estava crescendo e
virando um homenzinho logo as responsabilidades aumentariam, e ele
deveria aproveitar aquele ano antes que a poca de escola chegasse. Os
A LTIMA LEMBRANA
-
24 25
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
meses seguintes passaram assim que abriu os olhos. O tempo passava
rpido e a cada ms os pais assistiam de o espetculo do crescimento do
prprio filho. O Dia das Crianas j era passado, e Mikelangelo pensava
no que poderia pedir ao pai de presente de Natal.
O primeiro dia de novembro marcava um sbado sossegado no
bairro onde a famlia Silva morava: Jardim Amrica. A vizinhana era
ladeada pela Avenida Juscelino Kubitschek e Avenida Beira Rio, ao lado da
fronteira. Durante essa poca ainda se acompanhava o desenvolvimento
ligado s transaes entre Brasil e o Paraguai, principalmente para o
distrito Ciudad Del Este no pas vizinho. Tal qual a tribo indgena do
folclore local, a famlia morava tambm perto de um rio: o Rio Paran,
que fazia um caminho sinuoso, brincando com a linha que separava
as nacionalidades. Com guas revoltas, passeava por entre brasileiros
e paraguaios com facilidade, desaguando em um espetculo que s a
natureza poderia proporcionar com tanto esplendor.
O garoto tinha pele branca, cabelos e olhos castanhos. As madeixas
lisas eram arrumadas para o lado direito do rosto, formando uma franja
de lado sobre a testa do menino. Naquele dia ele saiu de casa para brincar
com os vizinhos, aproveitando a infncia que teimava em passar depressa.
Era vspera de finados, e o maior movimento concentrava-se no comrcio
da regio central da cidade, com o aumento de venda das velas e flores.
Mikelangelo no se importava com a data, no podia ainda compreend-
la, e aproveitou as ruas vazias do bairro afastado para correr com a
molecada da rua. Despediu-se da me e saiu, e igual aos personagens da
histria que narrava a criao de sua cidade, desapareceu.
A lenda dos caingangues revela que Napi, a ndia que fugiu com
seu grande amor, transformou-se em uma das tantas rochas centrais
das cataratas, circundadas pelas guas perturbadas. Tarob, o jovem
guerreiro, tomou forma de uma palmeira, fincada prxima a um abismo,
com leve inclinao garganta do rio. Acreditavam que abaixo da palmeira
-
25
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
existia uma gruta anexa Garganta do Diabo, onde um monstro vigiava
as duas vtimas. J o final da histria do garoto de 4 anos ainda no foi
revelado. No se sabe o que aconteceu com Mikelangelo, no que foi capaz
de arrast-lo para longe da prpria famlia. Sabe-se que sua condio de
criana o transformava em um anjo.
A LTIMA LEMBRANA
-
26 27
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
27
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
28 29
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
1986
Era comum o garoto Adriano Marques da Silva passar momentos
do dia na companhia do pai, Romo Marques da Silva, no porto de
casa. Cascavel, regio oeste do Paran, era um municpio em crescente
desenvolvimento e que vinha se destacando no cenrio estadual. A
intensificao das atividades industriais e do setor agropecurio, em
ascenso a partir do incio da dcada de 1970, fortalecia a identidade da
cidade e contribuiria, mais tarde, para a vinda de pessoas de diferentes
regies brasileiras, tornando o municpio o quinto mais populoso do
Estado.
Era 29 de julho de 1986. A regio apresentava durante o inverno
temperaturas extremamente baixas, registrando inclusive geadas
constantes. Adriano j havia almoado na companhia do pai e da me,
Maria da Luz Cabral da Silva. Vestia uma blusa de l preta e cala de cor
azul desbotada. Calava sapatos gastos, com marcas das ruas de terra
nas proximidades de casa, onde costumava passear. Corantes nos cantos
da boca indicavam que no fazia muito tempo que havia almoado.
Enquanto o pai olhava para a rua frente da casa, sob os fracos
raios do sol, o garoto de 7 anos desenhava na calada com uma pedra
que encontrara. Desejou por doce e pediu ao pai. Romo sorriu e lhe deu
algumas moedas. A pedra, usada para registrar rabiscos, foi deixada no
cho. Adriano sustentava um sorriso largo no rosto, e correu agilmente
em direo a uma mercearia, a poucos metros dali.
Alguns minutos j haviam passado e o menino no tinha retornado.
-
29
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
Por que a demora? Ser que o dinheiro era suficiente? Ser que ele tinha
encontrado algum conhecido no caminho? Ser que encontrara o doce
que procurava? Com essas perguntas em mente e sem nenhuma resposta,
o pai saiu em direo ao local que o filho tinha se dirigido. Entrou, andou
por entre os curtos corredores, olhando por entre as prateleiras. No
avistou o menino. Foi ao caixa afirmando que o filho tinha ido ali e
que precisava de uma resposta. Ouviu as palavras que lhe causariam
desespero: No entrou nenhuma criana aqui.
Por mais que percorresse a p o bairro em que morava, pedisse
ajuda e informaes a conhecidos e estranhos, nada mudava. Iniciava ali
uma luta incessante e dolorosa pelo encontro de Adriano. Do filho, as
ltimas lembranas que teve foram os rabiscos na calada e a pedra usada
para os registros.
A LTIMA LEMBRANA
-
30 31
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
31
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
32 33
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
1987
Uma casa simples de madeira na cor verde, localizada no
bairro Pinheirinho, regio sul de Curitiba, destacava-se pela constante
movimentao de pessoas nos fins de semana. Como trilha sonora ao
cenrio buclico, os gritinhos efusivos da crianada j denunciavam a
proximidade do Dia das Crianas. Naquele 11 de outubro de 1987, tarde
de domingo, uma famlia se reunia como de praxe para brindar o momento
que todos podiam compartilhar juntos. A riqueza ali era traduzida por
alegria e a simplicidade do ambiente s confirmava que no era preciso
muito para estar feliz. Com o porto fechado, os primos corriam e
brincavam no quintal em frente casa de Luiza Novicki, que contemplava
o sobrinho e afilhado de um ano e oito meses Rodrigo, primeiro filho da
irm Elisabete Novicki de Oliveira, a Bete. Os braos rechonchudos do
menino ficavam ainda mais evidentes na regatinha estampada que usava,
combinando com o short azul e os chinelos de mesma cor. Ele se divertia,
entretido nas brincadeiras com as outras crianas pelo espao em frente
residncia.
A sombra frondosa do abacateiro no jardim da casa era usada em
uma v tentativa de refrescar o dia quente na capital paranaense. Local
perfeito para os tios montarem guarda e ficarem de olho na molecada
enquanto colocavam o papo em dia. Bete estava com o marido, Antonio
Leal de Oliveira, dentro da casa, junto de outros parentes. J algum tempo
aps o almoo, ela se distraa abrindo e cortando um coco para oferecer
ao filho, que certamente iria adorar lev-lo boca. Antonio conversava
-
33
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
animadamente com os cunhados e Bete pediu licena para levar o fruto
ao menino que ainda no tinha todos os dentinhos de leite formados. Era
perto das quatro da tarde, quando, segurando um pedao entre os dedos,
ela cruzou a sala, foi at a janela e chamou a irm, perguntando por
Rodrigo. Um piscar de olhos bastou. A resposta negativa deu incio a um
pesadelo do qual a famlia, aps um quarto de sculo, ainda no acordou.
Sem telefone em casa, o orelho na esquina prxima serviu de
apoio para avisarem as rdios locais e a polcia. Foram informados de
que o boletim s poderia ser registrado no outro dia. Poucas pistas foram
apontadas, muito se especulou e s restaram incgnitas. Sequestro?
Trfico?
As esperanas davam vez revolta que crescia no peito de Antonio
a cada vez que a famlia, aos prantos, se encaminhava delegacia.
Questionavam o pai se a os parentes tinham alguma pista que pudesse
auxiliar nas investigaes, fazendo com que todos se sentissem culpados
pelo desaparecimento que aconteceu no quintal da casa da prpria
tia do garoto. De vtimas, foram colocados como suspeitos ao serem
questionados se por ventura teriam vendido o pequeno Rodrigo ou dado
o garoto para adoo. Para o pai, no fazia sentido: se tivessem feito
isso, por qual motivo estariam desesperados na busca pelo menino?
Por mais que a famlia tivesse dificuldades financeiras, tal possibilidade
jamais fora cogitada pelos pais de primeira viagem, horrorizados com tal
posicionamento.
Uma das informaes que chegou at os Novicki foi que a fotografia
do filho teria sido encontrada dentro da bolsa de uma traficante de
crianas e, como argumento, a mulher disse que estava indo para Israel
investigar o caso. Nenhuma resposta foi obtida desse relato, e a cada dia
esperavam pela chegada do menino. A gota dgua foi quando um dos
policiais da poca se dirigiu para o pai e disse que no tinha uma bola de
cristal para saber o que teria acontecido com o beb. A vida seguiu com
A LTIMA LEMBRANA
-
34 35
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
uma lacuna que nunca foi preenchida. Os dois caulas de Bete e Antonio
sempre ouviram dos pais histrias sobre o desaparecimento de Rodrigo,
o irmo mais velho que nunca conheceram. O nome jamais ser apagado
da memria da famlia e das oraes dirias da tia Luiza.
-
35
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
36 37
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
1988
Ewerton, ento com 3 anos, no esperava sentir dor enquanto
brincava. Machucar-se em momento to prazeroso? Inimaginvel. Foi em
uma ocasio assim, em 1988, que aps um tombo, o garoto ganhou um
belo corte um pouco acima da sobrancelha direita. Foi um grande susto
para os pais, mas no maior pelo qual ainda iriam passar. No fim do
mesmo ano, a famlia toda se preparava para comemorar o Natal na praia.
L, em meio aos castelos de areia e a gua salgada, os pais j imaginavam
Ewerton descobrindo que o Papai Noel havia atendido seu pedido. O
menino iria ganhar de presente um helicptero azul de brinquedo, pedido
feito com entusiasmo pelo garoto. Ainda era 23 de dezembro, mas a
ansiedade pelas surpresas que a viagem de Curitiba ao litoral paranaense
prometia no lhe dava trgua.
Mais velho de trs irmos, Cleverson de um ano e Emerson, com 19
dias, a me entendia a expectativa do menino de olhos e cabelos castanhos
claros, que naquele dia no acompanhou o pai, Jos Vicente Gonalves ao
trabalho, como costumava fazer. Tentou se concentrar no que a televiso
transmitia, mas no conseguiu. Queria esper-lo na frente de casa de
cmodos pequenos, localizada no bairro Ah, regio norte da capital do
Estado, como sempre fazia. Mesmo que a contragosto, a me permitiu
que ele fosse aguardar o pai l fora em outras ocasies, eles teriam
ido juntos a um jardinete de 456 m prximo, compartilhando a espera.
Na agitao, o menino deu alguns passos a mais que o de costume, em
uma tentativa furtiva de ir ao encontro de Jos, conhecido como Zezo,
-
37
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
que a essa altura j fazia o caminho de volta para casa. Passaram-se 15
minutos at que o pai chegasse com o carro do cunhado, que os levaria
para o litoral. Ewerton quando saiu de casa vestia uma regata, shorts e
chinelo do personagem Topo Gigio, bastante popular na dcada de 1980.
Era para ele ter encontrado o pai logo que Zezo passou pelo jardim, o que
no aconteceu. A cicatriz na sobrancelha do menino no foi a nica marca
deixada naquele ano.
O bairro com casas de estilo europeu estava calmo, consequncia
das festividades de fim de ano que levaram a vizinhana a pegar a estrada
ou migrar para casa de parentes em outras localizaes. A poucos metros
do lar da famlia Gonalves, um servente de pedreiro estava sentado
em um bar, observando a rua vazia e um garoto conversando com um
homem. O condutor ento levou o menino chorando pela rua Mateus
Leme. Depois que a notcia do sequestro de Ewerton se espalhou pelo
bairro, o trabalhador reconheceu a criana que morava pelos arredores,
e deu-se conta de que testemunhou a ao. Mais tarde ele contribuiu
com um depoimento polcia afirmando que vira o garoto entrando em
um veculo, seguindo para longe dali. Com as poucas informaes que
recordava, o pedreiro conseguiu construir um retrato falado da pessoa
que dirigia o carro. O que viu, no entanto, no trouxe Ewerton de Lima
Gonalves de volta para a mesma casa que, ainda hoje, os pais e os trs
irmos moram. Anderson, o mais novo, no chegou a conhecer o irmo.
Os Natais daquela famlia nunca mais foram os mesmos.
A LTIMA LEMBRANA
-
38 39
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
39
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
40 41
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
1990
Parecia um dia como outro qualquer. O municpio de Roncador,
localizado na regio centro-oeste do Estado do Paran, com uma populao
que no chegava a 10 mil habitantes, aparentava a comum tranquilidade
de uma comunidade cercada por belezas naturais. Era 22 de maio de
1990, tera-feira, e a temperatura alta podia ser sentida logo nas primeiras
horas do dia. Antes mesmo que o sol aparecesse, exuberante, furtando o
espao da escurido da noite, dona Djanira j estava de p. O aroma do
caf caseiro, modo havia pouco no moedor manual, j se espalhava pelos
quatro cmodos do casebre de madeira na regio rural.
Djanira dos Santos Correia, de pele clara, mdia estatura e lisos
cabelos castanhos adaptava-se ao casamento com Pedro Alexandre.
Tinha um filho de um relacionamento anterior recente unio. Leandro
Correia tinha 3 anos e uma animao prpria de crianas de sua idade.
Comumente, enquanto as atividades na roa da conhecida Fazenda So
Jorge eram desenvolvidas pela me e pelo padrasto, o garoto realizava
descobertas, explorando a harmonia ambiental a que tinha acesso.
Naquela manh, tudo deveria ser como sempre. Alimento
mesa, poucas palavras trocadas entre o casal de agricultores. No meio
da refeio, Djanira se levantou e caminhou em direo ao quarto de
Leandro. Era hora de acord-lo para seguirem em mais um dia de trabalho
na lavoura de caf. Ao lado da cama, estendeu a mo esquerda alisando
os cabelos levemente ondulados e claros da criana, sussurrando o seu
nome. Preguiosamente o menino abriu os olhos. Ela o beijou, desejando-
-
41
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
lhe bom dia. Trocou-lhe as roupas e preparou-se para sair de casa.
Enquanto na lavoura Djanira e Pedro aplicavam suas foras, Leandro
brincava no cho, construindo, com os gravetos que encontrava, casas,
carros e bonecos. Era possvel ouvir balbucios que tentavam traduzir
seus pensamentos enquanto brincava, com a chupeta ainda boca. O
silncio foi marcado quando o menino parou sua brincadeira para comer a
fruta que a me guardara prxima s marmitas, sombra de uma rvore.
Todavia, no demorou muito para que o pequeno arteso retomasse a sua
obra.
A famlia almoou sentada curva de nvel. Leandro, depois de
vrias brincadeiras, dormia. Dali era possvel ouvir o barulho da cachoeira
em harmonia com o canto dos pssaros que sobrevoavam o local. A paz
do dia, naquele cenrio, no poderia ser perturbada.
Era hora do casal voltar ao trabalho. Djanira repousou Leandro
sobre um leito improvisado, enquanto uma brisa agradvel beijava os
rostos. O servio foi retomado, mas com pausa pouco tempo depois.
Som de palminhas e o cantarolar tpico de quem ainda desconhece as
preocupaes do mundo denunciavam que a soneca havia chegado ao
fim. Foi em direo ao menino, conversou com ele. O garoto ainda no
havia almoado; a me preparou o alimento, entregou nas pequenas mos
do garoto e, enquanto ele se alimentava, foi ao encontro do marido. O
trabalho precisava continuar.
No faltava muito para concluir aquele servio. Apenas alguns dias
a mais e estaria acabado. A quadra estava chegando ao fim. Era melhor
voltar, pegar o garoto e traz-lo para perto de si. Djanira andou alguns
metros na direo de onde estava o menino. No o avistou. Chamou pelo
seu nome e no foi respondida. Outra vez, com mais fora. Silncio. O
marido havia corrido para entender o que estava acontecendo e j se
posicionava ao seu lado. O casal insistia em chamar pelo garoto e a correr
pela fazenda, no desejo desesperado de encontr-lo a brincar. Contudo,
A LTIMA LEMBRANA
-
42 43
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
vrios minutos se passaram sem que o menino fosse avistado. Leandro
sumiu como se estivesse desaparecido no ar.
-
43
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
44 45
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
1992FEVEREIRO
Nos trs meses da temporada, o servio era intenso para as famlias
litorneas, que aproveitavam a chegada dos turistas para arrecadar o
dinheiro com o qual sobreviveriam o restante do ano. A quantia recebida
pelo trabalho durante dezembro, janeiro e fevereiro precisaria ser
suficiente para suprir os meses de marasmo nos 22 km de extenso das
areias do litoral de Guaratuba. Pela contagem do ltimo censo, em 1990,
havia ali 17.998 habitantes, gente que vivia principalmente da agricultura,
pesca e do turismo. O movimento de visitantes era bom tambm para os
pescadores. De modo ainda artesanal, eles embarcavam nas aventuras em
alto mar a fim de trazer terra firme peixes e frutos frescos para vender
s dezenas de restaurantes da orla.
Um desses pescadores era Joo Bossi, que chefiava uma famlia
composta pela esposa e um filho pequeno. O que conquistava a cada vez
que lanava a rede nas guas, tinha destino certo: investir na educao do
nico filho, Leandro Bossi, de 8 anos. A famlia at podia ser reduzida a
trs membros, mas todos em casa trabalhavam - principalmente naquele
perodo. Era 15 de fevereiro de 1992, e no havia motivo para descanso
at o fim do ms, quando terminariam as frias de boa parte dos que
curtiam o sol do litoral. Assim que os turistas retornassem s prprias
rotinas, comeava ento o momento de descanso para diversas daquelas
famlias. Enquanto seo Joo sustentava a casa com o que arrecadava da
pesca, Paulina Rudy Bossi auxiliava cozinhando as iguarias tropicais o
-
45
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
banquete e os dotes culinrios no se restringiam ao fogo da prpria
casa. Ela era cozinheira de um dos hotis mais tradicionais da cidade,
o Vila Real, localizado logo beira da praia das Caieiras, rea de um
quilmetro de extenso voltada principalmente para a pesca. Era l que a
famlia tambm morava, em uma casa simples, no to prxima da praia
quanto gostariam. Enquanto Paulina trabalhava arduamente nos pratos
para agradar ao paladar dos clientes, sentia o sopro refrescante vindo
direto das ondas, quebrando pouco a frente do local de trabalho. A vista
sempre a deixava boquiaberta.
O batente comeava cedo no hotel, instalado na Avenida Atlntica,
nmero 400. Naquele sbado, a cozinheira foi surpreendida com os braos
curtos do filho enlaando suas pernas em um abrao desengonado. Ele
havia entrado silenciosamente no ambiente de trabalho e queria fazer uma
surpresa para a me. Encarou-o sem reao, feliz pela visita do mocinho
que herdara um misto de traos de Paulina e Joo. Acariciou os cabelos
lisos do menino e pediu a ele que, cuidadosamente, retornasse para casa
e trocasse de roupa. O fim de semana era de agitao em Guaratuba e o
expediente deveria ir longe. Talvez, ao entardecer, pudesse tambm esfriar,
o que era comum no litoral, e era bom que ele estivesse precavido.
Leandro usava uma bermudinha jeans e uma camiseta vermelha.
Obediente, retomou o caminho de casa andando calmamente pela praia.
Era dono de caractersticas marcantes, capazes de encantar todas as
colegas de trabalho da me coruja. Os olhos eram de um azul idntico
ao do mar, onde o garoto gostava de molhar os ps e buscar conchinhas.
O cabelo era da mesma cor da areia que gostava de brincar. De pele
bronzeada, os atributos eram de um garoto tipicamente praiano. No
demorou a alcanar o prprio lar. Atravessou a porta j imaginando a
roupa que escolheria, abrindo as gavetas do guarda-roupa para encontrar
outro conjunto que pudesse agradar a me. Vestiu-se e saiu apressado,
pois tambm queria aproveitar o dia no hotel e tudo o que o espao
A LTIMA LEMBRANA
-
46 47
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
podia oferecer: um mundo de descobertas e gente diferente para observar.
Numa dessas, poderia at mesmo arrumar novos amiguinhos. Ao dar os
primeiros passinhos para fora de casa, j conseguia ouvir o barulho das
ondas beijando a areia da baa. Pensou que logo aquele espao estaria se
esvaziando e esse som seria o nico que ouviria at nova temporada e
agitao na praia, nove meses dali em diante. Gostava de ver o movimento.
Calava chinelos de dedo e sentia a pele arder com o sol escaldante sobre
a cabea. Tinha o caminho que era necessrio percorrer em mente, mas
nunca chegou a alcanar o destino.
-
47
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
48 49
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
MARO
Em 1992, o Carnaval do Country Club, um dos mais tradicionais
de Maring, ficaria conhecido como um dos melhores que os folies j
brincaram. Com vrios bailes programados, a festividade atraa toda a
regio que, durante aquele feriado, se aglomerou na cidade. Os visitantes
e a alegria dos folies animou Jos Carlos dos Santos, de 12 anos,
que ajudava a famlia vendendo bilhete de loteria pelas ruas centrais.
A festa mais popular brasileira havia comeado na sexta-feira, 28 de
fevereiro, e se estenderia at a tera-feira seguinte. Logo que comeou
a semana, Carlinhos, como era chamado carinhosamente pelas pessoas
mais prximas, levantou-se cedo e tomou caf da manh reforado. O
pai, Nilton Marques, tambm estava prestes a sair ele era vendedor
ambulante e fazia alguns bicos como servente de pedreiro. O filho mais
velho vestiu uma camiseta branca, short azul e calou o par de tnis de
lona vermelha que gostava de usar. Na bolsa, aprontou uma sacola com
limes e saiu dizendo famlia que entregaria a encomenda para uma
freguesa.
O menino estava acostumado a se levantar assim que os primeiros
raios de sol ameaassem surgir. Naquela segunda-feira, dia 3 de maro,
por volta das 9 horas, Jos Carlos fechou o porto de casa de madeira
e quintal amplo que abrigava um pequeno pomar, localizada na rua Rio
Grande do Norte, nmero 1.740. Atravessou a varanda de casa, fechou
o porto e caminhou pela rua inclinada do Jardim Alvorada, regio
norte da cidade, at o centro, em um trajeto com aproximadamente
-
49
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
cinco quilmetros. Era um garoto esperto e a inteligncia do filho mais
velho sempre foi motivo de orgulho para o pai. No foi difcil Carlinhos
fazer amigos na cidade, fregueses habituais da simpatia do rapazinho
de cabelos loiros, pele branca e olhos escuros. J nas avenidas centrais,
ele costumava passar de estabelecimento em estabelecimento oferecendo
bilhetes e, por vezes, os limes que tinha entregado naquela manh. O
calor aumentava assim que a tarde se aproximava e, por volta das 13
horas, o menino dirigiu-se ao restaurante Tai-Wan, na avenida Tiradentes,
prximo ao Parque do Ing um dos principais pontos tursticos da
terceira maior cidade do Estado. Deu passadas largas entre uma mesa
e outra oferecendo mais limes aos clientes em horrio de almoo. At
as 15h30 permaneceu ali e antes de sair, pediu para os garons um prato
de comida. O pedido foi prontamente atendido. Na ocasio, Jos Carlos
aproveitou para compartilhar dois momentos com os funcionrios do local:
que ele teria sido vtima de um assalto e que tambm teria encontrado
naquele dia uma carteira decorada com muitos adesivos e com Cr$ 21
mil cruzeiros dentro, o que hoje equivaleria a aproximadamente R$ 76.
Nenhum documento identificava o dono.
Despediu-se dos que estavam no Tai-Wan e ficou at aproximadamente
16 horas na esquina da avenida Tiradentes com a rua Piratininga. De l,
seguiu em direo avenida Brasil, h cinco quadras do local que estava
at esse horrio. Como era um rostinho de fcil identificao, por sempre
andar pelo centro, no tardou at que as pessoas revelassem se tinham
visto ou no Jos Carlos quando a famlia deu por falta do rapaz.
A revelao mais surpreendente nos telefonemas feitos ontem para a redao do JP sobre o paradeiro do menino, foi feita por um rapaz, que no quis se identificar. Ele contou que por volta das 18h20, daquele dia, quando trafegava de moto com sua esposa pela avenida So Paulo viu o menino dentro de uma Braslia branca trafegando naquela via. Segundo ainda
A LTIMA LEMBRANA
-
50 51
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
o rapaz, a sua esposa chegou a comentar que o menino que estava no carro todos os dias passa na loja onde ela trabalha para vender limes e raspadinhas. Ele revelou ainda que trafegou junto com o carro at a avenida Morangueira e na rua 10 de Maio o veculo dobrou esquerda e sumiu. (Sumio de menino envolto em mistrio - Reportagem publicada no Jornal do Povo, no dia 7 de maro, em Maring)
A famlia Santos era formada pelo pai, a me e dois irmos mais
novos. Nilton Marques, ento com 42 anos, prolongou o inaceitvel registro
do boletim de ocorrncias que confirmava o desaparecimento da criana
at quinta-feira, dia 5 de maro. A volta do menino, desde 1992, continua
sendo adiada. Com as notcias divulgadas na imprensa, no demorou
muito para que telefonemas apontassem algumas pistas resultando no
desgaste da prpria polcia, que teve de lidar com o que os jornais da
poca noticiavam como humor macabro, devido s informaes que
os annimos ofereciam. Uma das ligaes dizia que o corpo de Carlinhos
estaria no bosque. Maring tem dois parques principais, que ficam na
regio central e so comumente comparados a dois pulmes da cidade
pelo contorno que tomam. Os dados mobilizaram os policiais e familiares
do menino, h dias realizando buscas, a revistarem o Parque Florestal dos
Pioneiros, conhecido como Bosque 2 e o Parque do Ing. Pensando que
iriam se deparar com o cadver do garoto e responder em parte, a incgnita
acerca do desaparecimento que se deu naquele fim de tarde da segunda-
feira, os envolvidos foram assolados por nova decepo ao constatarem
que o telefonema no passava de mais um trote. Informaes falsas que
levaram a polcia a percorrer toda a regio de Maring, viajando tambm
para Doutor Camargo e uma cidadezinha prxima a Assis Chateaubriand.
Todas as viagens em vo.
-
51
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
52 53
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
MARO
Todas as manhs Suely cumpria o mesmo ritual. Preparava-se para
a atividade voluntria no Molivi (Movimento de Libertao de Vidas),
uma organizao responsvel por atender mulheres grvidas e mes em
situaes de vulnerabilidade social, que funcionava Avenida Paran,
regio norte de Maring. Cada passo que dava em direo sede do
movimento representava uma etapa cumprida daquilo que considerava
uma misso. Membro da Igreja Missionria Central, Suely Palma Stadler
dava aulas de msica no local, promovendo perodos de louvor e de
evangelizao. Sentia-se bem pelos momentos dedicados atividade e
o sentimento positivo parecia crescer e cobrar-lhe mais a cada dia. Em
contato com as pessoas ali reunidas, era improvvel no conhecer um
pouco da histria de cada uma, envolvendo-se com todas. E quo grata
surpresa era saber que suas mos e suas aes contribuam para alguma
mudana de perspectiva.
Durante as ministraes de Suely, algum chamava-lhe a ateno.
Com cabelos castanhos e lisos pouco abaixo dos ombros e sempre presos
por um prendedor de mesma cor, a jovem de pele clara e de baixa estatura
gestava, aparentemente, o primeiro filho. A cada novo encontro, novas
impresses. A barriga da jovem crescia, fazendo Suely refletir sobre o
destino daquela criana. O seu desejo era que aquela me tivesse uma
vida digna e pudesse oferecer os melhores cuidados ao ser que nasceria.
Como os encontros no eram dirios, as diferentes etapas da gravidez
daquela moa mexiam com Suely. Crescia a compaixo pela vida que
-
53
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
naquele ventre era gerada. E o tempo passou depressa.
Era tera-feira, 2 de novembro de 1982. Suely se arrumou e
encontrou-se com o grupo com o qual costumava ir ao centro assistencial.
No salo onde todos comumente se reuniam para os momentos de louvor
e evangelizao, havia uma movimentao diferente. Suely deixou os
objetos que carregava consigo sobre a pequena mesa de plstico coberta
por uma toalha florida e caminhou em direo ao aglomerado formado
ao fundo do saguo. Grata surpresa: a jovem gestante, que lhe despertava
sempre a ateno, dera luz um lindo menino, de pele branca, olhos de
jabuticaba e cabelos negros. Sentia-se feliz por poder, ao mesmo tempo,
ajudar mulheres a alcanarem conquistas e mudarem de vida e, mais do
que isso, contemplar naquele momento o milagre da vida. O pequeno
Ednilton nascera no domingo, dia 31, e aparentava estar em timas
condies de sade.
A entidade assistencial era o segundo lar de Suely. O pensamento
dela no se desvinculava das histrias de tantas personagens que ali
estavam. Nos minutos que antecediam suas ministraes e entre os
intervalos existentes, ela procurava saber sobre o desenvolvimento do
beb Ednilton. Era solteira, mas sonhava ter um filho e derramar-lhe todo
o carinho que sentia por crianas. Em casa, durante o caf ou o jantar,
assuntos referentes s vidas das mulheres que conhecia no Molivi eram
inevitveis.
Dona Delva, sua me, ento com 45 anos, alertava:
- No se envolva demais com essas pessoas. Evite sofrimentos para
voc, minha filha vrias conversas entre as duas terminavam sempre
com a mesma advertncia.
Foi com surpresa que Suely, em um dia nublado no qual se
preparava para iniciar as aulas musicais no Molivi, recebeu a notcia sobre
o pequeno Ednilton:
- A me o abandonou. Deixou apenas uma carta abrindo mo dele
A LTIMA LEMBRANA
-
54 55
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
e avisando que estava indo embora. Pobre garoto! algum lhe contou.
Promover o perodo de louvor, naquele dia, foi difcil. O seu desejo
era que a hora passasse depressa. No podia imaginar sem preocupao o
futuro daquela criana abandonada. Precisava fazer algo para ajud-la e
seu corao j lhe indicava o qu.
Mal prestou ateno no trajeto do nibus at a sua casa. Ansiosa
e apressadamente abriu e fechou o porto, correndo na direo da me.
A histria foi contada com muita empolgao e no reservou espao para
rodeios: Me, temos que adot-lo!. Apesar da delicadeza e seriedade do
pedido, no custou muito para que dona Delva, me de outros quatro filhos,
j encantada com a histria e os desejos narrados pela filha, aceitasse a
ideia da adoo. A conversa com o marido, Willin Palma, ento motorista
de caminho, ocorreu por telefone. Ele fez algumas ressalvas, questionou
se era isso mesmo o que ela queria e aceitou que o menino viesse para a
famlia. Vamos comear de novo?, brincou com a mulher.
Com o garoto vivendo sob o mesmo teto, a cada novo dia a famlia
apegava-se mais a ele, ao mesmo tempo em que precisava considerar a
ideia de ele voltar aos braos da me biolgica - a Justia aguardaria por
at um ano o aparecimento da me, que poderia voltar expressando o
desejo de ter a guarda do filho. Mas isso no aconteceu. No se tinha
notcias da jovem que havia abandonado o movimento e o prprio filho.
Por recomendao do juiz, ento, o garoto, que j atrara a ateno de todos
os familiares, foi adotado em nome de Delva Palma e seu marido Willin
Palma. Alm de ganhar um pai, o abandono sofrido foi recompensado
pela conquista de duas mes: Suely e Delva dividiam a responsabilidade
pela formao de Ednilton, que com o tempo passou a ser carinhosamente
chamado de Niltinho.
Quando Suely se casou, Niltinho tinha 3 anos. Depois de seis anos
casada, Suely decidiu deixar a casa de sua me. Foi o momento de uma
grande deciso para o garoto de ento 9 anos. A partir daquele instante,
-
55
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
moraria com Delva, legalmente responsvel por sua formao, ou com
Suely, que gostava de estar prximo? Parece que a relao iniciada ainda
nos seus primeiros dias de vida falou mais alto: o garoto escolheu mudar-
se de casa.
A casa de Suely ficava a no mais de um quilmetro da de Delva.
Niltinho crescia brincando pelo bairro Lea Leal. Sua esperteza e disposio
encantavam toda a famlia Palma, que, durante os almoos de domingo
se envolvia com o filho mais novo de dona Delva. Brincalho, levado e
criativo, Ednilton tinha uma animao admirvel. Durante as refeies,
ningum tocava na coxa de frango: era o seu prato preferido; bastava um
convite de dona Delva para que ele buscasse a carne, segurasse com as
duas mos, ao mesmo tempo que tentava criar novos passes futebolsticos
com a bola aos ps.
O trajeto da casa de Delva at a de Suely era comum a Niltinho.
O contato com as duas mes e as duas casas j era algo natural para
ele h seis meses, desde que Suely se mudou. No ano de 1992, o menino
frequentava a 3 srie do ensino fundamental na escola Gabriel Sampaio.
No gostava muito do ambiente escolar, mas era habilidoso em trabalhos
manuais e muito inteligente. Preferia, como qualquer garoto de sua idade,
brincar com os amiguinhos.
Domingo era o dia da semana em que Niltinho acordava com uma
animao fora do comum. Procurava aproveitar cada momento ao lado de
familiares e amigos da vizinhana. Era 29 de maro de 1992. O garoto abrira
os olhos pensando na festa do amigo que tinha naquele dia. Enquanto sua
famlia reunia-se depois do almoo, como de costume, Niltinho se trocou
na casa de dona Delva e dirigiu-se para a festinha de aniversrio. Bolo,
brigadeiro, beijinho e muitas brincadeiras agitaram a tarde do garoto, que
nem viu o tempo passar depressa. Quando deu por si, poucas pessoas
ainda estavam na casa onde a comemorao ocorria e o dia dava sinal de
que estava por acabar. Niltinho voltou para a casa de Delva e pegou seus
A LTIMA LEMBRANA
-
56 57
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
pertences, planejando chegar em casa e acompanhar Suely ao culto, como
de costume. Segurou a coberta que carregava sempre consigo e, com o sol
quase se pondo, foi andando pelas ruas tranquilas daquele bairro.
Naquela noite, enquanto Delva e o marido julgavam estar Niltinho
aos cuidados da filha, Suely pensava que o garoto estivesse na casa de sua
me, afinal, o dia havia sido festivo e a comemorao poderia ter acabado
j noite.
Segunda-feira pela manh, Suely se dirigiu casa de Delva, onde
teve a surpresa que abalou aquele incio de semana da famlia Palma: o
garoto no estava l. Rapidamente, me e filha se mobilizaram procura
do menino e de informaes na vizinhana. As horas corriam e ningum
dava nem sequer uma pista de onde a criana poderia estar. O desespero
comeou a tomar conta no s dos familiares, mas dos vizinhos e amigos
que observavam durante anos o crescimento do garoto.
Delva acionou a polcia, entendendo ser uma das mais fortes
esperanas de o menino ser encontrado. Desejou que os policiais
comeassem imediatamente o servio de buscas, mas isso infelizmente
no aconteceu. A me, j desesperada com o que estava acontecendo, foi
informada de que o prazo de tempo entre o desaparecimento e o incio de
buscas e investigao ainda no havia terminado.
Sem esperar somente pela atuao da polcia, a sada foi continuar
a procurar Niltinho na regio, contando com a ajuda daqueles mais
prximos. Ao alcanar a casa de um amigo do garoto, uma novidade:
os dois haviam se encontrado aps a sada de Niltinho da casa de dona
Delva. O amigo contou que conversaram e que, aps ter ido padaria, a
pedido da me, no viu mais o filho de Delva, imaginando que ele j teria
ido embora.
Os momentos que se seguiram foram angustiantes. A famlia
ansiava por uma pista, ao menos. E ela chegou. A nica. Niltinho estaria no
Jardim Alvorada, a 4 km de casa, sujo e com fome. Delva depositou toda a
-
57
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
esperana sobre aquela pista. Seu desejo incessante era de que o menino
fosse encontrado e a sua animao e esperteza voltassem a contagiar sua
casa e aquele bairro, onde era querido. Rapidamente chegaram ao local da
pista. Nada encontrado. Nem sinais, informaes ou algo que lembrasse o
garoto. A famlia estava abalada.
Mesmo com o incio das buscas pela polcia, no houve avano.
Muitos depoimentos foram ouvidos e registrados e sempre que ficava
frente a frente com o delegado, dona Delva ouvia dele o que sabia no
ser verdade: O menino fugiu!. No se conformou, porque conhecia o
garoto. A sua busca pelo filho seria sua vida. Tinha sede por respostas e
desejo de misso maternal cumprida.
Eu acho que a polcia daqui tinha que ter dado mais assistncia.
O caso que envolve uma vida merece dedicao. Tem que ir
em todos os lugares possveis de encontrar a criana. Ele
fugiu? No. Ele no tinha motivo para fugir. Por que uma
criana amada e bem tratada em casa e pelos vizinhos iria
querer fugir? Acredito que se [a polcia] tivesse agido logo
que a gente avisou, teramos mais chance de encontr-lo. s
vezes no entendo por que tudo isso aconteceu. Parece at
que tem peixe grande por trs disso. Eu tinha informaes
de que o registro de nascimento dele estava em Paiandu.
Procuramos l e em Sarandi, nada foi encontrado.
(Delva Palma, me adotiva de Ednilton)
Aos 10 anos de idade, quando desapareceu, a famlia ainda no
tinha revelado para o garoto que ele era filho adotivo. E nunca tiveram a
oportunidade de contar.
A LTIMA LEMBRANA
-
58 59
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
59
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
60 61
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
ABRIL
Vivendo sempre nas estradas, para participar do maior nmero
possvel de feiras agropecurias, caracterizadas pela forte movimentao
financeira principalmente no interior do Estado, a famlia estabelecida
em Sarandi, cidade localizada na regio metropolitana de Maring, regio
norte do Paran, no precisou de tanto tempo de viagem para levar a
barraca de pastel at a prxima feira da agenda. De cidade em cidade o
grupo, sempre unido, tratava logo de montar o acampamento para vender
o salgado tpico das feiras responsvel tambm pelo sustento do lar. Em
Londrina no foi diferente. As exposies sempre encantaram o garoto
Edson Rodrigo Batista da Silva, de 6 anos, que at gostava de oferecer
ajuda aqui e ali aos pais. Mas o que o divertia mesmo era ver o movimento
das feiras e brincar em meio a tantos lugares diferentes que conhecia ao
lado da me, Vera Lcia, e do pai, Elcio, donos da Pastelaria Maring.
A chegada sempre lhe enchia os olhos. O trnsito interno era
formado por crianas acompanhadas dos pais e numerosos brinquedos
para experimentar. O carrossel, o temeroso trem-fantasma, os carrinhos de
bate-bate e a imensa roda-gigante, que parecia sorrir ao pequeno Edson,
to miudinho perto da grandeza daquele crculo aramado, decorado com
cores chamativas. Quando a noite chegava, devagar, a aparelhagem toda
fazia a festa com tanta luminosidade. Eram luzes que revezavam entre
si o momento de encantar os visitantes, indo do amarelo, verde, azul,
vermelho. A msica era frentica e o algodo doce ajudava a temperar
a animao de cada criana. Toda a movimentao refletia aos olhos
-
61
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
encantados do menino que nunca se cansava de reviver tal emoo. O
que era sonho para muitos pequeninos do interior era uma realidade
frequente ao garoto, de morar em um parque de diverses. Gostava
de visitar o pavilho dos bichos, e convivia feliz com bois, cavalos e a
tpica aglomerao de curiosos para um evento que parecia igual todos os
anos. Para ele, era rotina. E, mesmo assim, era capaz de se surpreender e
reforar a criatividade para cada nova traquinagem.
Ao entardecer do dia 5 de abril de 1992, Edson, saindo para
se divertir, apresentou para a me um novo amiguinho, sete anos mais
velho, que conheceu durante a estadia deles na cidade, distante 87 km da
casa em que mal vivia. Vera Lcia Pereira da Silva alertou ao filho para
que no fosse longe e retornasse logo para a barraca, que fechava com o
fim das atividades de mais um dia de feira. Edson vestia uma camiseta
lils, short marrom e botas pretas. Antes de se lanar na nova aventura,
beijou a me e correu todo serelepe, a fim de desvendar os mistrios que
o lugar lhe reservava. De pele alva, cabelos e olhos negros, o rapazinho
da famlia saiu prometendo no ficar muito tempo longe.
J passava das 11 horas da noite daquele domingo e Edson ainda
no tinha aparecido. Aos poucos as fontes luminosas que caracterizavam
o parque foram se apagando, at restar poucas lmpadas acesas.
A preocupao da famlia mobilizou todos os outros barraqueiros,
que se espalharam pelo parque de exposies na tentativa de encontrar
o garoto. Em pequenos grupos, eles teriam de percorrer os 411 mil m
da rea total do Parque de Exposies Governador Ney Braga, onde
ocorria, anualmente, durante 11 dias, a grande festa de Londrina. A me
prontamente avisou a polcia, que informou com tranquilidade que o
menino logo estaria de volta. A madrugada chegava fria, aumentando
ainda mais o medo de Vera e do marido, Elcio Batista da Silva, quando
uma notcia despertou o alvio dos pais. Uma moa informou que havia
visto uma criana dormindo debaixo de um dos brinquedos do parque.
A LTIMA LEMBRANA
-
62 63
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
Rapidamente se deslocaram para o local sugerido e a decepo veio com
dificuldade para ser compreendida por todos os envolvidos na busca:
existia sim algum dormindo, mas no era Edson. Logo outra pista os
direcionava para o pavilho industrial e nova desesperana assombrou
os pensamentos da famlia, que acompanhou lentamente, como quando
os segundos parecem minutos, e os minutos transfiguram-se em horas
interminveis de sofrimento. Vera tentava afastar os pensamentos ruins da
mente. Sentada prxima barraca de pastel, suspirava fundo, aspirando o
cheiro de gordura que impregnava a roupa, o qual ela e todos ali j estavam
acostumados a sentir. Sentia tambm um aperto no peito, pensando se o
seu menino tinha passado a noite bem. Onde estaria Edson? Os primeiros
raios de sol tocaram o rosto dos pais que, abraados, torciam para que
tudo desse certo.
Vendo a mobilizao dos responsveis pelas dezenas de barracas
montadas na feira em busca da criana, a polcia tambm resolveu comear
as buscas. Os policiais iam diariamente barraca da famlia perguntar
sobre novas informaes e deixavam o local sem respostas. Vera tinha
o pensamento fixo no rosto do filho, que no lhe saa da cabea por
um momento sequer. As olheiras das noites sem sono comeavam a
ficar evidentes abaixo dos olhos cansados. Ela, ento, comeou a agir
por conta prpria, reunindo pistas que achava ser prudente conferir: o
cunhado Nelson Batista teria arrumado inimizade com uma pessoa,
que poderia ter raptado o sobrinho dele a fim de se vingar. Resposta
negativa. Ela acreditava que se a polcia tivesse agido imediatamente aps
seu pedido de socorro, estaria com o filho nos braos, lhe dando outro
beijo no rosto e dizendo que em vez de brincar no parque, ficaria desta
vez junto aos pais, aliviados, na barraca. Sonho distante e que nunca se
realizou. Diversas testemunhas apareceram poca dizendo que o viram
no parque, mas nenhuma foi efetiva.
-
63
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
64 65
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
ABRIL
De famlia grande, as tardes em casa ou na vizinhana sempre eram
movimentadas para Lucinia Silvrio da Silva, de 5 anos. Eram seis irmos
incluindo a garota sua irm mais velha, ento com 16 anos, olhava os
menores para que os pais pudessem cumprir os afazeres. No dia 19 de abril
de 1992, um domingo, ela e os irmos foram a uma festa de aniversrio que
acontecia na casa de uma vizinha. Com grande movimentao, a reunio
era recheada de alegria, salgadinhos e docinhos de festa que as crianas
tanto gostavam. Lucinia se concentrou nos brigadeiros, a guloseima que
mais apreciava. Msicas infantis e risadas podiam ser ouvidas a casas de
distncia e a festa parecia ir longe. Era final de domingo e muitos pais
se preparavam para a jornada que comearia dali a algumas horas, com
o incio de mais uma semana de trabalho. Os filhos de Milta Silvrio da
Silva e Joo Bernardo da Silva logo voltaram para o lar a fim de tambm
descansar. Antes de irem embora, um convidado especial registrara um
retrato dos cabelos castanhos ondulados, as bochechas salientes e o
sorriso meigo de Lucinia. O boliviano que estava na reunio festiva iria
embora pouco tempo depois.
Naquele incio de dcada, Araucria contava com 61.998 habitantes.
A cidade, localizada na regio metropolitana de Curitiba, est situada s
margens do rio Iguau. A regio, que conta com 471,33 km, cortada
pela BR-476, conhecida como rodovia do Xisto. A segunda-feira, dia 20
daquele ms, comeava cedo para Joo Bernardo. A me tambm pulava
da cama cedo para preparar o caf antes de o marido sair de casa. O pai
-
65
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
de famlia entornou uma xcara do lquido escuro em um despertar e
tomou o rumo do servio. Milta aguardou os filhos tambm levantarem
para dar conta dos prprios afazeres, pois tinha de ir ao banco logo mais.
Deixou as crianas em casa e foi com a promessa de que logo estaria de
volta. Nesse meio tempo, Lucinia disse que visitaria duas vizinhas para
brincarem juntas, mas que retornaria at o horrio de almoo. Trocou de
roupa, calou chinelos de dedo e encostou o porto cuidadosamente,
tentando no provocar tantos rudos.
A dona de casa cumpriu a promessa e no tardou a voltar para a
casa. Perguntou a uma das filhas se todos j haviam almoado, e obteve
como resposta a informao de que a filha mais nova estava fora de
casa. Percorreu o mesmo caminho que a pequena fez para sair de casa e
pretendia busc-la para almoar. No estava com as amiguinhas, muito
menos na vizinhana. O desespero aumentou quando, em um terreno
baldio prximo da prpria casa, Milta encontrou um dos chinelinhos
da menina, impossvel de no reconhecer: no dia anterior um cachorro
mordera um dos pares do calado e a me calmamente havia remendado
com linha.
O pai passou dias caminhando beira do rio e no meio da mata,
pensando que poderia encontrar alguma pista. A polcia e a famlia ficaram
na rdua investigao durante quatro dias e o nico suspeito que tinham
em mente era o boliviano da festa do ltimo domingo ele foi localizado
um tempo depois, mas viajou para a Bolvia e nada foi descoberto. Nas
lembranas de Maicon Silvrio da Silva, que na poca tinha apenas 2
anos de idade, vrios flashes de reprteres, cmeras e microfones assolam
uma lacuna que ficou. To novo, ele no sabia. Mas a movimentao se
dava por conta do desaparecimento de Lucinia, a irm que nunca mais
o aninhou nos braos.
A LTIMA LEMBRANA
-
66 67
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
67
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
-
68 69
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
NOVEMBRO
A decorao da sala de estar era repleta de quadros com fotografias
da famlia uma dessas imagens registrava a filha do meio com os
cabelos presos em duas chiquinhas. Sua feio era tranquila, transmitindo
a inocncia e doura de criana. O dia era claro, convidativo para brincar
fora de casa e no tardou para Gislaine Aparecida Ferreira, ento com 6
anos de idade, sair pela porta da frente. O lar da menina ficava na rua
Roger Bacon, 499, no Jardim Campo Alto, em Colombo, municpio da
regio metropolitana de Curitiba. Uma vez no quintal da residncia, ela
aproveitava a brisa fresca para brincar com uma boneca que, com muito
custo, os pais, Jurandir Ferreira e Vanilza Aparecida Ferreira, conseguiram
comprar. A menina tinha uma irm dois anos mais velha e um irmo dois
anos mais novo. A famlia vivia da venda de material reciclado e ficava
boa parte do dia fora.
Era 11 de novembro de 1992, uma quarta-feira, e pela proximidade
de Curitiba, boa parte da populao colombense sara de casa para
trabalhar na capital paranaense, localizada a aproximadamente 18 km.
No ltimo censo do IBGE, a populao de Colombo era estimada em
117.767 habitantes. O bairro onde a famlia Ferreira morava era afastado
dos bairros mais populosos. Tranquilo, a ponto de as crianas brincarem
livremente nas ruas e vielas sinuosas que compunham o Campo Alto. A
casa simples de madeira era prxima o equivalente a quatro quadras do
rio Atuba, que passa por Pinhais e Curitiba, alm de ficar tambm a 14
quadras da estrada da Ribeira, nome que a BR-476 recebe entre a cidade
-
69
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
de Adrianpolis at a capital do Estado.
Acostumada a ir para a casa da madrinha durante o dia, a garotinha
de pele morena clara, cabelos crespos e olhos espertos resolveu fazer-lhe
uma visita. Calou chinelinhos havaianas, caminhou at o melindroso
porto de ferro corrodo pela chuva e encostou-o assim que ganhou a
calada de pedregulhos. O muro de casa era baixo, quase beirando a
prpria altura, permitindo que ela observasse a porta do lar, dando-lhe
adeus. Direcionou o corpinho para a casa da segunda me, e partiu. A
casa da madrinha ficava a pouco mais de 50 metros da sua, quase de
esquina com a rua Kelvin. L, ela passou a tarde brincando com outras
crianas at cansar. Sentindo-se exausta, avisou a turminha que iria para
casa e tomou o caminho de volta.
J em casa, Vanilza estranhou a demora da filha e foi at a madrinha
de Gislaine. Chegou ao porto batendo palmas para anunciar sua chegada
e perguntou para as crianas onde estava a menina. A resposta fez com
que a me suasse frio: j passara uma hora que a filha disse que retornaria
para casa, e no o fez. Vrias pessoas foram ouvidas, mas nenhuma
informao levantada direcionou as investigaes com sucesso. A nica
testemunha do caso informou polcia que viu Gislaine sendo levada por
uma mulher de cabelos de tom castanho escuro, pele branca, usando
culos de sol. Junto da moa estava um homem de cabelo grisalho, que
dirigia um carro de modelo Escort na cor vermelha. A testemunha, um
vizinho, disse que no momento no estranhou que a garotinha fosse
levada porque pensou que fosse algum parente. Os tios da molecada
costumavam visit-los de carro, o que contribuiu para que a ao fosse
vista com naturalidade pelo observador. Ele faleceu algum tempo depois
e nenhuma resposta foi obtida do relato. Os chinelinhos foram os nicos
pertences encontrados por Vanilza.
Hoje a garota teria quatro irmos. O que tinha 4 anos na poca
no consegue se deparar com alguma boneca hoje sem lembrar-se da
A LTIMA LEMBRANA
-
70 71
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
pequenina. Uma das poucas lembranas que tem da irm a choradeira
que ela aprontou quando perdeu uma boneca. Os soluos da menina
ecoam at hoje na memria do rapaz. Gislaine tambm seria tia de quatro
crianas, filhos da irm mais velha. Quem sabe hoje tambm no fosse
me? Os pais se separaram e Jurandir Ferreira morreu sete anos depois do
desaparecimento da menina sem nunca saber se foi av, sem nunca mais
ter nos braos sua princesa. Ele tambm chorou quando se deu conta de
que havia perdido sua bonequinha.
-
71
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
SEGUNDO CAPTULO
-
72 73
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
MUDANA DE RUMOS
-
73
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
A insatisfao aumentaria a cada chamada no conferida pela polcia
e a cada vez que se deparava com o rostinho do filho nas fotografias.
Sem ainda se dar conta disso, a prpria histria de Arlete Ivone Carams
se cruzaria com 11 outras de um mesmo enredo, suficiente para unir
e direcionar a dor para algo efetivo diante de novos desaparecimentos.
Esse drama em comum mudaria para sempre o destino de tantas outras
famlias paranaenses nos anos seguintes.
Aps um ano longe de Guilherme, Arlete estava determinada a
mudar a situao. A prpria vida estava em segundo plano. Os vizinhos j
comentavam o desleixo com uma das casas na rua Osrio Duque Estrada,
outrora de fachada bem cuidada e o jardim aparado, tempos de quando
o filho costumava brincar no espao defronte a residncia. Era notvel a
sensao de abandono se observassem os outros sobrados to destoantes
daquele lar. O interesse com os servios da casa tinham ido embora desde
o dia em que Guilherme desapareceu e era difcil recomear. De cor opaca
e janelas constantemente fechadas, at as paredes refletiam a ausncia
do garoto.
Motivada a reverter o descaso para com os desaparecidos, ela
deu incio a um movimento que tempos depois representaria no s o
desagravo de famlias traumatizadas pela perda de suas crianas, mas
tambm a esperana de todo pai e me amparados somente pelo prprio
estertor. O Movimento Nacional em Defesa da Criana Desaparecida do
Paran (CriDesPar) se tornou a fora que Arlete nunca imaginou que teria,
e mal sabia que esse era apenas o comeo.
- A gente nunca sabe os desgnios de Deus, o que Ele quer da gente.
-
74 75
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
De repente eu fui esse instrumento para alavancar tudo isso - cr.
***
Com a criao da ONG em 1992, Arlete desde ento tem se
dedicado no s busca incessante por Guilherme, mas tambm de
todas as outras crianas que desaparecem ano aps ano no Paran e no
so localizadas. A iniciativa surgiu com o objetivo de atuar na preveno
dos desaparecimentos, orientando pais, crianas e professores, com
aconselhamentos sobre segurana. Alm disso, por meio de uma rede
de relaes com as outras famlias que haviam sofrido a mesma perda,
o peso das reivindicaes seria outro. O prdio que abriga o CriDesPar,
com a fachada trabalhada em granito de duas cores escuras, funciona
na regio central de Curitiba. A sala que guarda as histrias de tantas
famlias paranaenses fica no 9 andar do nmero 464. A manh daquele
26 de junho de 2012 era fria, clima tpico na capital do Estado e atpico
para os que esto acostumados com o calor do interior. Dona Arlete?
906, respondeu uma das zeladoras do edifcio Minerva Baro. O elevador
amplo e mais frio que a prpria temperatura aqum a porta de vidro
que separa o saguo do prdio da calada craquelada do lado de fora.
Um homem de meia idade entra no elevador, compartilhando por um
momento a mesma viagem. O destino dele o 4 andar.
No piso desejado, uma porta de madeira escura sustenta uma
placa de metal identificando a ONG CriDesPar. Gilson, um homem
aparentando ter 40 anos, cabelos negros e olhos atentos no fundo dos
culos atende, indicando rapidamente o caminho at uma pequena sala,
aps atravessar a passadas largas dois cmodos de tamanho semelhante
- todos repletos de banners e psteres de crianas desaparecidas do
Paran.
A sala tem uma grande janela que permite a luz fria atingir
-
75
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
qualquer um que esteja ali presente. Um adesivo na mesma janela que
d viso para o prdio da Polcia Civil j denunciava: Arlete, Me do
Guilherme. Arlete chega desculpando-se pelo atraso. Separou-se do
marido e mora hoje somente com a me em outra residncia que estava
sendo construda quando Guilherme desapareceu. Sueli Carams, hoje
com 88 anos, est muito doente e requer cuidados, ateno e tempo da
filha que, aposentada, divide-se entre o lar e as atividades da ONG, que
j no to atuante quanto ela gostaria.
A aparncia da me coragem - adesivo que a identifica tambm na
parede - de algum cansada. Ela diz que em momento algum, em todos
esses anos, sentiu realmente que estava prxima de encontrar o filho
desaparecido. Suspira.
- Mas a luta continua - ressalta.
A pacincia e esperana inesgotveis j comeam a dar lugar
fatalidade dos anos sem resposta. As ligaes de trotes ou pistas cessaram
h muito tempo. Os cabelos brancos agora so mais evidentes com a blusa
vermelha que ela usa. Arlete no s uma me guerreira, referncia em
todo o Paran por tanto tempo. Ainda tenta ser a me de uma causa que
batalha para no cair no esquecimento.
***
Quando a movimentao pela busca do filho comeou a se
organizar, o ponto de partida de Arlete foi descobrir que no estava s.
Havia outras famlias tambm desesperadas pelo desaparecimento dos
filhos, 12 histrias que acabaram por unir pessoas de vrias localidades
no Estado. Os pais passaram a procur-la em vez de irem polcia. O
descrdito alusivo ao governamental crescia. E Arlete como referncia
para as famlias dos desaparecidos tambm aumentou ela passou a
orientar, da maneira que podia, qual era o procedimento mais indicado
diante do problema, norteando os primeiros passos de quem j no queria
MUDANA DE RUMOS
-
76 77
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
dar mais nenhum.
O primeiro espao usado para expressar o desapontamento com
a constante demora nas aes policiais e governamentais foi a avenida
XV de novembro, regio central de Curitiba. Inaugurada em 1972 como
a primeira passagem exclusiva para pedestres, a calada da rua XV,
como chamada, tem 3.300 metros cercados por edifcios de arquitetura
clssica, construes centenrias, canteiros de flores e uma devotada
movimentao dos curitibanos transeuntes na extenso. A frequente
circulao de pessoas era a ateno necessria que as famlias buscavam
para a causa que at ento carregavam sozinhos. Defronte popular
confraria Cavaleiros da Boca Maldita de Curitiba personagens estes
que outrora se reuniam para destrinchar as informaes publicadas pelos
peridicos locais naquela regio -, a unio daquelas famlias representava
ali novos cavaleiros, dessa vez de todo o Paran, que enfrentavam uma
ininterrupta batalha.
Palco da interao de msicos e artistas de rua, a Boca Maldita,
localizada logo no incio do calado, tambm serviu de palco para os
desabafos dos parentes dos desaparecidos. Ali foi realizada a primeira de
muitas manifestaes, que passaram a ser organizadas quinzenalmente
por Arlete Carams.
Em Maring, trs famlias foram unidas pela dor comum e pelo ano
que jamais esqueceriam em 1992, Delva Fiuza Palma, Vera Lcia Pereira
da Silva e Elisete Maria dos Santos j no eram completamente estranhas
entre si. Na primeira vez que as trs embarcaram em um nibus de linha
abafado, levavam a esperana na mala e a expectativa de que a viagem
longa resultasse em boas novas para trazerem de volta o conforto de que
a luta no era em vo. Era difcil pregar os olhos durante o trajeto e a
identificao entre as trs por conta da saudade que tinham dos filhos foi
motivo suficiente para que se tornassem amigas. Sem muitos recursos, o
trio s conseguia tornar visvel a prpria dor com o auxlio do CriDesPar,
-
77
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
que oferecia as passagens e a hospedagem para as mes do interior.
Natural do Rio de Janeiro, a carioca Delva estranhou a primeira vez o frio
da capital paranaense e se arrependeu por no ter levado mais blusas na
bolsa. As lembranas dessas idas e vindas foram se dissipando conforme
o tempo se arrastava, mas a inteno e os contatos que Delva fez ao
longo dos 426 km at Curitiba foram capazes de atenuar o desespero que
enfrentou sozinha.Ostentando de cartazes com fotografias e informaes daqueles
que foram tirados abruptamente do prprio lar, homens e mulheres
sustentavam olhares perdidos e destroados com o passar dos encontros.
O apelo era para chamar a ateno da populao em geral para que,
de alguma maneira, as pessoas pudessem se solidarizar com a causa.
Escancarar o problema que crescia para a imprensa da poca tambm era
uma misso importante, visto que nem sempre o desaparecimento de
crianas soava como uma pauta de interesse dos jornais, principalmente
do interior do Estado, que mal noticiavam o fato e, quando o faziam, o
espao dedicado era nfimo. Quando Ednilton Palma desapareceu, uma
breve nota de duas colunas no maior jornal de Maring, O Dirio do Norte
do Paran, informava o sumio do garoto. Em outro, O Jornal, na mesma
cidade, apenas uma coluna tmida. Com as reunies na capital, a fora era
maior e resultava notcias estampadas frequentemente nos jornais. Os
protestos no foram em vo: o governo no podia ficar em silncio por
muito tempo diante daquela realidade. Dos protestos, que tiveram incio
em 1992, trs anos se passaram at que houvesse algum resultado.
Teve um deputado na poca [Ricardo Chab] que se mobilizou
tambm, pediu para que a gente fosse Assembleia
[Legislativa] dar um depoimento. Eu fui com outros pais,
mas fui eu quem deu o depoimento. Consegui sensibilizar
o governo que precisava ter um rgo centralizador da
questo. Porque era uma coisa totalmente diferente do que
MUDANA DE RUMOS
-
78 79
SICRIDE - UM RETRATO DAS AES CONTRA O DESAPARECIMENTO DE CRIANAS NO PARAN
tinha a. No era homicdio, no tinha um corpo para dizer
que era homicdio, nada. Pedamos que criassem um rgo
de busca, entende? Porque ns, pais, no temos esse poder
de polcia. Tanto que a ONG [CriDesPar] foi criada no sentido
de preveno, prevenir as pessoas, orientar. Virei, na poca,
uma fonte de referncia. Ao invs de irem polcia, eles
vinham a mim, queriam saber como que fazia e tal. Eu tive a
sorte porque eu trabalhava no Banestado na poca, quando
meu filho desapareceu. Digo que tive sorte porque ningum
quer dispor de nada nesse perodo. Ningum quer ajudar
a fazer um cartaz e distribuir, e o Banestado me ajudou
muito. Tanto que mandei um cartaz para todo o Brasil. E
conseguimos sensibilizar o governo do Jaime Lerner [que
havia assumido o mandato em janeiro daquele ano]. A gente
queria uma secretaria dedicada, mas disseram que ia onerar
muito a estrutura. A criaram um servio de investigao que
funciona e muito bem.
(Arlete Carams Tiburtius, me do Guilherme e presidente
do CriDesPar)
O projeto original foi apresentado em maro do ano passado
pelo deputado Ricardo Chab (PSDB), e aprovado pelos
deputados no primeiro sem