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>74 ano XVIII, n. 184, dezembro/2005 pulsional > revista de psicanálise > Tania Coelho dos Santos A psicopatologia psicanalítica de Freud a Lacan* artigos > p. 74-82 A dimensão do psicopatológico, no pensa- mento psicanalítico, ancora-se estreitamen- te numa posição crítica diante dos obstácu- los que a cultura coloca para a felicidade. A psicopatologia psicanalítica não é ingênua, e não naturaliza o sofrimento psíquico. Mui- to cedo, num artigo onde desponta toda a desconfiança freudiana face à progressiva tendência da civilização ao recalque, encon- tramos a tese de que o sofrimento neuróti- A psicopatologia psicanalítica explica o sofrimento psíquico pela inadequação do sujeito à civilização. Freud colocava muita ênfase na coerção abusiva da sociedade sobre a sexualidade, cujo efeito permanente é o sentimento universal de culpa, fonte dos obstáculos à cura pela análise. Lacan, ao final do seu ensino, considera que esse mal radical é também a fonte de uma satisfação pulsional que não serve aos propósitos da civilização, pois o sintoma é para cada sujeito uma maneira de viver e ser feliz. > Palavras-chave: Psicopatologia, recalque da sexualidade, mal-estar na civilização, sintoma e felicidade The psychoanalytical psychopathology explains psychic suffering by the unfitness of the subject in the civilization. Freud stressed the abusive coercion of society towards sexuality as a major cause that had the effect of the universal guilt, which is an impediment for the analytical cure. Lacan considered that this radical evil is also the origin of a “pulsional” satisfaction that does not serve the purpose of the civilization, because the symptom is for each individual a way to live and be happy. > Key words: Psychopathology, repression on sexuality, unhappiness in civilization, sympton and happiness * > Trabalho que resultou das discussões havidas no Grupo de Trabalho Psicopatologia e Psicanálise da ANPEPP.

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Tania Coelho dos Santos

A psicopatologia psicanalítica de Freud a Lacan*

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A dimensão do psicopatológico, no pensa-

mento psicanalítico, ancora-se estreitamen-te numa posição crítica diante dos obstácu-

los que a cultura coloca para a felicidade. Apsicopatologia psicanalítica não é ingênua,

e não naturaliza o sofrimento psíquico. Mui-

to cedo, num artigo onde desponta toda adesconfiança freudiana face à progressiva

tendência da civilização ao recalque, encon-tramos a tese de que o sofrimento neuróti-

A psicopatologia psicanalítica explica o sofrimento psíquico pela inadequação dosujeito à civilização. Freud colocava muita ênfase na coerção abusiva da sociedade

sobre a sexualidade, cujo efeito permanente é o sentimento universal de culpa,fonte dos obstáculos à cura pela análise. Lacan, ao final do seu ensino, considera

que esse mal radical é também a fonte de uma satisfação pulsional que não serveaos propósitos da civilização, pois o sintoma é para cada sujeito uma maneira de viver

e ser feliz.

> Palavras-chave: Psicopatologia, recalque da sexualidade, mal-estar na civilização, sintoma

e felicidade

The psychoanalytical psychopathology explains psychic suffering by the unfitness ofthe subject in the civilization. Freud stressed the abusive coercion of society towardssexuality as a major cause that had the effect of the universal guilt, which is animpediment for the analytical cure. Lacan considered that this radical evil is also theorigin of a “pulsional” satisfaction that does not serve the purpose of thecivilization, because the symptom is for each individual a way to live and be happy.

> Key words: Psychopathology, repression on sexuality, unhappiness in civilization,

sympton and happiness

*> Trabalho que resultou das discussões havidas no Grupo de Trabalho Psicopatologia e Psicanálise daANPEPP.

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co advém do excesso de coerções que pesamsobre a vida sexual do homem civilizado. O

laço entre a “Moral sexual civi lizada e adoença nervosa moderna”, de que falou

Freud em 1908, generalizou-se em “O mal-estar na civilização” durante os anos 1929/

30. Nesse momento, ele renova toda a po-tência de sua crítica aos danos causados

pela civilização aos indivíduos avançando atese de que há um paradoxo da satisfação

pulsional, Quanto mais renunciamos, maisrenunciamos! A renúncia não é simples-

mente a conseqüência malsã da coerção re-pressiva que pesa sobre a sexualidade. A

renúncia é uma erva daninha pois é, elamesma, um modo de satisfação pulsional. As

pulsões de morte avançam na direção destamodalidade nefasta de satisfação, sempre que

a sexualidade, o erotismo e o desejo recuam.De certo modo, em seus trabalhos sobre o

caráter, Freud já havia antecipado a proble-mática de uma satisfação pulsional que,

afastada das vias da satisfação sexual dire-ta, encontra o caminho regressivo da satis-

fação na identificação. Em “Alguns tipos decaráter encontrados no trabalho analítico”

(1917[1916]), já contrapõe os indivíduos “quereivindicam ser tratados como exceção”, aos

“fracassados por causa do sucesso” e aos“criminosos em conseqüência do sentimen-

to de culpa”. Ele não dispõe ainda do concei-to de pulsão de morte, ferramenta

explicativa que vai abrir novos horizontes àclínica psicanalítica. Cada uma dessas moda-

lidades de caráter, depois de 1920, encontra-ria seu amparo na malignidade inconsciente

do supereu. Como não reconhecermos no“desejo de ser tratado como uma exceção” a

inclinação perversa em fazer-se castigar pelopai? O sentimento de culpa pela satisfação

incestuosa não é a razão que impede o su-jeito de usufruir do sucesso, obrigando-o a

fracassar? Não seria também esse mesmosentimento, a causa que impele ao crime

para obter o castigo? A necessidade incons-ciente de punição tem raízes profundas na

vida psíquica tal como retrata o mito do par-ricídio originário. O sujeito civilizado, se le-

vamos em conta sua dívida para com arenúncia primordial ao incesto e à agressão,

não foi feito para ser feliz.Não vamos percorrer toda a teorização de

Lacan acerca do tema da felicidade e do so-frimento psíquico. Penso que Lacan não foi

nada otimista no começo de sua teorização.O sujeito () se constitui mortificado pelo

significante e, em conseqüência dessa per-da de gozo no momento do seu advento, está

condenado a eternizar-se como falta-a-ser.O gozo perdido é um obstáculo à simboliza-

ção embora não seja real. O gozo, no primei-ro ensino de Lacan, é apenas uma miragem,

um resíduo imaginário do incesto. O campoda fala e da linguagem, tal como se desen-

rolam na experiência analítica, contribuempara dissolvê-lo. Somente depois do Seminá-

rio X 1962/63 (L’Angoisse), Lacan encontrauma maneira de incluir o gozo – através da

vertente do fantasma (<>a) – na consti-tuição do sujeito. Reconhece nessa época

que o gozo não é apenas uma dimensão au-sente do simbólico, mortificada pelo signifi-

cante (), mas que se articula a umelemento positivo: o objeto aaaaa como mais-de-

gozar. Uma terceira teorização, que conven-cionamos chamar de último ensino de

Lacan, vai reduzir o fantasma – que é ummisto de significante () e gozo (objeto) – a

um outro misto, a insígnia. A insígnia (S1/a)é o matema do sujeito reduzido pela análi-

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se à pulsão. Para além do efeito mortificantedas identificações, que reduz o gozo ao fan-

tasma, o sujeito identifica-se ao sinthoma. Ainsígnia é o matema do sujeito reduzido à

pulsão, que nas palavras de Lacan “é sem-pre feliz”. Neste momento do seu ensino,

Lacan já não distingue sintoma e caráter. Aúltima formulação contempla a positivação

dos obstáculos ao término de uma análise,tal como Freud os formulou. Como afirma-

mos anteriormente, Freud reduziu a vidapsíquica ao seu osso, o sentimento incons-

ciente de culpa. O apego ao sintoma, a rea-ção terapêutica negativa, a inacessibilidade

narcísica do paciente, a compulsão à repe-tição na neurose de destino, o repúdio da

feminilidade são algumas de suas traduçõespsíquicas. O último ensino de Lacan retraduz

o freudiano “sentimento inconsciente deculpa” em “repetição de um mesmo fracas-

so”. Ele faz do vício a virtude da vida libidi-nal. Se não há acordo possível entre o

sujeito e a civilização, então, “não há rela-ção sexual”. Logo, haverá necessariamente

sintoma. Coloca toda ênfase na satisfaçãoque o sujeito retira em repetir a mesma rata,

o mesmo fracasso, em perseverar em seusintoma. Se não há felicidade na vida civili-

zada, deve haver, por isso mesmo, satisfaçãopulsional nesse fracasso. O sinthoma é um

problema ou uma solução?

A civilização contemporânea esua psicopatologiaO discurso do capitalismo prometemaximizar o gozo útil. Hoje, mal-estar na ci-

vilização tornou-se um artigo gerenciado. Ogosto pós-moderno é a mensuração genera-

lizada. Medir, regulamentar, distribuir, homo-geneizar todos os gozos. Garantir o prazer

seguro e minimizar o mal-estar. O Outrocontemporâneo calcula o custo/benefício da

promessa global de igualdade e homeostasesocial. Aposta no poder dos medicamentos

de última geração e na prevenção psicotera-pêutica generalizada. Estamos numa socie-

dade que gerencia o risco de viver e pensapoder limitar o mal-estar, maximizando a

saúde mental. Trata-se de uma ampla mu-dança de regime, no sentido foucaultiano,

desde um estado que “deixa viver ou mata”para um estado que “deixa morrer e faz vi-

ver”. Como adiantam Miller e Milner (2004,p. 7-30), uma mudança profunda na modali-

dade de gestão do mal-estar está em curso.Incluído no campo da saúde mental, campo

que faz parte dos poderes régios do Estado,tornou-se assunto de saúde pública e segu-

ridade social. Toma-se o mal-estar como pro-blema, como queixa proveniente do social,

e ao homem público, o político, caberá en-contrar uma solução. Esse é o paradigma das

relações entre política e sociedade no uni-verso moderno. A solução se apresenta em

termos do paradigma da avaliação, da medi-da, e do calculável seja quantitativo, seja

qualitativo. São ambos paradigmas matemá-ticos e seu princípio é a colocação das peças

em apreço numa relação de equivalência. As-sim, um problema será substituído pela so-

lução equivalente. Basta, portanto, que hajaavaliação para que tenhamos uma solução.

A equivalência é um hiperparadigma e suainspiração é a moeda, isto que permite tro-

car uma mercadoria por outra. A outra facedesse hiperparadigma é jurídica: o contrato,

do qual os parceiros são supostos equivaler-se em potência, e terem ambos alguma coi-

sa a trocar. Lembrem-se de Marx quedesvendou a redução da força de trabalho a

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uma mercadoria que se vende. A importân-cia da sociedade do contrato ultrapassa o

nível jurídico. Sem nos darmos conta, passa-mos de uma figura à outra da democracia. A

democracia era o lugar geométrico da lei,mas a lei releva do limitado (do para todos).

A democracia entrou na era do ilimitado(não-todo). Tornou-se o lugar do contrato,

ou dos contratos, pois a força da forma con-tratual é que ela pode ser multiplicada de

maneira ilimitada. Se a ideologia do contra-to tornou-se o fundamento da democracia

ilimitada, não a democracia clássica, mas ademocracia do futuro, a avaliação e o con-

trato tornaram-se o modo de fazer avançara democracia. O que chamamos agora de Di-

reitos do homem e do Cidadão, não são maisos da Declaração de 1789. Os direitos de

1789 relevam do limitado, eles fazem limiteàs leis. Mas os direitos do homem, na versão

moderna, relevam do ilimitado dos direitos,dos contratos dos procedimentos de avalia-

ção e da forma problema-solução. Implicamque há um parceiro que não deve intervir: o

Estado..... A contradição mais profunda é quequando falamos das funções régias do Esta-

do, a noção de contrato desaparece. A ex-pressão natural da função régia do Estado

democrático é a lei, e a lei não repousa so-bre a igualdade dos parceiros, e sim sobre a

voz imperativa que não coloca em pé deigualdade os parceiros em questão. A lei,

como lembra Miller, supõe o terceiro, en-quanto o contrato é um esforço para dar sta-

tus simbólico ao estádio do espelho. A leifunciona tanto pelo silêncio quanto pelo que

ela diz. Os regimes liberais, por oposição aosautoritários, são aqueles em que a lei permi-

te tudo que ela não interdita expressamen-te. O silêncio da lei é o que a faz funcionar.

A lei não diz nada sobre todo um conjuntode coisas. É uma lei, e não um contrato. Seu

silêncio é uma expressão da autoridade ré-gia do Estado, como garante da liberdade. No

contrato, só conta o que está expressamen-te estipulado de modo negativo ou positivo.

O que não é expressamente dito não vale.O silêncio não vale. A lógica é totalmente

diferente. Entre uma democracia fundadana lei, e outra no contrato, a questão do si-

lêncio regulamentar será totalmente dife-rente. Quando se procura fazer, como está

em voga hoje, um sistema de equivalênciasentre o limitado e o ilimitado, entre a lei e

o contrato, não se sabe mais o que é quevale: o que é dito ou o que não é dito?

No contrato, o que não é expressamentepermitido, não é permitido de jeito nenhum.

Donde, nos estatutos das associações, o quese pratica é uma forma mista: o que não é

expressamente proibido, é permitido. Esta-mos num sistema híbrido, onde não sabe-

mos nunca em que regime estamos, sedevemos interpretar na vertente da lei, ou

na do contrato. Nesse sistema, o contratoassociativo está um pouco para todo lado,

Precisamos de especialistas, os advogados,fabricantes de regulamentações. Se lhe dize-

mos que se trata de um contrato, e as fun-ções régias do Estado não têm nada a ver

com isso, ele nos responde: — “Atenção, te-nho que levar em conta o bem público, preen-

cha por favor os papéis.” Se lhe dizemos quese trata do bem nacional, trata-se da lei,

logo, o que não está expressamente interdi-to é permitido, ele responde: “atenção, uma

expertise científica tem necessidade de to-das as informações. Logo, preencha!”. Na

versão antiga, havia as funções régias doEstado, mas o Estado não se mete senão na

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política exterior, na polícia, nos impostos.Atualmente, reina a transação, conservamos

uma função régia do Estado, mas ela vai seocupar de todos os aspectos que fazem a

vida pública moderna. Entre esses elemen-tos, a saúde pública, a saúde mental, e o

mal-estar. Não há mais nenhum limite quese possa impor à função régia do Estado, em

nome do bem de todos.É uma coisa que aparece em todas as gran-

des doutrinas materialistas, supomos um “amais” que excede toda forma de contrato,

excede toda absorção pela forma problema-solução. Marx demonstrou a existência desse

excesso com respeito à venda da força detrabalho no mercado. Ela é supostamente li-

vre (quem o faz, faz porque quer), igualitá-ria (um compra e o outro vende).

Entretanto, há um “a mais” que se chamamais-valia. Não se trata de um valor “a

mais”, e sim de um “mais de valor”. Um ex-cesso que resiste a toda substituição calcu-

ladora. Entre força de trabalho e salário, aessência do impossível é que há sempre um

objeto que não vai se deixar absorver pelaforma problema-solução. O “a mais” é algu-

ma coisa que não se substituirá de modoalgum. É disso que se trata também no

objeto aaaaa de Lacan. O mal-estar é hoje onome desse resto insubstituível, tudo pode

ser solucionável menos isso. Os analistaslacanianos não pensam que isso seja um

problema! O problema é também a soluçãodo problema. Vivemos com o elemento in-

solúvel. A solução é a não-solução, o im-passe, assumido, consentido. Essa posição é

a essência de uma política lacaniana. Elaadvoga que há uma diferença essencial

entre o Estado que se d e i x a absorverpelo ilimitado da sociedade, e o Estado

que se inscreve como um todo limitado.Para prosseguir nesta investigação inaugu-

rada por Lacan, precisamos refletir sobre ascondições éticas tanto da demanda, quanto

do exercício da psicanálise no mundo globa-lizado. O que fazer, quando o declínio da or-

ganização edipiana do laço social, o avançodo discurso da ciência e de seus aparelhos de

gestão da saúde mental e do mal-estar(Miller e Milner, 2004), o aprofundamento da

inconsistência do Outro com seus comitêsde ética (Laurent e Miller, 1996-1997) , assim

como o esvaziamento de toda palavra ora-cular (Miller, 2002-2003) nos confronta com

casos de difícil classificação?O que se apresenta na clínica, nesse tempo

em que o Nome-do-pai e o Estado foram ab-sorvidos pela lógica do ilimitado (do não-

todo) será ainda a neurose, serão novasdoenças da mentalidade hipercontratual,

canalhice pura e simples, ou novos sinto-mas e novas modalidades de psicose? Como

distinguir uma clínica do sinthoma, da ten-dência contemporânea ao gozo ilimitado?

A solução continuísta e adescontinuísta: sinthoma esintomaNo campo freudiano, a constatação do declí-nio da organização edipiana, fruto do avan-

ço do discurso da ciência, produziu umahipótese nova: a de uma foraclusão genera-

lizada do Nome-do-pai. O que vamos desen-volver neste trabalho é uma tentativa de

construir um quadro classificatório, compa-rativo, que nos permita estabelecer diagnós-

ticos diferenciais entre as neuroses/psicosesmodernas e contemporâneas. A idéia central

é a seguinte: o afrouxamento da organiza-ção edípica modifica o regime das relações

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entre o gozo e a lei ou, se quisermos, entreo permitido e o proibido. Hoje, Estado e So-

ciedade se equivalem. Novo regime demo-crático em que a lei se reduz ao contrato

intersubjetivo, esvaziando-se do que elatem de incondicional. O Nome-do-pai, nes-

se novo regime, está foracluído do simbóli-co e os contratos sociais tentam inscrevê-lo

por meio de suplências imaginárias. Quandoa foraclusão do Nome-do-pai é generalizada,

é muito mais difícil distinguir as neurosesdas psicoses. O que encontramos na clínica,

no lugar das doenças do grande Outro, istoé, as neuroses e psicoses clássicas, são as

doenças da mentalidade. Do mesmo modo,neo-modalidades de psicose – mais ordiná-

rias do que extraordinárias – são a respos-ta psicótica à rarefação dos representantes

paternos. Chamamos de doenças do Outro,as neuroses organizadas em torno do com-

plexo de Édipo e as psicoses desencadeadaspelo encontro com Um pai. O simbólico é o

lugar eletivo das perturbações típicas. Namodernidade, o sintoma e o delírio são as

respostas do sujeito, neurótico ou psicóticoao Outro consistente. Chamamos doenças da

mentalidade, as neuroses e psicoses em queo Outro é inconsistente, não-todo, ilimitado.

O corpo e sua imagem, e não mais a lingua-gem, são o campo preferencial de eclosão

das perturbações. O gozo hiperlocalizado, eo gozo deslocalizado, são o modo de apre-

sentação dos novos sintomas neuróticos edos fenômenos psicóticos.

Numa cultura em que o Outro tende a ser in-consistente, não-todo, uma clínica conti-

nuísta (Georges et al., 1999) vem responderao que fazer, como e quando o sintoma é

cada vez menos típico ou coletivo. Valoriza-mos, desta feita, o que é comum à neurose

e à psicose, ou seja, o que o ser falanteapresenta de mais singular e inclassificável

– em seu esforço de nomeação e de defesacontra o gozo invasor – sem desprezar, mas

sem nos servir exclusivamente da diferen-ça entre neurose e psicose. A perspectiva

continuísta pode esclarecer porque, em RSI

(1974-1975), Lacan pluraliza os Nomes-do-pai.

Ele nos apresenta a inibição como a patolo-gia do fazer ou do laço social, nomeação do

imaginário e, a angústia, como a patologia daesperança, nomeação do real. Esse passo

implica colocar os três registros em igualda-de de condições. Desta forma, o sintoma e

o delírio, patologias da crença ou do saber,não são mais os critérios, por excelência, do

diagnóstico de neurose ou de psicose. Pre-cisamos considerar também que a inibição e

a angústia podem ser defesas psicóticas. Omais importante são as lições que podemos

tirar para o trabalho do analista diante dasdoenças da mentalidade e das psicoses or-

dinárias. A clínica da neurose é hoje habita-da por impulsões, compulsões, depressões

inespecíficas, astenias, conversões histéri-cas ou psicóticas, além de fenômenos psi-

cossomáticos. Muitas vezes não sabemosdistinguir esses quadros de uma psicose não

desencadeada. Como diferenciar eventos decorpo, de fenômenos de corpo (Miller, 2003).

Como saber quando isso é uma inibição neu-rótica, ou uma suplência à psicose? Essa di-

ficuldade se acentua porque, quando oOutro não existe, as psicoses também são

menos delirantes. Quando uma psicose nãoé delirante, o corpo, na sua vertente real ou

imaginária vem suprir a carência do simbó-lico, produzindo uma nomeação. É o caso

das neo-conversões (Georges et al., 1999,p. 101-43) e dos fenômenos psicossomáticos.

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É a partir dessa modalidade de nomeaçãoque teremos que pensar os neo-desenca-

deamentos. São muito mais desenlaçamen-tos e reenlaçamentos do discurso comum

(laço social), do que grandes desencadea-mentos à maneira das psicoses extraordi-

nárias. O corpo em sua vertente real (lesõespsicossomát icas), ou imaginária (neo-

conversões), é o terreno onde se dão osfenômenos de encadeamento e desenca-

deamento das neo-psicoses, ou psicoses or-dinárias.

Como tratar o sofrimento,quando supomos que o sujeito ésempre feliz?A conversão é um fato de estrutura e, é idên-tica ao desejo se considerada a partir da

causa (o objeto a), e da inscrição corporal dacastração (S1, o significante fálico). Um cor-

po é efeito da ação do significante mestre(S1), é uma significação fálica, que anima

todo ser falante. O sintoma histérico é, jus-tamente, a conseqüência da desproporção

entre a causa e o significante do ideal. Acastração do sujeito remete à divisão do Ou-

tro, sua impotência ou sacrifício, que colocao sujeito a serviço de um ideal. O recalque,

a identificação ao que falta ao Outro, produzuma perda de gozo, e o reforço da satisfação

pulsional clandestina que prolifera no in-consciente. Quando o Outro não existe, a

identificação não se limita pela castração doOutro. O uso do corpo, como manifestação

somática do significante, só é interpretávela partir de sua relação com a marca da cas-

tração do Outro. A parte subjetiva dependedessa relação com o texto como Outro: o

fantasma como resíduo da organização edi-piana. O uso do corpo, no sentido de um fa-

zer que não procede de uma interpretação,nos remete a um Outro como imagem (que

é um saber não limitado pela interpretação),saber que não é suposto, e sim exposto. A

isso chamamos uma neo-conversão. Ela sedistingue também do fenômeno psicosso-

mático. Este último escapa à regulação fáli-ca por meio de um significante ilegível, es-

crito no corpo, no lugar de um sintoma. Naneurose ele reflete um fracasso momentâ-

neo da defesa diante de um evento traumá-tico. Na psicose, pode funcionar como uma

bolha do nome próprio, delimitando um es-paço separado do Outro, que lhe permite

existir sem passar pelo Nome-do-pai. A essapassagem direta do significante ao real do

corpo, chamamos sinthoma. É algo do cam-po da psicose, mas que generalizamos para

todo ser falante na clínica continuísta. Mes-mo assim, a posição do analista, e seu ato,

numa clínica continuísta, não se desvenci-lham de uma exigência de decidir quanto ao

diagnóstico. Entretanto, não enfatizamos odéficit: presença ou ausência da metáfora

paterna, porque todo sintoma, pode ser re-duzido a um sinthoma, a uma conexão dire-

ta do simbólico ao real que não precisa doimaginário, da função do Nome-do-pai. Tra-

tamos o mal pelo mal. A doença é o próprioremédio (Coelho dos Santos, 2004). O ana-

lista é o parceiro (Coelho dos Santos, 2002)de uma neo-transferência (Georges et al.,

1999, p. 147-9) – em que o analisando é oagente (a) e ele analista o (). O papel que

lhe cabe é o de aprendiz de uma modalida-de de laço social que o analisando lhe pro-

põe. Somente depois de um árduo aprendi-zado é que nos arriscamos a agir. Isso nos

desencoraja a sonhar com um ideal de saú-de mental! E se não precisamos recuar dian-

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te da psicose, é porque podemos aplicar apsicanálise à psicoterapia.

Um difícil aprendizado: a língua do mais oumenos. Quando eu recebi Gabriela, disse-

ram-me que se tratava de uma depressão.Ela só tinha dezoito anos, já tomava psico-

fármacos e eu não seria sua primeira “tera-peuta”. Eu seria analista? Ela não dizia nada.

Sentada à minha frente, de cabeça baixa,evitava me olhar e quando muito respondia

às minhas perguntas. Nunca tomava a ini-ciativa de falar. Uma primeira modificação na

minha posição se impôs a duras penas: quemfalava era eu. Docilmente, eu falava, comen-

tava, perguntava... Tudo que eu consegui sa-ber foi que ela comia muito, dormia sem

parar, faltava às aulas, chorava muito e nãosaía sozinha. Impotente em impor limites ao

gozo invasor do corpo. Ela sempre vinhaacompanhada do pai ou do irmão mais velho.

Toda essa atenção que recebia era insufi-ciente para limitar seu desamparo, sua aste-

nia, sua apatia e uma forte depressão que seencarnava em sua recusa em falar. Fre-

qüentemente, alguém da família me ligavadizendo que ela não viria à sessão porque

não conseguiu levantar-se da cama. O tra-tamento parecia inviável. As faltas prome-

tiam multiplicar-se. Comecei a perceber queela não gozava do corpo, mas o reforçava

como uma defesa contra a invasão de gozo.Outra mudança no enquadre se impôs. A

cada vez que me ligavam de sua casa, eupedia que a trouxessem ao consultório. Por

fim, quando ninguém se dispunha à fazê-lo,eu solicitava que a colocassem num táxi, eu

descia e ia buscá-la na portaria. Com essedispositivo eu me oferecia como muro, ten-

tando trocar o reforçamento de seu corpo,pelo reforçamento de nosso vínculo. Apro-

veitava pequenas ocasiões para iniciar umcomentário, fazer uma pergunta, contar um

caso. Entre as suas respostas fragmentadase lacônicas pude recortar a recorrência da

frase: eu sou gorda! A certeza localizadaneste significante era tão desproporcional à

realidade de fato que tomei essa conexãocomo real. Seu suposto excesso de peso era

uma suplência à insuficiência de sua ima-gem, uma neo-conversão. Tratava-se de um

fenômeno elementar, sinal discreto da ca-rência simbólica. Um dia, medindo bem mi-

nhas palavras, eu lhe digo: — “Eu não achoque você seja gorda, mas isso não tem a

menor importãncia. Se você acha isso, é pre-ciso tomar uma providência. Você precisa de

uma clínica de emagrecimento!”. À surpresa,seguiu-se um movimento decidido de encon-

trar uma nutricionista. Ela passou algumassemanas dificílimas num estabelecimento

para emagrecer. Voltou um pouco mais ma-gra. O que me pareceu uma perda insignifi-

cante de peso, representou uma mudançaessencial na relação transferencial. Ela era

agora “mais ou menos gorda (ou magra?)”.Da extração desse pequeno excesso de seu

corpo, construímos um artifício: a língua domais ou menos. Com ela, passamos à regu-

lação de suas relações com os pais, os ami-gos, os compromissos com os estudos. Essa

língua “dietética” resultava em evitar umalógica feroz do tudo ou nada. Uma nova su-

plência, tornou-se a língua comum: tudo queé bom, é só “mais ou menos”. Por exemplo:

não se deve faltar às provas quando não sepode tirar 10. Tirar 7 já é ótimo. Daí à con-

clusão de que tirar dez não é bom, foi umpasso. Deste modo conseguimos evitar a

ameaça de novos desenlaçamentos em suasrelações com os outros e em seus compro-

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ano

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Artigo recebido em março de 2005

Aprovado para publicação em outubro de 2005

arti

gos

missos. Os efeitos estabilizadores dessa prá-tica verificam-se na redução da angústia e da

depressão. Contornam a ausência do fantas-ma neurótico e da significação fálica. Sem o

Nome-do-pai, resta fazer alguma coisa comesse S1/a real: Gorda!

ReferênciasCOELHO DOS SANTOS, T. O que não tem remédio re-

mediado está! Revista de Latinoamericana dePsicopatologia Fundamental, São Paulo: Escu-

ta, v. VII, n. 1, p. 63-74, mar./2004.

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