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215 Persp. Teol. 35 (2003) 215-238 TRADUÇÃO E TRADUÇÕES DA BÍBLIA NO BRASIL Johan Konings SJ Temos atualmente no Brasil umas vinte traduções bíblicas usadas com certa freqüência. Trata-se das traduções da Bíblia inteira, sem conside- rar as que só contêm o Novo Testamento. Classificamo-las por seu contexto de nascimento (marcamos com * as versões que não contêm os apócrifos/deuterocanônicos): 1. Panorama A primeira tradução completa da Bíblia em português, e feita a a partir dos originais, foi a de João Ferreira de Almeida (séc. XVII/ XVIII); atualmente há três versões no mercado: Bíblia Sagrada*: trad. de João Ferreira de Almeida versão “corrigida fiel”, Sociedade Bíblica do Brasil. Bíblia Sagrada*: “versão revisada de acordo com os melhores tex- tos em hebraico e grego”; Imprensa Bíblica Brasileira, a partir de 1967. Bíblia Sagrada*: “edição revista e atualizada no Brasil”; Sociedade Bíblica do Brasil, a partir de 1969.

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    Persp. Teol. 35 (2003) 215-238

    TRADUO E TRADUES DA BBLIANO BRASIL

    Johan Konings SJ

    Temos atualmente no Brasil umas vinte tradues bblicas usadas comcerta freqncia. Trata-se das tradues da Bblia inteira, sem conside-rar as que s contm o Novo Testamento. Classificamo-las por seucontexto de nascimento (marcamos com * as verses que no contmos apcrifos/deuterocannicos):

    1. Panorama

    A primeira traduo completa da Bblia em portugus, e feita a apartir dos originais, foi a de Joo Ferreira de Almeida (sc. XVII/XVIII); atualmente h trs verses no mercado:

    Bblia Sagrada*: trad. de Joo Ferreira de Almeida verso corrigidafiel, Sociedade Bblica do Brasil.

    Bblia Sagrada*: verso revisada de acordo com os melhores tex-tos em hebraico e grego; Imprensa Bblica Brasileira, a partir de1967.

    Bblia Sagrada*: edio revista e atualizada no Brasil; SociedadeBblica do Brasil, a partir de 1969.

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    Depois, os catlicos se puseram a traduzir a Bblia, primeiro com basena Vulgata de S. Jernimo, depois com base nos originais, diretamenteou atravs de tradues feitas em outra lngua moderna:

    Bblia Sagrada: trad. da Vulgata por Figueiredo (diversas edies,principalmente de luxo)

    Bblia Sagrada: trad. da Vulgata pelo Pe. Matos Soares (Ed. Paulinas,desde 1932)

    Bblia Sagrada: adaptada da traduo francesa dos Monges deMaredsous (Blgica), pela Ed. Ave Maria, So Paulo (a partir del958).

    Bblia, Antigo e Novo Testamento = A Bblia Mensagem de Deus:primeira traduo catlica em portugus diretamente a partir dosoriginais hebraicos e gregos, pela Liga de Estudos Bblicos (LEB),publicada originalmente em fascculos (Ed. Agir), depois em edi-o de luxo (A Bblia mais bela do mundo, Ed. Abril) e, atualmente,em edio popular (A Bblia Mensagem de Deus , Ed. Loyola).

    Bblia Sagrada: adaptada da traduo italiana do Pontifcio Institu-to Bblico de Roma, So Paulo: Ed. Paulinas, a partir de 1967 (es-gotada)

    Bblia Sagrada: trad. dos Missionrios Capuchinhos de Portugal apartir dos textos originais (1968), adaptada para o Brasil, AparecidaSP: Ed. Santurio (esgotada)

    Bblia de Jerusalm: adaptada da traduo francesa (ed. de 1973),So Paulo: Ed. Paulinas (depois Paulus), a partir de l981 / nova ed.com base na 3 ed. franc. revista e ampliada Ed. Paulus, 2002

    Bblia Sagrada,: trad. brasileira diretamente dos textos originais;Ed. Vozes, Petrpolis, desde 1982 / nova ed. revisada Ed. Vozes,2001.

    Entretanto surgiu a preocupao com uma traduo mais prxima dalinguagem do povo, segundo as regras da equivalncia dinmica. Daresultaram:

    A Bblia na Linguagem de Hoje*: adaptao de edio internacionalem linguagem popular; completa: Sociedade Bblica do Brasil, 1989

    Nova traduo na Linguagem de Hoje(*): verso revisada da ante-rior: Sociedade Bblica do Brasil, 2001; com os deuterocannicos:2003.

    Edio Pastoral da Bblia: traduo popular diretamente dos textosoriginais completa desde 1990; So Paulo: Ed. Paulinas, depoisPaulus.

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    Bblia do Peregrino: adapt. bras. de trad. espanhola dos originais;Ed. Paulus, 2002.

    Um estilo intermedirio entre o formal e o dinmico mantido nasseguintes tradues recentes:

    Nova Verso Internacional*: trad. internacional; combina lingua-gem atualizada com forte literalidade na traduo; So Paulo: So-ciedade Bblica Internacional, 2000.

    Bblia Sagrada traduo da CNBB: trad. da Conferncia Nacionaldos Bispos do Brasil trad. dos originais, com considerao da NovaVulgata; grupo de sete editoras catlicas, a partir de 2001 ( 2. ed.,2002, melhorada na diagramao e nas notas).

    Um lugar parte, especialmente por sua organizao, introduese notas, ocupa a

    Traduo Ecumnica da Bblia: adaptada da Traductioncumnique de la Bible (TOB) francesa (l972-79); completa: SoPaulo: Ed. Loyola, 1994. (Com notas reduzidas: co-ed. Ed. Loyolae Ed. Paulinas).

    E mencionamos ainda, finalmente:

    Bblia Mundo Novo*: trad. das Testemunhas de Jeov com as op-es prprias desta associao religiosa.

    Bblia Sagrada (edio de luxo, adaptada da New Amercian Bible).

    Este panorama, sem mesmo considerar as numerosas tradues s doNovo Testamento, revela um problema. Sobretudo no campo catlico,no h um mnimo de unanimidade quanto traduo da Bblia.

    As razes disso so diversas. A Igreja Catlica, at incios do sc. XX,fomentava desconfiana em relao s tradues vernaculares, sendoa Vulgata considerada a tradio oficial para uso teolgico e litrgico.Assim, no se criou em portugus uma traduo catlica padro (comotampouco na maioria das outras regies catlicas). Nas regies protes-tantes, ao contrrio, as grandes tradues bblicas se impuseram desdeo incio, acompanharam inclusive a constituio das Igrejas e at con-triburam decisivamente para a unificao do idioma1.

    Outra razo que a divulgao das tradues nas regies e nas mis-ses protestantes teve forte presena das Sociedades Bblicas, que cen-

    1 O alto alemo se imps nas regies de cultura alem graas traduo deLutero.

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    tralizavam a produo de bblias. No mundo catlico, pelo contrrio,e especialmente no Brasil, a tendncia foi de cada editora ter a suaBblia.

    Como avaliar essa situao?

    Do ponto de vista literrio, a pluralidade de tradues pode at seraplaudida, pois, se verdade que cada traduo uma traio, apluralidade ajuda a descobrir as traies, ou seja, a inevitvel dis-tncia entre o original e as verses. A comparao das diversas tradu-es, especialmente quando providas de boas notas literrias, ajuda aperceber melhor a competncia semntica do texto, que ultrapassa acapacidade dos tradutores.

    Do ponto de vista pastoral, porm, um problema, que se fez sentirsobretudo depois da reforma litrgica do Conclio Vaticano II, queprops uma rica seleo de textos bblicos a serem lidos em vernculona liturgia da Palavra2. Ouve-se na liturgia uma traduo diferentedaquela que est na Bblia amarelada, guardada na estante em casa.Certo dia, quando eu estava comentando, no Prlogo de Joo, a fraseNo comeo a Palavra j existia (Jo 1,1, Ed. Pastoral), um aluno meperguntou onde se encontrava aquela outra frase muito semelhante:No princpio era o Verbo... Quando se ouve em cada oportunidadeuma verso diferente, torna-se impossvel decorar ou at compreendero texto bblico. No por nada as instncias pastorais insistem, desde oConclio, na produo de tradues regionais sob os auspcios dasconferncias episcopais3.

    No caso do Brasil, a produo de tal traduo da conferncia episcopalse mostrou um parto difcil. A razo principal foi, alm da lamentveldiviso dos biblistas catlicos, a indefinio do estilo a ser adotado noslecionrios litrgicos. Logo depois do Conclio surgiu uma coleo delecionrios utilizando uma traduo relativamente clssica, usando asformas tu/vs. No lhe faltavam boas qualidades, mas era um tantodesigual: ora bastante conservadora, ora surpreendentemente inova-dora. Depois de 1980 surgiram, a ttulo experimental, novos lecionriosdominicais, que usavam a forma voc/vocs e um vocabulrio bem maissimples, inspirado pela teoria da equivalncia dinmica na traduo4,ento defendida pelos promotores da Bblia na Linguagem de Hojebem como pela escola de L. Alonso Schkel (Nueva Bblia Espaola,Bblia do Peregrino) e seguida por tradues de cunho pastoral em

    2 Uma mesa ricamente preparada, segundo a Constituio Sacrosanctum Concilium,n. 51.3 Cf. Dei Verbum, nn. 22 e 25.4 Cf. infra, 6.1

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    diversas regies catlicas, e nomeadamente na Amrica Latina. Con-tudo, esses lecionrios provocaram muita resistncia, dentro e fora doepiscopado. A CNBB mandou ento preparar novos lecionrios ofici-ais, publicados na dcada de 1990, na base dos anteriores, mas com aforma tu/vs. Entretanto, o tipo de traduo anterior foi adotado naEdio Pastoral da Bblia, logrando ampla aceitao, especialmentenas comunidades alinhadas com a Igreja progressista e com a Teo-logia da Libertao. Diante disso, um grupo de biblistas, em entendi-mento com o setor bblico-catequtico da CNBB, tomando como pontode partida os lecionrios publicados a partir de 1994, resolveu apre-sentar uma traduo integral da Bblia, que unisse a proclamabilidadelitrgica (que se vale do estilo tu/vs) aos avanos semnticos do novotipo de tradues e ainda aos avanos da Nova Vulgata, traduolatina oficial desde o Conclio Vaticano II. Tarefa difcil, de antemodestinada a ser um meio-termo, mas concluda de modo bastante feliz,em 2001, para clausurar a comemorao dos 500 anos da evangelizaoe inaugurar a dos 50 anos da CNBB. Evidentemente, um trabalhoque precisa amadurecer ainda, como explicaremos mais adiante.

    Antes disso, porm, convm descrever os problemas da traduo emgeral e, depois, as perspectivas prticas para as tradues bblicas noBrasil.

    2. Problemas da traduo bblica

    2.1 O conhecimento das lnguas

    Para traduzir bem preciso conhecer bem o idioma de partida e oidioma de destino. Com o atual desprezo da filologia tradicional, issose torna cada dia mais difcil. No basta saber usar um dicionrio,saber manipular o programa Bible Works ou coisa semelhante. pre-ciso ter o sensus linguae de ambos os idiomas. Citemos alguns exem-plos. O hebraico da historiografia deuteronomista no igual ao daredao sacerdotal. O grego bblico bastante diferente do grego cls-sico, no usa o optativo, usa hina para hoti, ou, sob influncia daslnguas semticas, mistura o sentido de conseqncia com o de finali-dade (provocando leitura predestinacionista de determinadas passa-gens). Em grego falta muitas vezes o artigo definido l onde o portu-gus o prefere (a ndole da lngua portuguesa aborrece aindeterminao). Neste particular, atente-se influncia da Vulgata: olatim desconhece o artigo definido, fazendo com que muitos termosque indicam realidades concretas apaream como abstratos ou gerais,o que combina com um pensamento essencialista... Por outro lado,tanto o hebraico como o grego bblico gostam de explicitar, at de

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    modo pleonstico, o pronome possessivo, j o portugus no tanto,sobretudo no Brasil, onde o tratamento na terceira pessoa dificulta ouso dos pronomes oblquo e possessivo. O status constructus hebraicoe o genitivo grego esto abertos a inmeras interpretaes. A sintaxeda frase delicada, sobretudo nos textos poticos da bblia hebraica.O mesmo se diga da prosdia (que co-determina o sentido gramaticalda frase), da sintaxe do perodo no grego, especialmente de tipo retrico,como em Paulo etc. E poderamos alongar de muito a lista de peculi-aridades que o tradutor deve levar em considerao.

    2.2 Questes documentais

    No possumos nenhum manuscrito autgrafo de texto bblico algum.As cpias antigas demonstram variantes, ora leves, ora altamente sig-nificativas, pelas mais diversas causas e razes. O tradutor moderno,normalmente, segue uma edio crtica, que fez de antemo a sele-o das formas textuais que tm maior probabilidade de serem origi-nais. Mas isso no lhe poupa os conflitos. No caso de uma traduocomo a da CNBB, que procura seguir as interpretaes da Nova Vulgata normalmente respeitvel em termos de crtica textual , algumasvezes surgem formas de texto que foram conservadas por respeito tradio litrgica (e dogmtica), e no por critrios de reconstituiocientfica do texto. Um caso desesperador a reconstituio do textooriginal do livro do Eclesistico.

    2.3 Questes scio-histrico-culturais

    preciso conhecer bastante bem a histria do tempo ao qual o escritose refere, por exemplo, para saber de que personagem exatamente seest falando, j que os nomes bblicos so um tanto repetitivos... Oupara imaginar bem e a entra a semntica a que realidade determi-nado termo em determinada poca se refere (por exemplo, a mora-da ou santurio: tenda do deserto, santurio de Davi, templo deSalomo?). Isso, sobretudo, porque o vocabulrio bblico muito res-trito e indica pelo mesmo termo realidades que hoje so indicadas portermos nitidamente distintos.

    2.4 A gramtica do texto

    A nova crtica literria distingue entre o nvel gramatical/sinttico dalinguagem (a relao produtiva dos significantes no interior do textoconsiderado em si), o nvel semntico (a relao dos significantes coma realidade fora do texto, o significado) e o nvel pragmtico (o efeitodo ato lingstico ou da signi-ficao sobre a prxis). No primeironvel, sinttico-gramatical, importa perceber bem o jogo interno das

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    referncias mtuas dos significantes, muitas vezes implcitas, no ex-pressas. Saber quais significantes so solidrios, quais so antagnicos,quais as oposies fundamentais que estruturam o texto e sua signi-ficao. No se pense que primeiro se pode traduzir o texto e depoisestabelecer a sintaxe textual. Para fazer uma boa traduo, as mesmasarticulaes do original devem operar no texto traduzido. O tradutordeve, pois, ainda que intuitivamente, ter conscincia delas.

    2.5 A semntica

    A semntica ou relao dos significantes com a realidade significada de importncia primordial, a essncia do ato lingstico. Um des-lize do tradutor na interpretao dessa referncia traio do texto.Mas o pior que o tradutor no est s. O leitor, ao ler o texto, oacolhe com uma semntica implcita na cabea, que o tradutor deveprevenir, para que a traduo seja acolhida dentro da semnticajulgada certa.

    A relevncia deste problemas aparece no caso da leitura espiritualizante.O tradutor pode saber muito bem que, nos textos hebraicos, tantoalma como corpo podem significar a pessoa inteira, o eu aponto de aparecerem no paralelismo potico como termos sinnimos5

    , mas, se o leitor tiver sido catequizado numa semntica grega dualista,como o caso de quase todos ns, ele vai entender corpo e alma comoduas realidades distintas e at certo ponto opostas, a alma boa e su-blime, o corpo opaco e desprezvel... Ora, isso no significa que, numatraduo moderna, devamos substituir alma por eu! Em primeirolugar, isso seria impossvel l onde o hebraico usa alma para criarum paralelismo potico com outro termo6. Em segundo lugar, almatem uma conotao de vida que o pronome eu no tem. Em ter-ceiro lugar, se o termo alma ocorre num escrito recente, comconotao helenstica dualista, no devemos eliminar esse trao cultu-ral do texto, mas podemos, em nota, avisar o leitor a respeito do pe-rigo do dualismo metafsico-moral7.

    5 P. ex., Sl 63,1.6 Por isso continuamos traduzindo, no Magnificat: Minha alma engrandece o Se-nhor, e meu esprito se alegra em Deus, meu Salvador, Lc 1,47.7 A respeito do dualismo existem muitas idias simplrias. No procede opor radi-calmente o pensamento hebraico como unitrio e o grego como dualista. Desde otempo dos persas, as duas culturas estavam em contato permanente. Alis, todopensamento dual. A dualidade a base da significao (e da computao). Nemtudo o que se apresenta em termos duais dualismo metafsico ou moral. Muitasvezes no passa de metfora, como qualquer pessoa a usa, por exemplo, ao falarde coisas rasteiras ou elevadas... O estruturalismo nos ensina que cadasignificante evoca seu contrrio.

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    Outro exemplo o termo povo, que na historiografia do Israel an-tigo significa ora os homens livres, ora os soldados (ou o exrcito comotal), ora a assemblia dos chefes de famlia, chamada por vezes opovo da terra (= do patrimnio das tribos)8. J em tempos ps-exlicoseste ltimo termo foi usado (tambm) para os no-judatas que ocupa-ram Jud durante o exlio e no observavam a Lei codificada pelosrepatriados da Gol (exlio), em torno do sacerdote-escriba Esdras9. Emalguns escritos do Novo Testamento o termo povo transferidopara a assemblia crist10. Mas ser que nosso leitor hoje pensa nessasrealidades quando l o termo povo?

    Espontaneamente, diante do problema da traduo, as pessoas dizem:Temos que usar termos de hoje. Mas o problema no est nos ter-mos. Est nas coisas. As coisas de hoje no so as coisas de ontem.Tomamos, por exemplo, o termo publicano. Refere-se a uma reali-dade que no existe no nosso ambiente. Os publicanos eram querempresrios locais contratados pelo Imprio Romano para organizar,de modo terceirizado, a cobrana de taxas nas diversas regies doImprio, quer fiscais que exerciam a cobrana nos postos de cobrana.Traduzir isso por cobrador de impostos no mnimo ambguo. Poisos nossos cobradores de impostos exercem uma funo social indis-pensvel para o bem da nao e oxal cobrassem tambm dosgrados! Os publicanos, ao contrrio, eram colaboradores de um po-der estrangeiro pago, odivel aos olhos do povo do Senhor epor isso considerados impuros. Parece que a nica soluo acostu-mar nossa gente a certos termos especficos, que exprimem realidadesespecficas... Se isso se consegue quanto ao futebol, por que no quan-to ao conhecimento bblico popular?!

    2.6 A pragmtica lingstica

    Falar agir. Cada palavra, pelo prprio fato de signi-ficar (signumfacere), um ato transformador (aspecto performativo da linguagem).Cada palavra, e no s a de Deus, tem efeito. Infelizmente, nem todasas palavras tm um efeito que se coadune com o da palavra de Deus.

    O tradutor deve falar/escrever de tal modo que seu texto tenha umefeito anlogo ao do texto em sua situao original ou na situao emque foi assumido pela comunidade de f (canonizado). Pois por-que o texto fazia algo na comunidade que ele foi canonizado. Atraduo deve realizar, na nova situao, algo que seja proporcional-mente equivalente.

    8 P. ex., 2Rs 11,18-19.9 P. ex., Esd 4,4.10 Cf. 1Pd 2,1-10.

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    Voltemos ao exemplo da alma. Se o salmista eleva sua alma aoSenhor, ele est colocando sua confiana, sua pessoa, sua vidainteira nas mos de Adonai, o Deus que elegeu Israel etc. Ser esteo efeito do incio do Salmo 25 no monge que na orao procurarlibertar-se das coisas deste mundo e inclusive da metade corporalde sua pessoa?

    Entra aqui a questo da retrica bblica. A linguagem bblica muitasvezes altamente retrica, lana mo de todas as receitas orientais parapersuadir o leitor/ouvinte a adotar determinada postura ou a efetuardeterminada opo ou ao. At Jesus nas suas parbolas usa ahiprbole ou exagero (Dize a esta montanha: lana-te ao mar...; Seteu p te escandaliza, corta-o...). Diante de uma pessoa que leva tudoao p da letra, posso traduzir assim verbalmente?

    Esta pergunta enseja a prxima considerao.

    3. A comunidade interpretadora

    A palavra produz um efeito, o texto cria uma crculo de pessoas queo lem/ouvem e, inevitavelmente, o interpretam, no s em pensa-mento como tambm em aes. neste crculo que o texto, por umentendimento terico-prtico comum, no processo de canonizaoimplcita ou explcita, reconhecido como expresso autoritativa eorientadora para sua prxis: normado pela (inspirada) comunidadede f, o texto se torna normante para a prxis da comunidade. Essacomunidade entendeu no texto o sentido que ela desejava transmitir:por isso conservou o texto e o transmitiu. Ora, este sentido estindissoluvelmente ligado prxis da comunidade. Ela conserva o tex-to enquanto texto de sua prxis, letra do seu cantar, partitura de suasinfonia. Fora da comunidade e de sua prxis que interpreta o texto como o msico interpreta a partitura tocando-a e s assim faz existira melodia , no se pode garantir que o texto suscite o sentido emrazo do qual ele foi conservado e transmitido.

    Ora, as tradues da Bblia para a comunidade de f hoje procuramtraduzir esse sentido da comunidade interpretadora de ontem e desempre, que vive a interpretao em sua prxis. Um exemplo simples o termo amor. Quem vive o amor fraterno da comunidade judaicaou crist entende espontaneamente o ama teu prximo no sentidode uma determinada prxis e sabe traduzi-lo na prtica. Quem, po-rm, no tem nenhum contato com esse mbito de interpretao podedar a amai-vos uns aos outros um sentido bem diferente (sobretudoquando a traduo usa as formas coloquiais da juventude de hoje:amem-se...).

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    Os textos considerados sagrados pela comunidade de f devem serentendidos no mbito dinmico, criado pela prpria tradio, a servi-o do qual eles so considerados sagrados. Algum pode estranhar aassociao dos vocbulos dinmico e tradio. Geralmente se pensaque tradio o contrrio de dinamicidade... bom lembrar que tra-dio significa transmisso; significa passar adiante, como os corredo-res olmpicos passam de mo em mo o fogo olmpico gesto que sentende quem se situa no mbito dos jogos olmpicos. O texto rece-bido provocando a abertura de um sentido, o qual clausurado peloreceptor e interpretado na teoria e na prtica. Ora, pela referncia aesta nova prtica criada pela comunidade interpretadora, o texto en-riquece seu potencial semntico e transmitido para um novo proces-so de abertura, clausura e prxis interpretadora, comunicando-se comsempre novas circunstncias de tempo e lugar. O texto no seu contextocomunitrio sempre o mesmo e sempre diferente11.

    nesse processo que se insere a traduo. A equivalncia dinmicaentre a forma original do texto e a traduo deve ser consideradanessa dinmica que nunca acaba. O habitat, o nicho ecolgico da trans-misso bblica fica mais complexo, mais geneticamente enriquecidocom cada gerao que passa. No se suprime impunemente o enrique-cimento adquirido no processo da tradio-transmisso. Isso sirvade advertncia para quem pensa que o significado algo quimicamen-te puro, que possa ser congelado e descongelado arbitrariamente. Issoparece ter acontecido em determinadas tradues que cortaram os laoscom a semntica dos ambientes fundador e transmissor. Tentaramproduzir uma traduo quimicamente pura, to clara que nem preci-saria de interpretao... o caso, por exemplo, na Bblia na Linguagemde Hoje, quando traduz Bebe da gua da tua cisterna e das vertentesdo teu poo (Pr 5,15) por Seja fiel sua mulher e d o seu amorsomente a ela. Esterilizou o texto12.

    Existe o piedoso costume de colocar uma bblia nos quartos de hotel.Ora, por maior que seja o esforo, difcil produzir uma traduo queabra a semntica da comunidade traditiva da f para o turista qual-quer que casualmente pegue no texto. A Bblia no transmite seu es-prito por si s. A comunidade que guarda (= pratica) a f querguardar (= conservar para praticar) o texto num sentido bem seu, epara perceber este sentido preciso comungar com o mundo signifi-cativo de tal comunidade. Pensar que a Bblia transmita sua verdadepor si mesma o pior dos fundamentalismos. Evidentemente, no

    11 Cf. J. Severino Croatto, Hermenutica bblica: para uma teoria de leitura comoproduo de significado. So Leopoldo: Sinodal, 1986.12 A mesma traduo aparece na edio revisada, chamada Nova Traduo naLinguagem de Hoje.

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    podemos proibir que se coloquem bblias nos quartos de hotel, nopodemos proibir que se leia ou traduza a Bblia fora do contexto da f.Mas no devemos esperar que da surja um aprofundamento da feclesial. Por isso devemos, hoje, distinguir entre o teor literrio e o teoreclesial da traduo, como veremos adiante.

    4. Traduo e exegese

    4.1 Tradutor e exegeta

    Pelo que escrevemos, o tradutor tem de ser um exegeta. Precisa com-preender o que a Bblia quis dizer tanto em nvel do autor quanto dacomunidade canonizadora , o que ela est dizendo e fazendo no nvelda vida autnoma do texto e o que ela vai dizer ao leitor em funode sua histria efetiva. Como o leitor vai entender o texto, deixar-seconduzir por ele?

    O leitor/ouvinte rei. O lugar hermenutico do tradutor deve ser odo receptor, assim como o do exegeta histrico deve ser o da comu-nidade emissora e o do lingista estrutural, o da cincia lingstica. Oexegeta tradicional, no ministrio de explicar o sentido, quer autoral,quer eclesial-fundador, procura compreender esse sentido e explic-lopara os outros. Ele examina o incio da corrente de transmisso. Evi-dentemente, tambm o tradutor leva em considerao esse sentido,mas sua tarefa traduzir, transportar o texto de tal modo que, com amaior probabilidade possvel, o povo entenda esse sentido originriono texto. O exegeta escreve (ou descreve) para os outros o que eleentendeu. O tradutor escreve para que os outros entendam sem ele.Para o exegeta importa em primeiro lugar o que ele entende, para otradutor, o que o leitor entende.

    4.2 Traduzir: transmitir e interpretar

    Ao refletir sobre a hermenutica, lembramo-nos da origem dessetermo: o deus Hermes, o mensageiro. Decerto, o termo hermenuticainsiste na interpretao, ou seja, na tarefa de tornar compreensvel amensagem. Ora, a condio para tanto que ela seja materialmentetransmitida, condio para que a interpretao possa ser conferida,verificada.

    Hermes , em primeiro lugar, um transmissor. Assim, uma boa tradu-o bblica no pode escapar da incumbncia de transmitir a men-sagem em forma verificvel. Da a necessidade de manter minima-mente a forma do texto original. Quanto mais a traduo, no af

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    interpretativo, se afasta do texto original, tanto mais necessrias asnotas, como se pode verificar na edio integral da Bblia do Peregri-no, a no ser que se faa uma edio com o texto original ao lado...

    Por outro lado, Hermes interpreta tambm. Ele deixa claro o que osdeuses querem dizer. Para isso h muitas maneiras. Mas para seradequada, a interpretao deve evocar ao leitor a realidade que estpor trs dos termos, e isso, em termos que sejam relevantes hoje. Numatransposio semntica pode-se interpretar o que Jesus quer dizer emMt 5,21-24, recorrendo ao conceito moderno de dignidade humana.Num nvel mais pragmtico podem-se evocar comportamentos que hojeseriam equivalentes mesma realidade que, em Mt 5,22 significadopor chamar seu irmo de rak, por exemplo, isol-lo do crculo so-cial. Mas, em todo caso, o hermeneuta deve deixar possvel a verifica-o documental, ou seja, um indcio da linguagem original quegarante que bem isso a que est na mensagem original.

    Exatamente em tradues para a proclamao, a referncia documen-tal necessria, porque a assemblia quer lembrar as palavras quefalam da sua prpria raiz e origem. Muitas vezes, tratar-se- de ter-mos que hoje s podem ser entendidos na tradio da prpria comu-nidade: mistrio, mandamento, salvao, redeno, e at o termo amor.A Bblia livro da comunidade e s se abre para quem tem a devidainiciao na comunidade13. No serve para ser apresentada como ime-diatamente acessvel no sentido da f que partilhamos com as comu-nidades originantes a uma pessoa qualquer14. To pouco quanto osVedas hindus para ns. Alis, analogamente, isso pode-se dizer dequalquer linguagem que veicula os smbolos de alguma comunidade.Que pensar um esquim, mesmo tendo estudado o portugus, masno a histria do Brasil, diante da frase: Ouviram do Ipiranga asmargens plcidas ... o grito retumbante?

    5. Traduo e tradues para a leitura fiel nonosso meio

    5.1 Traduo fiel

    Houve um tempo em que traduo fiel significava: literalista, verbal. ainda neste sentido que a verso mais conservadora da traduo deAlmeida chamada corrigida fiel. Uma outra maneira de entenderfiel seria a adequao semntica, processo dinmica que pe o leitor

    13 o que se quer dizer por ler a Bblia na Igreja.14 Coisa anloga se diga quanto exibio na mdia do mistrio da Eucaristia etc.

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    em contato com a competncia significativa do texto original, mesmosem transmitir os termos verbalmente. Neste sentido, a traduo maisfiel poderia at ser a Bblia do Peregrino, no obstante certas opesmuito particulares de seus promotores. Outro sentido de entender otermo fiel o da nova traduo francesa (Bible - nouvelle traduction),que procura representar em idioma francs as peculiaridades literrio-poticas do texto hebraico-grego. Finalmente, pode-se entender quetraduo fiel aquela que situa o leitor no contexto da tradio de fvivida, que o verdadeiro habitat quase ecolgico do significadoque o texto quer transmitir, e em vista do qual ele foi canonizado. Porcausa da ambigidade, preferimos evitar o termo traduo fiel e pre-ferimos, para falar neste ltimo sentido, a expresso traduo para acomunidade crente/de f ou traduo pastoral, no sentido genrico.

    5.2 Tradues para a comunidade de f

    A Bblia, como coleo de escritos at certo grau normativos para acomunidade, nasceu para a assemblia litrgica ou paralitrgica. Des-de o tempo de Esdras, se lia a Lei na sinagoga, a assemblia do povo,i., dos homens livres. Exatamente para indicar um rumo para todasas finalidades, era lida a Lei (torah, instruo), que por isso ganhouo louvor que lhe canta o Sl 119.

    Deve-se distinguir o uso da Bblia nas assemblias crentes judaica,catlica, ortodoxa e protestante. Na assemblia judaica (e samaritana),leitura normativa s a Lei mosaica o Pentateuco ou Tor no sentidoestrito, em lectio continua, emoldurada com o canto dos salmos e umaleitura antolgica (seletiva) dos textos profticos. Na assemblia cristantiga, continuada pelas Igrejas catlica e ortodoxa, todo o Antigo e oNovo Testamento so suscetveis de leitura cannica, ainda que nosejam lidos integralmente como a Tor no culto sinagogal judaico. Ja assemblia protestante bastante diferente. Enquanto nas Igrejasprotestantes histricas como na catlica e na ortodoxa existe aprtica da leitura de percopes litrgicas, nas Igrejas de tipo pentecostalo uso bblico preponderantemente individual. Cada pessoa supostaser assduo leitor da Bblia, enquanto o uso no culto se restringe a unspoucos versculos interpretados pelo pastor ou predicador. Nas Igrejasneopentecostais, a Bblia apenas uma pretexto para uma pregaoextremamente seletiva, em meio a um culto dedicado a efeitoscarismticos (curas, falar em lnguas etc.).

    Vale observar ainda que, no protestantismo em geral, na ausncia deum Magistrio episcopal-pontifcio, surge a tendncia de usar a Bblia(sola Scriptura) como referncia doutrinal ltima. Da surge o perigo dahegemonia dos doutores, s vezes pouco pastorais, por um lado, oudos intrpretes fundamentalistas, por outro ainda que os

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    fundamentalistas pretendam apresentar a Bblia sem interpretao! ,portanto, uma falcia dizer que a Igreja catlica tem os sacramentos,enquanto as protestantes teriam a Bblia. A assemblia catlica tembem mais Bblia que a protestante, mas os presidentes da celebraono transmitem isso claramente ao povo. Nem por isso se deve pensarque seria um progresso para a Igreja catlica se os fiis levassem aBblia para a assemblia, como est acontecendo em algumas comuni-dades. A assemblia catlica tem seus livros de proclamao bblica,que so os lecionrios. Mas o povo precisa ser lembrado de que setrata da palavra bblica. E a proclamao seja proclamao, no exer-ccio de alfabetizao! A assemblia o lugar da proclamao daPalavra, da qual faz parte de modo eminente a proclamao bblica,especialmente do Novo Testamento. Mas a assemblia no o lugar doestudo bblico; este deve acontecer num mbito apropriado para isso. Oque deve acontecer na assemblia que a Palavra de Deus, da qual aBblia faz parte, seja levada atualidade, confrontada com a vida dosfiis, interpretada para a vida de hoje. Tal o papel da homilia, comotambm dos cantos e das preces acompanhantes15.

    Quando olhamos para o passado, vemos que a maioria das verses etradues clssicas foram do tipo vulgata, ou seja, verses em ver-nculo, em estilo acessvel ao povo da assemblia. Foram traduespastorais, destinadas ao uso na assemblia. Foi assim a Septuaginta,destinada aos judeus na dispora helenstica. Foi assim a Peshitta nombito srio, foram assim as antigas tradues latinas e a Vulgata deJernimo. As tradues para o vernculo nos tempos renascentistas emodernos tinham geralmente essa mesma ndole, pois se destinavama livrar o povo simples da hegemonia do latim, que j no era linguavulgata, e das pregaes totalmente alheias Biblia que ressoavam sobas abbadas das catedrais. Tyndale pagou com sua vida a ousadia detraduzir a Bblia para o povo. Depois dele, Lutero, os promotores daZricher, da Statenbijbel e da King James, bem como, nos passos des-tes, Joo Ferreira de Almeida, tiveram o mesmo propsito. Percebe-se,contudo, uma grande diferena: Lutero traduzia quoad sensum, a tradi-o calvinista tem tendncia traduo quoad litteram, exatamente pelaacima citada razo de que, na ausncia de um magistrio, quer epis-copal, quer doutoral, os calvinistas, desde os pastores at os ltimosfiis, radicalizando o princpio da interpretao pessoal, s tinham aletra da Bblia como norma de sua f.

    Evidentemente, como tambm as lnguas da primeira modernidadeenvelheceram, essas monumentais tradues so, hoje, quase to ina-

    15 Como distribuir esses papis entre os ministros e os fiis presentes uma ques-to que no pertence ao nosso assunto.

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    cessveis ao povo e to pouco pastorais quanto a Bblia latina ou ostextos em lngua original...

    Cabe aqui uma considerao colateral. A Bblia deve ser fcil? Umatraduo deve respeitar o nvel lingstico do pblico alvo, mas isso noquer dizer que ela deva ser fcil. No deve criar obstculos lingsticosdesnecessrios, mas deve transmitir eventuais pensamentos e conceitosque talvez sejam difceis ou exigentes de per si. E a esta dificuldadeintrnseca no precisa acrescentar dificuldades lingsticas extrnsecas.

    5.3 Tradues eruditas

    Ao tratarmos das Bblias eruditas, distinguimos estas das ja comen-tadas tradues pastorais (vulgatas) munidas de aparato erudi-to16. Falamos das tradues que so eruditas em si mesmas, em seutipo de texto e linguagem17.

    Como as tradues pastorais, tambm as eruditas no so uma novi-dade moderna. Na Hexapla de Origenes constava um exemplo extre-mo de traduo erudita: a quila, traduo judaica to literal que erapossvel verificar o substrato hebraico no prprio texto grego. Certastradues originariamente eruditas entraram tanto na cultura do povocrente que praticamente deixaram de s-lo. Foi o caso da King Jamese da traduo de Almeida.

    Um exemplo de traduo erudita em plena atualidade a Bblia deJerusalm. Ela se destaca no apenas pela amplido das notas tais,afinal, podem ser acrescentadas a uma vulgata qualquer mas pelaprpria linguagem, bastante intelectual, mesmo para o povo de lnguafrancesa, e muito mais ainda para os usurios da traduo brasileira.Indcio de seu distanciamento da assemblia tambm o uso do nomede Iahweh, totalmente alheio a qualquer tradio litrgica e escn-dalo para os judeus. Igualmente erudita a Traduo Ecumnica daBblia, sobretudo na traduo brasileira, que, preocupada com noperder as nuanas e referncias da verso francesa, parece uma trans-posio dessa18. Se na Bblia de Jerusalm e na Traduo Ecumnica daBblia se apresenta uma linguagem erudita de cunho histrico-liter-

    16 Falaremos sobre isso mais adiante, 5.4.17 Na primeira categoria, entre ns, podemos colocar a traduo da CNBB, cujotexto uma vulgata, mas as notas, embora concisas, de tipo erudito, destinado,ao que parece, ao uso em seminrios e cursos. Na mesma linha vo, por exemplo,as novas tradues da Ed. Vozes e dos missionrios capuchinhos portugueses.18 Questionvel , nesse caso, a publicao de uma edio simplificada, pois aTraduo Ecumnica da Bblia no uma traduo para a assemblia ou para apiedade, mas para o estudo.

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    rio, em outros casos a linguagem erudita vai na linha de experinciasliterrio-poticas, como a traduo francesa de Chouraqui19 e, entrens, as experincias de Haroldo de Campos. A recente traduo fran-cesa, intitulada La Bible - nouvelle traduction, o exemplo mais claronesta linha. Demasiadas vezes, as tradues da Bblia em francssurgiram de uma concepo da lngua, dos idiomas, ou de uma con-cepo da histria e da arqueologia dos textos, mas raramente, oumesmo nunca, de uma concepo da literatura20. No se entenda,porm, este empenho como esteticismo beletrista, pois exatamente apreocupao com linguagem bonita e homognea uma das maiorestraies do texto bblico, que nasceu em diversas pocas e ambientes,com diversas linguagens e estilos e, at mesmo, diversas vises deDeus e da Histria21.

    5.4 Introdues, notas etc.22

    costume avaliar as bblias lanadas no nosso mercado a partir dotamanho das introdues e das notas de rodap. Ora, na realidade,isso nada tem a ver com a traduo. Tem a ver com a utilidade dolivro, mas no com o valor da traduo. Poderamos at dizer: seuma traduo julgada valiosa por causa das notas... uma tradu-o ruim!

    Entenda-se bem: no queremos dizer que bblias com muitas notassejam ruins. Mas o texto deve ser compreensvel, quanto ao sentido desuperfcie, levando em conta o nvel do pblico visado (respectiva-mente popular ou erudito), sem que o leitor seja obrigado a ler asnotas. Num primeiro momento, o texto deve dar seu recado sem as notas,sobretudo quando se trata de uma traduo para ser proclamada. S.Jernimo, ao perceber que no conseguiria traduzir com a devida cla-reza, acrescentava glosas para serem proclamadas juntamente com otexto23, mas no fazia notas de rodap!

    19 Publicada em portugus pela Ed. Imago.20 La Bible - nouvelle traduction. Paris: Bayard; Montral: Mdiaspaul, 2001, p. 22.21 A traduo desta Bblia foi confiada a 73 exegetas ladeados de 73 literatos, quetrabalharam os respectivos 73 livros bblicos independentemente. Esses diversosautores, essas diversas vozes literrias hoje confrontadas com a diversidade bblicainscreveram a escritura de uma traduo contempornea da Bblia numa diversi-dade de vozes necessria, a nosso parecer, para a transmisso e a compreensodaquilo que a Bblia em nossa cultura (op.cit., p. 24).22 Convm considerar introdues e notas conjuntamente, porque suas informaespodem encontrar-se tanto em uma como na outra categoria, ou ainda, em excursos,glossrios e outros anexos traduo.23 P. ex., Ex 12,11: [pscoa], isto , passagem. A prtica das glosas por parte doencratista Jernimo seja talvez a explicao dos trs dias de continncia que aVulgata acrescentou em Tb 8,4 Vg.

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    As notas tm utilidade e muita num segundo momento, o doestudo, do aprofundamento. As bblias de estudo, tanto catlicascomo protestantes, trazem em nota explicaes arqueolgicas,filolgicas, lingsticas, documentais (variantes textuais), teolgi-co-doutrinais, pastorais etc. Mas a traduo do texto propriamentedeve ser autnoma24.

    guisa de orientao, o seguinte. Em bblias mais antigas, as introdu-es e notas so preponderantemente de cunho apologtico (defesa dadoutrina crist ou catlica) ou tambm arqueolgico-histricas, muitasvezes para mostrar a confiabilidade dos dados bblicos; por exemplo:a traduo espanhola de Nacar-Colunga, publicada na Biblioteca deAutores Cristianos (BAC). As notas da Bblia de Jerusalm so essen-cialmente documentais (variantes do texto copiado nos manuscritos),filolgico-histrico-literrias e teolgicas (com vistas doutrina crist-catlica). J a Traduo Ecumnica da Bblia, alm de trazer valiosasnotas documentais, filolgico-histrico-literrias e arqueolgicas, sedestaca pelo teor ecumnico e a dimenso teolgica das notas e intro-dues, por vezes chegando a constituir um verdadeiro tratado (p.ex.,na Epstola aos Romanos).

    A tradio protestante evita as notas, em nome do princpio da livreinterpretao; no mximo alista as referncias dos textos paralelos. Aexplicao e interpretao teolgica deixada para os comentrios,volumes publicados parte. A tendncia a diminuir as notas e remetera comentrios publicados parte constata-se tambm nas traduespromovidas pelos episcopados na Italia (CEI), na Alemanha(Einheitsbersetzung), na Blgica e Holanda (Willebrord), nos EUA(New American Bible) e no Brasil (CNBB). Isto, porque estas tra-dues se aproximam do tipo vulgata e procuram o mximo depraticidade. Por outro lado, os comentrios publicados partepodem considerar as questes tratadas em funo de diversas tra-dues e no de uma s25.

    24 A nova bblia francesa traz as notas no fim e as chamadas, discretamente, namargem do texto. A Biblia del Peregrino conheceu, na Espanha, uma edio quetrazia as notas num fascculo acompanhante. A traduo da CNBB no Brasil supri-miu, na segunda edio, as chamadas das notas de rodap, para que o leitor nointerrompesse a leitura do texto para se dirigir nota... (em compensao, indicouno rodap com toda a clareza o versculo e o vocbulo a que se referem). Consi-derando o que aqui escrevemos, a tempestade desencadeada por instncias conser-vadoras contra a Ed. Pastoral foi bastante fora de propsito, pois no se referia aotexto e sim, s notas e ao vocabulrio.25 Uma experincia trgica foi a tentativa da Editora Herder de publicar a (ante-rior) traduo do episcopado italiano (CEI) com as notas e introdues da TOB(Traduction cumnique de la Bible): em bom nmero de notas foi necessrioobservar que a nota se refere traduo da TOB e no da CEI...

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    6. Dimenses para avaliar as traduesbrasileiras

    O leitor deste artigo talvez espere que, finalmente, eu lhe aconselhe qualedio comprar. Ora, como estrangeiro, isso no me cabe; e, como minei-ro por aculturao, no me convm... como no mercado automobils-tico: quase todos os carros so bons, a compra depende do que se pre-tende fazer com o carro. Os nicos cuja utilidade no corresponde aopreo so os carros de luxo, pois neste caso paga-se o luxo, no o carro.

    Para compreender a oferta do mercado podemos situar as diversastradues segundo diversos parmetros.

    6.1 Traduo formal ou semntico-pragmtico-dinmica?

    Uma traduo formal procura manter o mais possvel a estrutura dotexto original, tanto na construo da frase ou perodo quanto na tra-duo das metforas e imagens e no uso dos vocbulos (traduzindo,se possvel, o mesmo termo original sempre pelo mesmo vocbulo nalngua final)26. Tal traduo tem certamente vantagens para quemconhece a cultura e a semntica do texto original, mas, evidentemente,causa problemas para o povo mais simples: para entender o vocabu-lrio, precisaria de um dicionrio bblico enciclopdico, e para enten-der a construo da frase, de um curso na Faculdade de Letras... Emesmo as pessoas com respeitvel bagagem cultural, muitas vezes,no percebem as peculiaridades da semntica bblica, por exemplo,que corpo e alma podem ser usados como sinnimos, significandosimplesmente eu etc.

    J a traduo por equivalncia dinmica procura suscitar no leitor, medi-ante um uso lingstico adequado do idioma final, o efeito de signifi-cao que o texto teve no leitor inicial, em outro contexto cultural.Nisso, no se trata somente da semntica dos termos e estruturas lin-gsticas em si (a semntica no sentido estrito), mas tambm do efeitoproduzido no leitor originrio (a pragmtica do texto). Sobretudo esteaspecto difcil de ser atingido e avaliado. O tradutor facilmente pro-jetar no texto o efeito que ele gostaria ver produzido no leitor, mesmose no se pode verificar que esse foi o efeito inicial. Neste caso, fala-se em manipulao. Alm disso, a rapidez das mudanas semnticastorna essas tradues muito efmeras e pouca adequadas para amemorizao e a proclamao.

    26 Em cada poca da histria surge a necessidade de voltar a uma traduo maisformal, para redescobrir o sabor das fontes. Foi esse o intuito de Jernimo aotraduzir conforme a hebraica veritas.

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    Como traduo extremamente formal conhecemos entre ns as ver-ses original e corrigida fiel de Almeida. Exemplos de equivalnciadinmica so a Bblia (ou a Nova Traduo) na Linguagem de Hoje ea Bblia do Peregrino; e, em medida menor, a Nova Verso Internaci-onal e a Edio Pastoral. As outras situam-se no meio. As versesderivadas de Almeida so evidentemente mais formais que as tradu-es catlicas, as quais, mesmo quando traduzidas dos originais gre-gos e hebraicos, mostram influncia da Vulgata27.

    6.2 Linguagem popular ou erudita?

    Uma Bblia concebida para o estudo acadmico tira vantagem de umalinguagem mais erudita, porque mais rica em vocabulrio e maismatizada na construo da frase. Evidentemente eruditas so a Tradu-o Ecumnica da Bblia, a Bblia de Jerusalm (antiga e nova) e aextinta verso brasileira do Pontifcio Instituto Bblico. Por causa deseu formalismo, tambm a Bblia Mundo Novo (das Testemunhas deJeov) e a Almeida corrigida fiel apresentam uma linguagem queaos olhos da maioria das pessoas parece erudita. A meu ver, mesmoa Bblia do Peregrino usa uma linguagem que, embora simples, clarae atual, relativamente erudita.

    As outras procuram, via de regra, uma linguagem mais popular, pr-xima do vocabulrio cotidiano do povo em geral, sem cair emvulgarismo naturalmente. Para o uso pastoral, tendo em vista o baixonvel de escolaridade e conhecimento lingstico do povo, tal aproxi-mao linguagem popular parece adequada, mas no deixa de sus-citar problemas. A linguagem popular no Brasil no homognea, osmesmos vocbulos podem ter um sentido ou conotao muito diferen-te de Norte a Sul... Alm disso, a linguagem popular muda continu-amente quanto semntica, sobretudo sob influncia da televiso, semfalar da linguagem de grupos especficos, a gria dos jovens paulistanos,cariocas etc.

    Da, mesmo para o uso pastoral, indicado guardar certa distncia emrelao linguagem popular, para manter a universalidade necessriana proclamao. Alm disso, vale lembrar que os textos bblicos, nasua maioria, no foram escritos em linguagem popular, mas em diver-sos cdigos, uns litrgicos (os Salmos, certos trechos do Pentateuco),outros semi-eruditos (sapienciais, linguagem da corte, historiografiaaristocrtica), outros em termos de catequese para os simples, real-mente populares (principalmente as palavras e parbolas de Jesus).

    27 Figueiredo e Matos Soares so tradues da Vulgata, mas com bastante autono-mia literria, embora hoje paream antiquadas.

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    Seria at desejvel que essa diversidade estilstica transparecesse emnossas tradues.

    A percepo da linguagem como simples ou erudita depende, eviden-temente, do grupo usurio. Para os catlicos, todas as verses deAlmeida (tanto a corrigida fiel quanto a revista e corrigida e a re-vista e atualizada) parecem eruditas. J para um protestante pentecostal,pouco acostumado a conotaes polticas na Bblia, a linguagem da EdioPastoral parece no mnimo estranha... A Nova Verso Internacional usaas formas coloquiais voc/vocs, mas muitos termos do vocabulrio geralsupem uma boa passagem pela escola dominical...

    6.3 Linguagem religiosa, profana ou litrgica?

    Como dissemos, muitos textos bblicos surgiram num mbito litrgico.Isso o caso, eminentemente, na literatura sacerdotal, responsvelpelo Pentateuco e pela historiografia cronista. No Novo Testamento, aEpstola aos Hebreus entra nessa categoria, mas tambm o Apocalipsee os Evangelhos (pelo menos, em parte)! Outros escritos tm origemna liderana das comunidades: as cartas do Novo Testamento em geral,partes da literatura deuteronomista. Tambm o gnero proftico temforte teor religioso-comunitrio. S alguns escritos sapienciais aproxi-mam-se mais da vida profana. E ainda convm observar que o mundobblico no conhecia separao de Igreja e Estado. O profano e o reli-gioso formavam uma unidade.

    Da ser pouco desejvel uma transcrio da Bblia em linguagem pro-fana. Quanto linguagem religiosa, bom distinguir entre a lingua-gem religiosa individual e a religiosa comunitria. Esta ltima alinguagem adequada para a traduo bblica. Tal diferena nota-se aocomparar duas tradues que adotam a equivalncia dinmica e usamuma linguagem mais popular: a Bblia (ou a Nova Traduo) na Lingua-gem de Hoje e a Edio Pastoral. A primeira procura falar a linguagemdo cidado atual, religioso talvez, mas sem muita conotao confessional;a segunda tenta falar a linguagem das comunidades de base.

    A Bblia tem seu contexto vital na reunio da comunidade de f.Decerto, verdade que as reunies sinagogais dos judeus antes deCristo no podem ser, sem mais, equiparadas liturgia altamentehiertica da Igreja catlica ps-tridentina, mas, de toda maneira, deveressoar nas tradues bblicas algo do ofcio do povo (de Deus) sentido do termo liturgia , para que sejam fiis, no s verbalmen-te, mas realmente, ou seja, quanto realidade que significam e fazemacontecer. Da um apelo s instncias que presidem o povo de Deuspara que dediquem toda a sua ateno traduo bblica com vistas celebrao.

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    6.4 Corolrio: lecionrios litrgicos e Bblia litrgica

    Embora um pouco fora do assunto, cabe aqui uma palavra sobre oslecionrios litrgicos. Os lecionrios litrgicos no so Bblias, maslivros litrgicos, assim como a Bblia no um livro litrgico, e aliturgia no deve degenerar em estudo bblico, seja fundamentalista,seja libertador28. Os lecionrios litrgicos representam, sim, a maisantiga memria de nossa f, que deve, sempre, ser atualizada na ce-lebrao. Para este fim, a liturgia dominical apresenta aos fiis, comomesa ricamente preparada no dizer do Vaticano II29 , os evange-lhos e os demais escritos do Novo Testamento, bem como as principaispassagens do Antigo, especialmente aquelas que nos ajudam a com-preender melhor o Novo, lembrando seu fundo histrico ou propondotemas para a releitura em Cristo representada pelos primeiros escri-tos cristos. Mas as passagens bblicas da liturgia no so apresenta-das no seu quadro bblico, no mostram o contexto literrio e histricono qual se inscreve seu sentido literal. s vezes, esto na liturgiapor causa de alguma interpretao crist antiga ou at por causa deuma forma do texto manuscrito que no a originria... Os textos nomigram da Bblia para os lecionrios litrgicos sem nenhuma modifi-cao. J o fato de se operar um recorte uma interpretao. E, paraser proclamado, o recorte deve ser provido de uma introduo, Na-queles dias... ou algo assim. Tudo isso legtimo e necessrio, doponto de vista litrgico, mas no faz parte da Bblia...

    A leitura litrgica , pois, uma releitura. E seria bom marcar isso maisclaramente nos prprios lecionrios. Nos atuais lecionrios da IgrejaCatlica no Brasil, as passagens bblicas so encimadas por uma frasetirada de algum texto bblico ou patrstico, que ambienta a procla-mao e pode servir de chave de leitura. Isso bom, mas, infelizmen-te, esta frase no lida, via de regra, na liturgia de nossas parquias.Ora, pessoalmente, eu sugeriria algo mais radical do que esse lemaanteposto s leituras no lecionrios: uma verdadeira introduolitrgico-teolgica, destacando o pensamento principal em vista docontexto litrgico em que se encontra. Bem sei que os folhetos domi-nicais procuram fazer isso, mas, por que no fazer isso no prpriolecionrio, a partir de um estudo slido assumido pelos melhoresbiblistas e liturgistas pastorais do Brasil? Em compensao, algumasleituras, sobretudo do Antigo Testamento, poderiam ser resumidas,re-narradas de uma maneira mais simples e compreensvel, em fun-o do conjunto da liturgia, conservando-se em forma literal somente

    728 Explicamos isto amide na introduo de nosso mais recente livro, LiturgiaDominical: mistrio de Cristo e formao dos fiis, Petrpolis: Vozes, 2003.29 Cf. Sacrosanctum Concilium, n. 51.

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    algumas frases caractersticas, que com facilidade podem ser guarda-das na memria.

    Claro, isso um pensamento colateral quando o assunto traduo.Mas pode ajudar para compreender por que a traduo usada naliturgia no deve ser necessariamente idntica da Bblia do episco-pado. o caso da traduo da CNBB. Esta tomou como ponto departida as percopes litrgicas (dos domingos, das frias, dosacramentrio e do brevirio). Ao inseri-las no texto contnuo da B-blia, porm, introduziu muitas emendas. Por isso, a traduo da CNBBno idntica dos lecionrios. Alm disso, a traduo da CNBBdepende somente da (presidncia da) Conferncia Episcopal, enquan-to os textos litrgicos devem receber o placet de Roma. A CNBB podemelhorar seu texto continuamente e bom que o faa. J os lecionrioss podem ser modificados depois de nova reviso por Roma. O textodos lecionrios ser, portanto, sempre levemente diferente da tradu-o da Bblia da CNBB, mesmo se esta, algum dia, chegar a relativaperfeio e ganhar certa oficialidade. Pois, mesmo nesta hiptese, aspercopes litrgicas tero peculiaridades que no fazem parte da tra-duo bblica como tal. Contudo, altamente desejvel que a produ-o da traduo bblica e a dos lecionrios andem de mos dadas, paraque os produtos mantenham um mximo de proximidade.

    7. Tarefas

    A primeira tarefa das instncias bblicas no Brasil unificar os nomesbblicos.

    Mais complicada a produo de uma traduo nica para o Brasil:em vista da acima exposta complexidade dos interesses, isso pareceimpossvel. preciso fazer escolhas segundo determinadas priorida-des. Do lado catlico e ecumnico, uma dessas prioridades umatraduo padro que sirva de base para a celebrao e tambm paraa memorizao mnima do texto bblico: uma traduo de refern-cia. Devendo agradar aos mais diversos setores, ela ser necessaria-mente um meio-termo. Creio que a traduo da CNBB se encami-nhou bem neste sentido. Infelizmente, como a CNBB durante essesltimos tempos passou por um processo de reestruturao, a revisoda traduo e o dilogo com os setores litrgico e ecumnico estoparados. Esperamos que, depois da reestruturao da CNBB, essastarefas sejam retomadas com afinco.

    Por outro lado precisamos tambm de boas bblias de estudo. Estaspodem ser concebidas de diversas maneiras. Como vimos, a Bblia deJerusalm apresenta uma traduo relativamente formal e clssica, evem provida de ricas notas histrico-literrio-teolgicas e de uma

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    abundncia de referncias de textos paralelos. A Traduo Ecumnicada Bblia at certo ponto semelhante, porm, demonstra participaoecumnica nas introdues e nas notas, alm de procurar expressar asopes semnticas no prprio texto. A Bblia do Peregrino vai maislonge neste sentido: uma traduo do tipo semntico-dinmico comamplas notas lingstico-literrias, que explicam as opes da tradu-o e acostumam o leitor semntica bblica. J as bblias de estudode origem protestante seguem outro mtodo. Usam um texto padro,seja o de Almeida, seja um texto como a Bblia (ou Nova Traduo) naLinguagem de Hoje30, e trazem em nota o material histrico-teolgicojulgado til para o estudo pessoal ou ministerial. Do lado catlico,nada impede que o mesmo se faa, em alguma forma de edio, coma traduo destinada a servir de referncia, a da CNBB31.

    As tradues que se caracterizam pela dinmica semntica e por umalinguagem bem acessvel, como sejam a Edio Pastoral e a NovaTraduo na Linguagem de Hoje, so de grande utilidade para acatequese, os grupos bblicos, o uso escolar etc. Na realidade, desem-penham a mesma funo que o targum nas antigas sinagogas32. Estacomparao mostra que elas no tornam suprfluas as tradues for-mais. As tradues formais duram mais, enquanto as dinmicas pre-cisam de contnua adaptao33. Assim, as primeiras so mais adequadaspara a proclamao litrgica, as ltimas, mais para a explicao.

    Mas, se impossvel e nem desejvel evitar o pluralismo, creioque, no entanto, deveria existir um pouco mais de racionalidade. Se,no nvel do estudo bblico, as bblias eruditas ou de caractersticasespeciais podem ter sua razo de existir, no nvel das vulgatas quese deveria conseguir maior racionalidade. No se v a razo por quecontinuar publicando paralelamente a bblia Ave Maria, a da Vozes, aBblia Mensagem de Deus e a traduo da CNBB, todas elas de tipoapropriado para uma traduo litrgica, sem diferenas suficientespara se manterem separadas34. O lgico seria que a CNBB, em nome

    30 Por enquanto ainda no no Brasil, e sim, p. ex., a excelente La Biblia de Estudio:Dios habla hoy, Sociedades Bblicas Unidas.31 Pode-se pensar em diversas edies, uma com comentrios simples e pastorais,outra com comentrios para o estudo.32 Cf. Ne 7,7-8.33 O prprio ttulo Nova Traduo na Linguagem de Hoje fala por si: em dozeanos, a Bblia na linguagem de Hoje (1989) precisou de uma nova traduo(2001). O hoje fugidio...34 Na realidade tambm a Ed. Pastoral aproxima-se deste grupo, distinguindo-seapenas pelo uso da forma voc/vocs. Em torno desta questo seria preciso umdebate muito profundo, considerando no apenas o uso coloquial do idioma, mas atradio cultural e religiosa, a questo da compreenso ativa e passiva etc. Poder-se-ia pensar at em uma traduo de referncia em duas verses, uma com otratamento tu/vs e outra com voc/vocs.

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    de sua funo pastoral, avanasse mais na linha da cooperao entreas vrias editoras. Tal cooperao j foi iniciada pela publicao emconjunto da traduo da CNBB, a qual agora necessita uma revisocuidadosa, inclusive, para servir de base aos livros litrgicos que den-tro de alguns anos devero ser atualizados. Mas preciso avanarmais nesta direo. E pouco foi notado que a traduo da CNBB apre-senta traos ecumnicos muito pronunciados, por exemplo, a duplanumerao onde existe divergncia entre as tradies catlica e protes-tante; ou tambm o esprito ecumnico das introdues e notas. Comum pouco de imaginao, este trabalho poderia ser aproveitado paraproduzir uma verso CONIC35 da traduo da CNBB36. Esperamosque haja viso eclesial e vontade poltica para tanto.

    35 CONIC = Conselho Nacional de Igrejas Crists.36 Por outro lado, h quem deseje que a traduo da CNBB siga como norma a NovaVulgata e no os textos originais publicados principalmente na Biblia HebraicaStuttgartensia e no Novum Testamentum Graece (de K. Aland) ou no Greek NewTestament. O Conclio Vaticano II aconselha tradues diretamente a partir dosoriginais, mas ao lanar alguns anos depois a Nova Vulgata, o Papa Joo Paulo IIsugeriu que fosse transposta em outras lnguas. Uma coisa no exclui a outra. ABblia da CNBB, que segue os textos originais, pretende indicar em nota as rele-vantes diferenas de contedo entre as duas formas. Contrariamente, poder-se-iapensar tambm em uma verso que seguisse a Nova Vulgata no texto e deixasseas opes variantes na nota. Ora, na realidade, as diferenas no so to grandesassim, porque a Nova Vulgata corrigiu profundamente a Vulgata de Jernimo combase nas modernas edies textuais. Da a pergunta: ser que a prpria NovaVulgata no nos incentiva a fazer nossas tradues diretamente a partir dos ori-ginais, usando a Nova Vulgata como orientao, mas no como norma ltima? Poisa prpria Nova Vulgata, iniciada no incio do sculo passado, passa por constantereviso em funo de novas descobertas documentais e exegticas.

    Johan M. H. J. Konings SJ Doutor em Teologia e Mestre em Filosofia e emFilologia Bblica pela Universidade Catlica de Leuven (Lovaina), Blgica, e profes-sor de exegese bblica no ISI-CES em Belo Horizonte-MG. Entre outras obraspublicou: Descobrir a Bblia a partir da Liturgia, So Paulo: Loyola 1997; A Bblianas suas origens e hoje, Petrpolis: Vozes, 1998; A Palavra se fez livro So Paulo:Loyola, 1999; Evangelho segundo Joo: amor e fidelidade, Col. Comentrio Bblico,Petrpolis: Vozes e So Leopoldo: Sinodal 2000; e tambm responsvel pela coor-denao da Bblia: Traduo Ecumnica, So Paulo: Loyola, 1994, e da BbliaSagrada: Traduo da CNBB, por diversas editoras, 2001.

    Endereo: Av. Dr. Cristiano Guimares, 2127 Bairro Planalto31720-300 Belo Horizonte MG