transviriato de jaime rocha • um viriato em trÂnsito … · 2011-09-26 · cumplicidade...

14
TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO PELA HISTÓRIA* DELFIM F. LEãO Universidade de Coimbra Abstract: "Tmnsviriato of Jaime Rocha - a Viriathus travelling through history": in this article, the author discusses the way Jaime Rocha explored the image of Viriathus, the Lusitanian shepherd, who is presented both as a collective and as an accidental hero. Key-words: Jaime Rocha, Viriathus, national hero. No verão do ano 2000, numa altura em que se preparava para festejar os 25 anos de existência, o Trigo Limpo Teatro ACERT, de Tondela, convi- dava o escritor Jaime Rocha a escrever uma peça sobre Viriato, para dar corpo a um projecto monumental de teatro de rua. Na "Introdução" ao texto publicado (que servia de bilhete para o espectáculo), o autor confessava o fascínio que, desde o primeiro instante, a solicitação sobre ele exerceu: 1 Agradou-me. Não tanto pela figura de Viriato, mas pela total liberdade de inventiva que me foi proporcionada, a possibilidade de criar um texto sem balizas, sem censuras de qualquer tipo e sem propósitos demagógicos, em que a história fosse contada de urna outra maneira, de várias outras maneiras. Este texto corresponde à comunicação apresentada a 11 de Agosto de 2006, como conferencista convidado, no Colóquio "Ideas", actividade integrada nos Festivais de Teatro de Mérida. 1 Jaime Rocha, Transviriato (Tondela, ACERT, 2001), p. 11. Daqui em diante, todas as citações serão feitas a partir desta edição, com a simples indicação da página. Humanitas 59 (2007) 303-316

Upload: others

Post on 05-Jun-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO PELA HISTÓRIA*

DELFIM F. LEãO Universidade de Coimbra

Abstract: "Tmnsviriato of Jaime Rocha - a Viriathus travelling

through history": in this article, the author discusses the way Jaime Rocha

explored the image of Viriathus, the Lusitanian shepherd, who is

presented both as a collective and as an accidental hero.

Key-words: Jaime Rocha, Viriathus, national hero.

No verão do ano 2000, n u m a altura em que se preparava para festejar

os 25 anos de existência, o Trigo Limpo Teatro ACERT, de Tondela, convi­

dava o escritor Jaime Rocha a escrever u m a peça sobre Viriato, para dar

corpo a u m projecto monumenta l de teatro de rua. Na "Introdução" ao texto

publicado (que servia de bilhete para o espectáculo), o autor confessava o

fascínio que, desde o primeiro instante, a solicitação sobre ele exerceu:1

Agradou-me. Não tanto pela figura de Viriato, mas pela total liberdade de

inventiva que me foi proporcionada, a possibilidade de criar um texto sem

balizas, sem censuras de qualquer tipo e sem propósitos demagógicos, em que

a história fosse contada de urna outra maneira, de várias outras maneiras.

Este texto corresponde à comunicação apresentada a 11 de Agosto de 2006, como conferencista convidado, no Colóquio "Ideas", actividade integrada nos Festivais de Teatro de Mérida.

1 Jaime Rocha, Transviriato (Tondela, ACERT, 2001), p. 11. Daqui em diante, todas as citações serão feitas a partir desta edição, com a simples indicação da página.

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 2: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

304 Delfim F. Leão

Nestas declarações programáticas iniciais, Jaime Rocha deixava claro, de imediato, que não se propunha fazer uma reconstrução literária decalcada no Viriato histórico, cujos contornos eram já, de resto, suficientemente delidos a ponto de permitirem um amplo espectro criativo. Apesar destas condicio­nantes, se o autor houvesse optado por centrar-se na configuração de uma personagem com traços muito vincados e individualizáveis, haveria espaço para discutir a coerência e impacto do resultado final, mas mantinha-se inalterado o pressuposto de se ter procurado recriar uma personalidade que, com maior ou menor elevação, detivesse uma natureza própria e distinta de todas as outras. No entanto, a escolha de Jaime Rocha visava potenciar, deliberadamente, a ambivalência do Viriato que se propunha apresentar, ao dizer que «havia, afinal, muitos Viriatos, tantos Viriatos, mais de dez milhões de Viriatos».2 Por outras palavras, o seu herói (ou anti-herói, de acordo com a perspectiva pela qual fosse olhado) deveria espelhar a natureza dos cerca de dez milhões de Viriatos em potência existentes no tempo presente, mas sem deixar de fora todos os outros que existiram antes deles. Ou seja, ao autor interessava não tanto o guerreiro esforçado que combateu os romanos na segunda metade do séc. Π a.C, mas antes a persistência do seu genoma étnico nas características que marcam e distinguem o povo lusitano, seja nos momentos de grandeza seja nos de apagada e humilde prostração. Esta forma de conceber a figura que servia de mote a todo o projecto teatral afectaria não apenas a concepção da personagem, mas também a organização macro--temporal da história, conforme o próprio autor uma vez mais confessa (12):

A tentação de seguir a figura histórica não conseguiu vencer o meu desejo de criar, imaginar o meu próprio Viriato. O meu apetite foi transgredir sobre a história, reinventá-la, castigá-la, romantizá-la, quiçá mitificá-la, mas deixar que o sangue e o amor corressem pelo texto e encontrassem, nos diálogos entre as personagens, as misérias e as honras de um povo antigo, o lusitano, as suas fraquezas, as suas utopias, as suas bondades e também a sede de justiça e de vingança. Não me interessou se havia maus e bons. Nem o que de bem e de mal os romanos fizeram nestas paragens. Apenas que os romanos são de Roma e os lusitanos da Lusitânia. Ε que só isso, esse espaço geográfico diferente cria um conflito insanável. Nenhuma ocupação impe­rialista é saudável.

212.

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 3: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

Transviriato de Jaime Rocha 305

Assim envolvido na malha entretecida pelos fios da memória colectiva de um povo, Viriato não pode ser contido na circunstância de um tempo determinado, pois tem de percorrer, constantemente, a distância que une passado e presente, além de irrigar, de igual forma, a força vital das sementes do futuro. O Viriato de Jaime Rocha é, portanto, uma figura em viagem por atalhos, ravinas e penhascos do território lusitano e por trilhos e abismos da paisagem humana, um Viriato em trânsito ou — para dizermos com o autor — um Transviriato.

A forma de entender a personagem que dá motivação à peça estendia — se, aliás, sobre todo o projecto teatral desta produção do ACERT, como realidades íntimas e cooperantes na maneira de conceber o espectáculo. Essa cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário épico imponente (digno de Ben-Hur) dá a sensação de ser transportado por um enorme camião TIR, com o público (actor e espectador) a aparecer à maneira de uma espécie de moldura humana que enquadra e ampara todo o conjunto. Trata-se de teatro de rua ao serviço da descentralização (conforme é marca do ACERT), pois o espectáculo foi imagi­nado para seguir um percurso itinerante, ao longo de várias localidades da zona centro.3 Outro aspecto interessante da encenação é que o Povo enquanto personagem (que recupera a função de consciência colectiva com a qual já aparecia na tragédia clássica) era constituído por várias dezenas de elementos, dos quais apenas uma minoria bastante reduzida correspondia a actores do ACERT, uma vez que os restantes eram recrutados entre grupos de teatro (amador, universitário ou semi-profissional) existentes nos locais por onde a actuação passava.4 Este cuidado ajudava a envolver os espectadores na produção, sendo que o cenário contribuía para idêntico desígnio, ao recriar a forma de uma arena romana, com capacidade para trezentas pessoas, que ora

3 Coimbra, Guarda, Silvares, Lamego, Almendra, Águeda, Viseu e Tondela. Sobre a estreia em Coimbra (no pátio da Universidade) e a reposição noutros locais, vide a notícia feita por Luísa de Nazaré Ferreira, "Jaime Rocha - Transviriato"', in Maria de Fátima Sousa e Silva (coord.), Representações âe teatro clássico no Portugal contemporâneo, vol. ΙΠ (Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2004) 185-187. Para um conspecto da actividade teatral deste grupo sediado em Tondela, vide Trigo Limpo Teatro ACERT-25 anos a fabricar sonhos (Tondela, ACERT, 2001).

4 A fim de garantir a articulação global na actuação do coro, um grupo de actores do ACERT trabalhava, nos dias que precediam a representação, com os elementos recrutados localmente.

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 4: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

306 Delfim F. Leão

concentrava toda a assistência na representação, permitindo u m espectáculo

em várias frentes, ora facilitava impressionantes evoluções em palco, que

foram habilmente aproveitadas pela encenação, potenciando a dimensão de

certa forma 'cinematográfica' da performance.

Não é, porém, sobre o espectáculo em si que se irá falar, mas antes

sobre a forma como Jaime Rocha concebeu o texto. Das várias perspectivas

sobre as quais o estudo poderia incidir, optou-se pela análise das distintas

figuras de Viriato, na medida em que permitem identificar a estratégia de

abordagem do autor e que ele mesmo identifica nestes termos (12):

Um era pouco, muitos seriam de mais, mas não consegui fugir a alguns

deles: ao trágico, ao fantástico, ao heróico, ao apaixonado, ao justo, ao feroz,

ao velho, ao novo. A um Viriato que ilustrasse a resistência de um povo

à procura de uma identidade e de uma terra, que simbolizasse a luta entre o

passado e o presente, uma luta eterna contra as ditaduras sejam elas quais

forem, venham elas vestidas da roupa mais extravagante.

Guerrei ro (Viriato) e o H o m e m da Carroça (Viriato)5

Embora a personagem do Bobo seja, de certa forma, a figura central do

drama6 e estabeleça a ligação entre as diferentes cenas, ao tecer comentários a

u m tempo irónicos e acutilantes (que constituem muitas vezes chaves de

leitura), será preferível reflectir sobre ele à parte, no termo da análise, pese

embora o facto de se ir necessariamente explorando aspectos da sua natureza a

propósito da apreciação das outras personagens. Assim acontece com o

Guerreiro que intervém logo na primeira cena (a qual evoca u m a paisagem de

tortura e morte), para uma breve intervenção onde esta figura vem afirmar,

sobretudo, a sua natureza real e terrena e protestar, de alguma forma, contra

o aproveitamento ideológico que possam fazer da sua imagem (18):

Eu sou Viriato, um homem de carne e osso, não sou uma invenção dos políticos.

5 A identificação das personagens segue a orientação expressamente facultada pelo autor (p. 13), que ilustra, aliás, a preocupação de mostrar a natureza multiforme de Viriato.

6 Que Jaime Rocha identifica como sendo uma 'tragicomédia', designação que, de certa forma, vai ao encontro da natureza do Lusitânia, tradicionalmente entendida como 'nação de brandos costumes', prestando-se, por conseguinte, a 'dramalhões de faca e alguidar' nos quais se vislumbra o imaginário do Fado, mas também onde ponteia o sorriso sardónico e o 'nacional porreirismo'.

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 5: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

Transviríato de Jaime Rocha 307

No entanto, este aparecimento efémero do Guerreiro, motivado pelo impulso de indagar onde se encontra o Povo que ainda há pouco o aplaudia, parece ilustrar, precisamente, a extrema volubilidade dessa consciência comum, sempre disposta a condenar o último caudilho para correr a aclamar o próximo. A cena visualiza, de resto, a aplicação deste processo, na medida em que o primeiro Guerreiro quase é esquecido em cena, para dar lugar a um outro, com idêntica caracterização e, portanto, sem trazer outra mais-valia à populaça que o saúda a não ser o facto de representar a última novidade. Aliás, o autor não deixou de registar essa impressão nas indicações cénicas que fornece (26):

Os soldados empurram o Bobo e arrastam o Homem da Carroça pelo chão. O povo cai em cima dele, espezinha-o, insulta-o. O Bobo faz gestos de desespero. Do meio deles levanta-se um outro homem vestido de guerreiro, semelhante ao primeiro.

Animado pelo fogacho de um novo líder, o mesmo Povo que acla­mava o romano Galba exige agora a sua morte. Pelo caminho, crucifica no altar da histeria colectiva a pessoa que clamava ser o Viriato genuíno e que já ninguém conhecia: o Homem da Carroça, que interpreta a imagem do chefe caído em desgraça, talvez por dele exigirem mais do que teria condições para dar, conforme o próprio acentua (18):

Eu não sou Prometeu, já disse milhares de vezes que não sou um deus, nem filho de nenhum deus, sou apenas um homem, um soldado lusitano que tem sido pastor desde criança. O meu nome é Viriato. Porque será que não entendem a minha fala? Carneiros, cabras, ovelhas, é este o meu mundo, não quero saber de cidades, nem de Parlamentos, nem de partidos, a Europa não me diz nada, ofende a minha qualidade de cidadão. Apenas as minhas ovelhas me dão felicidade. Nem mesmo já as mulheres animam a minha cama.

Ao afirmar-se como «apenas um homem», cujo «nome é Viriato», a personagem está a certificar, no fundo, as limitações da sua natureza humana. Não se identifica, portanto, nem com «Prometeu» nem com «um deus, nem filho de nenhum deus».7 Assume, igualmente, o sentimento

7 Debate-se, além disso, com versões distintas da sua história: «É uma confusão, eu nunca fui a Besteiros, nunca saí dos Hermínios, há aqui um equívoco. Eu sou Viriato, juro!» (19).

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 6: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

308 Delfim F. Leão

provinciano de quem entende apenas do mester de pastor, ao mesmo tempo que repudia o cosmopolitismo do mundo actual (Parlamentos, Europa, partidos). Contudo, para o Povo isso não bastava, pois um chefe tem de estar sempre num plano superior e portanto recuperara obstina­damente para Viriato a imagem do Titã (19): «Viriato foi aquele que encontrou o fogo e o trouxe até aos nossos dias.». Ainda assim, o Prometeu mitológico foi punido pelo despeito orgulhoso da estirpe divina (da qual fazia parte) e este Viriato, que reclama a natureza humana, acabará por sofrer idêntico destino às mãos da sua espécie.

O Bobo vai disputando parodicamente a identidade de Viriato, ao mesmo tempo que introduz no discurso marcas de contemporaneidade, ao referir as vagas de invasores que marcharão sobre solo lusitano (20):

Virão os turcos, os franceses, os alemães e a seguir os búlgaros, os sérvios, os croatas, os macedónios e a seguir os romenos, os marroquinos... Uhf, estou cansado... os espanhóis, os ucranianos, os montenegrinos, os limianos... quem?... uhf... chega!

Esta xenofobia, patenteada no texto e que alastra cada vez mais na Europa contemporânea, aparece combinada com reminiscências cristãs, na hora de ditar o destino final ao Viriato trágico e defraudado que se acoita sob as vestes do Homem da Carroça. Ε o romano Galba, aclamado farisai-camente pelo Povo, assume os traços de um outro governador romano (Pôncio Pilatos), na altura de confiar à histeria da populaça ansiosa por sangue a sorte do seu antigo baluarte (26): «Aí têm o vosso Viriato, façam dele o que quiserem.».

Viriato

Na segunda cena, que nos retrata o interior do acampamento de Vitílio, dá entrada a personagem oficialmente identificada com Viriato. O general romano pretende recompensar o chefe lusitano com a própria filha, Damiana, embora Viriato se mostre renitente quanto à oferta, mais por escrúpulos sociais do que por respeito a anteriores matrimónios. Na sua argumentação, Vitílio não deixa de fazer o encómio irónico da capa­cidade combativa dos lusitanos, mas destas paragens ocidentais o general salienta sobretudo «os melões e os tomates». Aliás, teria sido esse o móbil que levara o Senado, por influência de Cipião, a ratificar a invasão da

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 7: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

Transviriato de Jaime Rocha 309

Hispânia (32-33): «A conquista da Lusitânia vale a pena nem que seja pelos seus meloais e tomatais.».8 Viriato insiste em que o solo pátrio possuía também outros atractivos, como as pedras auríferas que luziam ao sol, facto reconhecido por Vitílio, que ajunta, ainda assim, outras notas geográ­ficas e históricas que valerá a pena evocar (33):

Sim, ao longo do rio Alva toda a gente extraía ouro e meu pai contava que, quando esteve sediado em Arganil, comia em pratos feitos de ouro e talheres de cobre do melhor que havia na Hispânia. Ε não era só o Alva. Pelo Tejo e pelo Mondego, ouro era coisa que não faltava. Apenas havia um lugar em que as coisas morriam à nascença, uma espécie de maldição, que era Santa Comba. Cipião alertava os soldados para nunca acamparem naquele lugar porque ali os mortos vinham à noite sugar o sangue aos vivos. Nunca lá se encontrou ouro, nem prata. Foi um lugar tirado do mapa.

O referente espacial aduzido, além de remeter para a contempo­raneidade, evoca localidades situadas nas imediações de Tondela (povoação que acolhe o ACERT), ajudando a pintar uma imagem hiperbólica de um Eldorado lusitano, marcado pela abundância, a fim de estabelecer um contraste mais nítido com Santa Comba, o lugar onde «as coisas morriam à nascença». A referência tem motivações evidentes, pois é do conhecimento comum dos portugueses que Santa Comba é a terra-natal de Salazar. Por conseguinte, essa «espécie de maldição» responsável pela desgraça endé­mica corresponde, obviamente, à ditadura.

A terceira cena — que junta na cava do caudilho lusitano, nos Montes Hermínios, Viriato, Damiana e o Bobo — serve, sobretudo, para adensar os prenúncios de tragédia, continuamente anunciada por Damiana e que se vê confirmada quando se conhece a notícia da morte de Vitílio às mãos de Audax, depois de Cipião se ter negado a assinar o pacto de paz oferecido por Viriato. Representa ainda, para o chefe autóctone, um pesado revés, na medida em que o obriga a constatar o falhanço da estratégia 'democrática' de privilegiar o diálogo com o inimigo, em vez do alarido

8 Esta forma sarcástica de considerar os encantos da região motivara, de resto, um juízo irónico também a Galba, na altura em que afirmava a sua paixão pela Lusitânia (25): «Gosto desta terra de montanhas e planícies, adoro os sobreiros, as vinhas e o peixe. Ε depois o Algarve, as piscinas, as mulheres e as termas espalhadas pelas cidades. Eu sou o vosso chefe. Vou fazer desta terra um país autêntico que não precise de mendigar um centavo à Europa.»

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 8: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

310 Delfim F. Leão

das armas. Aliás, a quarta cena vem confirmar, pela boca do Viriato Velho, os receios de que Viriato amolecera com o tempo e descurara a austeridade com que sempre se deve tratar o inimigo. Ora a evolução posterior da conduta de Viriato está intimamente ligada à caracterização da figura de seu pai, bem como às diligências desenvolvidas pelo filho, Viriato Júnior, razão pela qual será vantajoso tratá-las de forma autónoma.

Viriato Velho, pai de Viriato, e Viriato Júnior, filho de Viriato

A estreita conexão da dinastia dos Viriatos é visivelmente acentuada pela maneira como o autor identifica as personagens do Velho e do Júnior, desdobrando-as sempre em função da figura de Viriato. Este pormenor contribui assim para a estratégia de acentuar a natureza transversal do chefe lusitano, que se vai actualizando ao longo dos tempos com evoluções de carácter, embora não necessariamente num sentido ascensional e positivo. A quarta cena, marcada pela ansiedade com que Viriato Velho aguarda, no seu refúgio em Almofala, o regresso do filho, é repassada também pelo receio de ver confirmadas — no leito da morte — as suspeitas de que Viriato sucumbira à moleza do invasor (53):

As fortificações já não são como eram, a argamassa está mais fraca, a madeira apodrece. Tudo está a favor dos romanos e o meu filho não escapa a essa perdição.

Consciente do remate inelutável e iminente, o velho guerreiro pro­jecta a própria decadência que o acabrunha sobre a forma como vê os baluartes da oposição lusitana, tanto nas evidências físicas (fortificações, argamassa, madeira) como no ânimo da liderança. A caracterização é coe­rente com a imagem dos anciãos, que cedem com frequência à tentação da queixa moralizadora, ao capricho de agitar o fantasma do desrespeito pelas tradições, à comparação saudosa com os bons tempos do passado, fechando-se a qualquer demostração que leve a reconhecer no presente a mínima vantagem. No entanto, no seu enérgico estertor da morte, Viriato Velho tem ainda uma lição política que pretende legar, pessoalmente, ao filho. Porém, Viriato chega tarde de mais e o segredo é confiado não ao Sacerdote nem ao neto (Viriato Júnior), que o acompanharam nos derra­deiros momentos, mas antes — e significativamente, como se verá — ao

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 9: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

Transviriato de Jaime Rocha 311

Bobo, que se adiantara a chegar ao refugio de Almofala. Viriato não vem a tempo de escutar as palavras do pai e afasta-se novamente, na companhia do Bobo, sem atentar sequer na presença de Viriato Júnior, que permanece no refúgio, para herdar a espada do avô.

A quinta cena decorre novamente na cava, onde Viriato e o Bobo encontram Damiana, que perecera entretanto às mãos de Audax. O traidor chegará pouco depois, com o intento de trespassá-los a ambos durante o sono, mas é denunciado por um grito do Bobo. Uma vez alerta, Viriato luta com Audax e, apesar de ferido, consegue dominá-lo; não mata, porém, o desleal colaborador que o acusa de ser o primeiro instigador da traição, ao poupar Vitílio à morte. Contra a pena taliónica do Olho por olho e dente por dente', Viriato pretende expor uma lógica mais civilizada (67):

Ε assim que se tratam os inimigos, mas não percebes que os tempos mudaram, que o povo deseja a paz.

Nem Audax nem o Bobo estão dispostos a aceitar a argumentação de Viriato e, perante a hesitação deste último, é o próprio Bobo quem enterra a espada no traidor, movido por um ódio intenso (e acaso pelo amor a Damiana, sentimento que os três homens secretamente partilham).9

Porém, mesmo com a sombra da morte a toldar-lhe os olhos, Audax ainda arranja forças para lançar sobre Viriato o manto opaco da vergonha (69):

Estás a fraquejar. Ε este o Viriato em que os Lusitanos podem confiar. Um chefe que hesita em matar o homem que assassinou a sua amante. Um chefe a quem já um bobo trata por tu, como se fosse um infeliz.

Ε este cansaço de Viriato que as restantes personagens denunciam, talvez por não entenderem ou não se identificarem com a estratégia do diálogo. Audax e o Bobo, embora por vias distintas, acentuam a mesma acusação; o próprio Espectro de Viriato Velho aparece agora ao filho, para lhe atirar à cara a lama da mesma afronta (72): «Nem com o próprio Audax conseguiste fazê-lo. Foi preciso um Bobo para demonstrar o que é um Lusitano.». A censura do ancião espelha as marcas de um código

9 É curioso notar que a crueza do Bobo evoca ainda certos laivos dos amores trágicos de Pedro e Inês, conforme o autor indicia na anotação cénica (69): «O Bobo arranca-lhe o coração e trinca-o. Silêncio de morte. Aparece a seguir um espectro e depois uma figura feminina.».

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 10: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

312 Delfim F. Leão

guerreiro que Viriato julga ultrapassado; no entanto, ao pôr em evidência o protagonismo aparentemente fortuito do Bobo, anuncia também o desfecho do drama. Porém e antes de se passar à cena seguinte, o Bobo clarifica ainda perante Viriato a identidade do Espectro e o segredo que Viriato Velho lhe transmitira no limiar da morte (74):10

O teu pai envelheceu cedo, morreu com a democracia. Foi há já algum tempo, uma coisa que pertence ao passado, uma mentira. Sabes o que ele me disse ao ouvido antes de morrer: "É a anarquia que é preciso combater, sem disciplina não se ganha aos romanos. Vai, vai dizer isto ao meu filho."

O texto é um tanto ambivalente; quando o Bobo diz que o pai de Viriato «morreu com a democracia», isso tanto poderá significar que desapareceu com o 'nascimento' da democracia, como que pereceu 'juntamente' com ela. A primeira interpretação seria mais coerente com a caracterização do Velho e com a própria história recente de Portugal, onde o receio da 'anarquia' era, precisamente, uma das bandeiras do regime ditatorial; no entanto, a referência à 'mentira' também poderia constituir uma crítica velada à experiência democrática, por desencantar quem tanto dela havia esperado. Em todo o caso, a ambiguidade reside mais no texto do que na lógica do drama; o apelo à dureza da ordem é mais consentâneo com um Viriato Velho representante do passado; a argumentação democrática está mais de acordo com a actuação dialo­gante de Viriato. Ainda assim, não deixa de ser significativo que sobre ambos repouse o estigma do falhanço, um pormenor que não deixa de ser acentuado pelo Bobo (74):

Não haverá um único Viriato que se aproveite nesta terra?

Na mesma cena em que o Viriato Velho aparece pela primeira vez, a expor a visão de uma Lusitânia decadente e esquecida dos antigos costumes, por causa do contágio malsão dos romanos, travam diálogo com ele tanto um Sacerdote como Viriato Júnior, que procuram, de certa forma, mitigar a leitura pessimista da realidade. Estas várias formas de perspec­tivar o mundo espelham, em termos gerais, a própria diferença de idades,

10 Mensagem evocada, aliás, pelo mesmo Espectro, ao recordar os ensina­mentos que procurara dar a Viriato (71): «Filho, não há calamidade maior do que a anarquia».

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 11: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

Transviríato de Jaime Rocha 313

sendo a expectativa usual que uma pessoa idosa assuma o papel de laudator temporis acti e que um jovem tenha, perante o mundo, uma atitude mais expectante e optimista. No entanto, estes traços positivos da figura de Viriato Júnior recuam paulatinamente para um plano muito secundário, para darem lugar à expressão do recalcamento em relação ao pai, que ganha cada vez mais terreno a seguir à morte do avô. De facto, após a chegada extemporânea de Viriato a Almofala, e logo seguida pela abalada, o filho dele comentara para o Sacerdote (64): «Vês, primo, nem para mim olhou. Acho que nem me reconheceu.». Esta frieza e quase alheamento entre pai e filho preparam a sublevação de Viriato Júnior contra Viriato, facto que é sublinhado pelo próprio autor, na anotação didascálica.11 No entanto, apesar de o jovem se sentir, de alguma forma, herdeiro do espírito combativo do avô, o certo é que este não quis partilhar com ele o legado político, que segredou ao Bobo, a fim de ser transmitido a Viriato.12

O recalcamento e ambição destrutiva de Viriato Júnior, indiciados apenas durante a sua primeira intervenção, aparecem com toda a força na cena final do drama, onde o jovem, que entretanto usurpara o poder, se prepara para iniciar o julgamento do pai, o qual, por encontrar-se em parte incerta, será sentenciado in absentia, sob a espécie de um espantalho, e interrogado na pessoa do Bobo, «o seu mais directo fiel» (75). Os termos da acusação revelam-se bastante esclarecedores (77):

MILITAR

O que está aqui em discussão é a conduta de Viriato, a sua clemência com os romanos, a sua cumplicidade com Vitílio e o posterior assassínio de Astolpas, seu sogro.

BOBO

(Toca no braço do espantalho e sorri) Não, o que está aqui em causa é uma coisa muito simples, a usurpação do poder por parte de Viriato Júnior.

JUIZ Não é o julgamento do filho que estamos a efectuar. Viriato Júnior é agora o Chefe Lusitano. Mas o julgamento do pai, pela sua entrega das terras aos romanos e por permitir que eles construam estradas de pedra redonda onde os nossos cavalos aleijam as patas.

11 «Viriato Júnior segue Viriato e o Bobo com o olhar e pega na espada do avô com um ar de guerreiro lusitano.» (64)

12 63-64.

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 12: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

314 Delfim F. Leão

Este passo resume, de forma simples, o essencial da argumentação desenvolvida ao longo de toda a cena final: os intentos parricidas de Viriato Júnior, conjugados com ambição política, a volubilidade eterna e demagógica do Povo, bem como a colagem da justiça ao poder; acresce ainda a repúdio cego do progresso trazido pelos romanos, ironicamente simbolizado pela construção de «estradas de pedra redonda» onde os cavalos sem ferraduras dos lusitanos ferem os cascos. Na sequência do julgamento e quando estava já para ser lida a sentença, entra em cena Viriato, ferido na luta contra as tropas de Cipião, que acusa o filho de ter aprendido bem depressa os vícios romanos da política baixa, hábil a tecer intrigas e desavenças entre familiares (

VIRIATO

Vens para matar o teu velho pai. Os oráculos de Roma vingam-se, esco-lheram-te para acabar com a gente do teu próprio sangue.

VIRIATO JúNIOR

Vou matar-te não por seres um traidor, mas por seres meu pai.

VIRIATO

Tanto ódio, porquê tanto ódio?

V I R I A T O J ú N I O R •

Nunca quiseste saber de mim. Abandonaste-nos, a mim e a minha mãe...

Neste diálogo final entre pai e filho torna-se mais clara não apenas a farsa do julgamento (atendendo às causas alegadas para fundamentar a acusa­ção), como também e sobretudo se põe a nu o real móbil da actuação de Viriato Júnior: o ódio imenso que sente pelo progenitor, por achar que tanto ele próprio como a mãe foram deixados ao abandono por Viriato. Detectam-se, portanto, no subconsciente do jovem, as marcas do que pode-ríamos consi­derar a expressão implícita do chamado 'complexo de Édipo'. O diálogo termina com Viriato a reconhecer, de certa forma, o erro do seu projecto de vida, ao trocar a existência de pastor pelo combate a Roma. Ε sem que ao filho seja necessário desferir o golpe final, Viriato morre em palco, «de vergonha». Embora o texto encerre neste ponto, Jaime Rocha leva um pouco mais longe, através das indicações cénicas, o significado de todo o drama (90):

Viriato morre nas mãos do Bobo que pega na sua espada e fica quieto, amedrontado, a olhar para Viriato júnior. O Povo vai-se aproximando

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 13: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário

Transviriato de Jaime Rocha 315

e empurra Viriato Júnior como se o fosse aclamar. Este recua e cai, por acidente, em cima da espada do Bobo que se levanta, espantado, hesitante. Parece querer fugir. O Povo pega no Bobo, veste-lhe o fato de espantalho de Viriato e aclama-o, levando-o em ombros: Morreu Viriato, Viva Viriato! Viva o Novo Chefe da Lusitânia! Viva!

A tragicomédia termina com a entronização do chefe menos provável — o Bobo. Esta personagem, de cariz vicentino e profundamente arreigada no imaginário estético português, confunde-se, tal como Viriato, com as próprias marcas da sensibilidade lusitana. Por situar-se à margem da socie­dade e não estar vinculado à lógica comprometida da' linguagem politi­camente correcta, o Bobo pode assumir um discurso crítico mais genuíno e irreverente, revelando verdades encapotadas com palavras simples, ditas em tom de mofa e de aparente negligência. Por isso mesmo, o espectador deveria ficar de sobreaviso, quando, logo no início e desautorizado embora por outras personagens, o Bobo se afirmara parodicamente como figura central do drama (16):

Bem, tenho que me despachar. A pior coisa para mim é quando os actores começam a gritar. Esta peça portanto é sobre Viriato, o nosso herói lusitano, o que equivale a dizer que é sobre mim, ah, ah, ah...

Em boa verdade, o juízo não era totalmente desacertado; o Bobo abre a peça, revestindo as funções metateatrais tradicionalmente desen­volvidas na Parábase ou no Prólogo na comédia greco-latina, enquanto momentos em que a performance acolhe de preferência notas que se prendem com a construção do próprio espectáculo; o Bobo está ainda presente ao longo de toda a representação, onde assume, entre outras tarefas importantes, o papel de conselheiro de Viriato e confidente de Viriato Velho, de executor de Audax, de hipóstase do chefe lusitano na cena do julgamento. Ε no fim da peça acaba sendo elevado ao posto de mais recente Viriato, com o mesmo descaso com que sempre actuara e, por isso também, justifica a sua identificação com o herói lusitano colectivo — que é, em última análise, um herói acidental.

Humanitas 59 (2007) 303-316

Page 14: TRANSVIRIATO DE JAIME ROCHA • UM VIRIATO EM TRÂNSITO … · 2011-09-26 · cumplicidade começava logo pelo cartaz promocional (recuperado para capa do livro), onde um cenário