universidade federal de viÇosa glÁuks - revista de letras

307
UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA GLÁUKS - Revista de Letras e Artes Nilda de Fátima Ferreira Soares REITORA Walmer Faroni DIRETOR DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES Demetrius David da Silva VICE-REITOR Maria Carmen Aires Gomes CHEFE DO DEPARTAMENTO DE LETRAS Gerson Luiz Roani COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Editores Cristiane Cataldi dos Santos Paes e Edson Ferreira Martins Programação Visual Mônica Moreira de Magalhães Marina Assad Carvalho Conselho Editorial Conselho Consultivo Diagramação José Roberto da S. Lana Ana Maria F. Barcelos Maria Carmen Aires Gomes Mônica Santos de Souza Melo Gerson Luiz Roani Cristiane Cataldi Santos Paes Joelma Santana Siqueira Aimara da Cunha Resende – UFMG Amanda Eloína Scherer - UFSM Ana Paula Arnaut - Universidade de Coimbra Ângela Beatriz Faria - UFRJ Gilberto Mendonça Teles - PUC/RJ Ida Lúcia Machado - UFMG Francisco José Quaresma Figueiredo - UFG Mário Alberto Perini - PUC/MG Mariney Pereira da Conceição - UnB Sérgio Raimundo Elias da Silva - UFOP Heliana Ribeiro Mello – UFMG Regina Zilberman - UFRGS Rosane Rocha Pessoa - UFG Paul Dixon - Purdue University Silvie Josserand - Université de Poitiers Ria Lemaire – Université de Poitiers Therezinha Mucci Xavier - CES/JF Vânia Pinheiro Chaves - Universidade de Lisboa Viviane Resende - UnB Revisão Linguística Mônica Moreira de Magalhães (Português) Rafael Barcelos (Inglês) Publicação indexada em LATINDEX (Sistema regional de información en línea para revistas científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal) Índices para Catálogo Sistemático Linguística: Periódicos 80(05) Literatura: Periódicos 82/89(05) Periódicos: Linguística (05)80 Periódicos: Literatura (05) 82/89 Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação e Classificação da Biblioteca Central da UFV Gláuks – Revista de letras e artes / Universidade Federal de Viçosa ; Programa de Pós-Graduação em Letras – Vol. 1, n. 1 (1996)- . – Viçosa : UFV ; DLA, 1996- v. : il. ; 23cm. Semestral. Suspensa de 1998-1999 ; de jul. de 2000 a dez. de 2003. Pequenas alterações na designação numérica, passando, a partir de 2004, de “ano” para “volume” com seu respectivo fascículo. Texto em português, inglês, francês e espanhol. ISSN: 1415-9015. 1. Literatura - Periódicos. 2. Linguística - Periódicos. I. Universidade Federal de Viçosa. Departamento de Letras. CDD. 20.ed. 805

Upload: others

Post on 18-Oct-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA GLÁUKS - Revista de Letras e Artes

Nilda de Fátima Ferreira Soares REITORA

Walmer Faroni DIRETOR DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS,

LETRAS E ARTES

Demetrius David da Silva VICE-REITOR

Maria Carmen Aires Gomes CHEFE DO DEPARTAMENTO DE LETRAS

Gerson Luiz Roani COORDENADOR DO PROGRAMA DE

PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Editores Cristiane Cataldi dos Santos Paes e Edson Ferreira Martins

Programação Visual Mônica Moreira de

Magalhães Marina Assad

Carvalho

Conselho Editorial Conselho Consultivo Diagramação José Roberto da S. Lana

Ana Maria F. Barcelos Maria Carmen Aires Gomes Mônica Santos de Souza Melo Gerson Luiz Roani Cristiane Cataldi Santos Paes Joelma Santana Siqueira

Aimara da Cunha Resende – UFMG Amanda Eloína Scherer - UFSM Ana Paula Arnaut - Universidade de Coimbra Ângela Beatriz Faria - UFRJ Gilberto Mendonça Teles - PUC/RJ Ida Lúcia Machado - UFMG Francisco José Quaresma Figueiredo - UFG Mário Alberto Perini - PUC/MG Mariney Pereira da Conceição - UnB Sérgio Raimundo Elias da Silva - UFOP Heliana Ribeiro Mello – UFMG Regina Zilberman - UFRGS Rosane Rocha Pessoa - UFG Paul Dixon - Purdue University Silvie Josserand - Université de Poitiers Ria Lemaire – Université de Poitiers Therezinha Mucci Xavier - CES/JF Vânia Pinheiro Chaves - Universidade de Lisboa Viviane Resende - UnB

Revisão Linguística

Mônica Moreira de Magalhães (Português)

Rafael Barcelos

(Inglês)

Publicação indexada em LATINDEX (Sistema regional de información en línea para revistas científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal)

Índices para Catálogo Sistemático

Linguística: Periódicos 80(05) Literatura: Periódicos 82/89(05) Periódicos: Linguística (05)80 Periódicos: Literatura (05) 82/89

Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação e Classificação da Biblioteca Central da UFV

Gláuks – Revista de letras e artes / Universidade Federal de Viçosa ; Programa de Pós-Graduação em Letras – Vol. 1, n. 1 (1996)- . – Viçosa :

UFV ; DLA, 1996- v. : il. ; 23cm.

Semestral. Suspensa de 1998-1999 ; de jul. de 2000 a dez. de 2003. Pequenas alterações na designação numérica, passando, a partir de 2004, de “ano” para

“volume” com seu respectivo fascículo. Texto em português, inglês, francês e espanhol. ISSN: 1415-9015. 1. Literatura - Periódicos. 2. Linguística - Periódicos. I. Universidade Federal

de Viçosa. Departamento de Letras.

CDD. 20.ed. 805

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 15-49

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação

For a Discoursive Device to Silence Identities: The Deindividuation

Marcelo Giovannetti Ferreira Luz1

Soeli M. Schreiber da Silva2

RESUMO: Os discursos sobre as políticas de ações afirmativas suscitaram debates não só no âmbito da política, mas também colocaram em pauta uma questão linguística, qual seja a da nomeação. Do ponto de vista da Análise do Discurso, consideramos os processos de nomeação como sendo afetados pelo simbólico, de modo a reclamar uma interpretação acerca desses novos nomes. Neste artigo, propusemos trabalhar com a questão das nomeações negro, preto, mulato, afrodescendente e afro-brasileiro, de modo a verificar como elas significam nesses discursos como dispositivos, produzindo novas configurações identitárias que levam ao silenciamento de determinados lugares de dizer na sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Individuação. Nomeação. Silenciamento. Subjetivação.

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal

de São Carlos (UFSCar). 2 Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Gláuks 16

1 Introdução

o se estudar o discurso, deve-se considerar que a linguagem é uma mediadora entre o homem e a

realidade natural e social na qual ele está inserido. Desta feita, fazendo um gesto contrário àquele proposto por Ferdinand de Saussure, em seu livro Curso de Linguística Geral, incluiremos nesses estudos o sujeito e a condição sócio-histórica de produção do discurso.

A inclusão do sujeito nos estudos da linguagem teve início com Michel Bréal e Émile Benveniste. Aquele afirma que as transformações ocorridas na língua são produzidas pelo homem, entendendo este como um ser bio-psico-fisiológico, ou seja, um ser no mundo, que, ao utilizar a língua, produz nela todas as mudanças que ela está passível de sofrer. Assim, para Bréal, o homem é um ser que participa conscientemente da linguagem, utilizando-se dela para seu propósito, podendo encaixar-se adequadamente no esquema proposto por Jakobson, em seu livro Linguística e comunicação, segundo o qual o remetente apropria-se do código, ou seja, do sistema linguístico a fim de produzir uma mensagem que será transmitida a seu receptor que, por sua vez, apropria-se do mesmo aparelho de comunicação, tornando-se agora emissor e devolvendo a mensagem. Do mesmo modo, Benveniste (2006, p.82) define a enunciação como “colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”, retomando, outrossim, a ideia de que há um sujeito que se apropria do aparelho formal da língua, de acordo com sua vontade, a fim de tornar possível a produção de sua mensagem para seu receptor. Desta feita, temos o discurso apenas como transmissão de informação, ou seja, desconsideram-se todas as possibilidades para a produção desse discurso, desse enunciado, ficando apenas no aspecto formal, isto é, linguístico de seu funcionamento.

��

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 17

Propomos, neste artigo, uma análise acerca da constituição do sujeito no e pelo discurso, afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentido), contrariamente à proposta de Benveniste, descentrado, afetado pelo real da história, não tendo controle sobre o seu dizer, ou seja, funcionando pelo inconsciente de Freud e pela ideologia de Marx. Mas, também, sofrendo as coerções do sistema capitalista moderno, que promove constantemente novos processos de identificação desses sujeitos, novas formas de subjetivação e individuação na sociedade. Para tal análise, ancoramos nossas reflexões nas bases teóricas da Análise de Discurso Francesa, mais especificamente, em Michel Pêcheux, e na forma como os conceitos propostos por esse filósofo produziram ecos e novos modos de conceber o discurso pelos estudos feitos no Brasil por Eni Orlandi. Desta feita, procuraremos verificar a produção de um novo dispositivo de subjetivação, qual seja, a des-individuação dos sujeitos pelos procedimentos de nomeação.

2 A opacidade do sentido e do sujeito

Estamos, neste trabalho, preocupados com a relação do sentido com aquilo que está fora da linguagem, com o mundo. Para tanto, tomamos cuidado para trabalhar o sentido não como referencial, como não existindo uma literalidade a priori, da qual os outros sentidos se derivariam. Assim, baseados em um pilar sustentado por três vertentes – a da ideologia, a da linguística e a do materialismo histórico –, procuramos compreender como o discurso, entendido por nós como efeito de sentido entre locutores (PÊCHEUX, 1969), é responsável pela constituição dos sujeitos, mediante a constituição dos sentidos das relações estabelecidas por indivíduos em uma formação social, bem como esses sujeitos sofrem coerções, que produzem deslocamentos em suas posições ocupadas no dizer.

Gláuks 18

Para nós, a questão do sentido relaciona-se ao sujeito de forma constitutiva, ou seja, só há sujeito porque há sentido e só existe sentido na medida em que os sujeitos produzem-no. Além disso, os sujeitos são constituídos no e pelo discurso ao assumirem determinados lugares de onde enunciam, materializando determinadas ideologias, constitutivas de seu processo de interpelação a uma determinada formação discursiva. Assim, verifica-se que só se é sujeito por uma identificação com essa formação discursiva, acabando assim com a ilusão da onipotência do sujeito, de uma centralidade totalizadora dos sentidos. Como afirma Pêcheux (2009, p. 146):

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.

Pensando em um discurso dominante do Estado sobre os sujeitos, aquele se torna responsável pela imposição da ideologia, segundo a qual surgem as evidências “pelas quais todo mundo sabe” o que seja um sujeito negro, mulato ou mestiço; essas posições discursivas veem-se controladas pela ideologia dominante. Entretanto, recentemente, vimos um deslocamento, uma contradição presente nessas posições de sujeito que emergem nos discursos sobre a constituição racial brasileira, principalmente quando entram em mérito os benefícios de inclusão social trazidos pelas questões etno-raciais.

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 19

Althusser, no texto “Resposta a John Lewis” 3, assevera que todo indivíduo adquire uma forma-sujeito ao ser interpelado pela ideologia, inserindo-se em uma formação discursiva determinada. Assim, não temos mais o indivíduo empírico, o homem, mas um sujeito do discurso, constituído pelo esquecimento nº 2. É essa ilusão de não determinação que produz uma segunda ilusão, a de centralidade do sujeito. Segundo Pêcheux (2009, p.150):

Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita mais acima, enquanto “pré-construído” e “processo de sustentação”) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso do próprio sujeito.

Trazendo essa noção para nosso corpus de análise, voltemos a um recorte para verificar de que modo ocorre esse processo de “identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina”. Em um artigo intitulado “Ser negro é uma questão da cor da pele?”, posto em circulação pelo site Raça Brasil, encontramos um discurso acerca de a questão racial estar ou não associada à cor de pele, no qual podemos verificar como se dá o agenciamento para que os sujeitos enunciem, identificando-se com determinados lugares de dizer. Podemos verificar, pelo título da matéria, que os lugares de dizer já estão divididos politicamente4, ou seja, os sentidos de “negro” não são 3 In Posições I. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, p. 67: “Todo indivíduo humano,

isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir da forma sujeito. A ‘forma-sujeito’, de fato, é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”.

4 Segundo Orlandi (2010, p.12), “[...] o político, para quem trabalha com linguagem, está no fato de que os sentidos são divididos, não são os mesmos para todo mundo, embora ‘pareçam’ os mesmos. Esta divisão tem a ver com o fato de que vivemos em

Gláuks 20

os mesmos para todos os sujeitos. Isso pode ser verificado pelo questionamento inicial, o que mostra uma disparidade na constituição do que seja ser negro na sociedade brasileira. Assim, como um efeito de sentido produzido por esse dizer, verificamos a presença de um não-dito que assevera a questão da identidade não como uma questão fenotípica, ou seja, relacionada à cor da pele, mas a um movimento de identificação.

Na sequência do texto em questão, verificamos os seguintes enunciados:

E1. “A questão da negritude é a de assumir-se como negro, identificar-se negro, sentir-se negro.” (Evânio)

E2. “Cor da pele não interfere na sua raça. Tenho a pele clara, mas meus bisavós maternos e paternos são negros, por isso falo que sou negra.” (Vanessa)

E3. “A miscigenação é importante. Mas, como o Evânio falou, a condição de ser ou não ser negro é muito individual. A gente tem que se identificar com a cor, tem que se identificar com o que é ser negro, que é algo que vai muito além da cor da pele. É uma questão de coragem e de opinião. Ser negro envolve cultura, antepassados, envolve atitude, coragem, o ato de se autodeclarar negro.” (Emerson)

E4. “Sou do interior da Bahia. Meu pai era branco, minha mãe, mulata. Ninguém se assumia como negro. Fui o primeiro a perceber a minha negritude.” (Evânio)

E5. “Há quatro anos me assumi como negra, por minhas características, cabelo crespo, nariz que não é tão fino, por gostar da cultura negra, por freqüentar lugares black onde 99% são negros. No programa do Netinho [Domingo da Gente], no concurso da mais bela negra, vi uma das meninas, de pele clara, com cabelo crespo. Até comentei com a minha mãe: "então, eu sou negra, eu posso me posicionar como negra". Ela disse para parar, porque eu era branca. Muita gente brinca comigo, me chama de neguinha, mas eu me assumo mesmo é como negra.” (Vanessa)

uma sociedade que é estruturada pela divisão e por relações de poder que significam estas divisões. Como sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo não só os sujeitos são divididos entre si, como o sujeito é dividido em si.”

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 21

E6. “Quando eu falo que sou negra, dizem que não sou. Às vezes, os próprios negros não se chamam de negros. Passam na rua e dizem: "e aí morena". Que é isso?! Eu não sou morena, sou negra. Nunca ouvi alguém dizer: "nossa, que negra linda que você é!" É um absurdo.” (Denise)

E7. “Uma vez, quase briguei com minha madrinha porque eu disse que era negro e ela discordou. A falta de cultura faz pensar que só existiram escravos negros no mundo.” (Evânio)

E8. “A pessoa que vive numa sociedade onde predomina o branco acaba se sentindo branco e esquecendo as suas origens. Acredito que o Ronaldinho se enxerga branco porque os outros não o enxergam como negro.” (Vanessa)

E9. “Como diz o ministro Gilberto Gil: ser negro não é a questão da cor da pele ou de se assumir negro.” (Evânio)

Tendo como contexto imediato de enunciação a discussão sobre o que caracterizaria um sujeito como negro, observamos o primeiro enunciado [E1]. Nela podemos verificar um sujeito que enuncia do interior de uma formação discursiva, segundo a qual esse posicionamento social não é dado na evidência, por mera referencialidade à cor da pele. Observamos que o sujeito “assume-se” negro como se tal escolha fosse produto de sua vontade. Essa ilusão é criada pela ideologia que movimenta os sentidos do que seja o negro; destarte, o sujeito enuncia enumerando os fatores que predicam o que é “A questão da negritude”. Para essa posição de sujeito assumida pelo enunciador, ser negro passa, primeiramente, pela necessidade de se assumir negro, isto é, considerar-se como tal, fazendo parte dos discursos e produzindo outros discursos sobre o que é ser negro, mobilizando para seus discursos uma memória acerca dos negros, a fim de enunciar de uma posição de sujeito negro. Logo em seguida, o sujeito apresenta a necessidade de identificar-se como negro; ora, a identificação, de nossa posição teórica, é a base para a constituição da forma-sujeito, visto que a “ideologia recruta indivíduos em sujeito”,

Gláuks 22

fazendo-os enunciar de uma formação discursiva com a qual se identificam (ORLANDI, 2011). Assim, assumir-se negro é identificar-se com uma formação discursiva, fazendo seus dizeres, seu discurso produzir sentido no interior dela.

Em um raciocínio gradual, a identificação com um lugar de dizer, com um papel social, ocorre antes mesmo de sua condição de assumir-se nesse lugar social. Mesmo porque, “assumir-se” considera o sujeito como dono de suas vontades, e sabemos que isso é uma ilusão criada pela ideologia dominante assim que o sujeito se identifica com uma formação discursiva. Faz-se necessário notarmos, também, um tom de “convocação” para que os sujeitos se assumam como negros na sociedade; tal convocação pode ser percebida em outros recortes, como no terceiro enunciado.

Ao enunciar que

a miscigenação é importante. Mas, como Evânio falou, a condição de ser ou não ser negro é muito individual. A gente tem de se identificar com a cor, tem que se identificar com o que é ser negro, que é algo que vai muito além da cor da pele. É uma questão de coragem e de opinião. Ser negro envolve cultura, antepassados, envolve atitude, coragem, o ato de se autodeclarar negro. (Emerson)

podemos perceber um certo posicionamento do sujeito que enuncia. Ele não desconsidera a questão da miscigenação, presente na sociedade, mas orienta seu discurso no sentido de que, ao se declarar como tal, o sujeito é tomado por uma coragem, que outrora não tivera. Assim, constrói-se um sentido de coragem para uma identificação à posição-sujeito negro, criando um efeito de sentido de que, para ser negro em uma sociedade preconceituosa como a nossa, é preciso ter coragem para enfrentar os descasos decorrentes de sua posição de sujeito na sociedade. No trecho, “ato de se autodeclarar negro”, percebemos uma autoidentificação com um lugar de dizer na

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 23

sociedade. Esse sujeito, ao se auto-declarar, rompe com uma memória de dizeres acerca da miscigenação, apagando sua constituição de origem, fruto da mistura etno-racial. Não obstante, verificamos que, no decorrer da história do Brasil, identificar-se como negro era colocar-se em uma posição social desfavorecida, por isso muitos se negavam a fazê-la. Então, passou-se a valorizar a porção branca que cada um possuía, por menor que ela fosse; seguem, daí, os discursos dos sujeitos que se auto-denominam mulatos, mestiços entre outras designações tidas para a miscigenação. Ser miscigenado significava possuir uma parte branca, o que dava uma posição social melhor em relação aos negros.

Durante o período da escravidão, e mesmo depois dela, os sujeitos que se auto-identificavam como mulatos, ou eram por seus senhores assim nomeados, assumiam uma posição social de evidência em relação aos “puramente” negros, servindo até como capatazes dos senhores de engenho no trato dos negros. Encontramos, então, um deslocamento do sentido que valoriza o mestiço em detrimento do negro. Não obstante, essa “relação de superioridade” só era mantida entre negros e mestiços; a relação destes com os senhores de engenho era a de patrão e empregado, sendo nutrida, também, por desprezo, visto os mestiços possuírem sangue negro. Nesse caso, podemos verificar um duplo processo de subjetivação e individualização, quais sejam, os mulatos e mestiços não se identificam com uma formação social tipicamente negra, assumindo-se como superiores aos negros; de outro lado, em sua relação social com os senhores de engenho brancos, eram deslocados de suas posições superiores, sendo individualizados e tratados como inferiores aos brancos, por possuírem sangue negro.

A questão da descendência tem um papel importante nos discursos acerca da questão racial, não só no Brasil, como nos Estados Unidos da América, nos anos de 1960 e 1970. Em 1662,

Gláuks 24

naquele país, surgiu a lei do One drop rule, ou seja, uma gota de sangue; segundo essa lei, bastava que houvesse uma gota de sangue “negro” na ascendência de uma pessoa para que ela fosse considerada negra. Há um caso de uma mulher que não pôde ter em seu passaporte sua identificação como “branca”, pois sua pentavó era negra. Essa lei vigorou nos Estados Unidos até a década de 1960 como meio de identificar quem era ou não negro. Destarte, já podemos começar a observar um movimento importante na produção da identidade: a sociedade norte-americana dividia-se em duas partes, quais sejam, a de brancos e a de negros. Muito embora, no caso supracitado, a mulher possuísse cor da pele branca, sua identificação racial no passaporte deveu-se à sua ancestralidade, identificando-a como negra. Não obstante, caberia um questionamento: se a mulher é branca, mas sua pentavó, negra, então houve um processo de miscigenação racial no decorrer de sua ancestralidade; consequentemente, tal mulher não poderia ser classificada nem como “branca”, nem como “negra”, mas como mestiça. Contudo, tal classificação torna-se obsoleta quando da adoção do one drop rule.

3 Compreendendo a constituição do sujeito

Procuramos estudar discursivamente a questão da subjetividade a fim de compreender de que modo “a língua acontece no homem”. Dessa forma, é preciso entender que a subjetividade é constituída no acontecimento do discurso, ou seja, o acontecimento do significante tem como lugar fundamental a subjetividade. Ao refletirmos acerca da constituição do sujeito nos discursos, compreendemos que o indivíduo torna-se sujeito no acontecimento de linguagem, na qual esse indivíduo se identifica com uma posição-sujeito, projetando-se discursivamente. Passa-se, então, de uma situação

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 25

empírica, social, para uma posição discursiva, segundo a qual o sujeito é constituído no acontecimento discursivo, que se dá no interior de formações discursivas, responsáveis por recrutar os indivíduos, subjetivando-os.

Dessa forma, podemos melhor compreender Orlandi (2008, p. 99) quando afirma que “[...] o acontecimento do significante no homem é que possibilita o deslocamento heurístico da noção de homem para a de sujeito [...]”. Segue, então, desse posicionamento, que, se a constituição da subjetividade é dada no interior de uma formação discursiva, pela identificação desse indivíduo com um lugar de fala, uma posição de sujeito no discurso, também podemos compreender que há uma relação no jogo dos sentidos, visto estes variarem de acordo com a posição de sujeito assumida pelo enunciador. Destarte, esse deslocamento faz com que se transforme a situação social – real da história –, a posição de sujeito, discursivo. Assim, cabe analisarmos como o discurso está materializando a ideologia pelo aparecimento dos modos de nomear que estamos estudando em nosso corpus de análise, quais sejam, “negro”, “preto”, “mulato”, “afrodescendente” e “afro-brasileiro”.

Neste ponto, vale lembrarmo-nos de uma definição de extrema importância para quem trabalha com o discurso, qual seja, “a ideologia interpela o indivíduo em sujeito e este submete-se à língua significando e significando-se pelo simbólico na história” (ORLANDI, 2008, p. 100). Ao se identificar com uma formação discursiva, o indivíduo é tomado pela ideologia, é interpelado em sujeito, enunciando de uma posição no interior dessa FD. Desse interior, pela identificação, o sujeito passa a enunciar sua posição, seu discurso, por meio do qual podemos encontrar vestígios da ideologia que permeia as relações desse tal sujeito com a sociedade em que vive. Assim, se o sujeito é afetado pelo histórico, pelo ideológico, não

Gláuks 26

podemos pensar em sujeito pouco ou muito assujeitado; não se pode quantificar a subjetividade. Pensando a relação intrínseca existente entre sujeito e sentido, se o indivíduo não se assujeitar à língua, não haverá nem sujeito, nem sentido; ou seja, não há a possibilidade de enunciar para um indivíduo que não se submeta ao simbólico, para um sujeito que não tenha seu direito à palavra controlado por seu lugar de dizer, para um sentido que não seja dividido pelo político.

Esse processo de identificação com uma determinada posição de sujeito aparece como sendo evidente, uma vez que a identificação com essa posição dá-se por meio da nomeação. Como tratamos, neste trabalho, da nomeação como procedimento de identificação, podemos trabalhar melhor agora essa concepção. Para tanto, asseveramos que “nomear [...] funciona por um processo social de identificação” (GUIMARÃES, 2005, p. 41), ou seja, nomear um indivíduo faz com que ele seja identificado socialmente com uma posição, inscreve-o em uma formação discursiva da qual ele deverá enunciar. Entretanto, essa identificação, a nosso ver, é política, no sentido que demos a esse termo anteriormente, ou seja, os sentidos são divididos.

Tomemos como exemplo o enunciado 1. Nela, encontramos o seguinte dizer: “A questão da negritude é a de assumir-se como negro, identificar-se como negro, sentir-se negro”. Nesse enunciado, podemos perceber um agenciamento do sujeito, que se identificou com uma formação discursiva, da qual ele enuncia como “negro”. Ademais, podemos analisar esse enunciado de modo que os sentidos de “negritude” estejam relacionados aos sentidos de “assumir”, “identificar” e “sentir”.

Desse modo, a constituição da subjetividade para esse indivíduo ocorre como uma forma de identificação com uma formação discursiva “negra”, ou seja, não há outro modo de identificar-se como negro, senão pela identificação com aquela

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 27

formação discursiva. Assim, o sujeito precisa identificar-se com essa formação discursiva para, em seguida, afirmar seu pertencimento por meio de enunciados que materializam essa ideologia. Contudo, nos outros recortes, podemos notar uma diferença quanto a essa identificação. Observemos o enunciado 2: “Cor de pele não interfere na sua raça. Tenho a pele clara, mas meus bisavós maternos e paternos são negros, por isso falo que sou negra.” Por esse enunciado, podemos verificar de que modo ocorre o agenciamento político e a distribuição dos dizeres. Ao afirmar ter “a pele clara”, o enunciador fala de uma posição de sujeito branco, ou seja, não se identifica com uma posição de sujeito negro. Assim, poderíamos verificar que essa sequência discursiva orienta para uma conclusão que leva a uma interpretação de um sujeito branco enunciando. Não obstante, na segunda parte da sequência, observamos a presença de uma posição de sujeito negro, orientando o dizer para uma outra formação discursiva. Assim, teríamos:

[Tenho a pele clara] 5 identifico-me com uma posição de sujeito branco

[meus bisavós maternos e paternos são negros] identifico-me com uma posição de sujeito negro

Podemos verificar, nessa sequência, que “pele clara” reescreve “branco” por sinonímia, bem como todas as outras variações da miscigenação que possam ser identificadas por uma tonalidade de pele mais clara, tais como os mulatos. Há, então, um dissenso a ser administrado. Como são significados os sujeitos oriundos da miscigenação?

Ainda, atendo-nos ao mesmo enunciado, trabalhando agora com a segunda parte, observamos a presença de outra posição de sujeito no discurso desse enunciador. Ao enunciar

5 Lê-se “orienta para”.

Gláuks 28

“meus bisavós maternos e paternos são negros”, o sujeito identifica-se, também, pela descendência, com uma formação discursiva negra, ou seja, com uma identificação que está sendo trabalhada nos limites dessas formações discursivas; o enunciador admite ter a pele clara e ser descendente de negros. Não obstante, vale nos atermos à terceira parte do enunciado em questão, qual seja, “por isso falo que sou negra”. Fica claro, por essa sequência, que o enunciador identifica-se com uma posição de sujeito negro, no interior da FD que o domina. Mas, fazendo uma análise mais detalhada, podemos verificar a presença de três “partes” neste enunciado, quais sejam:

(i) Tenho a pele clara; (ii) Meus bisavós maternos e paternos são negros; (iii) Por isso falo que sou negra.

Os enunciados (i) e (ii) são articulados pela conjunção

mas, que provoca a orientação de sentido para uma conclusão favorável à identificação com uma posição de sujeito negro. Assim, desloca-se a questão da identificação racial da questão fenotípica – cor da pele – para uma questão de ancestralidade, de descendência. Não obstante, ainda há uma ilusão de referencialidade, visto o enunciador assumir-se negro devido à sua ancestralidade. Assim, cria-se um efeito de apagamento da posição ideológica da miscigenação do sujeito pela nomeação “negro”. Há o apagamento de que houve um processo de miscigenação, do qual se originou esse sujeito; verificamos, então, um deslocamento da posição-sujeito no interior de uma FD. Com isso, corrobora a sequência (iii), já que o enunciador orienta seu discurso para uma conclusão acerca da identificação racial como decorrente da descendência, não importando sua miscigenação, não importando a presença de outra cultura em sua constituição social.

Analisando o enunciado 5, observamos um outro modo de significar a constituição racial na sociedade brasileira. Ao

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 29

dizer “Sou do interior da Bahia. Meu pai era branco, minha mãe, mulata. Ninguém se assumia como negro. Fui o primeiro a perceber minha negritude.”, o enunciador identifica-se com uma posição de sujeito negro ao enunciar “minha negritude”. Entretanto, analisando sua enunciação completa, verificamos que ele é fruto de miscigenação racial entre pai branco e mãe mulata. Já pela origem da mãe, percebemos a miscigenação presente em sua constituição, ou seja, ela também era fruto de um intercurso racial entre negros e brancos. Na sequência do enunciado, o sujeito assevera que seus pais não se assumiam como negros. Assim, há um movimento que o enunciador produz nos sentidos das falas dos pais, pensando o negro como uma raça pura, da qual descenderiam o mulato e outros mestiços. Ao afirmar-se negro, com pai branco e mãe mulata, o sujeito enunciador desloca a posição de sujeito de seus pais, identificando-os como negros que não se assumiam como tais.

Podemos perceber a necessidade de o sujeito enunciador colocar, identificar seus pais como negros, numa tentativa de afirmação da condição de negro na sociedade. Entretanto, ao afirmar que sua mãe era mulata, ele desloca essa posição de sujeito para o interior de outra posição, a de negro. Assim, haveria um procedimento de des-individuação desse sujeito.

Para melhor compreender esse conceito, analisemos mais detidamente o recorte em questão.

Sou do interior da Bahia. Meu pai era branco, minha mãe, mulata. Ninguém se assumia como negro. Fui o primeiro a perceber minha negritude. (Evânio)

Para nós (LUZ, 2011), pensar a des-individuação é

verificar de que modo há um deslocamento do processo de subjetivação, de modo a evitar-se que os sujeitos assumam determinadas posições no discurso, ou seja, não se trata aqui de considerar que não se é sujeito, visto que partimos da premissa

Gláuks 30

de que não há sentido sem sujeito, nem este sem aquele. Procuramos compreender como há uma imposição de apagamento de determinadas posições de sujeito por meio da interdição de seus dizeres. Essa interdição pode ocorrer de vários modos, entretanto, em nosso corpus, o mais frequente é o esvaziamento de sentido dos dizeres de sujeitos ocupando determinados lugares de dizer, fazendo com que esses dizeres não ecoem, produzindo novos outros sentidos.

Na sequência acima, o enunciador desloca sua posição no interior do discurso ao identificar-se como negro; ademais, produz o mesmo efeito de sentido ao dizer que “ninguém assumia-se como negro”. Uma leitura possível, considerando-se o equívoco (PÊCHEUX, 2006) seria a de que seus pais eram negros, embora afirmassem ser “branco” e “mulata”. Deparamo-nos, nesse instante, com um processo complexo de identificação que produz a des-individuação. O sujeito-enunciador, ao mesmo tempo em que identifica seu pai com um lugar social de branco, afirma sua posição social de negro pela presença do enunciado “Ninguém se assumia como negro”. É possível a seguinte paráfrase6 dessa sequência: “Meu pai era branco; minha mãe, negra. Ninguém se assumia como negro, embora o fossem”. Aqui, podemos perceber que há a identificação de seus pais pelo sujeito da enunciação com uma posição de sujeito negro. Contudo, ao proceder dessa maneira, o enunciador produz um deslocamento importante na sua constituição racial: ele apaga a presença da miscigenação em sua constituição identitária por um processo de deslize de sentido da palavra “mulata” para “negra”, ou seja, houve uma formulação, no interior de uma formação

6 Segundo Orlandi (2009, p. 36), “Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais

em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. [...]”

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 31

discursiva, que provocou a mudança de um enunciado, embora o tenha mantido em um mesmo espaço de dizer do parafraseado.

Ao enunciar “Fui o primeiro a perceber minha negritude”, o sujeito desloca-se de um lugar social oriundo da miscigenação, identificando-se com uma posição de sujeito negro, ou seja, há uma afirmação de pertencimento a um lugar social outrora desprezado.

Entretanto, verificamos a presença da ambiguidade nesse enunciado, que provoca uma dificuldade de análise. Ao dizer que “ninguém se assumia como negro”, cria-se um efeito de sentido de que, embora o fossem, seus pais não “queriam” se assumir como negros, evitando essa identificação racial. Não obstante, se considerarmos que há uma identificação “branco” e “mulato” por parte de seus pais, ao deslocá-los dessas posições de sujeito em detrimento de uma afirmação do pertencimento à classe negra, produz-se o processo de des-individuação, silenciando-se os sentidos de “mulato”, produzindo uma sinonímia com “negro”.

Assim, para melhor compreendermos de que modo se constrói essa “des-individuação” bem como os sentidos que ela produz, faz-se necessário compreendermos de que modo ocorrem os processos de subjetivação e individualização na sociedade.

4 Os processos de subjetivação e individualização

Trabalhar a questão da subjetivação é procurar compreender de que modo funciona a ideologia na sociedade. Sabemos, por Pêcheux, que ela, a ideologia, funciona pelo equívoco, estruturando-se na contradição (ORLANDI, 2008, p. 22). Assim, buscamos compreender como essa contradição faz parte da constituição do sujeito na sociedade.

Gláuks 32

Partindo do pressuposto teórico de que “a ideologia não é ‘X’ mas o mecanismo de produzir ‘X’” (ORLANDI, 1996, p. 30), buscamos compreender de que modo ela - a ideologia - está presente na produção do consenso do que seja o “negro”, o “mulato” e o “mestiço” na sociedade brasileira, analisando de que forma se constituem essas subjetividades no processo de individuação.

Para tanto, devemos levar em consideração dois movimentos presentes na constituição da subjetividade, ilustrados na figura abaixo:

Sujeito (forma-sujeito histórica)

Simbólico

Interpelação Processo de individuação

(Ideologia) (Estado)

Forma social capitalista

Indivíduo (I1) Indivíduo (I2)

(bio, psico) (social)

In: Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos.

Observando a figura acima, retirada de Orlandi (2008, p. 104), podemos verificar a presença de dois movimentos na constituição da subjetividade no processo de individuação pelo Estado. Em um primeiro momento, temos a presença da identificação com uma determinada formação discursiva, na qual o indivíduo constitui-se como sujeito de seu dizer,

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 33

enunciando de uma posição de sujeito. Assim, a forma-sujeito é histórica, tem sua própria materialidade. Podemos observar esse movimento no recorte acima, quando o sujeito enunciador assevera: “[...] meu pai era branco, minha mãe, mulata [...]”. Nesse momento, há uma identificação da forma-sujeito mulata no processo de subjetivação; assim, temos a forma-sujeito histórica “mulata”. Na sequência do enunciado, o enunciador prossegue afirmando ser negro. Há, nesse momento, uma individuação do sujeito em negro. Há um processo identitário, no qual o sujeito apaga sua forma-sujeito histórica, negando sua posição mestiça, e individuando-se como negro.

Poderíamos analisar esse movimento como uma forma de resistência. Tal resistência dever-se-ia a toda uma memória acerca do sentido de ser negro em uma sociedade majoritariamente branca, permeada pelo preconceito racial. Ao se auto-identificar como negro, nesse processo de individuação em relação ao Estado, esse sujeito produz um deslocamento no sentido do que é ser negro. Assim, passamos para o segundo momento do gráfico, qual seja, já adquirida sua forma-histórica, agora o sujeito deve identificar-se diante do Estado, assumindo uma posição social. Não basta mais ter um posicionamento ideológico, mas fazer parte de uma formação social; nesse processo de identificação social, resta pouco visível sua constituição pelo simbólico, ou seja, há um apagamento de sua miscigenação racial.

Podemos pensar esse movimento de deslocamento da constituição da subjetividade como uma forma de resistência, em duplo sentido. Num primeiro momento, podemos verificar, nos discursos acerca da constituição racial brasileira, que havia uma hesitação em assumir-se mestiço, visto haver a presença do negro em sua constituição. Como este era visto como inferior socialmente, houve um movimento de resistência acerca dessa forma-sujeito. Não obstante, podemos perceber, hodiernamente,

Gláuks 34

um movimento em sentido contrário a esse na medida em que se verifica, nos discursos raciais e do Estado, em relação às políticas de ações afirmativas, uma tendência a valorizar a posição sujeito negro em detrimento de outras, como mulatos, nos processos de individuação.

Portanto, pelos movimentos na constituição dos sujeitos, expostos pelo gráfico acima, podemos classificá-los da seguinte maneira:

1. Há um movimento de identificação com uma formação discursiva, na qual o indivíduo adquire sua forma-sujeito a fim de enunciar. Tal movimento é regulado pelo simbólico, como resultado da interpelação pela ideologia;

2. Num segundo momento, a forma-sujeito histórica sofre um processo de individualização pelo Estado, dando origem a um sujeito individualizado.

Concordando com os pensamentos de Pêcheux e Orlandi,

admitimos que haja um movimento sobre a forma-sujeito histórica, provocado pelos Aparelhos Ideológicos de Estado e pela formação social em que ocorre a subjetivação. Assim, ao adquirir uma forma-sujeito, o indivíduo passa a enunciar no interior de uma formação discursiva que, para nós, não é homogênea em si, mas possui suas fronteiras movediças, permitindo o deslocamento dessa forma-sujeito nos discursos. Nesse momento, deparamo-nos com a presença do político na constituição da subjetividade, bem como participando do processo de individuação. Trabalhando o político como sendo uma contradição dos sentidos, ou seja, os sentidos não são os mesmos para todo mundo (ORLANDI, 2010), podemos verificar um movimento de silenciamento do político, pelos Dispositivos do Estado, ou por seus Aparelhos Ideológicos, de forma a produzir um consenso acerca da constituição racial brasileira.

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 35

Para melhor exemplificar tal asserção, analisemos um enunciado retirado de um discurso de manifesto da Organização de Resistência Mulata. Observemos o recorte abaixo:

[...] algumas lideranças do movimento negro brasileiro pressionaram o IBGE para que os pardos (inclusive os não-afrodescendentes) fossem classificados como negros [...]

Primeiramente, passemos à descrição da cena em que se dá tal enunciado. Sua condição de produção se dá no interior de uma discussão do movimento de resistência mulata, no qual era discutida a questão da inclusão dos mulatos como fazendo parte da parcela negra da população brasileira. Nessa cena, podemos observar como se configuram os lugares de dizer desses sujeitos, caracterizados como pertencentes a uma instituição responsável pela categorização da população brasileira em raças e por aqueles que pertencem a determinados grupos sócio-raciais, no interior dos quais enunciam seu pertencimento.

Ao pressionar o IBGE, órgão do Estado, a incluir os sujeitos tidos como “pardos” na parcela dos “negros” da sociedade, o movimento negro brasileiro produz um deslocamento da constituição racial da população, promovendo um deslizamento do sentido de pardo, com o consequente silenciamento e apagamento dos sujeitos assim identificados. Designar os pardos como negros é deslocá-los de sua posição social e inseri-los em outra, visto nomear ser um processo de identificação social. Assim sendo, evitamos que a forma-sujeito mulato tenha sua posição social assegurada pelas instituições estatais. Logo, a forma-sujeito mulato sofre um processo de des-individuação, adquirindo uma forma social negro. Tal processo faz com que sejam silenciados sentidos presentes na constituição da designação “pardo”, tal como a miscigenação existente entre “negros” e “índios”, ou “índios” e “brancos”.

Gláuks 36

5 A produção do silêncio e da des-individuação

Para melhor compreender quais os sentidos produzidos por essas designações, bem como os deslocamentos provocados nas posições sociais, buscaremos apoio no conceito de silenciamento (ORLANDI, 2007). Segundo a autora, o silêncio tem suas formas e significa nos discursos, produzindo sentido. Para ela, há o silêncio fundador, necessário aos sentidos, sem o qual não há a possibilidade de sentido; tal silêncio é aquele que está nas palavras, que as permeia, significando o não-dito, produzindo as condições do significar.

O silêncio fundador é o lugar de recuo da significação, ou seja, é o silêncio a própria condição de produção do discurso, movimentando os sentidos, significando-os. Assim, não podemos pensar o silêncio como o vazio, como o nada; ele é repleto de sentido, funcionando como horizonte da significação, não como falta e acabamento desta. Logo, não tratamos do efeito físico do silêncio, isto é, da ausência de som, mas daquele que mobiliza o limiar dos sentidos a serem trabalhados. Trabalhar o silêncio é trabalhar a incompletude constitutiva do discurso; é saber que o sentido pode sempre ser outro, e mais, saber que, pelo fato mesmo de ele poder sempre ser outro, é impedido de sê-lo. Nesse caso, trabalhamos com outro tipo de silêncio, a política do silêncio, ou silenciamento.

A política do silêncio subdivide-se em: silêncio constitutivo, ou seja, é preciso não dizer para dizer, isto é, “todo dizer apaga necessariamente outras palavras produzindo um silêncio sobre os outros sentidos” (ORLANDI, 2008, p.128); silêncio local, ou censura, responsável pela interdição do dizer, ou seja, “apagamento de sentidos possíveis mas proibidos, aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura” (ORLANDI, 2008, p. 128). É importante lembramos que tais formas de silêncio estão presentes em quaisquer discursos,

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 37

quaisquer processos de produção de sentido, muito embora funcionem de modo diferente.

Destarte, vamos buscar compreender de que forma o silêncio produz sentido nos discursos acerca da constituição racial brasileira, provocando deslocamentos nas posições de sujeito, alterando, assim, as formas-sujeito nos discursos raciais. Essa alteração da constituição racial brasileira mostra-nos que há um deslocamento da divisão social, ou seja, a sociedade está sendo dividida em, basicamente, dois grupos raciais, quais sejam: brancos e negros. Assim, os sujeitos que não se enquadram nessas classificações são coagidos a individuarem-se de acordo com o que o governo preconiza, sofrendo uma des-individuação de sua forma-sujeito pela identificação a uma formação discursiva determinada. O responsável por tal movimento de sentidos na sociedade é o governo que, com toda sua aparelhagem ideológica, mobiliza os sentidos, administrando-os à sua revelia. Um desses mecanismos é a Cartilha do Politicamente Correto.

Essa cartilha entrou em vigor durante o governo Lula, em 2004, como uma tentativa de evitarem-se determinadas palavras, cujos sentidos fossem tidos como inconvenientes, como pejorativos para os sujeitos com elas nomeados. Não obstante, em alguns casos, como o da designação “mulato”, por nós estudado, há um movimento contrário àquele proposto pelo governo, qual seja, evitar a discriminação. Vejamos o que nos diz a Cartilha:

A ideia do título, “Politicamente Correto”, tem, em parte, um sentido provocador. Foi escolhida com o objetivo de chamar a atenção dos formadores de opinião para o problema do desrespeito à imagem e à dignidade das pessoas consideradas diferentes.

Não queremos promover discriminações às avessas, “dourando a pílula” para escamotear a amargura dos termos que ofendem, insultam, menosprezam e inferiorizam os semelhantes que

Gláuks 38

consideramos “os outros”. Ao contrário, neste glossário, apresentamos em primeiro lugar justamente as expressões pejorativas, para depois comentá-las. Com ele, queremos incentivar o debate, fomentar a reflexão, inclusive pela razão simples de que, para alguns de nossos interlocutores, nós é que somos os “diferentes”.

Cartilha do Politicamente Correto e Direitos Humanos.

Logo no primeiro trecho da justificativa para a confecção da cartilha, vemos que ela tem “o objetivo de chamar a atenção dos formadores de opinião para o problema do desrespeito à imagem e à dignidade das pessoas consideradas diferentes.” Parafraseando esse enunciado, obtemos As pessoas que são diferentes são desrespeitadas. Ou seja, tomando a cartilha como um instrumento ideológico governamental, observamos a existência do preconceito, bem como a ciência que os governantes têm acerca dele. Ao olharmos para o vocábulo “consideradas”, compreendemos um efeito de sentido existente nesse enunciado, qual seja, tais pessoas podem mesmo não ser diferentes, podem ser iguais, e devem ser iguais. A nosso ver, esse enunciado desloca a interpretação do sentido da Cartilha do Politicamente Correto para o consenso, ou seja, uma tentativa de administrar o dissenso de modo a garantir uma homogeneidade da sociedade brasileira.

Aí, podemos buscar vestígios do silêncio significando no discurso do politicamente correto. Ao buscar mostrar a necessidade de se considerar o diferente, luta-se para tornar esse diferente igual, ou seja, procura-se silenciar essa diferença por meio da inclusão, tornando-o igual. Assim, silenciar essa diferença é, da mesma forma, demonstrar o desrespeito que se tem por ela. Logo, a orientação do sentido desse enunciado vai para um lado contrário àquele pretendido, ou seja, é oposto a uma tentativa de se considerar as diferenças em si. Ademais, verificamos a tentativa de administrar as diferenças que são

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 39

constituintes da formação social, em decorrência, tenta-se administrar as diferenças constituintes dos sentidos, tenta-se administrar o político, silenciando as diferenças, tendo como argumento a possível discriminação existente.

Para propósito de análise do funcionamento discursivo, consideraremos a Cartilha do Politicamente Correto como um espaço de enunciação, regulado por uma deontologia específica, que distribui os lugares de enunciação aos sujeitos que se inscrevem em determinadas formações discursivas para enunciar. Assim, os sujeitos que de lá enunciam fazem-no de um lugar institucionalizado, de modo que seu discurso produz um efeito de sentido legal, ou seja, seu discurso é tido como apoiado em um lugar de dizer que garante o não esvaziamento de sentido de suas palavras. Além disso, esses dizeres constituem cenas específicas, em que o acesso à palavra é dado da mesma forma, pois o enunciador ocupa uma posição institucional no dizer, apagando o enunciador individual, fazendo aparecer o enunciador-universal, o que significa que esses dizeres são uma “verdade” para todos.

A Cartilha do Politicamente Correto é organizada textualmente como uma cartilha, ou seja, como um compêndio de saber acerca de determinados nomes, aqueles tidos como politicamente incorretos. De saída, já observamos um efeito de sentido produzido pelo próprio nome da cartilha: Cartilha do Politicamente Correto, sendo que os vocábulos presentes nela são tomados como incorretos. Há, então, um jogo de sentidos, no qual podemos notar a presença de cartilha, ou seja, um instrumento de gramatização, segundo o qual as regras da língua são ditadas, de modo que as corretas sejam seguidas, em detrimento das incorretas. Um outro ponto interessante é o sentido de politicamente; nesse enunciado que nomeia o instrumento linguístico, a cartilha, politicamente predica cartilha, atribuindo a ela o sentido de administrativa, ou seja,

Gláuks 40

tem-se um instrumento que administra as regras da língua. Não obstante, temos a presença do adjetivo correta, articulado a politicamente, produzindo um efeito de sentido que orienta para os sentidos tidos como possíveis, como próprios a determinada situação, sentidos que estão de acordo com as regras da língua; como se houvesse regras para os sentidos.

Destarte, este instrumento linguístico – a cartilha – transforma-se num regulador de sentidos, impedindo que estes se movimentem discursivamente. Interrompe-se o curso das palavras, tornando-as estanques a sentidos que são pré-determinados, desconsiderando-se as relações de sentidos existentes, desconsiderando-se que sentido e sujeito constituem-se ao mesmo tempo. Para melhor compreendermos a relação dessa estancagem de sentidos, observemos o que nos traz a cartilha acerca de determinados enunciados e palavras. Tomemos, de início, o enunciado abaixo:

A coisa ficou preta – A frase é utilizada para expressar o aumento das dificuldades de determinada situação, traindo forte conotação racista contra os negros.

Cartilha do Politicamente Correto e Direitos Humanos.

Nesse caso, temos um enunciador-genérico, ou seja, ele enuncia de uma posição de sujeito universal, inserindo-se em uma formação discursiva que regula os sentidos tidos como aceitos para esse enunciado. Pelo procedimento de reescritura por definição, o enunciado A coisa ficou preta é parafraseado como uma “situação difícil”, bem como podendo produzir uma “forte conotação racista contra os negros”. Assim, nessa formulação, encontramos a emergência de um acontecimento discursivo, responsável por recortar como memória, no interdiscurso, a relação de sentido entre “negro” e “preto”; há, nesse enunciado, um enunciador que fala de uma posição-sujeito racista na medida em que reescreve “negro” como “preto”. Logo, segue dessa

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 41

posição ideológica no interior dessa formação discursiva o sentido racista atribuído ao enunciado “A coisa ficou preta”. É pela configuração das posições de sujeito, no interior de uma cena de enunciação, regulada por uma FD específica que podemos encontrar vestígios de discursos racistas nessa definição. Entretanto, não podemos generalizar essa situação específica de enunciação para o sentido do vocábulo “preto”. Sendo assim, a interdição de tal vocábulo produz um efeito sobre a constituição dos sujeitos que se autodenominam “pretos”, visto tal nome estar carregado de uma ideologia dominante, que produz um efeito de sentido depreciativo para ele.

Ao se deslocar os sentidos de “preto” para aquele que designa uma situação difícil, ruim, produzindo um sentido racista, dificilmente haverá processos de identificação com essa posição-sujeito, pois ninguém deseja ser considerado inferior, ser “dono” de um sentido estereotipado, carregado de preconceito. Assim, interditam-se os dizeres sobre os pretos, tornando a aparição dessa palavra um tabu nas sociedades democráticas.

Entretanto, a cartilha não toma em consideração o fato de que “as palavras têm seu sentido de acordo com as formações discursivas em que elas aparecem”, pois ela quer regular o funcionamento, a circulação de um sentido sem considerar outros espaços que podem abrigar o mesmo nome, mas com sentido diferente. Por exemplo, na Revista Raça Brasil, na edição número 145, encontramos, à página 28, uma anúncio com os seguintes dizeres: Agenda preta e MPB (Música Preta Brasileira). Ao fazer circular esses enunciados em um meio material voltado ao público negro, podemos notar o modo como a circulação do vocábulo “preto”, nesse material, produz sentido. Por parte do enunciador, há uma formação imaginária que resulta na caracterização de seu público-alvo, ou seja, sujeitos pertencentes à população negra da sociedade. Assim, ao

Gláuks 42

enunciar Agenda preta, tal enunciador o faz de uma posição de sujeito configurada no interior de uma formação discursiva, na qual o enunciado em questão produz um efeito de sentido não tido como preconceituoso, que poderia ser parafraseado por “Programação para os negros”. Essa possibilidade de paráfrase nos indica que o sentido de “preta” serve de identificação para a parcela da população à qual os eventos assinalados se dirigem.

Ademais, é interessante notarmos o aparecimento da sigla “MPB”, que poderia recrutar sentidos ligados à “Música Popular Brasileira”. Entretanto, ao ser definida como “Música Preta Brasileira”, há uma interdição do sentido a ser rememorado nesse acontecimento, produzindo um silenciamento referente ao acesso da população negra à Música Popular Brasileira. Assim, faz-se significar um local estabilizado, no interior do qual a população negra pode se movimentar culturalmente. Esse espaço restrito impede a movimentação dos sujeitos de uma formação discursiva a outra, o que estratifica, engessa as relações sociais existentes.

É interessante notarmos que, embora a Revista Raça Brasil seja produzida para a população negra e seus descendentes – considerando-se a miscigenação brasileira – há uma forte presença dos nomes “negro”, “afrodescendente” e “afro-brasileiro”; em contrapartida, não encontramos, ao menos nas edições por nós analisadas, referências a mulatos, mestiços, caboclos, entre outras designações possíveis para a miscigenação social. Isso pode ser indício de que há um movimento dos sentidos “mulato”, “mestiço”, “caboclos” etc. em direção a “negro”, tendo este como uma hiperonímia daqueles.

Em outra matéria da Revista Raça Brasil, edição 145, pág. 41, encontramos uma matéria intitulada “Letras e Negritude”, na qual se discute a presença do negro na produção

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 43

cultural brasileira. Nela, verificamos a presença do recorte abaixo:

Aos 74 anos, ele completou 50 anos de vida literária dedicada às questões relacionadas com a vivência e a alma afro-brasileiras. Um dos maiores conhecedores da literatura negra brasileira e internacional [...]

Letras e negritude. In: Revista Raça Brasil.

Nessa cena enunciativa, verificamos a presença de um enunciador-genérico que enuncia de uma posição-sujeito, segundo a qual ele reescreve “negra” por “afro-brasileira”, promovendo a homogeneização racial da sociedade brasileira. Assim, produz-se um efeito de sinonímia entre ambas, de modo que esta se torna hiperonímia daquela, pois possui um sentido mais abrangente. Entretanto, como já tivemos a oportunidade de mencionar, enunciar “afro-brasileiro” é identificar o sujeito com uma posição que indica seu pertencimento à população africana, com sua origem na África, bem como à população brasileira, com sua origem no Brasil. Não obstante, pela memória de dizeres sobre a origem brasileira, podemos considerar que, de fato, somente os índios possuem tal origem; logo, designar um sujeito como “afro-brasileiro” seria individualizá-lo como pertencente à miscigenação entre negros e índios. Contudo, não é isso que ocorre na sequência discursiva acima; ao reescrever “afro-brasileiras” por “negra”, embora aquela esteja determinando o sujeito e esta, a literatura, indica um movimento de sentido de “negra” nessa formação discursiva. Há, nesse caso, a incorporação de “afro-brasileiro” em “negro”, produzindo um efeito de hiperonímia, como se “negro” pudesse englobar, na sua totalidade, os sentidos de “afro-brasileiro”. Então, podemos observar vestígios daquilo que, mesmo não sendo dito, produz sentido nesse enunciado. Ao se dizer “afro-brasileiro”, impede-se que se tenha de dizer todas as possíveis

Gláuks 44

designações para as miscigenações existentes no Brasil; produzindo-se um efeito de hiperonímia de “negro” sobre “afro-brasileiro”, apaga-se a necessidade de se nomear tais miscigenações, apagando-se, consequentemente, a produção da individualidade dos sujeitos que ocupam os lugares de dizer predicados por essas designações.

No enunciado 8, podemos observar uma movimentação da posição-sujeito no discurso, deslocando a constituição racial brasileira, bipolarizando-a. Ao afirmar que “A pessoa que vive numa sociedade onde predomina o branco acaba se sentindo branco e esquecendo as suas origens [...]”, o enunciador divide a sociedade brasileira, no interior das condições de produção desse sujeito-enunciador, em duas “castas”, quais sejam a de “brancos” e a de “negros”. Dessa forma, a identificação só pode se dar de acordo com esses dois lugares de dizer, que regulam a formação dos sujeitos na sociedade brasileira. Quando o enunciador afirma “esquecendo suas origens”, podemos parafrasear tal enunciado por “esquecendo suas origens étnicas”; dessa forma, o enunciador estabelece uma divisão binária para a origem da sociedade brasileira, quais sejam: branca/negra ou branca/indígena. Além disso, pela relação desse enunciado com o que apareceu anteriormente, podemos trabalhar com o sentido de que o fato de esse sujeito viver em uma sociedade predominantemente branca o faz se identificar com uma posição de sujeito majoritária. Importa-nos observar, nessa sequência discursiva, a presença do silenciamento; ao dizer “[...] numa sociedade onde predomina o branco [...] esquecendo as suas origens [...]”, o enunciador provoca um efeito de sentido que silencia a presença da miscigenação, ou seja, ele silencia o discurso de o Brasil ser uma nação multicultural, formada por uma colcha de retalhos étnicos.

Esse movimento no deslocamento do sujeito de uma posição miscigenada para a identificação com a posição de

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 45

sujeito branco ou negro provoca a divisão racial na sociedade brasileira. Ademais, tal movimento é produzido, como estamos demonstrando, por instrumentos legais do Estado, como a Cartilha do Politicamente Correto. A seguir, encontramos mais uma designação tida como pejorativa, segundo tal cartilha:

Mulato – Filho de mãe branca e pai negro, ou vice-versa. Mestiço de branco, negro ou indígena, de cor parda. Originariamente, na língua espanhola, a palavra se referia ao filhote macho do cruzamento de cavalo com jumenta ou de jumento com égua, daí a sua carga pejorativa. Transposto para o português já com o sentido de mestiço, o termo serviu à ideologia do branqueamento da raça negra e entrou no imaginário popular, pela literatura nativista, para designar a pessoa sedutora, lasciva, inzoneira, sonsa, cheia de artimanhas ditas “tropicais”, um outro estereótipo.

Cartilha do Politicamente Correto e Direitos Humanos.

Acima, podemos observar o modo de dizer o “mulato” pela sua reescritura, por definição, como “filho de mãe branca e pai negro, ou vice-versa. Mestiço de branco, negro ou indígena, de cor parda.” Nessa reescritura, podemos observar a presença do saber discursivo acerca da constituição da miscigenação, produzida pelo cruzamento entre dois grupos etno-raciais, quais sejam: branco e negro. Não obstante, o enunciador expande um pouco mais sua definição, incluindo nessa miscigenação o indígena; logo, o “mulato” é caracterizado por uma mistura étnica, produzindo, assim, uma identificação social específica com os indivíduos oriundos dessa miscigenação. Entretanto, essa mistura é silenciada por um discurso etimológico de autoridade, ou seja, encontramos, nesse discurso, a presença de um enunciado que se filia aos dizeres científicos etimológicos acerca da constituição da palavra. Segundo esses dizeres, “mulato” é o cruzamento de “cavalo com jumenta ou de jumento com égua”. Assim sendo, desloca-se a constituição de uma subjetividade, da posição de um sujeito em determinada

Gláuks 46

formação social para se trabalhar a hereditariedade animal. Como argumento para o silenciamento dessa posição de sujeito na sociedade, esse instrumento linguístico traz “mulato” como sendo um termo pejorativo para se nomear os sujeitos. Podemos perceber nesse movimento dos sentidos um deslocamento do estatuto de miscigenação racial para a ideia de pureza racial presente na sociedade brasileira.

Observamos, também, o deslizamento desse termo para “mestiço”, provocando um deslize de sentido atribuído a este último. No enunciado acima analisado, “mestiço” é predicado por “pessoa sedutora, lascívia, inzoneira, sonsa, cheia de artimanhas”, atribuindo sentido pejorativo ao termo designado. Logo, é produzido um efeito de sentido sobre os sujeitos nomeados por tais designações, caracterizando-os como pessoas de mau caráter, propensos a serem menosprezados na sociedade. Por isso a existência de todo um discurso pré-construído acerca dos mestiços no Brasil, levando-os a preferirem se auto-identificar com a parcela negra ou branca da população.

Como uma forma de trabalhar, organizar os sentidos que circulam na sociedade, a Cartilha do Politicamente Correto produz um silenciamento de algumas formas-sujeito, que são impedidas de significar nos discursos. Tal silenciamento pode ser percebido em outros documentos oficiais do Estado, como o Estatuto da Igualdade Racial, em que as designações “afro-brasileiro”, “afrodescendente”, “mulato”, “negro”, “pardo” e outras são trabalhadas, fazendo seus sentidos se moverem, produzindo deslocamentos das posições-sujeito na sociedade, alterando completamente a constituição racial brasileira, dando um novo sentido ao slogan governamental “Brasil, um país de todos”.

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 47

6 Conclusão

Este trabalho procurou mostrar que, ao trabalharmos com a noção de silêncio, analisamos a incompletude da linguagem, o movimento dos sentidos que são produzidos nas frestas das formações discursivas, provocando uma movença não só dos sentidos, mas também dos sujeitos, que ora se identificam com uma determinada formação discursiva, ora são silenciados e, por isso, veem-se na necessidade de se deslocar para outra, de modo que seus discursos produzam sentidos outros, que não são mais permitidos no interior de seu lugar de dizer original. Assim, nos discursos acerca da constituição racial brasileira, há um movimento produzido de modo a fazer ecoarem determinados sentidos, enquanto outros são silenciados, são impedidos de significar na sociedade. Isso nos mostra vestígios de um deslizamento da totalidade de pertencimento da população brasileira, produzindo o que chamamos de des-individuação, ou seja, os sujeitos são impedidos de assumirem determinadas identidades, individuando-se em seus discursos, e são levados a assumirem posições impostas pelos dispositivos do Estado. Contudo, se o Estado, por meio de seus dispositivos e aparelhos ideológicos, procura silenciar certas vozes, em que medida podemos considerar o Brasil um país de todos?

Referências

BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral II. Trad. Eduardo

Guimarães et al. 2. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.

GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da

designação. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.

JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. 7. ed. São Paulo: Cultrix,

1974.

Gláuks 48

LUZ, M. G. F. A nomeação como procedimento de constituição da

identidade negra nos discursos sociais e nos documentos oficiais do

Estado: um silenciamento da miscigenação. 2011. Dissertação de mestrado.

Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de São

Carlos, 2011.

ORLANDI, E. Interpretação, autoria, leitura e efeitos do trabalho

simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed.

Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 3. ed.

Campinas, SP: Pontes Editores, 2008.

ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 8. ed.

Campinas, SP: Pontes, 2009.

ORLANDI, E. (Org.). Discurso e políticas públicas urbanas: a fabricação

do consenso. Campinas: Editora RG, 2010.

ORLANDI, E. (Org.). Discurso, espaço, memória – caminhos da identidade

no Sul de Minas. Campinas: Editora RG, 2011.

PÊCHEUX, M. Analyse authomatique du discours. Paris: Dunod, 1969.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P.

Orlandi. 4. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.

Trad. Eni P. Orlandi et al. 4. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.

ABSTRACT: The discourse on affirmative action policies not only raised debates on policy, but also put a language issue at hand, that is, naming. From the perspective of discourse analysis, we consider the process of choosing a name as being affected by the symbolic, in order to claim an interpretation of these new names. In this paper, we proposed working with the issue of naming one a negro, preto, mulato, afro-brasileiro, and afrodescendente, to see how these discourses act as devices,

Por um Dispositivo Discursivo de Silenciamento das Identidades: A Des-Individuação 49

producing new identity configurations that lead to the silencing of certain discursive sites in society.

KEYWORDS: Discourse. Individuation. Naming. Silence. Subjectivity.

Data de recebimento: 11/03/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks 50

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 51-80

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre Indústria Cultural e

Cultura de Massa

The Enunciatee of Veja Magazine: Contributions to Discussions on the Culture Industry and Mass Culture

Rafael Henrique Palomino1

Renata Coelho Marchezan2

RESUMO: Este trabalho tem a intenção de, por assim dizer, “testar” duas teorias sobre os produtos culturais de massa — uma que os concebe como sincréticos e plurais e outra que os vê como homogeneizadores e voltados a um público médio. Tomamos como objeto a revista Veja e buscamos conferir como as seções internas da revista instauravam seus enunciatários, com a intenção de verificar se eles tinham semelhanças. Em caso afirmativo, Veja seria um produto cultural dirigido a um leitor específico; caso contrário, ela seria um produto cultural sincrético. Tal resposta nos daria lastro para refletir sobre a oposição entre as duas vertentes da análise da cultura de massa e tomar posição frente a elas. Claro que não pretendemos responder em definitivo à oposição entre as duas tendências. Os limites deste trabalho são dados pelo próprio objeto investigado: pretendemos verificar empiricamente como Veja, enquanto produto cultural, resolve a contradição que a coexistência dessas teorias opostas aponta sobre a sociedade de massa. 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da

UNESP de Araraquara. 2 Doutora em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do

Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da UNESP de Araraquara.

Gláuks 52

PALAVRAS-CHAVE: Indústria cultural. Cultura de massa. Ethos. Pathos. Enunciatário.

1 Introdução: apontamentos sobre a cultura de massa

s estudos de cultura de massa3 costumam concordar que os produtos culturais, por sua massificação,

dirigem-se a um público médio, ou seja, seriam produtos que a média dos cidadãos pode assimilar. Sabe-se que um bem cultural tem valia restrita aos grupos inseridos na cultura de que ele faz parte. Não se imagina que um pigmeu veja numa música pop o mesmo que um público jovem e ocidental vê. Essas constatações são óbvias, mas levam-nos a um problema nada óbvio: como é possível, a um produto cultural, identificar-se à média dos cidadãos se são distintos os grupos que convivem na sociedade moderna?

Pela leitura clássica desse problema, a sociedade de massas é condição de existência da cultura de massas. Um grande número de pessoas vivendo num mesmo ambiente (a cidade) terá uma vida semelhante e, portanto, maiores chances de se identificar com códigos culturais semelhantes. Com o avanço do capital sobre a produção da cultura, as indústrias valeram-se do fato de aglomerar-se nas cidades uma massa crescente de pessoas vivendo estilos de vida similares e focou seus produtos nos hábitos dessa massa. Assim, a sociedade de massas, de um lado, e a atividade da indústria cultural, de outro, criaram o público de massas.

Esse resumo é claro, esquemático e imperfeito. Ele basta, porém, para situar os limites das preocupações deste trabalho. E

3 O termo “cultura de massa” será usado, por enquanto, sem distingui-lo de seu

oposto, “indústria cultural”. A distinção será traçada e adotada mais adiante, no momento adequado.

��

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 53

elas são ilustradas por uma aparente tensão entre o que a leitura clássica da cultura de massa afirma e uma famosa análise de E. Landowski (1992, p. 118), para a qual, ao passo que todo produto se renova para atrair o consumidor, o jornal “solicita de cada indivíduo a compulsão inversa, exigindo a repetição, favorecendo o hábito ou a rotina, ou, menos disforicamente, uma certa constância”. Isso porque o leitor enxerga a si mesmo no periódico que consome, identifica-se com o ethos da empresa jornalística a que decide se “filiar”. E, como R. Barthes (apud MAINGUENEAU, 2005, p. 70) deixa claro, um ethos compõe-se em oposição a outros possíveis: “[o ethos] são os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão: são os ares que assume ao se apresentar [...]. O orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: eu sou isso e não aquilo” (grifo nosso). Eis o ponto sobre o qual parece haver uma tensão: ou o produto cultural (no caso, o jornal) se dirige ao “público médio” — ou seja, tenta atingir a todos de modo relativamente uniforme —, ou ele atinge apenas aqueles suscetíveis de se identificar com seu ethos, e não com outros ethos, a que o seu se opõe.

Tratando de outro tema, essa tensão foi assinalada por H. Wilensky (1971). Sua análise sobre as disputas nas pesquisas em cultura de massa reflete a contradição que apontamos. Segundo ele (1971, p. 260), a corrente clássica de análise da cultura de massa assevera que

a sociedade de massa desenvolve uma cultura de massa, na qual os valôres e crenças culturais e políticas tendem a ser homogêneos e fluidos. Na parte média e no extremo inferior da massa atomizada as pessoas pensam e sentem de modo semelhante; mas os pensamentos e sentimentos, à falta de qualquer ponto de fixação, são suscetíveis de modas e manias. No tôpo, elites mal organizadas e orientadas para as massas elas próprias, convertem-se em manipuladores políticos e empresariais, que respondem a pressões a curto prazo; não

Gláuks 54

conseguindo manter os padrões, êles encorajam a difusão do populismo em política, do gôsto massificado em cultura — em suma, propiciam uma “soberania dos não-qualificados”.

O capital teria gerado, assim, uma sociedade do individualismo e da desorientação, à mercê do populismo e da indústria cultural. Uma geração posterior teve outro enfoque:

[...] os críticos de mentalidade empírica [...] replicaram, com essas proposições: os grupos primários sobrevivem, e mesmo florescem; as populações urbano-industriais não deixaram de participar de associações, que continuam a se multiplicar, nos EUA e talvez em outras sociedades pluralistas. Ademais, em qualquer sociedade industrial, seja pluralista ou totalitária, há limites potentes aos podêres dos meios de comunicação de massa, às grandes organizações, ao Estado centralizado. (WILENSKY, 1971, p. 259).

Para esse ponto de vista, a sociedade moderna é o locus da pluralidade, a indústria cultural tem limites à sua ação, o Estado não pode centralizar-se por completo e os grupos primários mantêm-se firmes, sem se dissolverem em torno de um centro.

Como cada uma dessas caracterizações da sociedade de massa entende o problema dos produtos culturais? Pela lógica, no primeiro ponto de vista se tem uma indústria produtora de bens culturais em série. Seriam produtos que imporiam um “gosto médio” a partir de um centro, em uma estrutura hierarquizada, de cima para baixo. Esses produtos apenas fariam um simulacro das ideias latentes nos públicos a que se dirigem. Já o segundo ponto de vista leva a crer que o produto cultural não homogeneíza os grupos sociais. Ele se dirigiria aos vários grupos incorporando, sincreticamente, elementos de cada um. Para tomar parte nessa questão, escolhemos um produto cultural, a revista Veja, para analisar a quem ele se dirige. A um interlocutor sincrético? A um interlocutor em específico? Quão

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 55

específico? Como ele se configura? Com respostas a questões como essas, queremos pensar sobre esse problema4.

2 Da metodologia e do objeto

2.1 Referencial teórico

Principiemos por esclarecer nossos objetivos. Ao analisar a revista Veja, pretendemos verificar se ela se volta a um enunciatário em específico ou a vários enunciatários. O primeiro caso tenderia a confirmar a ideia de que ela é um produto cultural dirigido a uma “média”, representada aqui pelo interlocutor específico a que ela atende, que seria um “homem médio”. O segundo caso tenderia a confirmar que a revista sincretiza-se para atingir diversos grupos sociais. Essas duas conclusões são, claro, só as hipóteses de que partimos para fazer as análises. E, para fazê-las, os conceitos mais importantes com que lidaremos serão os de ethos e pathos. Sua importância se deve ao fato de seu âmbito ser a relação entre enunciador e enunciatário, tal como o discurso os instaura. Iniciemos, então, por aclarar o que entendemos pela instauração do enunciador e do enunciatário no discurso5.

As teorias do discurso costumam aceitar a prerrogativa de que o ato de enunciação deixa marcas no enunciado. É clássica, por exemplo, a consideração sobre como a enunciação transparece no enunciado pelas marcas de tempo, lugar e pessoa. Ao se dizer, num texto, eu, aqui, agora, fala-se do eu que enuncia, do aqui de onde o eu enuncia, do agora em que o eu enuncia. Enunciador e enunciatário podem, por isso, ser inferidos pelo enunciado. Mas 4 Cumpre fazer um esclarecimento: a oposição entre essas duas vertentes não é, claro,

tão ferrenha quanto podemos ter dado a entender. Há matizes entre elas, bem como se podem fazer outras considerações para além da dicotomia que as separa. Refletiremos sobre a pertinência dessa dicotomia na ocasião oportuna.

5 Baseamos este trecho em Fiorin (2004a, 2004b).

Gláuks 56

seria ingenuidade supor que se alcançariam o enunciador e o enunciatário reais, de carne e osso, pela leitura. Só supõe isso quem crê que um enunciado seja uma cópia tão fiel do real que reflita seus elaboradores à perfeição. Ele faz, na verdade, imagens desses elaboradores, e quem o examina volta seu olho a essas imagens. Pretendemos analisar certa relação social mediada por um produto cultural: o modo como Veja concebe seu leitor. Isso equivale a dizer que analisaremos uma imagem, um enunciatário criado discursivamente em Veja e por ela, e não um leitor real. Esse método nos é conveniente, pois, se queremos saber como os produtos culturais tentam atingir seus mercados, é sobre a imagem de consumidor desses produtos que nos interrogamos, e não sobre os consumidores em si.

Análises desse tipo são feitas desde os tempos da Retórica clássica, que, para tratar da relação entre enunciador e enunciatário, forjou os conceitos de ethos e pathos. Esses conceitos levam a considerar que um enunciado não se constrói só do seu conteúdo, mas também do modo como trata esse conteúdo. Quando o enunciador fala, seu modo de dizer comunica algo a respeito de si. Por isso, ao falar, o enunciador constrói um ethos, uma imagem sua. Para seu discurso ter eficácia, ele precisa que esse seu ethos se coadune com o pathos do enunciatário. O pathos é a projeção que o enunciador faz dos desejos que movem esse enunciatário. O enunciador compõe seu enunciado esforçando-se sempre para, com ele, atender ao pathos e, por isso, o enunciatário influi na constituição do enunciado, já que as escolhas discursivas são feitas com base em sua imagem. Na Retórica clássica, falava-se de ethos e pathos de pessoas reais, em situações reais de argumentação. Nossa posição, porém, é outra. Não nos interessam o enunciador e o enunciatário reais, nem os anseios verdadeiros do leitor ou a imagem que o jornalista, de fato, quis criar de si. Importam-nos as imagens de enunciador, enunciatário, ethos e pathos

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 57

instauradas no discurso e por meio dele. Mas o fato de nossa análise escapar aos estreitos limites da Retórica não significa que eles deixarão de envolver a noção de argumentação. Concordamos com Koch (1996, p. 19), para quem qualquer escolha linguística é uma entre outras possíveis e, por isso, revela um intento do enunciador sobre o enunciatário, ou seja, uma argumentação. Nos textos que analisamos, essa argumentação chega a extrapolar o âmbito do implícito e a revelar-se. Conforme N. Discini (2004, p. 118-9):

Um destinador [nos textos da imprensa] [...] manipula um destinatário, seduzindo-o e tentando-o, para que este queira e deva entrar em conjunção com os saberes, com as informações sobre uma dada realidade, a fim de que possa se incluir nessa dada realidade. Assim se ancora narrativamente a ilusão discursiva de auto-inclusão numa certa identidade, de pertencimento a um certo corpo, de auto-reconhecimento concomitante ao reconhecimento de um modo de fazer, de um estilo. [...] Pelo reconhecimento recíproco, compra-se e vende-se o jornal, interagindo, para tanto, os dois atores da enunciação, enunciador e enunciatário.

Essa passagem esclarece o modo como se dá a argumentação nos textos da imprensa e a relação entre enunciador e enunciatário nesses textos. Note-se como a análise da autora corrobora a opinião de Landowski, de que a fidelidade ao jornal é a fidelidade à identidade.

Para captar o enunciatário, analisaremos a pressuposição. Segundo O. Ducrot (1977, p. 101), os pressupostos de um enunciado definem “uma categoria de enunciados suscetíveis de continuá-lo [...] Com isso, estabelecem-se os limites do diálogo oferecido ao interlocutor. Pressupor um certo conteúdo é colocar a aceitação de tal conteúdo como condição do diálogo ulterior”. A Retórica ratifica essa posição: “As premissas da argumentação consistem em proposições admitidas pelos ouvintes.” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.

Gláuks 58

118). A preocupação dos retores é que o orador evite a recusa das premissas pelo auditório para garantir o avanço da argumentação. A nós, importa-nos que o pressuposto revela o que o enunciador imagina que seu enunciatário não recusará. A escolha de epítetos, os recursos ao humor, as afirmações polêmicas feitas sem justificativas (ou seja, feitas com a certeza de que o enunciatário já está de acordo sobre elas), tudo isso se relaciona, de um ou outro modo, com os pressupostos.

2.2 O objeto de estudo: sua escolha, suas especificidades

Analisamos a revista Veja de 1º de outubro de 2008. Queremos ver como a indústria cultural trata seu público e, então, precisamos, para fazer uma indução válida, analisar um objeto generalizável, em algum grau, ao conjunto das produções culturais da sociedade. A melhor escolha é, pois, a do produto mais prototípico possível. Conforme o Índice Verificador de Circulação, Veja é a semanal mais vendida do Brasil, o que lhe dá esse status.

Discini (2004) mostra, em seu trabalho, que se podem analisar várias totalidades para ver as relações entre ethos e pathos. Nós lidamos com uma pouco comum: o enunciatário das seções internas de Veja. Em toda edição, Veja traz pelo menos cinco seções: Economia, Brasil, Internacional, Geral e Artes & Espetáculos. Para pensar sobre a contradição expressa na introdução, temos que ver se nosso produto cultural é sincrético ou homogêneo; havendo diferença entre os enunciatários das seções, Veja é sincrética; havendo regularidade, ela optou pela homogeneização de seus leitores6.

6 Analisamos apenas textos do gênero reportagem. A justificativa para essas escolhas

não está nos limites deste artigo, mas da pesquisa na qual ele se insere, desenvolvida junto à UNESP de Araraquara. Não há nada neste trabalho que obrigue a escolha por esse gênero ou por exemplares de outubro de 2008, mas é também verdade que essa escolha em nada prejudica o trabalho aqui apresentado.

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 59

3 Análise e resultados

3.1 A seção Economia

Como exemplo da seção Economia, usaremos a reportagem “Procura-se um estadista”, de André Petry. À esquerda, na primeira página, a revista exibe um close enorme do rosto de George Bush, cabisbaixo e constrangido, que aproxima leitor e referente, como se quem lê estivesse ao lado do presidente. Ao lado, o título: “Procura-se um estadista”; o subtítulo: “Na hora em que os EUA enfrentam uma das piores turbulências da história, Bush, o ‘pato manco’, sofre com sua falta de liderança política — e, para piorar, ninguém parece pronto para assumir seu lugar”; uma legenda: “A crise sumiu do discurso. O presidente Bush e os operadores da bolsa de Nova York: a crise é forte, mas, ao falar na ONU, ele mal tocou no assunto”. À direita, outra fotografia: a bolsa de valores de Nova York abarrotada de gente.

Chama a atenção, primeiro, o traço emotivo dessa primeira leitura que a folha oferece. O enunciador, nesse trecho, busca tocar os anseios do enunciatário ao apontar o culpado da crise. Também atrai a atenção o epíteto do presidente: “pato manco”. Em um trecho do texto, explica-se: “É uma coincidência infeliz que a turbulência econômica sobrevenha no momento em que os EUA são comandados por um ‘pato manco’, apelido dado pelos americanos aos presidentes enfraquecidos pela proximidade do fim do mandato.” Para Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p. 143), o epíteto é a escolha de qualificativo que se supõe indiscutível, que se exime de justificação. Se o enunciador considera desnecessário discutir para demonstrar que Bush é mesmo um “pato manco”, ele crê que o leitor já aderiu a essa ideia.

Gláuks 60

Outro aspecto importante: a referência à crise como “turbulência”, um eufemismo que buscar atender ao pathos. Há vários trechos eufemísticos como “A crise é a maior desde a desgraça dos anos 30 do século passado”, em que está implícito que a crise de 2008 não é uma “desgraça”. A Grande Depressão também não está referida com clareza. O enunciador supõe que o enunciatário a conhece e, assim, exime-se de explicar de que “desgraça dos anos 30” está falando. Chama a atenção, ainda, o trecho “sob o comando de um estadista, crises podem ser excelentes oportunidades para inovar e criar”, que não vê, na crise, uma contestação do sistema econômico, mas uma afirmação de seus valores. Vejamos os trechos seguintes:

(1) Se existe um líder capaz e visionário, o custo de uma crise fica menor. Mas, se esse líder não existe, como é o caso agora, [...] o custo da crise aumenta.

(2) Na Casa Branca, Bush se reuniu com lideres partidários [...] para azeitar a aprovação de um pacotaço de 700 bilhões, mas foi um desastre. Bush não convenceu nem seus colegas de partido.

Desses trechos e de outros, depreende-se que essa crise é uma como as outras e, se ela está fora de controle, a culpa é de Bush. Esse argumento conta com um pressuposto: o do individualismo, da crença na capacidade de um homem poder, por seus méritos, resolver o problema. Bush, na matéria, não é esse homem, mas subsiste a premissa da existência de homens assim. Censura-se o presidente pela falta de atitude, mas não se discute que atitude tomar. Ela está, também, pressuposta: a atitude a se tomar é aprovar o “pacotaço”. A expressão informal usada pelo enunciador suaviza pelo humor o fato controverso de esse pacote ser um recurso de alta monta, financiado com dinheiro público, para socorro de grupos privados. O humor faz com que isso pareça natural, rebaixa o tom sério que a matéria pediria, e visa à aproximação do enunciatário, pois só se pode rir

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 61

daquilo a respeito do qual há acordo. Outro acordo revelador expõe-se quando o enunciador diz: “A capacidade de liderança faz toda a diferença, tanto no governo como na iniciativa privada”, e tece uma comparação entre o modo como um executivo da Johnson & Johnson administrou favoravelmente uma crise para esclarecer a necessidade de haver homens como esse na presidência. Comparar governos e empresas é uma ideia polêmica, defendida na academia pelo gerencialismo. O enunciador não entra, porém, nessa polêmica. Pressupõe, portanto, a anuência do leitor com esse ponto.

O enunciatário, aqui, conhece algo de economia e endossa o ideário individualista, neoliberal, gerencialista e capitalista. Ele crê que a crise, por ser uma turbulência (capaz até de oferecer oportunidades), é passageira e não afeta a estrutura social. Ele se conforta, pois, com a crença de que o sistema econômico se conservará — ou seja, é um conservador. Essas ideias costumam ser associadas à imagem do cidadão dos EUA. Ao usar a expressão “pato manco”, o enunciador tentava construir um ethos que se harmonizasse com um enunciatário que admira esse país. Nenhuma referência é feita à origem da crise, pois não há como falar disso sem tocar na responsabilidade dos investidores. A economia é vista pela ótica não do economista político, mas do empresário. Empresário, conservador, individualista, competidor, estadunidense: esse feixe compõe as características do enunciatário.

3.2 A seção Brasil

A seção que leva o nome de Brasil trata da política nacional. Nela, vamos nos guiar pela reportagem de Igor Paulin: “Elas contra eles”. Dois retratos do rosto de duas mulheres bonitas e sorridentes encabeçam a matéria. Abaixo, o título: “Elas contra eles”; o subtítulo: “Três mulheres enfrentam

Gláuks 62

Fogaça em Porto Alegre”. Ao lado das fotografias, a legenda: “Eu sou você amanhã. As candidatas têm perfil parecido, Manuela D’Ávila (ao lado) é do PCdoB, o partido que lançou a bela e petista Maria do Rosário”. Nesses primeiros elementos, já vemos o que organizará a construção do enunciatário ao longo de toda a matéria: o escárnio. O enunciador tentará criar a sensação de que as candidatas têm como arma eleitoral apenas a sua beleza. Vê-se isso nas fotografias sorridentes das duas e no comentário da legenda: “a bela e petista Maria do Rosário”. Chama a atenção a conjunção e, situada entre os dois adjetivos. Seria mais natural dizer “a bela petista”, mas o enunciador fez questão de dizer que Maria do Rosário é bela e é petista, colocando “bela” em paralelismo com “petista”, como se ambas as qualidades fossem, nesse contexto, igualmente importantes e merecessem a mesma atenção. Seja o início da matéria:

(3) No primeiro turno, a verdadeira refrega em Porto Alegre se dá no campo feminino. Três candidatas de perfil semelhante disputam uma vaga no segundo turno contra o prefeito José Fogaça, do PMDB, à frente nas pesquisas. Elas são esquerdistas, deputadas e reverenciadas musas de sua agremiação.

(4) Como a petista [Maria do Rosário], Manuela ganhou fama no movimento estudantil e obteve seu primeiro mandato de vereadora pelo PCdoB. A diferença é que Maria do Rosário trocou de partido depois que foi eleita. Manuela continua lá, mas adotou um comunismo desbotado. Até na bandeira. Em vez do clássico pavilhão, seus correligionários usam um lilás. Em quarto lugar está Luciana Genro, do PSOL, que faz escova e caprichou na maquiagem.

Como se vê por (3) e (4), o tom é de franco deboche. A palavra refrega, por ser de uso culto, aparece deslocada de seus contextos habituais e dá ao enunciado um tom de galhofa. Tudo leva a imaginar as candidatas como mulheres frívolas, cuja única arma para se elegerem é a aparência, como se vê pelo perfil delas traçado em (3) e pela consideração sobre a escova e a maquiagem da candidata do PSOL em (4).

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 63

(5) Nesta fase da campanha, as três se atacam mutuamente e deixam Fogaça de lado. No segundo turno, o jogo mudará.

O que se enuncia em (5) é uma hipótese do enunciador, embora ele a exponha como fato. Ele espera, portanto, que o enunciatário compartilhe dessa opinião e, por isso, pode dizê-la sem prová-la. No pé da página, um gráfico mostra a intenção de voto, intitulado “Mulheres na briga”. À primeira vista, é um título que valoriza a mulher, pois remete ao feminismo. O subtítulo, porém, desmente essa impressão: “Na tentativa de garantir um lugar no segundo turno contra o prefeito José Fogaça, as esquerdistas Manuela d’Ávila, Maria do Rosário e Luciana Genro estapeiam-se pelo espólio do petismo porto-alegrense.” Isso revela a ironia. O enunciador sugere a luta feminista para atualizar outro sentido: o da briga em sentido literal, que rebaixa e não eleva o engajamento político das mulheres. Esse rebaixamento é a regra da reportagem. O enunciador acusa as candidatas de: a) futilidade, pelo cuidado excessivo com a aparência; b) falsidade, já que trocam de partido após eleitas; brigam umas com as outras, mas já pretendem se unir em breve; e têm como arma eleitoral a aparência, e não a essência; c) descontrole, já que “se estapeiam”, “brigam”, “refregam”. Além disso, ele, desde o título, associa as três mulheres: “Elas contra ele”. Ao candidato Fogaça, então, não valem as críticas.

E veja-se que as críticas feitas às candidatas, de futilidade, falsidade e descontrole, correspondem a um estereótipo machista do comportamento da mulher. E o mais importante: todos esses sentidos são criados com o recurso do humor, seja do escárnio, seja da ironia. Para Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p. 233-4), o escárnio “é a sanção da transgressão de uma regra aceita”, a resposta a uma transgressão

Gláuks 64

que, de tão inexpressiva, não merece resposta à altura, e “se exerce em prol da conservação do que é admitido [...] O ridículo é a arma poderosa de que o orador dispõe contra os que podem, provavelmente, abalar-lhe a argumentação, recusando-se, sem razão, a aderir a uma ou outra premissa de seu discurso”. O escárnio impede, assim, a contestação do que é tido como certo, ou seja, a premissa de um enunciado. Já a ironia pressupõe que o enunciatário tenha muita afinidade com o enunciador, pois, para captá-la, ambos precisam saber que se afirma uma coisa em lugar de outra.

Se o autor escarnece da esquerda e das mulheres e ironiza o feminismo, é por imaginar um leitor disposto a rir junto com ele dos seus opositores. Pathos e ethos, aqui, harmonizam-se à perfeição. Eles revelam um ponto de vista conservador (uma disposição para conservar certos valores e ridicularizar quem os contraria); uma perspectiva machista (uma mulher dificilmente riria dessas piadas); um sentimento de superioridade frente à esquerda e ao feminismo. Haja vista, por fim, que não há, na matéria, uma análise política que trate das instituições ou dos agentes sociais. Só se analisa o comportamento das candidatas, como se ele não tivesse relação com nenhum aspecto da vida social. Novamente, um enfoque que valoriza o individualismo em lugar dos processos sociais em que os indivíduos se enquadram.

3.3 A seção Internacional

Nesta seção, guiar-nos-á a reportagem “Pode bater, que o gigante é manso”, de Duda Teixeira. Uma foto que toma o miolo de duas páginas mostra, diante de uma construção, soldados cuja aparência remete à do índio andino. O título está à esquerda. Embaixo dele, o subtítulo: “O presidente do Equador expulsa a Odebrecht do país, seqüestra os bens da empresa e ameaça dar

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 65

calote no BNDES. E mais uma vez o Brasil apanha sem reclamar.” À direita da fotografia, uma legenda: “Pressão militar. Soldados vigiam o prédio da Odebrecht em Guaiaquil: guerra contra quem?” A sugestão que a pergunta faz não é esclarecida nem pela imagem, nem pela reportagem, nem por nada. Essa alusão inexplicada a uma guerra, porém, é parte da argumentação do enunciador. O que ele faz é procurar provocar os nervos do enunciatário. No subtítulo, diz-se que o presidente Rafael Correa “expulsou” a Odebrecht, “seqüestrou” seus bens, e o Brasil “apanhou sem reclamar”. Ao longo do texto, diz-se que os presidentes sul-americanos desferem “golpes contra o Brasil” com “total desfaçatez”, que o Brasil é para eles o “vizinho grandalhão que engole passivamente as humilhações”, que o governo do Equador proibiu quatro presidentes da Odebrecht de deixar o país, mas dois deles “escaparam” e outros dois “buscaram refúgio às pressas”. Num quadro que expõe a conduta de vários presidentes da América do Sul, diz-se que o Brasil, para seus vizinhos, “pode ser surrupiado sem temor de represália”; que Rafael Correa (e não o governo) “tentou prender” quatro diretores da Odebrecht; que Evo Morales é o presidente que “tomou duas refinarias da Petrobras”, “rasgou contratos para aumentar o preço do gás” e orientou “milícias camponesas a invadir fazendas de brasileiros”; que Fernando Lugo “quer obrigar o Brasil a pagar mais caro pela energia de Itaipu”. Esses exemplos bastam para ver a intenção clara do enunciador de inflamar o enunciatário com um discurso violento, que visa a seu espírito nacionalista.

Muito do que o enunciador qualificou como um “surrupio” ou “saque” são ações que, ainda que possam ser politicamente discutíveis, não são crimes. A atitude de impedir a saída dos executivos do Equador poderia ser considerada natural, já que estão sob investigação. O enunciador qualifica essa atitude como “flagrante desrespeito às regras internacionais e aos direitos humanos”. Ele também condena a ação de Cristina Kirchner, cuja

Gláuks 66

atuação “dificulta a compra de empresas locais por companhias brasileiras”, o que não é crime, mas simples protecionismo. Já Hugo Chávez “limitou a importação de carros brasileiros a pretexto de economizar divisas e estimular a produção doméstica”. Evitar a importação é decisão comum para economizar divisas e estimular a produção doméstica, mas o enunciador a classificou como “pretexto”. Lugo é acusado de “fazer reforma agrária nas propriedades dos brasileiros”. Só nas dos brasileiros? O enunciador não esclarece, mas dá a entender que sim, fazendo a reforma parecer uma espécie de roubo. Não pretendemos concordar ou discordar da leitura que a revista faz dos fatos, mas observar outro fato: se o enunciador chama de crimes atos que, mesmo se questionáveis, não são criminosos, ele precisaria prestar um esclarecimento. Para chamar uma reforma agrária de roubo é preciso uma boa justificativa. Como essa justificativa não é dada, crê-se que o enunciador não se vê na necessidade de convencer seu enunciatário disso. As medidas taxadas de criminosas são típicas da esquerda moderada e dos nacionalistas (de esquerda ou de direita): reformas de base e medidas protecionistas. Seu traço comum: opõem-se à ideologia de livre mercado.

Os governos de nossos vizinhos são tidos por “populistas”. Os governantes agem de acordo com interesses puramente pessoais e suas ações visam somente “agitar uma causa nacionalista para unir a nação em torno do presidente”. Na Argentina, não é Cristina Kirchner que governa, mas o “casal Kirchner”, dando a impressão de que a família tomou para si o Estado. E nosso governo, que não é qualificado de brasileiro, mas de “governo petista”, peca pelo “imobilismo”, pela “excessiva tolerância”. O chanceler brasileiro, por exemplo, dizendo não ter havido conflito com o Equador, “desconversou”. Aqui, o enunciador opera o ponto fundamental de sua argumentação: associa os crimes que atribui aos governos vizinhos à tolerância do governo petista do Brasil (governo que o enunciador considera de esquerda).

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 67

O enunciador dá voz, ainda, ao governo do Equador e à Odebrecht. Ao relatar-lhes as falas, diz que Correa “alegou” algo e introduz a fala da empresa com “segundo a Odebrecht”. Conforme o Aurélio, o verbo alegar é pejorativo: “apresentar como explicação, desculpa ou pretexto”. A expressão “segundo a Odebrecht”, porém, não depõe contra a empresa. Isso lhe dá a razão, mas sem prova de que ela esteja mesmo certa. O enunciador especula que as ações de Correa visavam ao apoio popular para aprovar um projeto de Constituição em referendo e, assim, “dissolver o Congresso” e “se reeleger”. Não é dada prova ou evidência disso. E se não é necessário convencer o enunciatário, é porque ele já está convencido de antemão.

O texto é, como se vê, cheio de asserções difíceis de justificar e vazio de justificativas. Supõe-se que o enunciatário já está convencido dessas asserções não demonstradas. Um enunciatário que compartilha de todos esses pressupostos é alguém que julga a América do Sul atrasada; vê em medidas protecionistas, nacionalistas e reformistas simples crimes (e vê, então, a legalidade no oposto disso: o livre mercado); é, pois, conservador; rejeita a esquerda e simpatiza com o empresariado a ponto de dar razão, antes de qualquer prova, às empresas. Mais uma vez, não se discutiram relações internacionais, temas de ciência política, direito internacional, nada. Há espaço apenas para o discurso apelativo contra os inimigos comuns do enunciador e do enunciatário e para a indignação com medidas que atentam contra o livre mercado e a propriedade privada.

3.4 A seção Geral

A seção Geral trata de vários temas sem ligação entre si e, deles, um dos principais é a tecnologia. Escolhemos, por isso, como exemplo de nossa análise, a reportagem “O Google quer engolir o iPhone”, de Leandro Narloch. Na primeira página, um

Gláuks 68

close do G1, aparelho da Google; na página adiante, uma fotografia do anúncio do iPhone com a legenda: “Armas da disputa. O G1, com teclado embutido (à esq.): aposta num futuro em que mais gente vai se conectar à internet pelo celular. À direita, anúncio do iPhone em shopping de São Paulo.” À esquerda, o subtítulo: “Na semana em que o celular da Apple chega ao Brasil, o gigante da internet lança no exterior o telefone que pretende superá-lo.” Nesses elementos, pouco pode ser visto como da seção “tecnologia”. Se o cabeçalho não avisasse, poder-se-ia pensar que é uma reportagem da seção “negócios”. E assim segue toda a reportagem. Na terceira página, um gráfico mostra a evolução dos negócios da Google. Na primeira página, um pequeno gráfico intitulado “O campo de batalha” comenta a evolução da venda do celular e o conflito de Google e Apple nesse mercado. Sobre tecnologia, só o segundo parágrafo e, na primeira página, um box, ambos sem nada de técnico ou científico. Fala-se da utilidade dos aparelhos. É imaginado, pois, um enunciatário com interesse não por tecnologia, mas por certo mundo em que aparelhos tecnológicos ocupam posição relevante, um mundo moderno e, dada a natureza dos aparelhos, globalizado. No final da reportagem, o enunciador declara que:

(6) Não há previsão de lançamento do aparelho [o G1] no Brasil. Em compensação, finalmente os brasileiros já podem comprar um iPhone.

O advérbio “finalmente” mostra o desejo de que o Brasil disponha dessa modernidade, entre no mundo globalizado. Dizer isso é quase como afirmar que enunciatário finalmente pode ser cosmopolita, ter um produto como os dos países do exterior, diferentes do atrasado Brasil. A sedução se dá não pela tecnologia, mas pela posse do objeto de consumo (que é como se veem os aparelhos, haja vista, em (6), o verbo comprar).

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 69

Esses objetos de desejo são o que colocaria o enunciatário em conjunção com o universo que ele admira e no qual quer se inserir. A reportagem aproxima-se, desse modo, da publicidade. Vê-se isso na qualificação positiva dada às empresas, como se a reportagem intentasse fixar suas marcas (a Google é, por exemplo, “a maior empresa de internet do mundo” e “o gigante da internet”). Não se faz análise dos aparelhos. Eles só são elogiados pela utilidade, como, por exemplo, a de “colocar no G1 um programa que lê códigos de barra e, com isso, comparar preços na internet”. Não é coincidência que o exemplo fale de consumo. Tudo na reportagem trata o enunciatário como consumidor, e não como interessado em tecnologia. O final deixa isso claro: “Num mundo que depende da Internet até para as ações mais corriqueiras, é natural que aparelhos como o G1 e o iPhone se tornem objeto do desejo de muita gente.” Quase uma propaganda explícita.

Assim, vê-se, pela sedução feita no texto, por seu apelo ao pathos, que o enunciador imagina dialogar com alguém que quer inserir-se num mundo de negócios e modernidade. Um enunciatário interessado não na tecnologia, mas no passaporte para o mundo globalizado (maior que “o atrasado Brasil”) que a tecnologia representa. Ele é seduzido pela propaganda dessa tecnologia e pelo brilho de empresas “gigantes”, “maiores do mundo”. O apelo atinge o paroxismo quando, no fim do texto, o enunciador diz que “uma das novidades que o iPhone oferece no Brasil é um atalho para o site de VEJA”, colocando a própria revista em conjunção com o universo globalizado que os aparelhos representam. Ao lado, um quadro com o título “Notícias na palma da mão” traz a fotografia de dois iPhone, um com destaque no atalho para o site de Veja, outro com o site na tela. O texto é propagandístico sobre os benefícios que tem o leitor de Veja que possua o iPhone. A manchete na tela do iPhone é: “Demora em pacote dos EUA derruba a Bovespa”,

Gláuks 70

notícia que só interessa a investidores, empresários e a quem os tem como exemplo. É o enunciatário a que a reportagem se dirige.

3.5 A seção Artes & Espetáculos

Na seção de Artes & Espetáculos não se fala de clássicos da arte. Ainda que ela possa conter referências ao cânone cultural aqui e ali, a seção procura simplificá-los. Guiar-nos-emos, nela, pela reportagem “Einstein digerível”, de Marcelo Marthe. O título pressupõe que Einstein seja “indigesto”, pressuposto que não se faria ao falar com alguém culto o bastante para entender Einstein. A guia no alto da página, porém, diz que esta é a seção “Cultura”. O subtítulo diz: “As atrações interativas de uma mostra sobre o cientista ilustram suas teorias complexas com experiências simples. Ninguém sai de lá mestre em física — mas a visita enriquece.” A preocupação é a de, por um lado, mostrar que o conteúdo da reportagem é culto e, por outro, asseverar que ele não é incompreensível.

O assunto da reportagem não é Einstein, mas a exposição que o simplifica. Um quadro abaixo da reportagem expõe, na parte superior, três teorias do físico e, na inferior, o modo como são explicadas na exposição. Abaixo da reportagem, fotos mostram pessoas interessadas na exposição. À esquerda, numa foto grande, Einstein fuma cachimbo, olhando para o leitor, com o cabelo desgrenhado. A seu lado, a legenda: “Para entender o gênio. Como três teorias do cientista são ilustradas numa exposição sobre sua vida e obra em cartaz em São Paulo.” Esse mito do Einstein gênio é reforçado no início do texto, ao se dizer que sua curiosidade pela ciência despertou aos cinco anos de idade, por um “estímulo prosaico”: uma bússola. É do ideário individualista essa visão da genialidade. Os românticos

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 71

idolatravam o “gênio criador” das artes e da ciência, que criam ser o detentor do crédito por suas conquistas. Esse ponto de vista ignora os processos sociais por meio dos quais o conhecimento se produz e o diálogo que o “gênio” trava com o presente e o passado para concretizar suas ideias.

Na segunda página, há um retrato de um homem bem vestido e penteado, sorrindo e manipulando equipamentos de laboratório. Abaixo dele, a legenda: “Aula prática. Sangari, que trouxe [a exposição sobre] Einstein ao Brasil: levar a ciência às crianças é uma fixação.” A legenda é laudatória e Sangari é apresentado, no final do texto, com o mesmo louvor:

Por trás da exposição está um empresário com a fixação por fazer do ensino de ciências uma prioridade nas escolas brasileiras. [...] Ben Sangari, de 47 anos, é herdeiro de um grupo internacional especializado na venda de equipamentos para laboratórios. Numa viagem ao Brasil, nos anos 90, vislumbrou uma bela oportunidade de mercado

Essa “oportunidade” é a de vender materiais para o ensino de ciências, o que motivou a ideia da exposição.

Isso basta para notar que o texto não visa a especialistas, mas a leigos, e que ele não discute ciência, mas sua popularização. Estranha que ele não esteja na seção Geral, mas em Artes & Espetáculos. A exposição é tida por espetáculo, capaz de encantar como arte. Mas há mais: chamar esse evento de cultural o legitima, causa uma sedução sobre o enunciatário, que, ao manter-se em conjunção com esse universo, vê a si mesmo como culto. Mas culto sem ser pedante. O texto não trata de “alta cultura”, e sim de cultura “digerível”. Essa associação cria a imagem de uma cultura não, digamos, aristocrática (restrita a um círculo de entendidos), mas burguesa, acessível. É assim que o enunciador quer atrair o enunciatário, dizendo que a exposição é “moderna” e “interativa”. E quem provê a

Gláuks 72

exposição tão elogiada na reportagem é o capitalista. O empresário é tido como empreendedor que beneficia a todos por ver, nisso, oportunidades de mercado. A sedução do enunciatário envolve a promessa de conjunção com um universo de empresários visionários que, ao invés de questionarem o sistema, concretizam grandes ideais por dentro dele. Ele, portanto, crê no individualismo, na genialidade de tipo romântico; não quer a “alta” cultura, mas a “digerível”; admira não a reflexão aristocrática, mas o pragmatismo burguês; é seduzido pelo enaltecimento dos feitos de um capitalista pela ciência; é sensível ao argumento de que a cultura digerida traz progresso para o país, tira-o do atraso, e vê, portanto, o Brasil como atrasado, pouco moderno.

3.6 Traços presentes em todas as seções

Sintetizamos aqui alguns traços que estão presentes em todas as seções da revista. Deles, o primeiro diz respeito ao uso de quadros e gráficos informativos. Veja evita textos longos e densos, prefere misturar textos de leitura rápida com quadros e gráficos. Eles dinamizam a leitura pelos recursos visuais e acrescentam informações às do corpo da reportagem. O abuso desses recursos mostra que o enunciador crê que seu enunciatário se chateia com uma leitura complexa. Imagina, pois, um leitor não tão culto, sem tempo para muita leitura. Ele é tido por dinâmico, que passeia o olhar de um lado a outro do texto rapidamente. O texto traz impresso o movimento dessa leitura complexa, sem uma corrente rígida de causas e consequências.

Pragmatismo na leitura, dinamicidade, velocidade, descontração, são características da leitura no mundo moderno. A revista as integra pela concorrência com outras mídias, muito dinâmicas e velozes, contra as quais deve lutar por seu leitor. É

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 73

um leitor integrado nessa rede que une a internet, a televisão, a imprensa escrita, o que as seções de Veja pretendem atingir. É sintomático que seja tão citado o site Veja online, como que para mostrar ao enunciatário que a revista é parte do universo moderno a que ele aspira. Os subtítulos sumarizam para o leitor o conteúdo da reportagem para que ele possa não ler, caso não se interesse. A abundância de fotografias suaviza a leitura. Expressões técnicas e raciocínios intrincados são evitados. As frases são curtas, as expressões eruditas são poucas. A revista usa a variedade padrão sem ser obtusa. O enunciatário dessa variedade está entre o inculto e o pedante: ele não deseja ler textos muito rebuscados, mas sentir-se-ia aviltado por uma linguagem descontraída demais.

Há ainda uma relação entre a materialidade da revista e o enunciatário. Chartier (2002, p. 109) diz que “na cultura impressa, uma percepção imediata associa um tipo de objeto, uma classe de textos e usos particulares. A ordem dos discursos é assim estabelecida a partir da materialidade própria de seus suportes: a carta, o jornal, a revista, o livro, o arquivo, etc.”. As revistas são para serem lidas e descartadas, como mostra sua frágil encadernação. Mas Veja não dá a impressão de ser feita de material barato. Ela é brilhante, colorida, tem impressão de boa qualidade. Visa a um leitor que se deixa cativar pela aparência do produto, que consome não só informação, mas o objeto que a revista é — suscetível, portanto, a apelos consumistas.

4 Conclusões da análise

4.1 Cruzamento dos dados

O cruzamento dos dados obtidos das seções da revista mostra uma forte convergência na imagem do enunciatário. Em

Gláuks 74

todas as seções, ele é: (a) avesso a transformações sociais, conservador; (b) contrário à esquerda (ao grupo heterogêneo de agentes sociais designados, costumeiramente, de “esquerda”); (c) defensor do sistema econômico atual e do liberalismo; (d) aspirante à internacionalidade; (e) avesso ao “atraso” do Brasil e de seus vizinhos e admirador dos países ricos; (f) individualista; (g) de média intelectualização; (h) pragmático, dinâmico, pouco concentrado; (i) talhado pela ótica do mercado e do lucro; (j) desinteressado de aprofundamento analítico. Algumas características são mais enfatizadas em uma seção do que em outra, mas todas aparecem em todas as seções. Duas parecem-nos mais fortes: (i) e (j).

A recorrência de (j) revela uma forma de ganhar a adesão do enunciatário. Conforme Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p. 31), a argumentação para auditórios particulares é persuasiva e aquela para todo ser racional, convincente. A abordagem sem profundidade revela a intenção de persuadir, pois convencer exige lógica, razão, implica certa profundidade. No corpus, predomina a persuasão, o apelo ao pathos (seja pela agressividade, seja pelo humor). Isso faz pensar: 1) em um enunciatário que não lê para formar opinião, mas que já a tem formada e, ao ler, só quer ver suas opiniões no texto para, assim, entrar em conjunção com o universo de que ele quer ser parte; 2) que os textos dirigem-se a um nicho de leitores, a um enunciatário específico, já que a argumentação persuasiva, por seu recurso ao pathos, não age igualmente sobre todo leitor e limita sua eficiência a um grupo. Quanto a (i), é o enfoque que o enunciador considera adequado ao enunciatário. Sua regularidade nos surpreendeu: tamanha recorrência não figurava em nossas hipóteses. É o traço dominante do enunciatário de Veja.

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 75

4.2 Retornando às reflexões que motivaram este trabalho

As conclusões do último item nos deixariam tentados a declarar a solução do enigma proposto no início deste artigo: o produto cultural de massa dirige-se a um interlocutor em específico, e não a um sincretismo dos diversos grupos sociais. Cabe, porém, prevenir-se contra conclusões apressadas. Em primeiro lugar, analisamos um só objeto de estudo, espaço amostral pequeno para uma conclusão acerca de toda a produção cultural de uma sociedade. Em segundo lugar, a conclusão a que o cruzamento dos dados nos leva é mais complexa do que parece ser. Embora haja regularidade entre as seções de Veja, é preciso ver que essa regularidade recai sobre características amplamente generalizáveis no conjunto da sociedade. Por exemplo: o resultado (a) quase não restringe o perfil do enunciatário, pois é de se supor que, em uma sociedade estável, os indivíduos de quaisquer grupos tendam a ser conservadores e não revolucionários (já que não se veem revoluções todos os dias). Assim, o resultado (a) restringe tão pouco o perfil do enunciatário que não fornece argumento em favor da tese de que Veja se dirige a um grupo específico. O mesmo se pode dizer de (f) e (h), partes do perfil de muitos grupos sociais. O individualismo é necessário em um sistema competitivo e quem não o incorpora diminui suas chances de ter vida confortável no capitalismo. Dinamismo, pressa etc, também são consequências da economia competitiva, que cobra alto desempenho em várias situações. Condições como essas afetam de modo razoavelmente homogêneo a vida de, pelo menos, quase todo o Ocidente. O traço (g) amplia e não restringe o grupo de leitores almejado pela revista. Textos intelectualizados demais excluiriam boa parte dos leitores.

As características (b), (c), (d) e (i) são as que recortam mais profundamente o perfil do enunciatário. São recortes com

Gláuks 76

viés ideológico acentuado, cuja tônica é, de um lado, a defesa do livre mercado e, de outro, a associação da modernidade e da globalização com o universo empresarial. Essas características autorizam a concluir que Veja dirige-se a um grupo leitor mais ou menos específico. Esse grupo, porém, apesar de específico, é bastante amplo.

Essas considerações nos permitem refletir melhor sobre a questão de que gostaríamos de tomar parte. Embora o enunciatário de Veja corresponda a um amplo público leitor, ela não se dirige a um leitor “médio”. Em primeiro lugar, o modo como Veja se compõe não visa a uma simples “média dos homens”. Ela se volta, na verdade, a um arquétipo relativamente bem definido, um estereótipo burguês de “pessoa bem sucedida”. Expressões comuns na discussão sobre mass media como “público médio”, “homem médio”, “média dos gostos” fazem crer que o produto cultural é democrático, fala a todos do mesmo modo, refere-se a uma porção de humanidade comum a todo ser humano. Na verdade, pelo menos em Veja, o “médio” é o que muita gente deseja ser: a pessoa que “vence na vida” dentro do capitalismo. Não se trata, pois, de média alguma, mas de um construto social com forte acento ideológico.

Seria possível, porém, imaginar tal arquétipo prescindindo de características como (b) e (e). O fato de o enunciatário de Veja ter essas características mostra que ele é não só o homem que vence no mundo burguês, mas tem ainda outros traços, francamente reacionários. Ao invés de raciocinarmos, então, com a oposição entre produto dirigido ao público médio ou composto sincreticamente com referências a vários grupos específicos, parece melhor tratar da questão considerando que Veja toca muitos segmentos sociais, mas não do mesmo modo, nem de maneira neutra. Embora seja capaz de dialogar com diversos grupos, ela não atualiza valores específicos de cada um. Em vez disso, reforça valores caros à

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 77

manutenção do status quo de um modo que atinge a vários grupos. Para isso, todo produto cultural lida com uma contradição. Precisa, por um lado, atender demandas latentes na massa, que contêm todas as oposições que os grupos dessa massa têm entre si; e, por outro, precisa fazê-lo de modo a impor-se a esses grupos, ou a muitos deles, para ganhar mercado. Lidar com essa contradição obriga a indústria a racionalizar decisões para concretizar um produto cultural que atenda às demandas do lucro. Isso corrobora a posição de Adorno (1971, p. 287), para quem:

[...] ao ajuntar elementos de há muito correntes, ela [a indústria cultural] atribui-lhes uma nova qualidade. Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo. [...] A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores.

Essa racionalização da produção cultural levou Adorno e Horkheimer a abandonarem o termo “cultura de massa” para não fazer crer que essa cultura advém da massa. A indústria cultural (não mais a cultura de massa) lida com o que a massa traz de anseios, expectativas, angústias (como bem ilustra o enunciatário de Veja), buscando a sua adesão. Racionalizada e com vistas ao lucro, essa produção cultural confere a seus produtos um caráter singular:

Na medida em que nesse processo a indústria cultural inegavelmente especula sôbre o estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas às quais se dirige, as massas não são, então, o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo; acessório da maquinaria. O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, êle não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto. [...] A indústria cultural abusa da consideração com relação às massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade destas, que ela toma como dada a priori, e imutável. É excluído tudo pelo que essa atitude poderia ser transformada. As massas não

Gláuks 78

são a medida mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta última não possa existir sem a elas se adaptar. (ADORNO, 1971, p. 288).

Por ter a mentalidade de seu leitor como imutável e reforçar nele o que ele já é, por lhe repetir o que ele já pensa — por afirmar o status quo, enfim, é que Veja faz tantas afirmações indigestas sem justificá-las, pressupondo (em vez de buscando) a adesão do leitor; argumenta visando persuadir e não convencer; toma seu leitor por reacionário e coloca-o em conjunção com o mundo dos capitalistas bem sucedidos, dando-lhe o que ele quer: a ilusão de estar no clube do status quo. O enunciatário de Veja não é uma média ou um sincretismo dos grupos sociais, mas uma construção racionalizada para satisfazer as demandas de uma indústria.

A impressão que a análise nos deixa é a de haver, na nossa sociedade, um movimento que sintetiza os opostos da homogeneidade e da heterogeneidade. O capital homogeneíza grupos diversos, por um lado; por outro, esses grupos esforçam-se por diferenciarem-se para preservar (ou forjar) sua identidade. Essa oposição compõe a sociedade atual. Ela segue, ao que parece, no sentido de aprofundar a homogeneização, mas isso só o futuro dirá. No presente, temos um processo ainda por se encerrar de interação entre os grupos. A contradição viva na sociedade, ao mesmo tempo heterogênea e homogênea, é a base sobre a qual se criam produtos culturais como o que analisamos aqui.

Referências

ADORNO, T. A indústria cultural. In: COHN, G. (Org.). Comunicação e

indústria cultural. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

O Enunciatário da Revista VEJA: Contribuição para Discussões sobre... 79

CHARTIER, R. Morte ou transfiguração do leitor? In: Os desafios da

escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

DISCINI, N. O estilo nos textos: história em quadrinhos, mídia, literatura. 2.

ed. São Paulo: Contexto, 2004.

DUCROT, O. Princípios de semântica lingüística: dizer e não dizer. São

Paulo: Cultrix, 1977.

FIORIN, J. L. O ethos do enunciador. In: CORTINA, A.; MARCHEZAN, R.

C. (Orgs.). Razões e sensibilidades: a semiótica em foco. Araraquara:

Laboratório Editorial FCL/UNESP, 2004a.

___. O pathos do enunciatário. Alfa, São Paulo, v. 48, n. 2, p. 69-78, 2004b.

KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. 4. ed. São Paulo: Cortez,

1996.

LANDOWSKI, E. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. São

Paulo, SP: EDUC/Pontes, 1992.

MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2005.

PERELMAN, C. & OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da

argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

WILENSKY, H. L. Sociedade de massa e cultura de massa. In: COHN, G.

(Org.). Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 1971.

ABSTRACT: This work intends to “test” two theories about mass cultural products – one that understands them as syncretic and plural and another that sees them as homogenizators and aimed to a mixed audience. We chose Veja magazine as the object of this study and tried to understand how its internal sessions bring in their readers, with the goal of verifying whether readers shared characteristics. In the affirmative case, Veja would be directed to a specific reader; otherwise, it would be a syncretic cultural product. This answer should give us basis to reflect upon the opposition between both ways of thinking

Gláuks 80

about mass culture and help us take a stand on this discussion. Obviously, we do not intend to give a definitive answer to the opposition between these two tendencies. The limits of this work are given by the investigated object itself: we intend to verify empirically how Veja, as a cultural product, solves the contradiction that the co-existence of these two opposite theories point about mass society.

KEYWORDS: Culture industry. Mass culture. Ethos. Pathos. Enunciatee.

Data de recebimento: 27/03/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 81-103

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da Tradutologia?

Almost Everything or, Rather, Nothing: What Can Linguistics Expect from Translation Studies?

Roberto Mário Schramm Jr1

Ina Emmel2

RESUMO: O presente artigo tenciona apresentar uma reconsideração do ensaio clássico de Wolfgang Klein, – originalmente publicado em 1992, sob o título: O que os estudos da tradução podem esperar da linguística (Was kann sich die Übersetzungwissenschaft von der Linguistik erwarten)? Nós tentamos reverter a questão do artigo com a intenção de abordar a provocação de Klein – i.e. suas conclusões referentes à relativa impotência da tradutologia no que se refere à solução de seus problemas. Mais do que isso: nós procuramos desafiar as declarações de Klein acerca de os problemas da tradução não serem mais do que os próprios problemas da linguística. Nós propomos que a Tradutologia encontra-se em adiantado e célere estágio de obtenção de um estatuto de disciplina autônoma, ainda que sujeita à influência de metodologias externas. Nesse sentido, propomos a questão: O que a linguística pode esperar da tradutologia? Seguindo essa questão, nossos esforços estão dirigidos para a análise e crítica de certos paradigmas oriundos

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

2 Doutora em Teoria e Análise Linguística (Semântica) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Gláuks 82

da tradutologia: nomeadamente a tradutologia descritiva de autores como Holmes (2000) e Toury (1995). Tais considerações nos permitem sugerir algumas possíveis contribuições que a tradutologia orientada ao processo (TOP) pode empreender em favor da resolução de alguns dos mais elusivos problemas da linguística: aqueles que se referem à relação mundo e palavra.

PALAVRAS-CHAVE: Tradutologia e estudos da tradução. Estudos descritivos da tradução. Linguística da tradução. Estudos da tradução/tradutologia orientada ao processo. Protocolos de leitura em voz alta da psicolinguística.

1 Introdução

om este artigo, queremos discutir as interrelações entre linguística e tradutologia: suas afinidades e

divergências, bem como questões mais voltadas às hierarquias – qual conhecimento é mais fundamental, quem informa quem – domínios e autonomias que se interpõem na consideração de cada ramo da ciência. A discussão parte de uma reversão dos termos implicados pelo título de um artigo clássico de Wolfgang Klein, onde o linguista se perguntava: O que a tradutologia/ciência da tradução pode esperar da linguística? Perguntamos aqui, portanto, o que a linguística, ela mesma, pode – por outro lado – esperar da tradutologia e procuramos, inicialmente, produzir uma resposta a partir de uma análise – a contrapelo, parafraseando Benjamin – do próprio artigo de Klein, assim como de certas considerações afins que apreendemos de Eugenio Co�eriu, em trabalho igualmente clássico: Falsche und Richtige Fragestellungen in der Übersetzungtheorie – ou O Falso e o Verdadeiro na Teoria da

��

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 83

Tradução3. Procuramos dar segmento à discussão, considerando aspectos verificados na historiografia da ciência/teoria da tradução, nos quais a aproximação ou a divergência com a linguística se tenha manifestado, de modo a procurar encontrar os marcos que designam as fronteiras entre as duas disciplinas. Finalmente, consideramos a questão da autonomia dos estudos da tradução frente à linguística por meio de uma discussão dos argumentos de James S. Holmes (2000) e Gideon Toury (1995) – de seus paradigmas descritivos para o estudo e a pesquisa em tradução orientada ao processo.

No que completamos esse percurso, registramos algumas considerações acerca de uma possível contribuição dos estudos da tradução para os objetos da linguística e da linguística aplicada; bem como das implicações dessas hipotéticas contribuições para a autonomia mesma dos estudos da tradução frente aos estudos linguísticos. Diante disso, é justo que se diga que, não estamos tanto, aqui, dispostos a demarcar fronteiras nítidas e rígidas entre tais domínios, nem tampouco empreender uma descrição heráldica das precedências e pertenças nos domínios das linguísticas (puras ou aplicadas) e da tradutologia. Tencionamos, outrossim, verificar – frente à emergência imperativa dos estudos da tradução a partir das décadas de 1970/80 – a posição e dignidade desse novo arcanjo ente as hostes estabelecidas; seus poderes, fraquezas e propósitos; o que lhe é específico e o que deverá compartilhar; e – em suma – seus encargos e renúncias diante dos tronos e dominações da linguística do século XX.

3 Esse texto de Co�eriu, bem como o ensaio de Klein, estão ambos traduzidos para o

português, por Ina Emmel, e disponíveis na segunda edição bilingue dos Clássicos da Teoria da Tradução (vide bibliografia). Os textos foram, originalmente, objeto de análise da dissertação de Emmel: O Fazer Terminológico X o Fazer Tradutório. Uma Aplicação Prática na área de Especialidade: Tradutologia, de 1998.

Gláuks 84

2 O que poderia a tradutologia esperar da linguística?

Já se vão vinte anos desde a publicação original – 1992, nos prestigiados Zeitschrift für Literaturwissenschaft und Linguistik – do provocante artigo do linguista Wolfgang Klein, a quem já nos referimos. Não queremos, contudo, nos ater a essa efeméride e, tampouco, o conteúdo polêmico e provocativo a que aludimos estará desde logo evidente no título e na argumentação da peça de Klein. Se a provocação é, entretanto, elusiva no desenvolvimento, estará absolutamente explícita na conclusão – na qual Klein declara que “quase nada, ou melhor, quase tudo” – Fast nichts, bzw fast alles – pode a tradutologia esperar da linguística. Quase tudo por que haveria muito a ser oferecido e quase nada porque muito pouco, até então, se avançara nesse sentido:

Os problemas da tradutologia, na medida em que são de natureza sistemática e, portanto, suscetíveis à análise científica, são os problemas da própria linguística. E, no momento em que ela resolvê-los, eles também estarão solucionados para a tradutologia. Mas eles continuam sem solução e isto deveria ensinar os linguistas a terem um pouco de modéstia. Os problemas mais simples do traduzir nos mostram claramente o pouco que a linguística até hoje contribuiu para a solução de suas próprias e genuínas tarefas. (KLEIN, 2010, p. 337).

O juízo de Klein parece tão pouco lisonjeiro para os tradutólogos quanto para os linguistas e, levando-se em consideração que o autor já atuava, desde 1980, como diretor do Instituto Max Planck de Psicolinguística, não seria de se estranhar que tal provocação tenha sido efetivamente debatida e combatida nos tempos vindouros. Mas por que dizemos que a provocação ofende tanto a linguistas como a tradutores? Naturalmente, por que a proposição mesma de que os linguistas deviam ser mais humildes, tendo em vista que, segundo ele, não era pouco o que a linguística ignorava – que seus problemas

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 85

continuavam a não ter solução; – expõe o tradutólogo a uma posição muito mais humilde, duplamente humilde. Isso porque Klein, claramente, afirma que os problemas da tradutologia são os mesmos problemas da linguística, donde podemos implicar que a tradutologia, na medida em que “sistemática” e “suscetível à análise científica”, estaria, então, submetida e contida no núcleo de uma ciência em particular: a linguística, ela própria. Mas devemos acrescentar que, implicada na sua humilde condição de vassala da semântica e da sintaxe, à tradutologia se atribuiu, ali, uma insuficiência no tocante a não poder resolver, ou – supomos – nem ao menos ser capaz de participar da resolução dos problemas que, afinal, nem tampouco lhe pertencem. A tradutologia estaria, portanto, sujeita ao objeto da linguística e impotente no que se refere a contribuir para a resolução dos problemas que as ciências da linguagem não foram capazes de resolver. A tradutologia aguarda passiva e pacientemente pela solução desses problemas. Não contribui, porque seus problemas não seriam problemas dela mesma. Tutelada pela linguística, espera que a linguística providencie a solução de sua problemática.

3 Do significado da significação

Abandonemos, contudo, essa perspectiva de Klein; ou antes, procuremos responder a essa sua provocação com uma outra provocação. Consideremos, pois, inicialmente, a possibilidade de que a tradutologia, de fato, exista – i.e. que o fenômeno da tradução seja, efetivamente, suscetível a uma análise sistemática, que ele seja cientificamente apreensível. Se aceitamos esse primeiro passo, podemos muito bem aceitar também que, essencialmente, este estudo sistemático da tradução seria – nos termos do próprio Klein – orientado antes a um processo do que a um produto. Essa orientação ao processo,

Gláuks 86

por sua vez, consistindo na transposição, no ‘transporte’, na recriação de um significado – na sua passagem de um a outro contexto – sendo que esses contextos são evidentemente linguísticos no que se assemelham e idiomáticos no que diferem. Levemos em consideração, ainda que, em grande parte, os problemas que a linguística – segundo Klein – não consegue solucionar – e que assolam a tradutologia, são os problemas da semântica: a questão ainda em aberto de uma teoria geral do significado, uma elucidação final do misterioso processo pelo qual as palavras aderem ao mundo e significam a realidade.

Que a semântica seja – nessa concepção – o calcanhar de Aquiles da linguística “moderna”, o território, por excelência, do ignoramus na ciência da linguagem, o atestam vários momentos desse texto de Klein que, ora, seguimos de tão perto:

(i) Conceitos de significado existem muitos. […] Mas se nossas considerações acima forem pertinentes, então o que os linguistas têm a oferecer não faz jus a esse propósito, nem sequer às exigências mais elementares com as quais o tradutor se depara diariamente. (2010, p. 323).

(ii) Os semânticos estruturalistas embora expliquem como se pode fazê-lo, não o fazem. (2010, p. 329).

(iii) Pesquisar os problemas do traduzir, portanto, não exige ir além das tarefas próprias da linguística: certos conceitos de significado é que precisam ser esclarecidos, bem como quais os meios de expressão nas línguas examinadas que expressariam exatamente esses diferentes significados. De qualquer forma é isso que os linguistas fazem, ou deveriam fazer. (2010, p. 303).

(iv) O que precisa ser mantido constante é o significado. Mas alguns problemas residem aqui. Por exemplo, quando queremos preservar algumas peculiaridades formais nos textos literários […] normalmente não considerados como constituintes do significado, mesmo assumindo grande amplitude do conceito. (2010, p. 301).

Os diversos conceitos de significado que precisam ser esclarecidos dizem respeito às conflituosas disputas entre as

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 87

escolas linguísticas. Basta pensar “[…] nas divergências que podemos encontrar nas teorias semânticas (a Lógica, os Atos de Fala etc.) no que diz respeito ao ‘significado’” (EMMEL, 1997, p. 82). Os linguistas não encontram, pois, um consenso entre si, se mostram incapazes de esclarecer um conceito de significação que seja útil aos propósitos da tradução (1997, p. 84). Partindo de seus diferentes pressupostos acerca da natureza mesma do significado, ou bem se estabelece um ‘significado’ extralinguístico para a própria noção de significado, ou bem se define o significado no interior de um sistema linguístico, no qual – a rigor – haveria linguagem ainda que não houvesse mundo.

Outras variadas incompatíveis formulações de uma teoria do significado, advindas de uma intrincada rede de teorias científicas e filosóficas – o que nos sugere a decisiva anedota dos cegos e suas incompatíveis descrições de diferentes partes do mesmo elefante – atestam o terreno algo pantanoso que caracteriza a topografia dos domínios da semântica. Nesse sentido, uma teoria geral e unificada do significado parece algo ainda mais remoto do que a “teoria de tudo” que os figurões da física teórica perseguem – i.e. estamos provavelmente mais próximos de conciliar o minúsculo probabilista da mecânica quântica com a enormidade relativista da relatividade geral; do que formular uma definição aceitável (para todas as partes interessadas) do que, afinal, significa ‘significar’.

Ai de ti, linguista, posto que, refraseando Eugenio Co�eriu (2010, p. 267), fala-se por intermédio dos significados, mas os significados, eles mesmos não comunicam nada acerca da significação: “Eles [os significados] não pertencem ao conteúdo comunicado do texto. Eles são, muito mais, instrumentos para a comunicação deste conteúdo.” (CO�ERIU, 2010, p. 267). O significado poderia, sendo assim, dar conta de tudo, significar tudo exceto ele mesmo – ou melhor, tudo menos

Gláuks 88

o próprio processo de significação: esse deverá permanecer sempre elusivo. Ademais, o que aqui se descreve, neste exato momento, no espaço exíguo deste mesmo parágrafo que ora se oferece à leitura, o significado mesmo dessa significação se esvaindo diante de nossos próprios olhos, na opção que se faz por uma significação possível de ‘significado’.

De fato, a despeito de que se tenha usado a mesma palavra (significado) para, em português, traduzirmos o mesmo termo em alemão (Bedeutung) que Co�eriu e Klein empregam, não se pode deixar de observar, por outro lado, que tanto um autor como o outro querem significar “coisas” bastante distintas quando dizem Significado/Bedeutung. Do mesmo modo, para Gottlob Frege, ao qual ambos os autores se referem, o significado de Bedeutung tinha um sentido completamente diferente, justamente aquele de “referência” tal como se costuma traduzir em Frege, o cerne mesmo de seu próprio dispositivo de semântica formal na relação entre (Sinn) sentido e (Bedeutung) referência. Os problemas da semântica se expressam no interior do processo mesmo que pretendem descrever e, quando se exprimem, na superexposição do texto, capturados por uma textualidade, eles o fazem de maneira das mais desconcertantes: querem saber do sentido da referência, da referência do significado, do significado do sentido.

Se evitamos o imbróglio pela via da ironia é porque não saberemos decifrar o enigma. Aceitamos de bom grado a sina trágica da inevitabilidade da indeterminação do significado se pudermos, de algum modo, evitar o desafio da esfinge. Decifra-me ou eu te devoro: O que significa o significado? A ciência da linguagem, consistente e sistemática, assiste seus heróis irem sendo devorados: se construir uma teoria do significado significa esclarecer as relações entre linguagem e mundo, já se viu lançarem-se contra a esfinge os exércitos de ontólogos, fenomenólogos, sociólogos, filólogos, psicólogos; e, desses

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 89

discursos todos, já se viu emergirem e recorrerem às teorias semânticas. Todos os exércitos menos um. A tradutologia, lembramos, permanece na reserva. Permaneceu até agora – pelo juízo de Klein – impedida de se lançar contra o problema da significação que lhe é essencial. Nesse ponto, operamos nosso chiste: Não será esse o momento em que a tradutologia, afinal, poderá oferecer uma contribuição significativa para os problemas da linguística? Mas, se esse for o caso, perguntamo-nos, agora com toda a propriedade: O que pode a linguística esperar da tradutologia?

4 Quase tudo? Quase nada?

Acreditamos que a resposta para tal questão está implicada, primeiramente, naquilo que a própria linguística aplicada – ou, mais precisamente, a psicolinguística - teria sabido muito bem ensinar para a tradutologia: algo que Klein define como uma “orientação ao processo” em oposição a uma certa “orientação ao produto” oriunda das linguísticas “tradicionais” (2010, p. 298-303). Para ele, as linguísticas tradicionais e a “linguística estrutural moderna” orientaram seu foco para analisar o produto das capacidades linguísticas, enquanto, por sua vez os “[…] procedimentos orientados para o ‘processo’” eram caracteristicamente “[…] típicos da psicolinguística”, mas sendo “também encontrados na fonética, na análise conversacional, e nos métodos não menos importantes e, atualmente, particularmente utilizados para os testes das intuições dos falantes” (2010, p. 299). Klein acrescenta que:

Na tradutologia não se toma, normalmente, o processo como objeto de análise, mas sim o seu produto (o texto traduzido) e a sua relação com o texto original, que fornece o conteúdo a ser expresso. Aqui sim se situa um ponto de divergência em relação ao interesse normal da linguística. Pois na tradição dos estudos da linguagem analisamos declarações prontas, para

Gláuks 90

delas tirar conclusões sobre as normas que condicionam sua formação, e em última instância, sobre a natureza da capacidade linguística humana. Já na tradutologia trata-se da relação sistemática do confronto entre dois textos que, por um lado, se igualam pelo que expressam e, por outro, se diferenciam pelos meios com os quais expressam sua própria identidade. (2010, p. 301).

Reservemos esse “ponto de divergência”, que discutiremos assim que nos pusermos a tratar da autonomia das ciências da tradução, pois será nessa reserva que poderemos mostrar o estatuto da tradutologia enquanto ciência autônoma – seu domínio e essa própria singularidade de seu muito (in)definido objeto: o confronto de dois textos a construírem suas relações de identidade (fidelidade, equivalência) que são, a grosso modo, relações diferenciais entre textos que se igualam no que diferem e diferem enquanto se igualam. Quando acessarmos essa reserva, acessaremos a outra reserva da tradutologia enquanto possível doadora de significados para a linguística, co-operando na solução dos problemas da linguística, em cumplicidade com a linguística. Detetives de agências distintas e concorrentes, mas que podem estar unidas e colaborando para a solução de um caso mais complexo (e.g. o caso da significação).

Antes disso, contudo, queremos discutir a primeira sentença, a tópica, desse parágrafo de Klein que supracitamos. Mais precisamente, esse ponto em que diz ele que, na tradutologia, não se toma normalmente o processo como objeto de análise. Nossa argumentação discorda de tal ponto de vista na medida em que acreditamos que a tradutologia tem relevância e interesse na construção de uma teoria do significado, justamente porque sugere um modelo que permite inquirir o processo de significação, tomado a partir da muito dinâmica e processual identidade de seu objeto. Não se tratando, pois, – como

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 91

defendemos recentemente – de considerar os produtos “original” e/ou “traduzido”, mas de considerar “o vetor transacional da tradução, a flecha de duas pontas que liga uma ponta do processo à outra. O processo ele próprio, o eterno terceiro excluído nas dicotomias de nossa lógica representacionista” (SCHRAMM, 2011, p. 05). Talvez neste ponto, contudo, seja conveniente esclarecer a utilização dessas categorias de orientação ao produto e ao processo no seio mesmo da tradutologia.

Lembrando que Klein é um (psico)linguista e que publicou seu ensaio em 1992, gostaríamos de contrapor-lhe as opiniões acerca dessas particularidades com aquelas expressas por influente ensaio de James S. Holmes, cuja data de publicação original – 1972 – reforça a progressão de nossas efemérides.

5 Os nomes da tradutologia

Quarenta anos atrás, publicara Holmes: The Name and Nature of Translation Studies, título que poderíamos traduzir, sem elegância, mas com fidedignidade, como O(s) Nome(s) e Natureza(s) dos Estudos da Tradução/Tradutologia. O jogo de ambiguidades recriados no título em português “transcria” (sensu Haroldo de Campos) – traduz criativamente, muito embora sem engenho e arte, a própria ambiguidade dos muitos nomes dessa ciência da tradução que se via emergir. Holmes antecipava o inevitável confronto de seu modelo de estudos descritivos da tradução com os problemas da significação. Já os encontrara no panorama confuso que emergia do próprio estado de coisas das disciplinas que se dedicavam à tradução – cenário que se refletia na intertradução dos nomes dessas disciplinas e na impressionante diversidade de propostas e modelos de análise da tradução, cada qual significando um enfoque diverso.

Gláuks 92

Holmes trata da questão com fino humor “tradutológico” no que se refere a traduzir os muitos nomes de sua ciência: “Temos observado algumas tentativas de criar uma terminologia mais ‘erudita’, a maioria delas empregando ativamente o disciplinário sufixo -logia” como também em “Este é o caso do termo Übersetzungswissenschaft, construído tendo em vista o estabelecimento de um paralelo com Sprachwissenschaft, Literaturwissenschaft, e muitas outras Wissenschaften. 4 .” (HOLMES, 2000, p. 174). O chiste, na significação do(s) chiste(s), – i.e. as logias das tradutologias e as wissenschaften da Übersetzungswissenschaften, constituindo aquilo que percebemos como a melhor definição do que essa tradutologia ou ciência da tradução, essa disciplina de muitos nomes, pode oferecer para esclarecer os problemas da linguagem. Essa oferta, que já se encontra expressa na constituição necessariamente babélica e internacional de seu objeto (a tradução, obviamente) se refere ao estudo – sistemático até, se o quisermos – do fenômeno da significação em seu momento de passagem entre os idiomas. A(s) tradutologia(s) oferece(m) oportunidades de vislumbrar o processo de significação por meio da reflexão sobre a prática tradutória, de uma prática tradutória (auto)reflexiva e, sobretudo, por meio de uma inevitável capacidade de gerar subsídios para aquilo que já se definiu, de modo lapidar, como uma “linguística das línguas” (CO�ERIU, 2010, p. 257). Temos aqui, portanto, pelo menos quarenta anos de dados empíricos que a(s) tradutologia(s), em suas vertentes descritivas, vêm oferecendo em reposta às demandas e expectativas da linguística.

4 Tradução dos autores. Holmes escreveu: There have been a few attempts to create

more ‘learned’ terms, most of them with the highly active disciplinary suffix -ology.” […} “This is the term Übersetzungswissenschaft, constructed to form a parallel to Sprachwissenschaft, Literaturwissenschaft, and many other [sic] Wissenschoften.

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 93

Retornemos, entretanto, aos trechos de Holmes que havíamos prometido. Primeiramente acerca da orientação ao produto:

Os estudos descritivos da tradução (DTS) orientados ao produto, que tratam daquele campo de pesquisa que descreve as traduções existentes, tem sido, tradicionalmente, uma área importante para a pesquisa acadêmica voltada aos estudos da tradução. O ponto de partida dessa abordagem consiste na descrição de traduções individuais, ou em descrições textualmente focadas da tradução. Uma segunda fase dessa abordagem seria o da descrição comparativa da tradução, onde se empreenderá uma análise comparativa de várias traduções do mesmo texto, no mesmo ou em diversos idiomas. 5 (HOLMES, 2000, 176-177).

Interessante notar que a orientação ao produto dos descritivistas (DTS significa Descriptive Translation Studies) faz equivaler, num gesto que seria acompanhado pelo grande leitor de Holmes que é Gideon Toury, orientação ao produto à orientação ao texto-alvo, já que o texto-fonte, o original, é inapreensível para efeito de uma orientação ao produto no contexto tradutológico. Porque o original pertence a si mesmo e a sua apreensão sistemática, científica tem que se dar, primeiramente, no âmbito de outras logias, de outras Wissenschaften: nas Sprachwissenschaften, nas Literaturwissenschaften, nos estudos tradicionais da linguística e da literatura, que estão, como o original, ele mesmo, enclausurados no claustrofóbico enclausuramento da linguagem em um único idioma, em um único sistema. O texto alvo,

5 Tradução dos autores. No original: Product-oriented DTS, that area of research

which describes existing translations, has traditionally been an important area of academic research in translation studies. The starting point for this type of study is the description of individual translations, or text-focused translation description. A second phase is that of comparative translation description, in which comparative analyses are made of various translations of the same text, either in a single language or in various languages.

Gláuks 94

entretanto, está liberto dessa clausura. É o produto – supra(uni)idiomático (übereinzelsprachlich) – de um processo: do processo de ressignificação que a tradução promove.

Uma tradução nunca poderá ser compreendida num contexto que Co�eriu define como monolingual/einzelsprachlich. Se a orientação ao texto alvo apagar a memória do original – i.e. ignorar as condições de produção do produto –, o texto poderá estar perdido para a tradutologia. Isso ocorre porque o texto-alvo (o produto da tradução) assume o lugar do original na ocasião desse apagamento, de modo que, enclausurado na monolíngua (Einzelsprache), ele se torne uma fonte para considerações antes literárias ou linguísticas, do que tradutológicas. Assim, ainda que discordemos, podemos entender as razões pelas quais, transpondo o problema para a psicolinguística, Klein observara que, a despeito das diferenças entre o falar comum (a fonte, o falar original) e a tradução (o falar constrito, que produz o texto alvo), ele próprio não acreditava houvesse, em tais diferenças, algo que extrapolasse o alcance normal da Linguística. Justamente porque, na perspectiva da linguística, a análise de um texto produzido num determinado idioma é operada com o mesmo ferramental que será utilizado em um texto traduzido para o mesmo idioma.

6 You are the TOP: Tradutologia Orientada ao Processo

Os conceitos da linguística – no que se orientam ao produto – não sabem discernir as nuanças do processo de tradução, de transformação entre as línguas, por isso não podem enxergar a emergência de uma ciência autônoma da tradução. É como se, para a linguística, todos os textos fossem pardos. É como se um trecho de Machado e uma tradução de Sterne (em português ‘machadiano’) fossem dois gatos muito parecidos, mas de cores muito diferentes – e a linguística fosse daltônica. Por outro lado, quando retornamos para a concepção de Holmes,

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 95

no que concerne à orientação ao processo dos estudos (descritivos) da tradução, ficamos com a sensação de que o autor não vai para tão longe (da linguística) o quanto gostaríamos em sua definição:

Estudos Descritivos da Tradução (DTS) orientados ao processo dedicam-se a analisar o ato da tradução, – o processo, – ele próprio. O problema é aquilo que, exatamente, se passa na ‘ pequena caixa preta’ em que consiste a mente do tradutor, no momento em que está sendo criado um texto mais ou menos equivalente, numa outra linguagem. Tal problemática tem sido alvo de muita especulação por parte dos teóricos da tradução, mas não se tem visto muitas investigações sistemáticas desse processo, em condições ideais de laboratório. Admita-se que o processo é bastante complexo. Estando correto I.A. Richards, “pode se tratar de um tipo de evento que estará entre os mais complicados dentre os que produziu a evolução do cosmos”. Os psicólogos estão, entretanto, aperfeiçoando métodos cada vez mais sofisticados para analisar e descrever outros processos mentais de grande complexidade. É de se esperar, portanto, que, no futuro, também essa nossa área venha a ser investigada com a devida atenção, de modo a que se origine um novo ramo, que poderia se chamar de psicologia da tradução, ou psico-tradutologia.6. (HOLMES, 2000, p. 177).

Holmes admite a existência de um vasto campo de pesquisa voltada para o ato da tradução, uma sólida linha de estudos que se dedicaria a abrir a “caixa–preta” do processo

6 Tradução dos autores. Escreveu Holmes: Process-oriented DTS concerns itself with

the process or act of translation itself. The problem of what exactly takes place in the “little black box” of the translator’s “mind” as he creates a new, more or less matching text in another language; has been the subject of much speculation on the part of translation’s theorists, but there has been very little attempt at systematic investigation of this process under laboratory conditions. Admittedly, the process is an unusually complex one, one which, if I. A. Richards is correct, “may very probably be the most complex type of event yet produced in the evolution of the cosmos”. But psychologists have developed and are developing highly sophisticated methods for analyzing and describing other complex mental processes, and it is to be hoped that in future this problem, too, will be given closer attention, leading to an area of study that might be called translation psychology or psycho-translation studies.

Gláuks 96

tradutório. Todavia, o autor ainda insiste em atrelar o estudo processual da tradução ao modelo da psicolinguística, com um paradigma de cientificidade, por sua vez, orientado ao laboratório, às condições rígidas de controle. Continuamos atrelados, portanto, aos problemas da linguística, embora – tradutólogos – tenhamos conquistado um domínio próprio, a partir do qual somos capazes de participar do ataque a essa problemática. Todavia, podemos ainda perguntar-nos: O quão eloquentes serão nossos clamores por um campo próprio da tradutologia se dependemos dos métodos e procedimentos alheios?

Em nossa opinião, o (aparente) atrelamento da tradutologia orientada ao processo (TOP), à psicolinguística que Holmes (aparentemente) professava, é equivocada e desnecessária. Concebemos que é absolutamente necessário, por outro lado, abrir a “caixa-preta” da tradução, verificar os processos que subjazem a relação tradução-traduzido, no que se possa descrever o processo de produção da tradução ao invés da tradução como produto. Não aceitamos, contudo, que tal caixa-preta esteja localizada na “mente” do tradutor e que o processo de tradução, essa “cabeluda” complexidade, essa singularidade de proporções cósmicas, possa estar disponível aos eletrodos e ao maquinário dos neurologistas que, na imaginação de Holmes, parece povoar os laboratórios da psicolinguística, aliados a outros modernos e sofisticados métodos de investigação. Ademais, a mente é extremamente mentirosa, embora frequentemente inconscientemente mentirosa: ela mente, somente; ela só mente 7 . Para alguns filósofos da mente – desconfiemos deles – como Ryle (1949), é mentira que haja mentes. Temos consciências e devemos nos contentar com elas.

7 Refere-se aqui, subliminarmente, ao samba de Noel Rosa: “O que sei, somente,/ é

que você realmente,/ inconscientemente mente”, desafio dos mais eloquentes ao mentalismo.

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 97

A caixa-preta da tradução não se encontra nas mentes dos tradutores: ela está localizada nos destroços e nas ruínas do confronto entre o texto traduzido e o texto-fonte, a partir da análise do processo de tradução, que, embora elusivo e fugidio, se mostra, dá-se a conhecer na relação diferencial e multiligual que enlaça original e tradução. O tradutólogo deverá seguir os rastros do processo de tradução – e deverá fazê-lo a partir do texto-alvo confrontando-o com os universos paralelos da fonte - e, se houver, demais traduções. Importa verificar o paratexto, analisar o manuscrito. Podemos até verificar o encefalograma do tradutor, ou relacioná-lo à frequência cardíaca do sujeito, mensurados no ápice do ato tradutório. Mas tudo isso é secundário e importa, sobretudo, ler as entrelinhas do processo interlingual, que se adivinha da diferença entre original e tradução, entre língua de partida e língua de chegada. Saber ouvir um idioma ressoando no outro. A tradutologia demanda uma descrição desse processo.

Já tivemos a oportunidade de refletir acerca da TOP. Perguntamos, então: “Onde é possível flagrar a tradução em seu momento de perigo?” i.e. no salto interlingual de um a outro idioma, como calcular a trajetória diferencial da reconstrução do significado? Respondemos, então:

Onde mais se não na trajetória mesma do tradutor que, numa virada de jogo trikster, faz autoanálise de sua tradução tomar ares de rigorosíssimo método auto-reflexivo para o estudo da tradução enquanto coisa transformada, e reinventada. Pois quem mais, senão o próprio tradutor tem acesso à caixa-preta de sua própria tradução? (SCHRAMM, 2011, p. 06).

O estudo auto-reflexivo, metodologicamente orientado, com instrumentos de controle adequados, que o próprio tradutor efetua tendo em vista refletir sobre seu processo de tradução, consiste, de fato, em uma nova forma de pesquisa tradutológica autônoma que pode informar, sobremaneira, os problemas que a

Gláuks 98

linguística se propõe a investigar e que compartilha com a tradutologia. O linguista pode, aqui, esperar do tradutor dados importantes para os problemas semânticos aos quais já nos referimos – na medida em que, no que reflete sobre seu processo de tradução, o tradutor/tradutólogo descreve um processo de significação apreendido num contexto supra(uni)idiomático. Estamos seguros, por outro lado, que esse tipo de TOP não precisa estar atrelado a uma autoanálise do processo de tradução por parte do próprio indivíduo que traduz. O processo de tradução não é unívoco e não está, lembramos, na mente do tradutor, mas na relação diferencial que a tradução estabelece com a fonte, com as co-traduções, com os idiomas.

O tradutor é apenas mais um tradutólogo e o processo de sua própria tradução encontra-se tão eludido e indeterminado para o seu próprio escrutínio quanto para o de um observador “externo”. Possivelmente, o tradutor-tradutólogo é tão externo à sua tradução quanto qualquer outro estudioso da tradução. Sua vantagem está no acesso direto que o tradutor tem, se não a sua tradução, pelo menos a sua memória. O tradutor é uma testemunha, ele estava lá no momento do evento, e, por meio dessa eventualidade, dispõe de dados que sugerem verossimilhança e autoridade para a reconstrução do processo de tradução. Ocorre que, para esse modelo de TOP que perseguimos, importará menos reconstruir do que desconstruir o processo. O testemunho do tradutor é apenas um testemunho e a realidade de seu processo de tradução lhe será tão estranha quanto a obra literária é estranha e separada do autor. O tradutor pode acumular o encargo do tradutólogo, mas não pode renunciar à autoria de sua tradução. O tradutor é tanto um autor quanto um ator.

Se aceita como procedente, nossa leitura de uma TOP situada na trajetória diferencial da construção do significado no ato tradutório, no registro das transformações que esse processo

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 99

desencadeia, poderá informar à linguística sobremaneira, insistimos, no que diz respeito a compreender a significação. A Tradutologia, empoderada e autônoma, senhora de seu domínio, orientada ao processo e focada na produção de seu produto, cumpre um papel que os esforços combinados de uma linguística comparativa, uma linguística contrastiva, uma psicolinguística e uma linguística histórica ou diacrônica conseguiriam – com muito custo – ocupar: em vista da incompatibilidade de seus programas, do enclausuramento de seus métodos. Na tradutologia, está realizada a superação do ideal de uma Linguistik der Sprachen: uma “linguística das línguas” nos termos de Co�eriu (2010, p. 257), que, entretanto, submetia a problemática da tradução ao domínio da linguística comparada. A superação, acreditamos, consiste no fato de que, em nossa perspectiva de uma TOP, o fato de que a problemática da tradutologia é tematizada “sob a ótica dos significados expressos mediante sua confrontação” (2010, p. 257) designa um processo a ser averiguado, reconstruído e questionado. Designa, efetivamente o estatuto da tradutologia que, novamente apropriando-nos da terminologia de Co�eriu, supera a condição “monolingual/(uni)idiomático/einzelsprachlich” da pesquisa linguística e assume o caráter supra(uni)idiomático/ /übereinzelsprachlich”. A linguística não terá, senão pelo intermédio da TOP, acesso a essas relações diferenciais mesmas dos conceitos de Co�eriu que ora apareceram em tradução portuguesa. São, inclusive, essas relações de confronto multilaterais que se desprendem da opção por “monolingual versus (uni)idiomático” e “supraidiomático versus supra(uni)idiomático” enquanto soluções tradutológicas para “einzelsprachlich” e “übereinzelsprachlich” – a tensão entre língua e idioma como uma sinonímia assimétrica à tensão verificada pela transformação de einzelsprachlich em übereinzelsprachlich.

Gláuks 100

Uma TOP saberá formular hipóteses que descrevam o processo de tradução pela via das assimetrias e identidades, de simetrias e diferenças. E.g.: um movimento de aproximação ao contexto de monolinguismo para se aproximar do valores de Sprache [língua, idioma] e einzig [ímpar, uno, unigênito]; seguido por um gesto simultâneo de descaso com a preservação da estrutura Einzelsprache, que não se verifica na passagem de “(mono)língua” para “(supra)idioma”, mas que se preserva o significado essencial de língua/idioma em oposição a linguagem/sistema. A TOP se funda em uma leitura cerrada da ação tradutória, do acontecimento da tradução por meio das dinâmicas e padrões de transformações que o confronto das (supra)textualidades revela. A consistência de suas hipóteses vai sendo testada no decorrer da análise combinatória de seus achados. Tais estudos teriam, acreditamos, grandes possibilidades de superar as expectativas da linguística frente à tradutologia, oferecendo aos estudos linguísticos uma análise (supra)idiomática da construção do significado.

7 A TOP e as TAPs: (breves) considerações finais

Admitimos, entretanto, que nossa abordagem da orientação ao processo – pouco ortodoxa sob as óticas da psicolinguística de Klein e da tradutologia descritiva/polisistêmica professada por autores como Holmes, Even-Zohar, Toury, Lambert etc. – carece de uma sistematização e de um “ambiente controlado” que produza resultados atraentes ou válidos para os propósitos da linguística. Mas o mesmo poderia ser dito do mentalismo processual que professam psicolinguistas e polissistêmicos. A hipótese mesma dos polissistemas – no interior da qual, a nosso ver, a tradutologia vem se tornando, de direito, uma disciplina autônoma – é caracterizada por uma titanomaquia de

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 101

subsistemas literários conflitantes, que se desafiam entre si, infiltram-se, construindo e destruindo hierarquias. Esse comportamento leva historiadores da tradução, como Gentzler (2001, p. 116), a concluírem que os polissistemas do descritivismo se desenvolvem de forma sistematicamente “assistemática”: uma espécie de “caldeirão fervente”, onde se ferve a interpenetração dinâmica das textualidades. A esse caráter de estudo (a)sistemático, subscrevemo-nos.

Mas não estamos tão certos com relação aos modelos de experimentação descritivistas. Particularmente, em sua abordagem de uma TOP que se submete tão passivamente aos métodos da psicolinguística. É ambivalente, acerca disso, a posição de Gideon Toury, no que refletia sobre a introdução de métodos experimentais na tradutologia. Por um lado, Toury deplorava o fato de que se estava a aplicar no estudo da tradução os métodos dos mais diversos campos e disciplinas das quais os pesquisadores da tradução são oriundos (TOURY, 1995, p. 221), mas saudava a introdução de métodos empíricos e sua contribuição para a evolução da tradutologia. Admitia que sua introdução não evoluíra internamente dos paradigmas da tradutologia, mas não se fez de rogado ao submeter-se ao mentalismo psicolinguístico na sua defesa das técnicas de Thinking-Aloud Protocols (TAPs) como sumo exemplo de orientação ao processo.

TAPs trata de estudos laboratoriais, nos quais o sujeito da pesquisa (um tradutor, em nosso caso) verbaliza, em voz alta, “o que quer que lhe venha à mente”, sendo – idealmente – filmado e registrado todo o processo (1995, p. 234). Toury admite, contudo, que os protocolos de fala simultânea ao ato tradutório não garantem acesso direto ao processo “mental” de tradução (1995, p. 235), embora insista em afirmar que os TAPs devem oferecer dados relevantes para a psicolinguística. De nossa parte, discordamos dessa opção por situar nos processos

Gláuks 102

mentais a única via experimental de uma TOP e esperamos poder dizer mais a respeito das contribuições da tradutologia aos problemas da linguística, em geral e da significação; especificamente, na medida em que pudermos fundamentar uma alternativa viável de orientação ao processo tradutório que transcenda essa submissão metodológica aos protocolos da psicolinguística.

Referências

CO�ERIU, E. O falso e o verdadeiro na teoria da tradução. In:__. Clássicos da teoria da tradução: antologia bilingue. Trad. Ina Emmel. Florianópolis: UFSC/NPLT, 2010. p. 252-291.

EMMEL, I. Linguística e ciência da tradução: existe alguma relação? Cadernos de Tradução, Florianópolis, v.1, n.2, p. 75-85, 1997.

GENTZLER, E. Contemporary translation theories. Sidnei: Multilingual Matters, 2001.

HOLMES, J. S. The name and the nature of translation studies. In:__. The Translation Studies Reader. Londres/Nova Iorque: Routlege, 2000.

KLEIN, W. O que a tradutologia pode esperar da linguística. In:__. Clássicos da teoria da tradução: antologia bilingue. Tradutora Ina Emmel. Florianópolis: UFSC/NPLT, 2010. p. 292-339.

RYLE, G. (1949). The Concept of Mind. Chicago: University of Chicago Press, 1984.

SCHRAMM, R. M. Estudos da tradução orientados ao processo. In: Anais do Simpósio Internacional Linguagens e Culturas: homenagem aos 40 anos dos Programas de Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês da UFSC / Felício Wessling Margotti, Marta de Faria e Cunha Monteiro, Wagner Saback Dantas. (Orgs.). 1. ed. Florianópolis: UFSC/CCE, Programas de Pós- Graduação em Letras, 2011. Disponível em: <http://pos40anos.cce.ufsc.br/>.

TOURY, G. Descriptive Translation Studies – and beyond. Amsterdã/Filadelfia: Benjamin, 1995.

Quase Tudo, ou Melhor, Quase Nada: O que a Linguística Pode Esperar da... 103

ABSTRACT: This paper aims to reconsider Wolfgan Klein’s seminal essay, – originally published in 1992 under the title: What can translation studies expect from linguistics? We have tried to reverse the question in order to address Klein’s very own provocation – i.e. his conclusions concerning translation studies’ relative impotence towards the solution of its problems. Moreover, we are defying Klein’s statements regarding the problems of Translation Studies as being nothing more than linguistic’s own problems. We propose, rather, that Translation Studies are quickly growing to be a fully autonomous discipline, although still subjected to external methodologies. Hence, we are stating the counter-provocative question: What can linguistics expect from translation studies? Following the question, our efforts are directed to the analysis and critique of certain process-oriented paradigms applied to translation studies: namely from DTS authors such as Holmes and Toury. Such endeavors would allow us to suggest some possible contributions which process-oriented translation studies should be able to perform, concerning some of linguistics most profound questions – namely the particularly elusive semantic questions: the intricate status of the word-world enigmatic relationship.

KEYWORDS: Translation studies. Descriptive translation studies. Linguistics and translation. Process-oriented translation studies. Thinking-aloud protocols.

Data de recebimento: 27/03/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks 104

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 105-125

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o Discurso da

Gramática Tradicional e o Discurso Funcionalista

The Connective para + Infinitival Verb: A Comparative Analysis between the Discourse of Traditional

Grammar and the Functionalist Discourse

Valéria Adriana Maceis1

Maria Regina Pante2

RESUMO: O presente trabalho visa à análise das cláusulas iniciadas pela preposição para, denominada aqui como conectivo por introduzir orações, combinada a verbos na forma nominal do infinitivo em ocorrências do português falado – elocuções formais (aulas) e entrevistas. Buscamos, nesta pesquisa, comparar a abordagem que a tradição gramatical tem dispensado às construções topicalizadas pelo conectivo para + verbo infinitivo, com a visão de linguistas funcionalistas, os quais têm apresentado tal estrutura com usos e/ou demais sentidos não prototípicos, ou seja, não contemplados pelas gramáticas escolares, tradicionais. Para tanto, fez-se uso de conceitos acerca do conectivo para + verbo infinitivo proferidos pelo discurso de gramáticas como a de Evanildo Bechara, de Carlos Henrique da Rocha Lima e de Celso Pedro Luft. E, em

1 Mestranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Bolsista CAPES. 2 Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

(UNESP). Professora do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Gláuks 106

seguida, utilizaram-se também pesquisas do discurso funcionalista voltadas também às construções iniciadas pela estrutura em análise e elaboradas por linguistas como Maria Helena de Moura Neves, Mário Eduardo Martelotta, Nilza Barroso Dias, entre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Construções de para com o infinitivo. Gramática tradicional. Funcionalismo. Cláusulas finais. Português falado.

Introdução

s conectivos são elementos que corroboram para que a compreensão, a coesão e a comunicação

efetiva aconteçam entre os falantes, seja em um diálogo oral ou em um texto escrito. Tais conectivos manifestam-se por intermédio de preposições como o para – umas das “protagonistas” deste trabalho – assim como: a, de e com. Buscando tecer uma análise comparativa entre o discurso da gramática tradicional e o discurso funcionalista, propomos um estudo a respeito da estrutura composta pelo conectivo para + um verbo na forma nominal do infinitivo.

Para tanto, além de visitarmos os conceitos teóricos tanto da tradição gramatical quanto dos estudos funcionais com relação à estrutura em análise, investigamos também o modo como as construções - iniciadas pelo conectivo introdutor de cláusulas para + um verbo no infinitivo - apresentam-se em ocorrências do português falado.

Tais ocorrências foram extraídas de transcrições referentes a elocuções formais (aulas) e entrevistas com professores da Universidade Estadual de Maringá, material este

��

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 107

que faz parte do corpus de pesquisa do Funcpar – Grupo de Pesquisas Funcionalistas do Norte/Noroeste do Paraná.

Conforme veremos adiante, há determinadas cláusulas iniciadas pelo conectivo para + verbo infinitivo que, embora sejam consideradas, pela gramática tradicional, somente como indicadoras de finalidade, são vistas, por linguistas funcionais, como completivas de nomes ou, então, como adjetivas, uma vez que apresentam características que as retiram do campo de vinculação das orações tipicamente adverbiais.

Acreditamos que se fazem necessárias mais análises e maiores estudos acerca do assunto para que se amplie a visão restrita que a gramática tradicional, ainda muito utilizada nos bancos escolares, vem atestando a respeito do estudo de conectivos e de cláusulas, nesse caso, especificamente das construções com o conectivo para +verbo infinitivo.

1 A estrutura formada pelo conectivo para + verbo infinitivo segundo a gramática tradicional

Em termos gerais, conforme já mencionado, a tradição gramatical tem abordado as construções iniciadas pelo conectivo para + verbo no infinitivo sempre informando que estas introduzem orações indicadoras de objetivo, finalidade, ou seja, orações finais na forma reduzida do infinitivo. Vejamos, por exemplo, Rocha Lima (1972, p. 255 e 256):

De forma desenvolvida, as finais trazem no rosto uma das conjunções para que, a fim de que e que (com o sentido de para que) e verbo no subjuntivo: ‘Simulou doença para que o deixassem sair.’; ‘Trabalha muito, a fim de que nada falte à família.’; ‘Insisto que me digas a verdade.’ Menos usual é a conjunção porque (= para que): ‘Porque venças esse teu orgulho, é preciso muita humildade.’ Como reduzida, vai para o infinitivo precedido de para, a fim de e por: ‘Reze com fervor para / a fim de alcançar perdão.’

Gláuks 108

Luft (1979, p. 61 e 62), em sua Moderna Gramática Brasileira, afirma que

Essas orações expressam finalidade, destino ou objetivo do que se diz na oração principal e podem ser: 1) Desenvolvidas – introduzidas pelas locuções para que, a fim de que, porque (ant., cláss.) que, etc. Exs.: ‘Tudo fiz para que ele aprendesse.’; ‘Orai, porque não entreis em tentação.’, ‘Estava muito atento, [que não o enganassem]’; ‘Agiu com muita cautela, [que não o enganassem mais uma vez]’ – Esse que, por elipse da prep. para. Reduzidas do infinitivo – encabeçadas pelas preposições para; a e por ou a locução prepositiva a fim de: ‘Estuda muito para fazer bons exames.’; ‘Fez o que pôde por mudar a situação.’; ‘Recolheu-se [a refletir melhor no assunto]. Sem conectivo (justapostas) a subordinação expressa apenas pelo subjuntivo: ‘Tomou todas as precauções, não fosse mais uma vez prejudicado.]’; ‘Procure ser claro, não vá alguém interpretar mal]’.

Bechara (2009, p. 501) trata da estrutura para + verbo infinitivo também ao expor considerações a respeito das orações adverbiais reduzidas. O autor também não tece informação alguma - sobre essa estrutura - que vá além da indicação de objetivo, intenção, finalidade do pensamento expresso na oração principal. Ele apresenta as principais preposições que correspondem a “conjunções” subordinativas adverbiais, separando quais delas são mais frequentes em cada tipo de oração.

Tal autor traz, brevemente, o para + infinitivo na seção em que trata das preposições utilizadas em orações adverbiais finais reduzidas do infinitivo e, para ilustrar, expõe o exemplo: “Tudo isto diz o quadro a quem tiver olhos para ver, coração para sentir, entendimento para perceber”.

Said Ali (1964, p. 143), ainda que de modo breve, em sua Gramática Histórica da Língua Portuguesa, também já trouxe, ao expor considerações acerca das orações finais, informações a respeito das construções de para com o infinitivo, mas também nada além da noção prototípica de finalidade. Para

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 109

ele: “Prefere-se geralmente empregar a linguagem concisa da oração implícita, combinando a fim de ou para com o infinitivo: ‘Ganhava forças para aturar os rigores da Ordem’; ‘Dissimularam a sua arrogância a fim de serem logo admitidos’; ‘Para ser feliz, não basta possuir riquezas’.”

Com isso, conforme verificamos no discurso das gramáticas tradicionais expostas anteriormente, não foi encontrada informação alguma sobre a estrutura para + verbo infinitivo que ultrapassasse a ideia de finalidade, objetivo, intenção, prototipicamente, vinculada a essa estrutura.

Estudos atuais apontam para outros usos e/ou sentidos para tais construções de para com o infinitivo, conforme veremos na seção seguinte deste trabalho.

2 Uma visão mais funcionalista

Neves (2000, p. 885), em sua Gramática de usos do Português, na seção que trata das construções finais, acrescenta uma informação relevante com relação ao nosso trabalho:

Uma oração de para e infinitivo pode estar ligada a um núcleo nominal e então, ser completiva nominal, caso em que nem mesmo a acepção é de finalidade: - ‘É uma oportunidade PARA QUE ela possa libertar-se dos seus problemas e sentimentos negativos.’; ‘Terra em que o gênio de Assis Chateaubriand requintado no seu dom encontra clima PARA criar o Museu de Arte Moderna.’; ‘O entrevero com Maria Mimosa lhe dera tempo para recuperar a sua famosa calma dos movimentos de ação.’ (grifos nossos).

Dias (2005) investiga construções com para + infinitivo ao estudar especificamente as cláusulas de finalidade, no entanto, diferentemente dos gramáticos tradicionais, a pesquisadora apresenta uma abordagem funcional-discursiva. Ela divide as construções finais em dois grupos: [+ hipotáticas]

Gláuks 110

e [- hipotáticas] e dedica-se mais ao estudo das construções do primeiro grupo. Dentro desse grupo, das [+ hipotáticas], ela as separa em hipotáticas canônicas – aquelas que ocupam a posição posposta e que especificam e delimitam a informação contida na cláusula núcleo; e hipotáticas discursivas – que podem funcionar como tópico sentencial em relação à informação que a sucede e podem também estabelecer coesão discursiva entre as informações que as antecedem e as sucedem. Estas últimas, segundo a autora, podem aparecer antepostas ou em posição medial em relação à cláusula núcleo.

Torrent (2009) produziu um amplo e interessante trabalho acerca das construções de para com o infinitivo. Em sua tese de doutorado, ele analisa as cláusulas finais com essa estrutura, classificando-as como constituintes de uma família de construções. Ele descreve dezessete padrões interrelacionados de pareamento de forma e função e propõe que eles formem uma rede construcional que venha a abarcar quase todos os domínios construcionais para a combinação de cláusulas: adjunção, complementação, auxiliarização e perspectivização discursiva.

Segundo Martelotta (2001), cuja pesquisa serviu de base para nossa análise, a vinculação das cláusulas adverbiais não pode ser explicada pelo subprincípio icônico da proximidade de Givón (1990 apud MARTELOTTA, 2001). Para comprovar sua afirmação, Martelotta (2001) apresenta uma análise acerca das construções de para + verbo infinitivo em cláusulas finais com vinculação das cláusulas adverbiais, propondo novas alternativas de análise, calcadas na linguística cognitiva.

Tal estudioso vai mostrar que não há uma tendência geral em relação aos níveis de encaixamento que Givón (1990 apud MARTELOTTA, 2001) aplica em cláusulas objetivas diretas. Ele aponta para o fato de que há alguns poucos casos de cláusulas modais e finais que indicam auxiliarização, tipo de construção que apresenta grau de encaixamento relativamente avançado.

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 111

Ao tratar de cláusulas finais em geral, Martelotta (2001) cita uma proposta de um processo de gramaticalização em que ocorre a passagem de ir (movimento físico) para ir (marca de futuro). Acrescenta ainda que a noção espacial pode ser metaforizada como um movimento em direção a um objetivo, expresso por uma cláusula final. Exemplos: Ele vai para falar com o professor. – Ele vai falar com o professor. Acredita-se que o uso do verbo ir como indicador de futuro está de algum modo relacionado à estrutura das cláusulas finais.

Martelotta (2001) volta-se para a origem dos conectivos para (que) e a (que) e confere que, por terem origem latina em ad, preposição que indicava movimento, proximidade no espaço e atribuição, tais conectivos confirmam que um movimento físico em direção a um espaço determinado pode ser estendido para noções mais abstratas, finalidade, por exemplo.

Ainda de acordo com Martelotta (2001), há cláusulas finais introduzidas pelo conectivo para + verbo infinitivo consideradas não prototípicas, pois refletem gramaticalização na direção de uma maior integração, cláusulas estas para as quais voltamos nosso interesse neste trabalho. Calcando-se em determinadas considerações de Gorski (1999 apud MARTELOTTA, 2001) e de Salomão (1990 apud MARTELOTTA, 2001), Martelotta (2001) apresenta exemplos de cláusulas com a estrutura em estudo avaliadas como não prototípicas. Vejamos alguns deles:

a) “[...] como você pode dar escola se você não tem dinheiro para construir uma escola?”

b) “[...] os professores perdem um pouco o estímulo para dar aula...”

c) “A parte da minha casa em que mais gosto é a sala-de-estar, pois é nela que se tem um cantinho e uma luminária que é ideal para se ler um livro, assistir um filme, etc.”

d) “... ‘ah:: o nome dele é Arruda... André...’ eu falei ‘ih... arruda é pra tirar olho grande... [...]”

Gláuks 112

Esses exemplos evidenciam que, de fato, apesar da estrutura para + infinitivo, típica das cláusulas finais com ideia de finalidade, eles não se enquadram no que se pode considerar uma final prototípica: não há, na cláusula anterior, uma ação à qual se possa relacionar a finalidade expressa pela cláusula grifada. Ao contrário, as cláusulas destacadas em (a) e (b) parecem penetrar no sintagma nominal, podendo ser interpretadas como se referindo aos nomes “dinheiro” e “estímulo”, o que denota assim função de caráter adjetivo, como acredita Gorski (1999 apud MARTELOTTA, 2001), ou então também podem ser tratadas como completivas nominais, como prefere o próprio Martelotta (2001).

No que tange à cláusula destacada no exemplo (c), Martelotta (2001) também classifica como uma completiva nominal, dessa vez, porém, relacionada a um adjetivo (ideal) e não mais a um substantivo como nos exemplos (a) e (b). Em (d), a cláusula destacada, originalmente final, encaixa-se à antecedente, assumindo função de predicativo.

Vemos, com isso, que, de acordo com linguistas do discurso funcionalista, as construções iniciadas por para + verbo infinitivo apresentam, muitas vezes, características que as retiram da classificação restrita e tradicional: “oração subordinada adverbial final reduzida de infinitivo.”

Na próxima seção, mostraremos a investigação realizada por meio de ocorrências do português falado referentes a elocuções formais (aulas) e entrevistas com professores da Universidade Estadual de Maringá, a fim de verificar se encontramos essa não prototipicidade das cláusulas finais introduzidas por para + verbo infinitivo, apontada por Martelotta (2001), também nesse gênero de variedade oral.

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 113

3 Análise linguística

Para a análise, faz-se necessário destacar que, quanto à forma, as ocorrências analisadas, iniciadas pela preposição para, também apareceram com a forma reduzida pra, muito comum na oralidade. No que tange às respectivas configurações sintáticas das construções em análise, elas foram distribuídas em quadros que as separam, primeiramente, em função das aulas das quais elas foram extraídas; logo após, foram separadas em introdutoras de cláusulas finais não prototípicas - completivas nominais de substantivo (para Martelotta) / adjetivas (para Gorski) e completivas nominais de adjetivo, conforme visto em Martelotta (2001). Não foi encontrado, em nosso corpus, exemplo algum com para + verbo infinitivo que iniciasse uma cláusula final não prototípica com função de predicativo.

Quadro 1 - Disposição das ocorrências referentes às aulas das quais estas foram extraídas

Nºs dos exemplos

Ocorrências Aulas

01 “só .. que alguns .. pesquisadores .. éh:: .. não admitiam isso, .. e aí eles foram .. desenvolve::ndo, .. e pesquisa::ndo teorias, .. pra explicar a origem da vida. [...]”

Aula de Biologia

02 “.. é legal pra fixar.” Aula de Biologia

03 “.. também fica fácil pra vocês ir anota::ndo,”

Aula de Biologia

04 “. vou fazer um experimento pra testar,” Aula de Biologia

05

“no::ssa .. esses microorganismos são muitos simples pra fazerem reprodução,”

Aula de Biologia

06 “. aí eles voltaram a usar a abiogênese .. pra explicar .. o surgimento dos microorganismos.”

Aula de Biologia

Gláuks 114

07 “então ali tinha condições .. químicas e físicas .. pra .. se .. formar .. as primeiras moléculas orgânicas.”

Aula de Biologia

08 / 09

“.. e não tinham uma maquina::ria célula::r,.. uma célula desenvolvida, .. pra conseguir seu próprio alimento .. pra fazer um processo de síntese .. ok?”

Aula de Biologia

10 “.. não havia moléculas orgânicas suficientes, .. para sustentar a multiplicação dos primeiros seres vivos.”

Aula de Biologia

11 “.. amanhã a gente vai fazer exercício pra ficar claro isso também.”

Aula de Biologia

12

“.. nós vamos ver .. as teorias que foram criadas ao longo da história, .. para se explicar a evolução da espécie.”

Aula de Biologia

13 “.. esse pescoço ia ficando maior, .. pra pode comer as folhas da copa da árvore,”

Aula de Biologia

14 “.. nós produzimos ca::na para gerar o famoso e conhecido .. álcool.”

Aula de Geografia

15

.. “ué nós não temos dinheiro pra concretar isso aqui,”

Aula de Geografia

16 .. vocês te/terão o material aí pra fazer .. esse trabalho,”

Aula de Psicologia

17 “.. eles pegam só os dados mais significativos né .. pra comentar,”

Aula de Psicologia

18 “.. então.. tem que/ você mesmo tem que fazer um esforço pra ir melhorando.”

Aula de Matemática

19 /20/ 21 “.. todo mundo tem muito ainda .. pra .. crescer, .. pra aprender, .. pra melhorar .. na escrita .. né.”

Aula de Matemática

22 “.. então quer dizer que .. TEMPO vocês tiveram, .. pra-pra-pra estudar pra prova.”

Aula de Matemática

23 “.. bom .. agora vamos procurar .. a solução .. particular... pra procurar a solução particular .. como é mesmo o raciocínio?”

Aula de Matemática

24 “.. olha .. pra vocês aprender matemática. .. num pode ter .. preguiça,”

Aula de Matemática

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 115

25

“.... bom .. aqui nós temos uma classificação bem diDÁtica, .. pra vocês .. vizualizarem bem a difere::nça .. de/de soluções ..”

Aula de Farmácia

26 “... ta .. ó .. nós temos/ pra .. pra introduzir vocês no estudo de suspensões, .. nós temos que considerar o caso ideal .. que é sempre imiscível.”

Aula de Farmácia

27

“.. a chance de entrar em contato é muito maior .. do que partículas maio::res que zero micrômetro ou zero cinco micrômetro, .. que vão ter uma área superficial aí menor, .. pra entrar em contato com as papilas gustativas ou com os detectores degustativos.”

Aula de Farmácia

28 “.. eu tenho que deixar .. suspenso .. pra elas se tornarem mais estáveis,”

Aula de Farmácia

29

“.. além lá do uso exte::rno do interno .. vai ter que colocar agite antes de usar, .. pra u::niformizar .. a formulação em termos de .. das partículas que estão dispersas.”

Aula de Farmácia

30

“.. então com a agitação eu consigo .. homogeneizar a suspensão, .. e eu consigo ta::mbém .. fazer o quê? .. diminuir a viscosidade da suspensão, .. nós vamos ver o que é isso daqui a pouco... pra faciliTAR .. o es-coamento, .. e .. consequentemente retirar a do::se do medicamento..... okay?”

Aula de Farmácia

31

“.. nós vamos ter que fazer re/ éh:: recorrer .. ao agente molhante, .. pra então .. chama::r/ facilita::r .. a molhabilidade dessas partículas.”

Aula de Farmácia

32

“.. vão adicionar glicerina ou vaselina .. pra facilitar a molhabilidade.”

Aula de Farmácia

33 “.. vocês concordam que essas/ cargas negativas vão começar a atrair cargas pos/ positivas pra neutralizar?”

Aula de Farmácia

34 “.. em alguns casos a gente pode fazer isso, .. mas na maioria das vezes a gente vai aumentar .. a densidade, .. pra diminuir essa diferença .. tá?”

Aula de Farmácia

Gláuks 116

35 “.. mas as condições em que aquela família tá podendo viver não tão sendo .. suficientes pra .. garantir uma criança saudá::vel, .. uma criança .. com condições emocionais .. razoáveis e etc né,”

Entrevistas

36 “... é importante ter essa legislação pra regulamentar,”

Entrevistas

37 “.. então aqui nós fazemos essa caracterização inicial do efluente pra saber como .. ele está.”

Entrevistas

38 / 39 “.. por isso .. nós realizamos esse tratamento combinado, ... pra atenuar a matéria orgânica / pra depois realizar .. a foto-catálise,”

Entrevistas

40 “.. então .. porque são 10 minutos apenas né, .. pra você tratar 500 ml de efluente,”

Entrevistas

Quadro 2 - Disposição das ocorrências não prototípicas, conforme suas categorias

Construções com para + infinitivo consideradas não prototípicas Completivas nominais de

substantivo (para Martelotta); Adjetivas (para Gorski)

Completivas nominais de adjetivo

(1) “só .. que alguns .. pesquisadores .. éh:: .. não admitiam isso, .. e aí eles foram .. desenvolve::ndo, .. e pesquisa::ndo teorias, .. pra explicar a origem da vida. [...]”

(2) “.. é legal pra fixar.”

(4) “. vou fazer um experimento pra testar,”

(3) “.. também fica fácil pra vocês ir anota::ndo,”

(6) “aí eles voltaram a usar a abiogênese .. pra explicar .. o surgimento dos microorganismos.”

(5) “no::ssa .. esses microorganismos são muitos simples pra fazerem reprodução,”

(7) “então ali tinha condições .. químicas e físicas .. pra .. se .. formar .. as primeiras moléculas orgânicas.”

(10) “.. não havia moléculas orgânicas suficientes, .. para sustentar a multiplicação dos primeiros seres vivos.”

(8) e (9) “.. e não tinham uma (13) “.. esse pescoço ia ficando maior,

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 117

maquina::ria célula::r, .. uma célula desenvolvida, .. pra conseguir seu próprio alimento .. pra fazer um processo de síntese .. ok?”

.. pra pode comer as folhas da copa da árvore,”

(11) “.. amanhã a gente vai fazer exercício pra ficar claro isso também.”

(26) “... ta .. ó .. nós temos/ pra .. pra introduzir vocês no estudo de suspensões, .. nós temos que considerar o caso ideal .. que é sempre imiscível.”

(12) “.. nós vamos ver .. as teorias que foram criadas ao longo da história, .. para se explicar a evolução da espécie.”

(27) “.. a chance de entrar em contato é muito maior .. do que partículas maio::res que zero micrômetro ou zero cinco micrômetro, .. que vão ter uma área superficial aí menor, .. pra entrar em contato com as papilas gustativas ou com os detectores degustativos.”

(14) “.. nós produzimos ca::na para gerar o famoso e conhecido .. álcool.”

(28) “.. eu tenho que deixar .. suspenso .. pra elas se tornarem mais estáveis,”

(15) “.. ué nós não temos dinheiro pra concretar isso aqui,”

(35) “.. mas as condições em que aquela família tá podendo viver não tão sendo .. suficientes pra .. garantir uma criança saudá::vel, .. uma criança .. com condições emocionais .. razoáveis e etc né,”

(16) “.. vocês te/terão o material aí pra fazer .. esse trabalho,”

(36) “... é importante ter essa legislação pra regulamentar,”

(17) “.. eles pegam só os dados mais significativos né .. pra comentar,”

(18) “.. então.. tem que/ você mesmo tem que fazer um esforço pra ir melhorando.”

(22) “.. então quer dizer que .. TEMPO vocês tiveram, .. pra-pra-pra estudar pra prova.”

(23) “.. bom .. agora vamos procurar .. a solução .. particular. .. pra procurar a solução particular .. como é mesmo o raciocínio?”

Gláuks 118

(24) “.. olha .. pra vocês aprender matemática. .. num pode ter .. preguiça,”

(25) “.... bom .. aqui nós temos uma classificação bem diDÁtica, .. pra vocês .. vizualizarem bem a difere::nça .. de/de soluções ..”

(29) “.. além lá do uso exte::rno do interno .. vai ter que colocar agite antes de usar, .. pra u::niformizar .. a formulação em termos de .. das partículas que estão dispersas.”

(30) “.. então com a agitação eu consigo .. homogeneizar a suspensão, .. e eu consigo ta::mbém .. fazer o quê? .. diminuir a viscosidade da suspensão, .. nós vamos ver o que é isso daqui a pouco. .. pra faciliTAR .. o es-coamento, .. e .. consequentemente retirar a do::se do medicamento..... okay?”

(31) “.. nós vamos ter que fazer re/ éh:: recorrer .. ao agente molhante, .. pra então .. chama::r/ facilita::r .. a molhabilidade dessas partículas.”

(32) “.. vão adicionar glicerina ou vaselina .. pra facilitar a molhabilidade.”

(33) “.. vocês concordam que essas/ cargas negativas vão começar a atrair cargas pos/ positivas pra neutralizar?”

(34) “.. em alguns casos a gente pode fazer isso, .. mas na maioria das vezes a gente vai aumentar .. a densidade, .. pra diminuir essa diferença .. tá?”

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 119

(37) “.. então aqui nós fazemos essa caracterização inicial do efluente pra saber como .. ele está.”

(38) e (39) “.. por isso .. nós

realizamos esse tratamento

combinado, ... pra atenuar a

matéria orgânica / pra depois

realizar .. a foto-catálise,”

(40) “.. então .. porque são 10

minutos apenas né, pra você

tratar 500 ml de efluente,”

Quadro 3 - Informativo de quantidade – cláusulas finais prototípicas e não prototípicas encontradas

Construções não prototípicas com a estrutura para + verbo

infinitivo

Quantidade

Completivas nominais de substantivo (para Martelotta);

Adjetivas (para Gorski)

27 (67,5%)

Completivas nominais de adjetivo

10 (25%)

Outras completivas 3 (7,5%) Total 40

Quadro 4 - Informativo de quantidade - cláusulas finais não prototípicas encontradas: completivas nominais de substantivo (para Martelotta); Adjetivas (para Gorski) e completivas nominais de adjetivo

Ocorrências encontradas Quantidade Prototípicas 85 (68%)

Não prototípicas 40 (32%) Total 125

Gláuks 120

Conferimos, então, que, das 125 ocorrências com o conectivo para + verbo infinitivo encontradas em nosso corpus, 40 (32%) referem-se a cláusulas finais não prototípicas, as quais propõem um uso que dificilmente encaixar-se-ia nos moldes categoriais da gramática tradicional. Com relação à classificação dessas cláusulas, vimos que, conforme nossa análise, a maioria delas se relaciona a um sintagma nominal, e não a uma ação, como assim o fazem as finais prototípicas, ou seja, a maioria pode ser classificada como completiva nominal de substantivo (para Martelotta) / adjetiva (para Gorski).

As completivas nominais de adjetivo dizem respeito a 25% das não prototípicas encontradas. Vemos que essas cláusulas finais não prototípicas completivas nominais de adjetivo (todas de para com infinitivo) funcionam como uma espécie de complemento dos adjetivos das cláusulas anteriores.

As construções (2), (3), (5), (10), (13), (26), (27), (28), (35) e (36) referem-se, respectivamente, aos adjetivos: “legal”, “fácil”, “simples”, “suficientes”, “maior”, “ideal”, “menor”, “suspenso”, “suficientes”, “importante”. Ou seja, a impressão que temos é a de que tais construções não apresentam níveis de vinculação (voltados aos verbos, principalmente) típicos de adverbiais finais. Como acredita Martelotta (2001), essas ocorrências parecem indicar um processo de gramaticalização segundo o qual a cláusula, originalmente final, encaixa-se ao elemento de natureza nominal antecedente, passando a caracterizá-lo.

As ocorrências analisadas consideradas não prototípicas – completivas nominais de substantivo (para Martelotta) / adjetivas (para Gorski) – 67,5% das construções encontradas – nºs: (1); (4); (6) a (9); (11); (12); (14) a (18); (22) a (25); (29) a (34) e (37) a (40), como vimos nos quadros 1 e 2 anteriores, sempre se referem a substantivos. São eles, respectivamente, “teorias”; “experimento”; “abiogênese”; “condições químicas e

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 121

físicas”; “maquinaria celular / célula desenvolvida”; “exercício”; “teorias que foram criadas ao longo da história”; “cana”; “dinheiro”; “material”; “dados mais significativos”; “esforço”; “tempo”; “raciocínio”; “preguiça”; “classificação bem didática”; “(o rótulo) ‘agite antes de usar’”; “viscosidade da suspensão”; “agente molhante”; “glicerina ou vaselina”; “cargas positivas”; “densidade”; “caracterização inicial do efluente”; “tratamento combinado” e “10 minutos”.

Essas construções são vistas como adjetivas (Gorski), mesmo não dispondo de um pronome relativo, pois, ao se referirem ao nome “teorias”, assumem aparentemente uma função de caráter adjetivo. Vemos: (1) “só .. que alguns .. pesquisadores .. éh:: .. não admitiam isso, .. e aí eles foram .. desenvolve::ndo, .. e pesquisa::ndo teorias, .. pra explicar a origem da vida.” – a cláusula destacada caracteriza o nome “teorias”. Não são quaisquer “teorias”, mas sim aquelas “explicativas da origem da vida”, ou em uma estrutura bem própria das adjetivas: teorias “que explicam a origem da vida.”

Analisemos alguns dos outros exemplos: (4) “.. vou fazer um experimento pra testar,”: a cláusula de para com o infinitivo está relacionada ao substantivo “experimento”, e não à ação de fazer em si, o que denota uma construção final não prototípica completiva nominal de substantivo (para Martelotta). Ou, ainda, se a considerarmos uma cláusula que caracteriza o substantivo “experimento” (“vou fazer um experimento ‘que teste’; ‘testador’”), teremos uma construção adjetiva (como quer Gorski). No exemplo (18): “.. então.. tem que/ você mesmo tem que fazer um esforço pra ir melhorando.”, temos um substantivo abstrato “esforço”, relacionado à cláusula de para com infinitivo, também denotando função de complemento nominal de substantivo ou função adjetiva – “[...] um esforço que melhore (as coisas); um esforço ‘melhorador’”.

Gláuks 122

Um exemplo como o seguinte, que não foi inserido entre os demais por se tratar de um caso com cláusula final de para com o infinitivo prototípica: “.. manipularam pra plantar lá,” (aula de Geografia), evidencia a diferença que há entre ele e os anteriormente analisados. Vemos que, nesse caso, a cláusula “pra plantar lá”, de fato, indica a finalidade de “manipular” algo, isto é, tal construção está voltada à ação do verbo “manipular”, podendo assim ser realmente classificada como uma adverbial final.

Não nos estenderemos nas explicações dos demais exemplos de não prototípicas - completivas nominais de substantivo (para Martelotta) / adjetivas (para Gorski) por entendermos que a análise seria feita praticamente de forma igual às que já foram descritas referentes aos exemplos (1), (4) e (18).

Em tais análises, não elencamos propositalmente os exemplos (19), (20) e (21) por acreditarmos que eles parecem dispor de uma outra estrutura que difere daquelas já mencionadas; são também classificadas como completivas nominais; não mais referentes, porém, a substantivos ou adjetivos, mas sim a advérbios, ou melhor, ao advérbio de intensidade “muito”. Vejamos: “.. todo mundo tem muito ainda .. pra .. crescer, .. pra aprender, .. pra melhorar .. na escrita .. né.”

A partir dos exemplos listados que dizem respeito às completivas nominais de adjetivo, conferimos também que boa parte deles se refere a adjetivos de cláusulas anteriores (nucleares) formadas por verbo de ligação (ser) ou de estado (ficar), como em (2), (3), (5), (13), (35) e (36). Isso talvez se deva ao fato de que esses verbos, normalmente, necessitam ser completados por predicativos, os quais, por sua vez, muitas vezes são representados por adjetivos: (2): “.. é legal pra fixar.”

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 123

- (verbo SER + adjetivo LEGAL, requerendo assim uma cláusula a seguir que, aparentemente, complete tal adjetivo.

Analisemos o seguinte exemplo: “.. ah:: devia ter trazido um jornal pra vocês .. um:: .. que eu tenho em casa, .. que mostra lá a questão dos agricultores pê da vida com a Monsanto,” (aula de Geografia). Deparamo-nos com tal exemplo também no corpus analisado e esse nos chamou atenção por tratar-se de uma adjetiva prototípica e que, se a transpusermos para a estrutura própria das finais em questão, ou seja, com para + infinitivo, ela recairia exatamente em uma construção como aquelas analisadas nos exemplos que dizem respeito às cláusulas finais não prototípicas completivas nominais de substantivo e/ou adjetivas: “.. ah:: devia ter trazido um jornal pra vocês .. um:: .. que eu tenho em casa, .. para / pra mostrar lá a questão dos agricultores pê da vida com a Monsanto,” A cláusula em destaque está relacionada ao substantivo “jornal”.

Acreditamos que tal exemplo vem só para reforçar que, de fato, construções finais não prototípicas com para + infinitivo podem, sim, desempenhar função própria de adjetivos, podendo também ser classificadas como completivas nominais de substantivos e também como completivas nominais de adjetivos, conforme já exposto anteriormente.

4 Considerações finais

Por meio da comparação realizada entre o discurso da tradição gramatical e o discurso funcionalista, e também mediante a análise linguística das ocorrências do português falado, confirmamos que as cláusulas introduzidas pela estrutura estudada nesta pesquisa, muitas vezes, relacionam-se não somente com verbos, mas também com substantivos, com

Gláuks 124

adjetivos e até mesmo com advérbios - por vezes contidos nas cláusulas nucleares. Conferimos, ainda, que essas relações não prototípicas estão presentes também na linguagem oral, não se restringindo, portanto, a ocorrências de língua escrita.

Por fim, compreendemos a importância que há em revermos muitos dos conceitos tidos como “fechados” e “estáticos” ou, muitas vezes, limitados pelo discurso da gramática tradicional. No caso deste trabalho em específico, conferimos que as construções introduzidas pelo conectivo para + verbo infinitivo nem sempre denotam casos prototípicos de cláusulas finais – “cláusulas adverbiais finais reduzidas”, como descreve pura e simplesmente a tradição gramatical; há muito mais para se analisar, estudar, explorar...

Referências

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

DIAS, N. B. Cláusulas de finalidade: relações gramaticais convergentes e divergentes na fala e na escrita. Anais do GEL. Estudos Linguísticos XXXIV, p. 527-532, 2005.

LUFT, C. P. Moderna gramática brasileira. 3. ed. Porto Alegre: Globo, 1979.

MARTELOTTA, M. E. Vinculação em cláusulas adverbiais: uma análise de cláusulas finais. Revista Scripta. Belo Horizonte: PUCMinas, v. 5, n. 9, p. 54-66, 2º sem. 2001.

NEVES, M. H. M. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa da Língua Portuguesa. 15. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972.

SAID ALI, M. Gramática secundária e gramática histórica da língua portuguesa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1964.

O Conectivo para + Verbo Infinitivo: Uma Análise Comparativa entre o... 125

TORRENT, T. T. A rede de construções em para (SN) infinitivo: uma abordagem centrada no uso para as relações de herança e mudança construcionais. 2009. Tese (Doutorado em Linguística). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.

ABSTRACT: This paper aims at analyzing clauses beginning with the preposition para, named here as connective, for introducing clauses that go with verbs in the infinitive form in spoken occurrences, in the Portuguese language, in formal elocutions (classes) and interviews. We intend to compare the approach that the grammatical tradition has dispensed – with constructions introduced with the connective para + infinitival verb – with the functionalist linguists’ viewpoint – who have discussed other non-archetypal usages and/or meanings for this structure, in other words, not observed in schools or traditional grammar books. In this way, we look at different concepts of the connective para + infinitival verb illustrated in well known grammar books, such as the ones by Evanildo Bechara, Carlos Henrique da Rocha Lima and Celso Pedro Luft. Afterwards, looked at functionalist studies, such as the ones by Maria Helena de Moura Neves, Mário Eduardo Martelotta, Nilza Barroso Dias, among others, on the same type of construction.

KEYSWORDS: Constructions with para with the infinitive. Traditional grammar. Functionalism. Clauses. Spoken Portuguese.

Data de recebimento: 25/03/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks 126

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 147-168

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de Línguas Estrangeiras1

The Importance of the Intercultural Feature in Foreign Language Teaching

Thami Amarilis Straiotto Moreira2

Carla Janaína Figueredo3

RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir o papel da cultura no ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras. Para iniciar essa discussão, é necessário definir o que é cultura para, além disso, entender como ela aparece no ensino de línguas, sempre tendo em mente a sua importância. A razão principal deste estudo diz respeito ao modo como a cultura está presente nos cursos de línguas e de que forma ela está ligada a eles.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura. Ensino. Línguas estrangeiras.

1 Este artigo é fruto do trabalho desenvolvido na disciplina A interculturalidade na

aprendizagem de uma L2, ministrada pelas Profa. Dra. Carla Janaina Figueredo e Profa. Dra. Lucielena Mendonça de Lima, no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (UFG).

2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da Universidade de São Paulo (USP).

3 Doutora em Linguística, subárea Formação de Professores de Língua Inglesa, pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora Associada da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Gláuks 148

1 Considerações iniciais

ntre a língua e a cultura existe, claramente, uma relação de interdependência, em outras palavras, a

manifestação de uma acontece apenas por intermédio da outra. Essa relação existente entre língua e cultura é um dos fatores que determinam de maneira decisiva a aprendizagem de uma língua estrangeira. Portanto, no ensino de línguas estrangeiras, a cultura é uma das questões pertinentes e às vezes muito difícil de ser tratada dentro da sala de aula.

Questionamentos sobre como tratá-la, como ela aparece e como deve aparecer no ensino de línguas; sobre o que os professores devem fazer com ela, ignorá-la ou ressaltá-la; como ela pode ser útil para uma aula de língua estrangeira; ou, qual ajuda pode ela oferecer a esse ensino surgem ao professor que trabalha com o ensino de línguas. A cultura é uma questão bastante relevante para o ensino de línguas estrangeiras porque, na maioria das vezes, ao se estudar uma língua, tem-se a interferência da cultura. Por vezes, a relação entre língua e cultura é complexa e confusa.

Existe um pensamento comum que já está cristalizado: o de que para uma língua, uma cultura, ou seja, uma língua corresponde a uma cultura. Esse é um pensamento correto, porém simplista, pois as línguas, assim como as culturas, interferem umas nas outras e são mutáveis ao longo dos anos, dependendo da intensidade que desempenham umas nas outras e da exposição que sofrem. Simplista ainda porque, quando chegamos ao ensino de línguas, esse pensamento se expressa através da minimização da cultura dentro da sala de aula - a cultura surge como um conteúdo educacional - e da sua adoção como parte do componente linguístico. Para que a cultura possa ser um conteúdo, é preciso transformá-la em algo concreto e se apegar a isso, pois essa se torna a parte passível de ensinamento.

��

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 149

Um dos resultados mais equivocados desse processo de transformação da cultura em conteúdo é a minimização da complexidade e abrangência da cultura. O tratamento dado à cultura não pode ser o mesmo dispensado à língua, pois a cultura é mais extensa que a língua. A cultura é um sistema de significados “os quais são aprendidos, compartilhados, revisados, mantidos e definidos por meio da interação entre os indivíduos” (FIGUEREDO, 2007, p. 18).

Um dos objetivos deste artigo é desmistificar tal ideia, de que a uma língua corresponde uma cultura, e torná-la mais abrangente. E o outro objetivo, no qual encontramos a justificativa para a desmistificação simplista do pensamento sobre língua e cultura, é mostrar sugestões, baseadas em estudos e reflexões realizados por alguns autores, sobre como tratar a cultura dentro da sala de aula de línguas. O resultado pretendido é mostrar qual deve ser o valor e a importância da cultura no contexto escolar de idiomas sem que haja qualquer prejuízo quanto ao que é cultura e quanto à sua interferência no ensino de línguas.

Para a complementação desta exposição, será utilizada a ajuda teórica de alguns autores, que são: Jin e Cortazzi (1998), falando sobre a cultura que o aluno traz para a sala de aula e o que ela pode representar para o ensino/aprendizagem; López (2005), falando sobre o componente sociocultural que deve ser levado em conta no ensino de línguas por repensar a forma como a cultura é adotada, e Sercu (2001), que, tomando a perspectiva da formação de professores, mostra como a cultura aparece no método tradicional de ensino e como ela deve aparecer para que se tenha um melhor aproveitamento para a aprendizagem da língua.

Gláuks 150

2 Para Jin e Cosrtazzi a cultura trazida pelo aluno serve como ponte ou obstáculo?

Segundo Jin e Cortazzi (1998), nos modos modernos de ensino de línguas, a cultura é tida como um conteúdo, e é aí que encontramos o problema. A finalidade de tratar assim a cultura é fazer com que os alunos adquiram conhecimentos sobre a cultura da língua alvo. Porém, em suas pesquisas, eles descobriram que não é bem isso o que acontece.

A realidade de pesquisa desses autores, cada vez mais comum nos dias atuais, é aquela em que o professor e os alunos não partilham a mesma cultura. Nesses casos, geralmente o professor é nativo da língua ensinada e, portanto, faz parte dessa cultura; enquanto que os alunos são de outra língua e de outra cultura. Nesse contexto de ensino, a cultura se torna uma ponte ou um obstáculo?

O mais comum no ensino de línguas é desconsiderar a cultura que o aluno traz e a relação que ela estabelece com a cultura da língua alvo, pois o esperado é pensar apenas na cultura da língua ensinada, que, neste caso, é a mesma do professor. Porém, pensar também na cultura que o aluno traz e em como ela se relaciona com a cultura da língua que ele aprende é ir mais além do esperado para o ensino de línguas e pensar de maneira mais profunda nos processos da aprendizagem de idiomas.

Essa concepção de ensino se torna, então, um fator significativo e decisivo na aprendizagem de línguas estrangeiras, pois interfere na percepção do professor e dos alunos sobre o que é aprender outra língua e interfere também no modo como cada um deles avalia seus papéis dentro da sala de aula, assim como as suas atuações.

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 151

A questão chave visada aqui é o fato de que tanto o professor, que é nativo, quanto o aluno, que é de uma cultura distinta do professor, possuem experiências e expectativas culturais diferentes, não só relacionadas ao conteúdo das aulas como também à maneira de dar aulas. Os métodos utilizados em sala de aula já servem, argumenta Jin e Cortazzi (op. cit.), como mediadores da aprendizagem, mesmo atuando de forma inconsciente.

Portanto, o que deveria ser feito era uma reflexão sobre os métodos responsáveis pela passagem dos conteúdos e não apenas nos conteúdos, pois eles podem funcionar tanto como pontes, facilitando a aprendizagem, quanto como obstáculos, criando barreiras para o ensino. Pontes que facilitam a aprendizagem de outra língua porque desenvolve a habilidade intercultural, ou obstáculos que apresentam barreiras à desenvoltura comunicativa do aluno ao dificultar o seu aprendizado e criar traumas.

Cultura, para Jin e Cortazzi (1998), significa os padrões de comportamento e de interação transmitidos socialmente. Por isso, para eles, a cultura tem importância na aprendizagem porque é nela que se encontra as normas de interpretação e de interação que são a base para estabelecer a comunicação, inclusive dentro da própria sala de aula. No entanto, o tratamento dado à cultura na sala de aula, ao invés de ajudar na aprendizagem intercultural, resulta, na maioria das vezes, impedindo o desenvolvimento de habilidades interculturais devido à maneira como ela é apresentada na sala de aula.

A solução proposta pelos autores (JIN; CORTAZZI, 1998) é a de que os participantes da aula sejam conscientes de suas próprias pressuposições culturais e assim como as dos outros, isto é, sejam conscientes de que cada um deles tem pressuposições e conceitos formados sobre o mundo e quase tudo que nele existe e que elas são, por vezes, diferentes. São

Gláuks 152

modos distintos de interpretações e atuações proporcionados por cada cultura.

Essa conscientização, uma vez admitida a existência de pressuposições por todos, implica o processo de refletir e questionar os seus próprios. E, uma vez conscientes de que é a cultura de cada um que fornece os conceitos e as maneiras de se pensar que possibilitam suas atuações, a cultura pode servir como ponte, construindo mutuamente uma aprendizagem linguística e uma aprendizagem intercultural.

A língua é um reflexo da cultura, pois, ao mesmo tempo em que a língua é uma parte da cultura, ela é também algo que a constitui. “[E]xistem pouquíssimos aspectos da vida cultural que sejam compreensíveis sem a consideração dos modos de falar culturais (ou, alfabetização) como instrumento de sua constituição.”4 (JIN; CORTAZZI, 1998, p. 105). Juntos, esses aspectos formam uma cultura da comunicação, que significa um “padrão sistemático de ênfases culturalmente específicos nos modos de fala que serve de mediador entre a língua e a cultura durante a interação verbal.” (JIN; CORTAZZI, 1998, p. 105).

Portanto, os alunos que aprendem uma língua deveriam conhecer também os modelos culturais nos quais um falante dessa língua se comunica, pois as culturas de comunicação são as partes que se associam às línguas, formando pontos importantes que deveriam ser também considerados como objetivos de uma aula de idiomas.

Para professores que não são nativos, ensinar uma língua estrangeira utilizando a cultura de comunicação da língua alvo pode se tornar um desafio profissional. O mesmo ocorrerá aos alunos, será um desafio aprender dessa maneira outra língua porque, em vários momentos da aprendizagem, será incômodo e estranho. 4 Todas as traduções deste artigo são de nossa inteira responsabilidade.

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 153

De outra maneira, se o professor que é nativo ensina a sua língua na cultura de comunicação dos seus alunos não-nativos, a mesma estranheza se apresenta, mas o aprendizado será mais fácil por parte dos alunos. Porém, mesmo sendo mais fácil para os alunos, isso pode impedir o desenvolvimento de suas habilidades interculturais. Então, como fazer? Ou, qual será o limite certo e apropriado para se ensinar, levando em consideração as culturas tanto do aluno quanto do professor?

A argumentação de Jin e Cortazzi (1998) é que existem duas formas que aparecem na sala de aula em situações e níveis diferentes de aprendizagem: existe uma língua para falar de uma cultura, e uma cultura para falar de uma língua. Para níveis básicos e intermediários, o que se encontra é a primeira situação, a aprendizagem de uma língua observando a sua cultura, porque é nela que estão contidas as expressões e termos certos que constituem a interação verbal. Enquanto que, nos níveis mais avançados, o que se encontra é a segunda maneira, pois já se tem formados os modos de comunicação que a língua utiliza e, por isso, é mais fácil falar sobre essa língua.

Porém, essas duas maneiras resultam em outra, que é a cultura de aprendizagem. As culturas de aprendizagem são os aspectos e as ideias sobre o próprio ensino, que correspondem à maneira apropriada de participar na aula, à conveniência ou ao modo de fazer perguntas etc. Então, em todas as salas de aulas existe uma cultura de aprendizagem que é desenvolvida a partir da própria sala, isto é, da interação entre os alunos e o professor.

Uma aula de idiomas é constituída “especificamente por noções culturais sobre as línguas e sobre como aprendê-las.” (JIN; CORTAZZI, 1998, p. 107). Por mais que o professor se esforce para aproximar a língua e a sua cultura, criando um ambiente estimulante e imerso na compreensão cultural, a aula sempre será uma aula com suas expectativas de conhecimento e

Gláuks 154

comportamento, além de formas de interpretações desses comportamentos; isso significa uma cultura de aprendizagem.

Em outras palavras, a cultura de aprendizagem são as crenças e as opiniões dos professores e dos alunos sobre o ensino de línguas. Tais crenças e opiniões afetam as atividades e o andamento da aula devido às interpretações dos comportamentos de todos os participantes, ou seja, afeta diretamente o próprio ensino. Para Jin e Cortazzi (op. cit.), essas noções culturais e expectativas sobre o ensino são subjacentes na formação dos professores e nos esforços que estes fazem para a formação de seus alunos.

A solução pensada pelos autores mencionados é um modelo de sinergia cultural, que sugere a necessidade de entendimento mútuo entre as diferentes culturas, entre os diferentes estilos de comunicação e ainda entre as culturas acadêmicas (JIN; CORTAZZI, 1998, p. 121). A sinergia cultural aposta na colaboração e entende que há várias vantagens nela, as quais são mais importantes para o desenvolvimento da interculturalidade. “Professores e alunos de diferentes culturas necessitam desenvolver uma atitude baseada no desejo de aprender, entender e apreciar a outra cultura sem uma perda da sua própria posição social, papel ou identidade cultural.” (JIN; CORTAZZI, 1998, p.123).

Segundo a sinergia cultural, o que acontece é uma adaptação resultante de um entendimento mútuo ao invés de uma assimilação, pois a assimilação implica barreiras psicológicas criadas por causa do medo de se perder a identidade, assim como a implicação de uma hierarquia entre as culturas ou identidades culturais. O modelo de sinergia cultural é desenvolvido com o intuito de que os participantes se tornem eficazes em diferentes culturas, tanto no âmbito social e educativo, quanto na compreensão dos padrões de comunicação, nas expectativas e nas interpretações de outra cultura.

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 155

As dificuldades enfrentadas pelo ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras apresentadas até agora nos mostram o que está em questão: a identidade. A identidade dos alunos e dos professores está em jogo nas relações de ensino/aprendizagem de uma língua justamente devido ao modo como a cultura da língua alvo é tratada. Isto é, devido ao modo de negociação dos conceitos e pressupostos que cada um leva para dentro da sala de aula, tanto alunos quanto professores. O modelo de sinergia cultural, neste caso, retira a superioridade que pode haver entre a cultura alvo e a cultura dos alunos e a do professor, em caso de professor não-nativo; uma hierarquia que geralmente remonta afirmando o imperialismo e os processos coloniais.

Outro ponto positivo desse modelo é a concentração proposta por ele no processo discursivo do momento de interação, processo no qual entra em cena a cultura alvo em negociação com a cultura trazida pelo aluno. E, por fim, esse é um modelo que colabora para a prática profissional do professor, resolvendo “alguns dos dilemas da aula intercultural [por constituir uma] ferramenta que pode facilitar aos professores a visão de como os processos de comunicação intercultural podem ajudar aos alunos a estabilizar sua própria identidade” (JIN; CORTAZZI, 1998, p. 125).

3 A importância da formação de professores interculturais para Sercu

Em seus estudos, Sercu (2001) faz investigações sobre o ensino de idiomas na Bélgica e as dificuldades dos professores ao enfrentarem as questões afetivas de comportamento no processo de ensino/aprendizagem (SERCU, 2001). As dificuldades que esses professores enfrentam referem-se tanto à sua prática de ensino quanto à falta de reflexão crítica das teorias que eles utilizam. Devido a esses fatores, os professores

Gláuks 156

não evoluem nas suas práticas de ensino, permanecendo em um modelo tradicionalista de ensino.

O modelo tradicional traz “conteúdos linguísticos que às vezes são complementados por componentes literários” (SERCU, 2001, p. 256). Sendo que os componentes literários são tidos como a parte relacionada à cultura da língua alvo, quer dizer, o conhecimento do país e de seus habitantes, as comidas típicas e outras “curiosidades” culturais. A grande falha desse modelo é que tratar a cultura alheia como “curiosidade” é reforçar, e até aumentar, os níveis hierárquicos existentes entre uma cultura e outra, quer dizer, é ajudar na criação de preconceitos e de intolerâncias culturais.

Além do que, tal momento da aula considerado literário corresponde à hora tranquila e “refrescante” da aula. Por causa dessa visão sobre a cultura de uma língua, o conhecimento sobre os seus habitantes e seu(s) país(es) se torna eclético, quanto a conteúdos, e sem método. Não há um processo reflexivo da aprendizagem e muito menos sobre o que é cultura e como é a cultura da língua alvo, assim, não é desenvolvida a competência intercultural dos alunos (SERCU, 2001, p. 256); e o grande problema e entrave para essa questão é que os professores não se vêem como mediadores culturais.

Para Sercu (2001), o problema do ensino se deve, em grande parte, aos professores que, ao não se verem como os responsáveis pela mediação cultural, terminam por não refletirem sobre a sua atuação e por isso também não se atualizam. Em seu texto, Sercu (op. cit.) inicia apontando para as teorias e para os conceitos teóricos que dominam os professores. Ela argumenta que a dificuldade em efetuar e observar mudanças no ensino de línguas se deve, em grande parte, aos professores, pois a questão é que eles estão presos a teorias que julgam ser a chave para a solução dos seus problemas; sendo assim, julgam que as teorias serão suficientes.

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 157

Os professores mantêm sentimentos sobre e com as teorias e os conceitos teóricos, o que os deixam atolados e presos a tais teorias e conceitos.

A tendência dos professores é considerar as teorias por si mesmas como certas apenas por ser uma teoria, ou seja, sem a necessidade de qualquer comprovação, teste e, inclusive, modificação de acordo com a realidade prática da sala de aula de cada professor. Segundo Sercu (2001), esse tipo de atitude por parte dos professores gera o que ela chama de “teorias cinzas” e as escolas e o ensino de idiomas estão cheios dessas teorias. Então, com toda razão, ela expõe que:

Por conseguinte, se a formação de professores em exercício pretende contribuir para a introdução de mudanças, não pode simplesmente retransmitir os resultados das “últimas investigações” e das “mais modernas teorias” como mera relação de conhecimentos sem considerar a relação existente entre a teoria e a prática, entre as exigências teóricas externas e as situações reais na escola e na aula. (SERCU, 2001, p. 254).

O professor deve se voltar mais para a sua prática e para a sua própria sala de aula para, então, partir para a teoria, ou usar a teoria como um apoio e não como uma doutrina. O que se discute aqui é uma velha questão entre teoria e prática. Como bem coloca Sercu, as investigações e as teorias, mesmo as mais recentes e modernas, não podem ser vistas como conhecimentos à parte. Ao contrário, elas devem entrar em contato com a realidade de cada professor, criando uma relação “entre teoria e prática”. A prática não deve ser orientada pela teoria, e sim o inverso, é a teoria que deve ser orientada pela prática, assim como surgir dela.

A função da teoria é “atrair o professor e brindar suas qualidades, habilidades e atitudes reflexivas necessárias para participar ativamente no processo de mudança” (SERCU, 2001, p. 254). Portanto, o que deve ser levado a sério e estimulado na

Gláuks 158

formação de professores é o desenvolvimento da autonomia dos docentes. Eles precisam aplicar e provar por si mesmos as teorias nas quais se fundamentam; precisam refletir sobre a própria prática docente e ser capazes de agir para promover as mudanças adequadas à sua realidade. Sem respostas prontas, sem receitas e sem manual de instruções, isto é, precisam ser autônomos. Essa é a verdadeira formação de professores, a que promove a autonomia nos professores, capacitando-os para enfrentar seus próprios problemas, problemas estes que serão sempre diferentes e inusitados em cada sala de aula.

O desenvolvimento da autonomia nos professores atinge outro desenvolvimento necessário: a competência intercultural dos professores em formação. Para este desenvolvimento, da competência intercultural, o mais importante é fazê-los entender que, para inovar, é preciso mudar em vários sentidos, assim como ter consciência de que essa mudança não chega a um ponto final, em vez disso, ela é constante e dinâmica. É uma auto-avaliação que o professor deve sempre fazer sobre seus próprios conceitos e práticas docentes, sobre suas atividades em sala de aula, sobre suas habilidades como professor; é deixar de se ver apenas como professor, vendo-se também como aluno (SERCU, 2001).

A razão maior de se ter essa consciência e atitude se deve ao fato de que a realidade de uma sala de aula muda, as épocas mudam, assim como os comportamentos; e com isso os alunos e as perspectivas também mudam. Não são mudanças drásticas ou radicais, e sim mudanças graduais que, por isso, precisam de atualizações. Para isso, não se deve super valorizar as teorias como se elas viessem antes da prática, ou como se elas trouxessem todas as soluções para os problemas derivados da prática educacional. Essas duas coisas travam os professores e os mantêm alienados e estacados em um ponto retrógrado.

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 159

Uma solução pensada, então, por Sercu (2001) para o desenvolvimento da autonomia e da competência intercultural nos professores é a criação de um curso voltado para os professores de idiomas. O objetivo do curso é criar um espaço de reflexão para que os professores repensem sobre suas práticas docentes e analisem as mudanças que são necessárias para o ensino. Ter essas atitudes importa na formação dos professores para torná-los mediadores do conhecimento e das habilidades culturais.

Sercu (2001) acredita em três princípios que ajudam na formação reflexiva do professor de idiomas: primeiro, a reflexão de vários conceitos metodológicos genéricos sobre a cultura alvo; depois, a revisão teórica adotada pelos professores como fundamento de sua prática docente; e, por último, exercícios criados e orientados pela prática e experiência dos professores.

Ainda um quarto princípio poderia ser incluído no curso: o trabalho que pode ser realizado fora da sala de aula através do contato do professor com outras pessoas de diferentes culturas. Isso proporciona uma experiência real aos professores além de também contribuir para os pontos importantes de um professor de idiomas: a autonomia e a competência intercultural.

Ao final da exposição de Sercu (2001) sobre o curso – seus objetivos, seus métodos e atividades – ela argumenta que cursos para a formação de professores de línguas estrangeiras devem ser criados e multiplicados nos países por suas instituições nacionais para impulsionar os professores a adquirirem uma competência intercultural. O maior ganho é o intercâmbio de experiências docentes e de aprendizagem de campo entre os professores de diversas línguas e culturas.

Gláuks 160

4 O componente sociocultural pretendido por López

López propõe, em seu artigo (LÓPEZ, 2005), analisar a conexão que existe entre língua e cultura e também explicar, de acordo com a perspectiva da análise comunicativa, o que ela entende por “componente sociocultural”. Para isso, a primeira discussão que López faz é sobre o papel da cultura nos dois enfoques que são mais utilizados no ensino e aprendizagem de línguas, que são o enfoque estrutural e o enfoque comunicativo.

Para o enfoque estrutural, a cultura é apenas um acessório que serve como adorno no ensino de uma língua estrangeira. Ela não deve faltar nos manuais e nem na sala de aula, mas sua função acaba sendo a de servir como uma ilustração e divertimento durante a aprendizagem. López ainda afirma que, nos manuais mais antigos, que eram feitos de acordo com o enfoque estrutural, “os conteúdos culturais [...] eram uma sucessão de estereótipos da cultura legitimada de cada país” (LÓPEZ, 2005, p. 512); e isso servia para reforçar arquétipos, visões superficiais e preconceitos sobre a cultura da língua alvo.

No momento em que o ensino de línguas é pautado pelo enfoque estrutural, o que se pretende com a cultura é mostrar certos conhecimentos e conteúdos culturais devido à crença de que, ao fazer isso, o próprio ensino de línguas contribua para a manutenção dos conteúdos. A questão é que os conteúdos culturais passados dessa forma se tornam superficiais e estereotipados, gerando um imaginário cultural que parece ser preciso acessar para se conhecer outra cultura. Por isso, o problema desse enfoque é não considerar o perfil dos estudantes e nem os objetivos e interesses dos mesmos ao estudar a língua.

Outro problema ao se utilizar os conteúdos culturais dessa forma é a descontextualização entre a cultura e a língua alvo. O que há nesses manuais é uma completa falta de conexão e de contextualização entre língua e cultura, apresentando as

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 161

duas de maneira estanque e distante. Tais manuais trazem diálogos e textos sobre a cultura que não se relacionam com as regras e com o uso da língua e por isso o aluno não percebe a relação que uma estabelece com a outra e vice-versa. Consequentemente, o crescimento intelectual do aluno é comprometido e o seu entendimento sobre o que é cultura se torna simplista e alegórico.

Para López (2005), o conceito de cultura adotado nesses manuais de enfoque estrutural pode ser resumido em três pontos: a visão estereotipada da cultura; a total descontextualização de todos os elementos que integram os materiais e a prática docente; e a absoluta desconexão entre os objetivos da língua e os elementos culturais. A sua conclusão é de que língua e cultura aparecem, segundo o método estrutural, “como dois elementos claramente dissociados, sem nenhum tipo de interelação” (LÓPEZ, 2005, p. 512).

Devido a essa conclusão, López aposta no enfoque comunicativo, que surge como resultado da reunião dos conhecimentos de várias disciplinas e é pautado pelo critério da atuação. Ou seja, nesse enfoque, a língua é vista como uma ferramenta de comunicação, possuindo regras que dizem respeito tanto às convenções linguísticas quanto às convenções comunicativas; o “que permite aos falantes atuar com ela” (LÓPEZ, 2005, p. 513).

O critério da atuação é um conjunto de aspectos que, juntos, implicam tudo aquilo que influencia o uso linguístico em um contexto determinado; por exemplo, os comportamentos, as rotinas, e outros aspectos culturais. Portanto, o critério de atuação funciona junto com o conceito de adequação, quer dizer, o falante vai mais além do uso formal e padronizado da língua, pois ele aprende a utilizar adequadamente recursos e convenções em diferentes situações de uso.

Gláuks 162

Um falante não conhece somente, em abstrato, as regras do código, mas também conhece os princípios que lhe determinam usá-las de modo adequado – ou voluntariamente inadequado – em qualquer situação de comunicação. [...] Em outras palavras: uma atuação comunicativa é adequada quando não somente é correta desde o ponto de vista linguístico, mas também desde o ponto de vista sociocultural e contextual. (LÓPEZ, 2005, p. 513).

As ideias de atuação e adequação são as responsáveis pela formação do componente sociocultural, pois “é onde se concentram todos os elementos que regem a adequação” (LÓPEZ, 2005, p. 513), por isso são ideias extremamente pertinentes ao ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras. Essas ideias revolucionam a visão anterior e precária de ensino de línguas por abranger, além da competência linguística, medida pela frase, a competência comunicativa, entrando em cena o discurso. Isso significa uma ampliação da competência que passa agora a ser também discursiva, estratégica e sociocultural.

A competência comunicativa está baseada em atos de fala, isto é, em uma visão pragmática da língua que valoriza a língua em uso, pensando nas performances linguísticas do uso. O enfoque comunicativo segue esse conceito de língua, conceito performativo baseado em atos de fala e na linguagem ordinária, para chegar até o componente sociocultural, que quer dizer “a intenção do falante e o contexto.” (LÓPEZ, 2005, p. 514). Isso significa que o ensino de línguas que se fundamenta no enfoque comunicativo opera de maneira contextualizada.

Portanto, a análise comunicativa apresenta outra ideia de cultura, que López coloca em três pontos: uma cultura do cotidiano, que significa todos os fatores de construção cultural dos falantes; a cultura como parte decisiva na competência comunicativa, pois é ela que possibilita a atuação e a adequação

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 163

linguística, garantindo o êxito linguístico; e, logo, apresenta a cultura sempre vinculada à língua. Assim, segundo López (2005), é que se desenvolve o que ela chama de componente sociocultural.

Depois do componente sociocultural a noção de cultura sofre alterações. Levar em conta o componente sociocultural é deixar de ver a cultura como “uma série de produtos que em um determinado momento a sociedade legitima, sanciona, referenda e honra” (LÓPEZ, 2005, p. 515); passando a ver a cultura como uma visão de mundo que é adquirida junto com a língua, pois é a língua “que determina as crenças, as pressuposições e comportamentos linguísticos e não linguísticos dos falantes” (LÓPEZ, 2005, p. 515).

Como cultura é importante entender e pensar em três partes que agem em conjunto: a cultura epidérmica é aquela que se refere aos usos e costumes que não são utilizados e conhecidos por todos os falantes, ou seja, não faz parte da cultura estándar; a cultura legitimada, aquela que está sujeita a mais modificações ao longo do tempo, pois é o que a sociedade sanciona de acordo com seus momentos; e a cultura essencial, que é a mais importante por ser a compartilhada por todos os falantes e de difícil modificação. É na “cultura essencial [que] se encontra todo o conhecimento que permite fazer um uso efetivo e adequado da linguagem” (LÓPEZ, 2005, p. 516).

Dentro da sala de aula, as três partes da cultura devem ser tratadas de maneiras distintas para um melhor aprendizado e conhecimento. A cultura essencial deve ser a primordial, a que deve receber mais atenção, sendo a mais trabalhada, pois é com ela que o falante mais atuará e o fará de maneira mais adequada.

Já a cultura legitimada deve ser apresentada em cada sala de aula de acordo com os interesses e objetivos dos aprendizes; quer dizer, deve se levar em conta que tipo de estudantes, que

Gláuks 164

necessidades eles possuem e qual o nível de formação dos mesmos. Pelo fato de a cultura legitimada ser aquela que a sociedade sanciona de época em época, ela é a que se transforma em produto e, consequentemente, em símbolo. Por isso, dentro da sala de aula ela deve ser ressaltada e lembrada sempre a partir do seu valor simbólico, e não como o que determina e caracteriza os falantes. É a cultura epidérmica que deve ser tomada em sala de aula em casos específicos, pois ela não pertence a todos os falantes.

O que se apreende de mais importante com essa divisão é a separação da cultura em níveis, os três vistos anteriormente, e a adequada utilização de cada um desses níveis culturais em sala de aula quanto à intensidade, a frequência e a importância que cada uma tem para a aprendizagem de outro idioma. Vemos que a cultura essencial é a imprescindível no ensino de uma língua, porque é ela o “substrato comum de todos. [E] esse substrato é o objetivo de todo processo de ensino de uma língua estrangeira.” (LÓPEZ, 2005, p. 517).

Não é possível abarcar toda a cultura de uma língua, mesmo a essencial, pois não existe uma descrição global e completa sobre o que é a cultura de um grupo de falantes. Mas o resultado proveitoso quando prestamos atenção a esses níveis de cultura e em como aplicá-los é “dotar os estudantes de uma sensibilidade sociocultural que os faça autônomos em posteriores descobertas” (LÓPEZ, 2005, p. 518), e que os incentive a buscá-las.

5 Considerações finais

É interessante pensar sobre o conhecimento que temos da nossa própria cultura, pois, por estarmos inseridos nela, dificilmente conseguimos ser relativos. Tendemos a

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 165

universalizar os nossos conceitos e noções, nossos pontos de vista e comportamentos. Chegamos a normalizar e normatizar regras construindo padrões, a pensar unicamente em uma lógica, que é a qual pensamos, e a acreditar que ela se estende a todos. Com tudo isso, julgamos como estranho ou anormal o que não está dentro do que acreditamos.

Porém, o conhecimento daquilo que é próprio de nossa identidade geralmente aparece mediante o contato com outras culturas e outras maneiras de ver o mundo. Ao nos depararmos com o que nos é diferente é que conseguimos discernir entre o que é nosso e o que não é, entre o que nos pertence e o que não faz parte de nós, pois é a diferença, segundo Hall (2007), que opera a identidade.

Sendo assim, a melhor maneira para percebermos o nosso próprio componente cultural, segundo os quatro autores estudados neste artigo (López, Sercu e Jin e Cortazzi), é nos distanciarmos das nossas concepções para alcançar uma visão mais abrangente da nossa própria cultura e também, principalmente para nós, nos relacionarmos com outras culturas.

A língua estrangeira abre esse espaço para um contato com a alteridade, com o outro. Sem dúvida alguma, estudar outra língua envolve questões de identidade que ultrapassam o simples aprendizado de um idioma. Para um melhor enfrentamento de tais questões identitárias que aparecem na aula, decorridas do encontro entre duas ou mais culturas, o desenvolvimento da habilidade intercultural faz-se imprescindível uma vez que, por interculturalidade, entendemos tanto o encontro de duas culturas ou duas línguas que perpassam as fronteiras políticas de diferentes nações, quanto a comunicação entre pessoas com diferentes marcadores identitários - gênero, raça, classes sociais, sexualidade, nacionalidade e outros (KRAMSCH, 2001).

Gláuks 166

Para desenvolvermos nossas habilidades interculturais, devemos sempre pensar nos elementos culturais como um conjunto onde cada elemento entra e mantém diversas relações uns com os outros. Eles não são e nem estão isolados. Ao contrário, suas conexões formam um sistema complexo, variando entre proporções macro e micro que possibilitam a comunicação verbal. Ao percebermos isso, fica mais fácil entender que todos os elementos culturais se expressam “com maior ou menor intensidade nas interações comunicativas” (LÓPEZ, 2005, p. 519).

Podemos perceber que o contexto é completamente determinado pela cultura e pelas significações que ela nos permite apreender. Então, a virtude intercultural está em reconhecer os valores culturais de cada pessoa, trazidos à aula ou mencionados por causa da língua alvo. Uma vez reconhecida a existência desses valores em cada cultura, a facilidade para refletir sobre eles e sobre a diferença que eles possuem em cada cultura é conquistada.

Sercu (2001) nos ajuda a perceber isso, o mais importante, para ela, ao se desenvolver a competência intercultural, está em reconhecer sua própria cultura, valores e princípios e daí entendermos como esses valores e princípios interferem em todas as observações que fazemos. Nossas interpretações e comportamentos são sempre baseados no que trazemos de nossa cultura, na qual estamos inseridos, pois é ela que produz o modo como pensamos e significamos o mundo.

Para todos os autores aqui estudados, que partem de perspectivas diferentes ao analisarem o ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, os modelos de ensino não ajudam e não preparam nem os professores e muito menos os alunos para entrar em contato real com outra cultura. Na verdade, os modelos de aula praticados ainda hoje acabam reforçando preconceitos baseados em estereótipos que apenas criam e

A Importância do Componente Intercultural na Prática Docente de... 167

aumentam a distância entre as pessoas de diferentes culturas. Sendo que isso não contribui nem para a aprendizagem de outra língua e nem para o crescimento como ser humano das pessoas envolvidas nesse processo, que são professor e aluno.

Referências

FIGUEREDO, C. J. Construindo pontes: a produção oral dialógica dos

participantes do processo ensino-aprendizagem de inglês como língua-

cultura estrangeira. 2007. 300 p. Tese (Doutorado em Letras e Linguística)

– Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2007.

HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. T. da. (Org.).

Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. 7. ed.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 103-133.

JIN, L.; CORTAZZI, M. The culture the learner brings: a bridge or a barrier?

In: BYRAM, M.; FLEMING, M. (Ed.). Language learning in intercultural

perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 98-118.

KRAMSCH, C. Language and culture. Oxford: Oxford University Press,

2001.

LÓPEZ, L. M. La subcompetencia sociocultural. In: LOBATO, S.;

GARGALLO, I. S. (Org.). Vademécum para la formación de profesores:

enseñar español como segunda lengua (L2) / lengua estranjera (LE). Madrid:

SGEL, 2005. p. 511-532.

SERCU, L. Formación de profesores em ejercicio y adquisición de

competencia intercultural. In: BYRAM, M.; FLEMING, M. Perspectivas

interculturales em el aprendizaje de idiomas: enfoques a través del teatro y

la etnografía. Trad. José Ramón Parrondo y Maureen Dolan. Madrid:

Cambridge University Press, 2001. p. 254-287.

Gláuks 168

ABSTRACT: This paper aims at discussing the role of culture in language teaching and learning. First of all, we define what culture is, so that we can understand how it relates to language teaching and learning, always keeping in mind its importance. The main reason of this study concerns the way that culture takes part in language courses and in which manner it is linked to them.

KEYWORDS: Culture. Teaching. Foreign language.

Data de recebimento: 28/02/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 169-203

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes

About Discourse Markers and Connectors: Concepts and Underlying Theories

Daniel Mazzaro Vilar de Almeida1

Janice Helena Chaves Marinho2

RESUMO: Este artigo propõe uma revisão de algumas teorias que conceituam e caracterizam os conectores e os marcadores discursivos, elementos linguísticos que sinalizam, explicitam uma relação coesiva entre dois segmentos textuais e guiam, de acordo com suas propriedades morfossintáticas, semânticas e pragmáticas, as inferências que se realizam no momento da comunicação. Essa revisão teórica trará contribuições da Pragmática, da Teoria da Argumentação, da Teoria da Relevância e do Modelo de Análise Modular para que o fenômeno da conexão e os elementos envolvidos nesse mecanismo textual sejam bem entendidos e usados futuramente em pesquisas do campo da Linguística Textual e da Análise do Discurso, por exemplo.

PALAVRAS-CHAVE: Marcadores discursivos. Conectores. Conexão. Teorias pragmáticas. Relação coesiva.

1 Doutorando em Análise do Discurso pelo Programa de Pós-Graduação em

Linguística da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 2 Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG). Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Gláuks 170

1 Introdução

s estudos direcionados a marcadores discursivos (doravante MD) e conectores têm aumentado

bastante na área textual com a mudança de foco da estrutura do texto para seus aspectos discursivos. A partir dos avanços da semântica, da pragmática e da análise do discurso, observa-se uma tendência a ultrapassar o estudo limitado às estruturas gramaticais da oração e a estender ao texto, já que é nele que o estudo gramatical encontra sua atualização e seu “sentido” (VEZ, 2000, p. 149).

Para vários estudiosos, uma das maneiras de alcançar o sucesso de que um texto possa fazer sentido é por meio de conexões entre as palavras, frases, orações e parágrafos (ou, como veremos mais adiante, por meio de conexões de enunciados ou membros discursivos). Segundo Escandell (2006), um dos problemas que mais preocupou, primeiramente os gramáticos e filósofos, e em seguida os pragmaticistas, foi o de descrever o valor dos elementos de conexão entre orações. Enquanto alguns tomaram esses elementos como o ponto central que articula a teoria da razão, como no caso da conclusão que procede às premissas de um silogismo, outros se ocuparam de seu funcionamento e de seu valor nas línguas naturais.

Então, devido à diversidade de critérios adotados e às diferentes proposições metodológicas a partir dos quais se tem abordado o estudo dos MD e dos conectores, não se chegou a um acordo em questões básicas como a denominação e definição de seu conceito. Por isso, é possível encontrar termos como marcadores de relação textual, operadores discursivos, enlaces extraoracionais, conectores discursivos, conectores pragmáticos, partículas pragmáticas, partículas discursivas etc., referindo-se, muitas vezes, aos mesmos elementos

��

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 171

estudados e, além disso, os conceitos atribuídos a esses termos ora se identificam, ora se complementam.

Embora os conectores tenham, atualmente, um tratamento muito destacado, faz já algum tempo que despertaram interesse dos linguistas. Loureiro (2004) aponta que, nos estudos da língua espanhola, Antonio Nebrija, em sua gramática datada de 1492, já destacou a existência do que antes se chamavam partículas invariáveis do discurso. Nesse grupo, o gramático incluiu as classes de palavras já conhecidas desde a tradição da gramática latina, como conjunções, preposições, locuções prepositivas, entre outras, que estão inseridas na sintaxe oracional, mas que, em certos contextos, não se ajustam à função que lhes são atribuídas habitualmente no marco da sintaxe oracional.

Apenas no século XX se identificam certos elementos linguísticos que não se ajustam às classes gramaticais existentes e, pela primeira vez, se analisam as características desses elementos que apresentam usos discursivos, empregos enfatizadores, valores expressivos etc. Gili Gaya parece ser um dos primeiros a dar um nome a esses elementos: os enlaces extraoracionais, e os identifica a partir de certas propriedades, como sua veiculação com noções externas à relação de predicação oracional; seu caráter invariável; a heterogeneidade de sua entidade categorial gramatical (conjunções, frases conjuntivas, interjeições etc.); a versatilidade distribucional de muitos deles (ocupam a posição inicial, média ou final do membro discursivo em que aparecem); sua contribuição ao estabelecimento da coerência e o alcance de uma pluralidade de valores semânticos, em combinação, frequentemente, com as características suprassegmentais adequadas (a entonação, sobretudo); o fato de poderem pertencer a registros diferentes (uns são mais próprios da modalidade escrita e outros da oral); o

Gláuks 172

fato de chegarem a constituir meros apoios da elocução na fala coloquial; etc. (MARTÍN ZORRAQUINO; PORTOLÉS, 1999).

Apesar dos dados que oferecem as gramáticas anteriores à década de 1970 para a descrição dos elementos periféricos, o certo é que quase não se dedicou espaço a esse tipo de palavras nos tratados gramaticais. Entretanto, desde aproximadamente quarenta anos atrás, a partir do desenvolvimento da linguística do texto, da gramática do discurso e, sobretudo, dos diversos enfoques da pragmática – e da posterior incorporação dos fatores pragmáticos à gramática –, o estudo dessas unidades tem recebido uma atenção extraordinária, por meio de orientações teóricas muito diferentes e com aplicação a línguas muito díspares.

Traçaremos uma definição mais clara dos elementos que trataremos neste trabalho à luz de duas das nomenclaturas citadas neste item do capítulo: marcadores discursivos (ou marcadores do discurso) e conectores.

2 Marcadores do discurso e conectores

O termo marcadores do discurso (ou marcadores discursivos) foi usado por Labov e Fanshel em um livro de 1977 e, segundo Fraser (1999), talvez seja uma das referências mais antigas em língua inglesa, embora os autores não tenham passado de alguns poucos comentários sobre a palavra well. Dois anos depois, Teun A. Van Dijk publicou um artigo no Journal of Pragmatics, no qual trata de conectores (pragmatic connectives) que possuem função pragmática, isto é, que estabelecem relações entre atos de fala, e não entre fatos denotados como os conectores semânticos. Segundo o holandês, uma descrição dos conectores pragmáticos não pode simplesmente ser dada em termos de certos aspectos do sentido (condições de verdade ou de satisfação das proposições), mas

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 173

requer uma interpretação em termos de funções com respeito a contextos pragmáticos. Ele foi um dos primeiros a observar certas características desses elementos como costumarem iniciar frases, serem seguidos por pausa e serem pronunciados com uma entonação específica.

A estadunidense Deborah Schiffrin talvez tenha sido uma das pioneiras a se dedicar com afinco aos marcadores discursivos com sua obra de 1987, intitulada Discourse markers, na qual os considera como elementos que marcam unidades sequencialmente dependentes do discurso e não cabem facilmente em uma só classe linguística, já que, inclusive, eles incluem recursos paralinguísticos e gestos não-verbais. A pesquisadora também considera, como Van Dijk, que os MD são sintaticamente separados de uma sentença, são comumente usados em posição inicial de um enunciado e têm uma série de contornos prosódicos, e acrescenta que esses elementos são capazes de operar tanto em nível local como global do discurso e em diferentes planos discursivos. Para ela, cada MD tem um “significado nuclear” que lhe dá uma identidade e, em alguns casos, pode relacionar apenas a realidade semântica (os “fatos”) de duas sentenças, ou relacionar sentenças num nível lógico (epistêmico) ou até mesmo no nível do ato de fala (pragmático).

Fraser (1999), a fim de esclarecer o funcionamento dos MD, define-os como uma classe de expressões lexicais extraídas das classes de conjunções, sintagmas adverbiais e preposicionais, que sinalizam uma relação entre o segmento que introduzem (S2) e o segmento anterior (S1). Segundo o autor, os MD impõem à S2 um determinado conjunto de interpretações, considerando-se a interpretação de S1 e o sentido do marcador. Fraser defende a ideia de que essas expressões possuem um sentido nuclear que é procedural, e não conceitual, e sua interpretação mais específica é “negociada” pelo contexto, tanto linguístico como conceitual. Essa ideia está baseada em Blakemore (1992), que afirma que os

Gláuks 174

marcadores devem ser compreendidos como expressões que impõem restrições semânticas aos tipos de implicaturas que o interlocutor pode extrair do que o falante diz. A autora propõe que os marcadores devem ser analisados como formas de restrição da interpretação de enunciados.

Um dos estudos mais modernos e mais completos de língua espanhola é o de José Portolés (1998a) (que foi desenvolvido posteriormente em conjunto com Martín Zorraquino em 1999), que, ao considerar as observações feitas aos elementos periféricos e aos enlaces extraoracionais, e também os estudos de MD feitos, principalmente, por Schiffrin, Fraser e Ducrot, assim os definiu:

Os ‘marcadores do discurso’ são unidades linguísticas invariáveis, não exercem função sintática no marco da predicação oracional e possuem uma incumbência coincidente no discurso: o de guiar, de acordo com suas diferentes propriedades morfossintáticas, semânticas e pragmáticas, as inferências que se realizam na comunicação (PORTOLÉS, 1998a, p. 23-24).

Martín e Portolés (1999) complementam que os MD têm certa mobilidade dentro do enunciado e se encontram geralmente entre pausas. Além disso, não podem ser coordenados entre si, não podem ser negados, carecem (a maioria) da possibilidade de receber especificadores e adjacentes complementários e têm uma relação sintática com a totalidade do sintagma nominal.

Portolés apresenta exemplos para distinguir os marcadores discursivos de outros elementos que fazem parte das mesmas categorias gramaticais como, por exemplo, portanto e por esse motivo3:

3 Os exemplos [1] a [11] são traduções nossas a partir dos exemplos dados por

Portolés (1998a). As demais citações de obras cuja língua original é a espanhola também são traduções nossas.

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 175

[1] Chove e, portanto, as pessoas estão usando guarda-chuva.

[2] Chove e, por esse motivo, as pessoas estão usando guarda-chuva.

O investigador afirma que os marcadores que se

gramaticalizaram como advérbios são palavras invariáveis. Dessa forma, portanto é um marcador do discurso, pois se trata de um advérbio que possui forma fixa (não existe, por exemplo, portantos), já por esse motivo conserva sua capacidade de flexão e de receber especificadores e complementos (por exemplo, até por esses pequenos motivos). Além disso, os marcadores do discurso não admitem serem autônomos em um turno de fala, como:

[3] A: Por que você fará isso?

B: Por esse motivo / *Portanto

E é essa mesma autonomia da qual carecem os advérbios marcadores a que não permite construções do tipo [5a]:

[4] a) Portanto, as pessoas estão usando guarda-chuva.

b) Por esse motivo, as pessoas estão usando guarda-chuva.

[5] a) * As pessoas estão usando guarda-chuva e isto acontece portanto.

b) As pessoas estão usando guarda-chuva e isto acontece por esse motivo.

Isso não quer dizer que a maior parte das formas que são utilizadas como advérbios marcadores não possa aparecer com distintas funções linguísticas, isto é, sem ser marcadores, como:

[6] a) Vou fazer isso de qualquer forma.

b) De qualquer forma, vou fazer isso.

Gláuks 176

No exemplo [6b], de qualquer forma tem a função discursiva de marcador e, como tal, carece da possibilidade de flexão e combinação que se daria na frase [6a], como, por exemplo,

[7] Vou fazer isso de qualquer uma das formas que combinamos.

Quanto à característica de não poder ser negado, Martín e Portolés (1999) ilustram com o conjunto de exemplos seguinte:

[8] a) Não veio, pois, João à festa, mas sim Antônio.

b) Não veio, pois, João à festa, mas sim que ele ficou em casa.

c) Não veio, pois, João à festa, e sim que ele já estava.

d) Não veio, pois, João à festa, mas sim ao jantar depois.

e) *Não veio, pois, João à festa, mas sim portanto.

Portolés (1998a) também faz outras considerações e as comprova a partir de exemplos de textos atuais e antigos de diferentes gêneros. Para uma apresentação mais completa dos problemas de etiquetagem que ele propõe das unidades suscetíveis de serem consideradas como marcadores do discurso, assim como a obscura fronteira entre a classe dos marcadores e outras categorias limítrofes, como conjunções, advérbios, interjeições, vocativos etc., sugerimos uma leitura atenta de Portolés (1998a) e/ou Martín e Portolés (1999).

Outro termo muito utilizado para referir-se a essas expressões linguísticas é conector, como prefere denominar a pesquisadora suíça Rossari. Aliás, como explica Marinho (2005), Rossari usa, inicialmente, o termo conector pragmático, já que essas unidades têm por função significar uma relação (daí o termo conector), que se estabelece entre unidades linguísticas

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 177

ou contextuais (daí o termo pragmático). Resumidamente, os conectores seriam “expressões linguísticas que, ao poder atuar tanto na estrutura oracional como fora dela, ou seja, no âmbito textual, desempenham importante função na articulação do discurso” (MARINHO, 2005, p. 14) e Rossari, diferente de outros linguistas, inclui os elementos de conexão interfrástica em sua análise, como a conjunção mas, e considera como conexão a relação entre as unidades linguísticas e as unidades contextuais.

Portolés (1998a), ao contrário, considera como conectores um tipo concreto de marcador discursivo que realmente conecta de um modo semântico-pragmático um membro do discurso com outro expressado na maioria de seus usos ou, se não, com uma suposição contextual facilmente acessível, como além disso, portanto e no entanto. Dessa forma, considera-os como uma classe dos marcadores do discurso divididos ainda em grupos: os conectores aditivos, os conectores consecutivos e os conectores contra-argumentativos.

Sua justificativa se baseia no fato de existirem marcadores que realmente relacionam, pelo seu significado de processamento4, dois ou mais membros do discurso, diferente de outros marcadores, cujo significado só afeta um membro do discurso, ou seja, não se pode vislumbrar a capacidade de dêixis discursiva que se pode comprovar ao analisar enunciados como

[9] É rico e, no entanto, economiza muito.

no qual, a partir de economiza muito, se indica é rico com no entanto. Para ilustrar a existência de marcadores diferentes de no entanto, Portolés (1998a) propõe estes dois exemplos:

4 Trataremos dessa definição mais adiante.

Gláuks 178

[10] O sono de Lúcia, que na realidade foi como uma embriaguez de cansaço, durou apenas quinze minutos.

[11] Alice não virá conosco, porque, na realidade, não lhe interessa.

Em [10], existe um membro que indica uma aparência: o sono de Lúcia e um membro com na realidade que apresenta o real: foi como uma embriaguez de cansaço. Por outro lado, em [11], não lhe interessa não se opõe a outro membro expresso e, por isso, não há conexão nenhuma.

Devido à dificuldade de encontrar um significado de conexão em certos marcadores, Portolés prefere renunciar ao termo conector para referir-se a toda essa classe de unidades e escolhe o termo marcador. Dentro da instrução de conexão, Martín e Portolés (1999) incluem os marcadores denominados estruturadores da informação, conectores e reformuladores. No outro caso, falam de operadores e marcadores conversacionais, embora neste último haja alguns elementos mais próximos aos operadores e outras unidades que relacionam vários membros do discurso.

De qualquer maneira, entre os cinco subgrupos citados por Martín e Portolés (1999) dentro dos marcadores discursivos, a maior parte compartilha as instruções sobre o significado de conexão. É o que Montolío (2001) considera ao se referir às expressões que estuda. Para a autora, “os conectores têm como valor básico essa função de assinalar de maneira explícita com que sentido vão encadeando-se os diferentes fragmentos oracionais do texto para, dessa maneira, ajudar o receptor de um texto guiando-o no processo de interpretação” (MONTOLÍO, 2001, p. 21). Para Montolío, “os conectores funcionam em um texto como sinais de balizamento que um escritor eficaz vai distribuindo ao longo de seu discurso, a fim de que seu leitor

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 179

siga sem esforços nem dificuldades o caminho interpretativo traçado”.

Em certo ponto, é inegável afirmar que Martín, Portolés, Montolío e Rossari possuem uma interseção: considerar conexão a relação entre as unidades linguísticas e as unidades contextuais.

Rossari (2000 e 1999), em seu tratamento dos conectores, reivindica uma abordagem semântica para que se sobressaiam as características estáveis do potencial semântico dos conectores, suas aptidões para exercer restrições estabelecidas pelo próprio código sobre o ambiente linguístico no qual são usados. Para tanto, Rossari adota uma análise duplamente comparativa, visto que se centra nos contrastes entre enunciados com ou sem conectores ou nos contrastes entre enunciados com conectores que integram uma mesma classe semântica. Segundo a autora, tal análise causa impacto na forma como se concebem as relações discursivas na medida em que o estudo dos conectores oferece um esclarecimento particular a essas relações.

Os conectores são idealizados não apenas como vetores de restrições que limitam suas possibilidades de emprego em configurações adequadas ao tipo de relação que são levados a explicitar, mas também como vetores de relações que não podem manifestar-se independentemente de seu emprego. Para chegar a essa conclusão, Rossari considera dois pontos de vista para a caracterização dos conectores: o ponto de vista conceitual e o ponto de vista lexical.

O primeiro define as relações do discurso fundamentando-se essencialmente sobre a interpretação dos enunciados e considera os conectores como índices dessas relações. Além disso, considera que as relações podem ser apreendidas independentemente das marcas (que são suscetíveis

Gláuks 180

de qualificá-las). Isto é, as relações podem ser definidas em termos das relações lógicas e temporais que subsistem entre os acontecimentos evocados nos enunciados; podem ser definidas em função da intenção comunicativa do locutor e da decodificação da intenção do locutor pelo destinatário; e/ou podem ser definidas baseando-se na experimentação psicolinguística para extrair os princípios cognitivos sobre os quais são construídas as relações de coerência. Em todos esses casos, os conectores pragmáticos são concebidos como pistas/vestígios/traços que manifestam a existência das relações. Os conectores são, dessa forma, “reveladores”, marcas explícitas das relações.

O ponto de vista lexical, por outro lado, aborda a questão das relações do discurso pelo âmbito das marcas lexicais que são suscetíveis de assinalá-las. É o estudo do funcionamento semântico-pragmático dos conectores que conduz à questão do sentido das relações do discurso. Os conectores são, portanto, como binóculos através dos quais se tem acesso aos sentidos das relações do discurso. A partir desse ponto de vista, podem-se levar em conta duas opções sobre as relações do discurso. A primeira é a opção forte, que considera que o sentido dos conectores oferece as indicações sobre os sentidos das relações do discurso em geral, então pode haver relações discursivas que só se manifestam pelo emprego de certos conectores. A segunda opção é a fraca, que considera que o sentido dos conectores oferece as indicações unicamente sobre o sentido das relações do discurso com conectores.

Rossari adota o ponto de vista lexical em sua opção fraca para o estudo das relações do discurso, devido à constatação da não-equivalência sistemática entre as relações não marcadas e as relações marcadas com os conectores. Além disso, sua escolha se deve também à existência de relações que somente são manifestáveis pelo uso de um conector. Em [14]:

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 181

[12] Max se esqueceu de comparecer à reunião. O comitê decidiu adiá-la.

pode-se interpretar que os constituintes se conectam em uma relação de consequência:

[13] Max se esqueceu de comparecer à reunião. Portanto, o comitê decidiu adiá-la.

mas não é obrigatória, pois outras relações podem ser consideradas quando essa não está ativada, como em

[14] Max se esqueceu de comparecer à reunião. De qualquer forma, o comitê decidiu adiá-la.

cuja relação não é tão esperada. Nesse caso, ela só pode manifestar-se pela presença do conector.

Tendo em vista a complexidade da definição dos marcadores discursivos e dos conectores, passaremos a uma descrição teórica de alguns estudos que são regidos por princípios pragmáticos e que contribuíram para os estudos das expressões conectivas.

3 Os conectores e a Pragmática

Para a Pragmática, a base da explicação dos conectores está no fato de eles poderem ultrapassar o âmbito oracional e conectarem outros tipos de categoria léxica ou sintagmática, o que justifica termos como “enlaces extraoracionais”. Sendo assim, os conectores alcançam níveis textuais diferentes do nível sintático e entram no rol dos elementos que implicam na comunicação inferencial e contextual.

Gláuks 182

A Pragmática é, segundo Escandell Vidal (2006, p. 15-16), “o estudo dos princípios que regulam o uso da linguagem na comunicação, isto é, as condições que determinam tanto o emprego de um enunciado concreto por parte de um falante concreto em uma situação concreta, como sua interpretação por parte do destinatário”. Ou seja, se ocupa da parte interpretativa, da relação entre os signos e seus intérpretes, e se concebe para dar conta da diferença entre o dito e o interpretado.

O modelo de análise pragmática proposto por Escandell (2006) é constituído por duas classes de elementos: (I) de natureza material, “física”, por serem entidades objetivas, descritíveis externamente; e (II) de natureza imaterial, já que se trata dos diferentes tipos de relações que se estabelecem entre os elementos de natureza material. Considera-se que esses componentes relacionais sejam mais significativos que a própria natureza material, pois algumas características constitutivas desses elementos derivam precisamente dos pontos de contato que os enlaçam com outros elementos, de tal maneira que fica estabelecido um conjunto de relações que serve para marcar os limites de um elemento material. As relações que se estabelecem dão lugar a conceitualizações subjetivas que, por sua vez, geram princípios reguladores da conduta que se objetivam em forma de leis empíricas (isto é, de regularidades observáveis de natureza não prescritiva). A existência desses outros fatores se justifica pelos resultados que produz sua funcionalidade.

Dentro dos componentes materiais, os conceitos de emissor, destinatário, enunciado e entorno são importantes para a compreensão e definição da Pragmática. O primeiro conceito refere-se à pessoa que produz intencionalmente uma expressão linguística em um momento dado, seja oralmente ou por escrito. O emissor é, portanto, o falante que está fazendo uso da palavra em um determinado momento. O destinatário, por outro lado, é a pessoa (ou pessoas) à(s) qual(is) o emissor dirige

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 183

seu enunciado e com a(s) qual(is) normalmente costuma intercambiar seu papel na comunicação de tipo dialogante. Assim, o destinatário é a pessoa à qual se dirigiu uma mensagem específica.

Por enunciado entende-se a expressão linguística produzida pelo emissor. Do ponto de vista físico, um enunciado não é mais que um estímulo, uma modificação do entorno, seja auditivo ou visual. O termo enunciado se usa especificamente para fazer referência a uma mensagem construída segundo um código linguístico, marcada por pausas ou delimitada pela mudança de emissor. Dessa forma, podem ser enunciados tanto uma simples interjeição como um livro inteiro, como um sintagma nominal ou um parágrafo. Isso implica que não há limites gramaticais para a noção de enunciado, ou melhor, que não se pode individualizar um enunciado utilizando critérios gramaticais. Os únicos critérios que são válidos são os de natureza discursiva, os que são dados por cada ato comunicativo particular. Em resumo, o enunciado é uma sequência linguística concreta realizada por um emissor em uma situação comunicativa que se define de acordo com critérios discursivos e sua interpretação depende do seu conteúdo semântico e de suas condições de emissão (ESCANDELL, 2006, p. 31).

Já o termo entorno também pode ser designado como contexto ou situação espaço-temporal. Trata-se do suporte físico no qual se realiza a enunciação e inclui como fatores principais as coordenadas de lugar e tempo.

Dentro dos componentes de natureza imaterial, ou relacional, é importante definir a informação pragmática, a intenção e a relação social. Por informação pragmática entendemos o conjunto de conhecimentos, crenças, suposições, opiniões e sentimentos de um indivíduo em um momento qualquer da interação verbal. Enquanto sujeitos, o emissor e o destinatário possuem uma série de experiências anteriores

Gláuks 184

relativas ao mundo, aos demais e a tudo que os rodeia. No entanto, não se trata apenas de conhecimento; a informação pragmática compreende tudo o que constitui nosso universo mental, desde o mais objetivo até as manias mais pessoais. Assim, ela consta de três subcomponentes: (a) geral, que compreende o conhecimento do mundo, de suas características naturais, culturais etc.; (b) situacional, que abarca o conhecimento derivado do que os interlocutores percebem durante a interação; e (c) contextual, que inclui o que se deriva das expressões linguísticas intercambiadas no discurso imediatamente precedente.

A intenção é a relação entre o emissor e sua informação pragmática, de um lado, e o destinatário e o entorno, de outro, e se manifesta sempre como uma relação dinâmica. Toda atividade humana consciente e voluntária se concebe sempre como reflexo de uma determinada atitude de um sujeito frente a seu entorno e, por isso, é importante descobrir que atitude está por detrás de um determinado ato, isto é, perguntar-se qual é a intencionalidade dos atos e decisões. Assim, o termo intenção deve ser entendido em sua acepção subjetiva e psicológica, já que funciona como um princípio regulador da conduta no sentido de que conduz o falante a utilizar os meios que considera mais idôneos para alcançar seus fins. Dessa forma, até mesmo o silêncio, enquanto atividade consciente e voluntária, pode ser também um meio indireto para conseguir determinados objetivos.

Quando falamos de relação social, referimo-nos à relação que existe entre os interlocutores pelo mero fato de pertencerem a uma sociedade, isto é, a uma organização humana com uma estrutura social. Seu papel na comunicação é fundamental, já que o emissor constrói seu enunciado na medida do destinatário. Um dos fatores de que se deve dar conta, portanto, é o grau de relação social entre ambos e, desse modo, a

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 185

relação social impõe uma série de seleções que determinam a forma do enunciado.

Vejamos a diferença que uma visão pragmática pode dar a certas enunciações.

Para Saussure, o falante codifica algo recorrendo ao código, uma língua determinada, enquanto que o ouvinte, que conhece esse código, decodifica o enunciado recebido e compreende o que se queria comunicar. Dessa forma, somente o dito é comunicado.

Grice, por outro lado, diz que toda comunicação verbal consta de uma parte codificada e de outra que é produto de inferências, isto é, de certos “processos cognitivos que geram uma informação semântica nova, a partir de uma informação semântica anterior, em um determinado contexto” (DELL’ISOLA, 2001, p. 44). Para que produza o processo inferencial, é preciso, além do que é dito, um contexto, que está formado pelo que Escandell Vidal (1999) chama de contexto extraverbal, que seria o conjunto de circunstâncias não linguísticas que se notam diretamente ou que são conhecidas pelo falante, ou seja, tudo aquilo que, física ou culturalmente, rodeia o ato de enunciação; e o cotexto, as informações contidas linguisticamente no texto ou inferíveis a partir dele.

Vejamos um exemplo. Suponhamos que uma pessoa liga para seu amigo para convidá-lo para ir ao cinema e, como resposta, o amigo diz:

[15] Estou doente.

Para Saussure, o dito é o comunicado, ou seja, o que a pessoa fez foi simplesmente dizer que está doente. Grice, por outro lado, interpreta esse enunciado levando em conta o que está implícito, derivado da percepção do contexto: o amigo recusou o convite.

Gláuks 186

Vejamos um exemplo de inferência obtida por meio dos conectores:

[16] Sara é brasileira e, portanto, é extrovertida.

[17] Sara é brasileira e, no entanto, é extrovertida.

As condições de verdade das duas proposições são idênticas, ou seja, será verdadeiro se Sara cumpre o ser extrovertida e o ter nascido no Brasil. No entanto, as inferências obtidas são diferentes: na [16] a razão de Sara ser extrovertida é que os brasileiros o são e na [17] Sara é extrovertida apesar de não serem os brasileiros. Dessa forma, portanto e no entanto contribuem para o processamento das intervenções, e não ao seu significado conceitual.

Entendemos como significado conceitual aquele que contribui para as condições de verdade da proposição semântica que se encerra no enunciado. Unidades como os conectores possuem significado de processamento, pois codificam restrições de processamento às implicaturas.

A pragmática também contribui com dois conceitos importantes para a compreensão dos enunciados: a implicatura conversacional e a implicatura convencional.

A primeira se obtém exclusivamente pelo Princípio da Cooperação proposto por Grice: a compreensão de um enunciado depende da quantidade de informação proporcionada pelo falante, que deve ser toda a necessária; não se deve mentir; deve ser pertinente o que foi dito; e o falante deve ser claro em sua expressão.

Logo, se uma pessoa diz: [18] Tenho frio

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 187

e não nos está mentindo, além de ser pertinente, e observamos que há uma janela aberta e temos a memória de que fechar a janela alivia o frio, concluímos que [18] implica “Feche a janela”.

A implicatura convencional, por outro lado, é uma conclusão inferencial que depende de que conector se usa e da posição dos membros do enunciado. Por exemplo:

[19] As doenças citadas nesta lista não matam, no entanto deixam marcas eternas no paciente.

[20] As doenças citadas nesta lista deixam marcas eternas no paciente, no entanto não matam.

As condições de verdade são idênticas, pois em ambas as doenças não matam e deixam marcas eternas. Entretanto, as implicaturas são diferentes:

[19a] As doenças citadas nesta lista não matam, no entanto deixam marcas eternas no paciente. [Que pena que deixam marcas...]

[20a] As doenças citadas nesta lista deixam marcas eternas no paciente, no entanto não matam. [Que bom que não matam!]

Portanto, a implicatura com no entanto se obtém do membro que o segue, ou seja, “a conclusão à qual se chega será aquela que se obtenha do membro do discurso que o segue e não do que o precede” (PORTOLÉS, 1998a, p. 18).

Martín e Portolés (1999) resumem que serão marcadores discursivos aqueles signos que não contribuem diretamente para o significado conceitual dos enunciados, mas que os orientam e ordenam as inferências que se obtêm a partir deles. Ou seja, o significado dos marcadores contribui para o processamento do

Gláuks 188

que se comunica e não para a representação da realidade comunicativa. Por isso, ficam excluídos alguns usos de conjunções como porque e para que, como nos exemplos [21a] e [21b]:

[21a] Ele não vem porque você está triste.

[21b] Ele não vem para que você não esteja triste.

Para os autores, as conjunções marcadas não guiam unicamente as inferências, mas também contribuem para a construção da proposição que subjaz em cada um dos enunciados.

4 Os conectores e a argumentação

Segundo a Teoria da Argumentação na Língua, que se baseia na semântica e estuda a forma como os enunciados condicionam por seu significado a continuação do discurso, qualquer enunciado argumenta, favorece uma série de continuações do discurso e dificulta outras, porque isso é inerente a todo significado linguístico (PORTOLÉS, 1998a).

Se voltarmos aos exemplos das doenças ([19a] e [20a]), observaremos que as conclusões (implicaturas) não podem ser explicadas pela representação da realidade, já que, nas duas intervenções, as doenças “não matam” e “deixam marcas eternas”, mas sim por razões estritamente linguísticas: o significado de no entanto e a oposição dos membros do discurso que conecta. Observe estes outros exemplos:

[22] Ganho quase três mil reais.

[23] Ganho apenas três mil reais.

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 189

O primeiro enunciado poder-se-ia prosseguir com Que ótimo!, mas seria estranho continuar o segundo do mesmo modo. No entanto, a informação que nos apresenta [23] consiste em que meu salário não chega a três mil reais, enquanto que se alcança esta quantidade em [24]. A lógica dos fatos nos encaminharia a que fosse o contrário, que a mais dinheiro correspondesse mais alegria, mas, pelo que vemos, a língua atua de um modo diferente (PORTOLÉS, 1998b).

A sequência de um discurso não se baseia, portanto, nos fatos aparentemente representados, mas sim no dito. Como afirma Portolés (1998b, p. 75), “não se argumenta ‘com’ uns enunciados que representam uns fatos, mas sim ‘na’ mesma forma linguística desses enunciados”. Daí que possam favorecer umas continuações do discurso e impedir outras. Isso se chama orientação argumentativa. Vejamos outros exemplos:

[24] Valéria é inteligente. Encontrará trabalho.

[25] # Valéria é inteligente. Vai ser reprovada.

O enunciado [24] apresenta argumentos co-orientados, ou seja, o primeiro segmento nos leva a concluir que o segundo é possível. No entanto, [25] é estranho porque o que o membro “Valéria é inteligente” favorece, dentre outras possíveis continuações, é que se aprove. Essa conclusão é o que se pode chamar antiorientada, e estaria perfeitamente representada assim:

[26] Valéria é inteligente, entretanto vai ser reprovada.

A contra-argumentação seria, portanto, a vinculação de dois membros do discurso na qual o segundo membro se apresenta como supressor ou atenuador de alguma conclusão que poderia ser obtida do primeiro (PORTOLÉS, 1998a).

Gláuks 190

Para essa teoria, os conectores são elementos linguísticos que, com mais facilidade, podem ser desvinculados de uma visão logicista de língua, isto é, já não são concebidos como meros nexos que coordenam ou conectam umas orações ou umas proposições com outras, mas sim como unidades cuja significação está formada por uma série de instruções que faz compreender de um modo determinado a relação semântica entre os membros conectados. Como explica Escandell (2006, p. 98-99), os conectores argumentativos são os elementos linguísticos que servem para marcar a orientação argumentativa de um enunciado quando o enlaçam a outro. Eles são responsáveis “externos” da existência de um ato de argumentação.

Além da orientação argumentativa, a Teoria da Argumentação na Língua traz um importante mecanismo de observação: as escalas argumentativas. Existem diversos argumentos que, tendo a mesma orientação, possuem diferentes forças. Esse fato permitirá propor escalas argumentativas que os ordenam segundo sua força. Assim, para concluir ‘João não pode ser o sócio capitalista nesse negócio’, pode-se partir de diversos argumentos ordenados em uma escala:

+ FORÇA

- João tem dívidas.

- João não tem carro.

- João não tem imóvel em seu nome.

É o conhecimento de mundo em que vivemos o que nos diz que, em nossa sociedade, antes se tem um carro que um imóvel, ou que, em qualquer caso, os devedores não emprestam. De todo modo, a língua possui alguns signos especializados a sua disposição para ordenar as escalas. Assim, em:

[27] João não tem casa própria e nem sequer tem carro.

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 191

nem sequer ordena, pelas instruções semânticas de sua significação, casa própria com respeito a ter carro, mostrando que, para o falante, é mais fácil comprar um automóvel que ter uma casa. Como a significação de nem sequer limita a potencialidade argumentativa do membro do discurso no qual se encontra, trata-se de um operador argumentativo.

Isso explica, por exemplo, a estranheza ao dizer:

[28] # É multimilionário, mais que isso, tem muito dinheiro.

pois é multimilhonário está em uma escala de força superior a tem muito dinheiro. O que faz o conector mais que isso é marcar que o que se situa no membro em que aparece tem mais força argumentativa, o que em [29] não tem lógica. Entretanto, a reestruturação abaixo estaria correta:

[29] Tem muito dinheiro, mais que isso, é multimilionário.

Para essa teoria, conectores são, portanto, unidades cuja significação está formada por uma série de instruções que faz compreender de um modo determinado a relação semântica entre os segmentos vinculados.

5 Os conectores e a relevância

O princípio da Teoria da Relevância baseia-se em uma característica básica da cognição humana: “um indivíduo, em interação com o meio, presta mais atenção a uns fenômenos que a outros. Desde o ponto de vista biológico, psicológico e cultural, a atenção humana é caracteristicamente seletiva.” (MONTOLÍO, 1998, p. 96). Em princípio, trata-se de um mecanismo endógeno, pré-instalado geneticamente e seu funcionamento não se limita unicamente a interessar-se pelos

Gláuks 192

sinais sensoriais mais intensos e peculiares, mas também a obedecer ao critério das expectativas geradas internamente pelo próprio sistema de processamento:

os conhecimentos armazenados em nossa memória não apenas nos permitem, por exemplo, reconhecer e identificar a um determinado animal como um rinoceronte, mas também nos indicam que a presença do mesmo em um zoológico é perfeitamente esperável, enquanto que sua aparição na cozinha de nossa casa resulta bastante improvável – e notavelmente perigosa para nossa integridade física. (MONTOLÍO, 1998, p. 97).

Sperber e Wilson, fundadores dessa teoria, sugerem que os sistemas cognitivos eficazes: (a) centram sua atenção no signo ou fragmento de informação mais relevante dentre os disponíveis; (b) constroem as representações mentais mais pertinentes possíveis desse fenômeno; e (c) processam essas representações em um contexto que potencializa ao máximo sua relevância.

Inclusive a releitura do conceito de contexto proposto por essa teoria segue esse pensamento: o contexto desempenha um papel decisivo na interpretação pragmática de todos os enunciados, além de que não está pré-determinado ou dado de antemão na mente do destinatário que deve processar um enunciado, mas se constroi ao mesmo tempo em que se interpreta (MONTOLÍO, 1998). Há uma ampliação da noção de contexto, que ultrapassa o físico e o linguístico para alcançar um conjunto de premissas ou suposições instaladas na memória ou que são acessíveis dedutivamente que também participam na interpretação de um enunciado. Como propõe Portolés (1998a), esse princípio da relevância considera que, em todos os falantes de todas as culturas, pelo fato de que são seres humanos, há um guia de obtenção das inferências.

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 193

Se se considera que os falantes são, desde o ponto de vista cognitivo, mecanismos eficientes de processamento da informação, queremos dizer que eles aspiram a rentabilizar ao máximo os recursos cognitivos de que dispõem no curso de qualquer situação comunicativa de que participam. Todo enunciado comunica a seu destinatário a presunção de sua pertinência ótima, ou seja, “nós buscamos na relação entre o dito e o contexto a pertinência maior; isto é, o efeito cognitivo maior – a maior informação – em relação com o esforço de tratamento menor”. (PORTOLÉS, 1998a, p. 19).

Voltando a nosso tema, a utilização de um conector só é pragmaticamente adequada se o falante pode encontrar, seja no contexto físico, seja no linguístico, seja na memória, alguma premissa, alguma informação que explique o porquê da relação entre as proposições relacionadas.

[30] # É guatemalteco; no entanto, é cientista.

Com o enunciado [30], é custoso ter acesso a um contexto possível (alguma suposição, expectativa, crença etc.) no qual se explique a oposição estabelecida no enunciado entre ser originário de um país latino-americano e a falta de cientificismo. Por outro lado, no enunciado [31], é a correspondência entre o valor “instrucional” (que ideia transmite: causa, oposição, consequência…) do conector e a acessibilidade a um contexto o que explica a perfeita interpretabilidade do enunciado:

[31] Carlos é carioca; no entanto, não conhece o Cristo Redentor.

Essa oração é interpretável para todos aqueles que compartilham um conjunto de suposições culturais – um

Gláuks 194

determinado contexto mental –, nesse caso, o da comunidade cultural brasileira, pelo qual incluímos entre nosso conhecimento enciclopédico de mundo (em nossa memória) a localização do Cristo Redentor na capital do Rio de Janeiro. Por essa razão, resulta para nós relevante a relação contra-argumentativa que se estabelece entre as proposições “ser carioca” e “não conhecer o Cristo Redentor”.

Montolío (1998, p. 108) também diz que “parece claro que algum indivíduo que não pertença a nossa comunidade e que a desconheça, um falante chinês, ou saudita, ou hindu, por exemplo, não conseguirá entender a presença nesse enunciado do conector no entanto” e, portanto, seu valor de apresentar a informação “não conhecer o Cristo Redentor” como anulando uma inferência possível de “ser carioca”. Isso se ele conhece os termos carioca e Cristo Redentor.

Por outro lado, os conectores dão “pistas” para a interpretação. O uso de tais mecanismos consiste em guiar o processo de interpretação do interlocutor mediante a especificação de certas propriedades do contexto e dos efeitos contextuais. Dessa forma, por mais que um hindu não saiba que é esperável que os que vivem na cidade do Rio de Janeiro conheçam o Cristo Redentor, consegue ver a relação de oposição entre essas proposições no enunciado [32] e pode inferir, graças ao conector no entanto, que os cariocas costumam conhecer o Cristo Redentor e que Carlos é uma exceção.

6 Os conectores e o modelo de análise modular

O Modelo de Análise Modular (MAM) se apresenta como um modelo pragmático da articulação do discurso e de interseção dos diversos trabalhos de várias correntes de pesquisa, como cita Marinho (2004).

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 195

Nessa teoria, os conectores seriam analisados a partir da organização relacional do discurso, que trata das relações ilocucionárias e interativas que há entre os constituintes do texto definidos na estrutura hierárquica e as informações presentes na memória discursiva que, como define Berrendonner (apud MARINHO, 2004), é um “conjunto de saberes conscientemente partilhados pelos interlocutores”.

As relações ilocucionárias são aquelas que “se dão no nível dos constituintes de uma troca” e as interativas, por outro lado, “no nível dos constituintes das intervenções” (MARINHO, 2003). Estas últimas costumam ser marcadas pelos conectores que, segundo o MAM, dão instruções sobre as informações necessárias para a interpretação do discurso e, assim, são considerados como importantes para essa forma de organização, uma vez que vão permitir que se interpretem as relações de discurso.

Na presença dos conectores, a descrição da organização relacional é constituída a partir da acoplagem entre as informações obtidas com a análise das dimensões hierárquica (relativa à definição dos constituintes textuais), lexical (relativa aos sentidos conceituais e procedurais dos lexemas) e sintática (relativa ao conjunto de regras que determinam as categorias e construções de proposições em uso em determinada língua ou variedade de uma língua).

No entanto, pode acontecer (e não raro acontece), de a relação entre um constituinte e uma informação estocada na memória não estar marcada. Nesse caso, descreve-se a organização relacional a partir da acoplagem entre as informações de natureza hierárquica e as de natureza referencial (relativas aos conhecimentos do universo do discurso estocados na memória discursiva).

Gláuks 196

Marinho (2003) ainda ressalta que a descrição relacional pode ser realizada usando-se um pequeno número de relações genéricas que, ainda que encubram as nuances mais finas, são suficientes para descrever todas as formas de discurso. Dessa maneira, utiliza-se a noção de argumento para recobrir as relações interativas denominadas de causa, explicação, justificação, consequência etc.

A descrição das relações genéricas, importantes para a compreensão e análise dos conectores, fornece uma esquematização através da qual se localizam as relações ilocucionárias e interativas entre os constituintes discursivos e as informações estocadas na memória discursiva. Segundo Marinho (2003),

dessa esquematização podem-se extrair informações que poderão ser combinadas com as extraídas das representações de outras formas de organização. Mas, para considerar as diferenças entre essas relações, visando ao tratamento de um enunciado em particular, procede-se, num momento posterior à análise das relações genéricas, à descrição das relações discursivas específicas com a aplicação de um princípio geral de cálculo inferencial, em função das propriedades linguísticas e contextuais desse enunciado.

Com isso, a análise da organização relacional procura, por um lado, (a) identificar as relações ilocucionárias e interativas genéricas entre os constituintes da estrutura hierárquica e as informações estocadas na memória discursiva e, por outro lado, (b) descrever o percurso inferencial que permite determinar a relação específica existente entre um constituinte e uma informação da memória discursiva. A análise da organização relacional resulta, portanto, da descrição das relações genéricas a qual deverá ser completada pela descrição dos percursos inferenciais que conduzem à interpretação de cada uma das sequências estudadas. Como resume Marinho (2003),

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 197

com essa abordagem, numa única forma de organização, focaliza-se a questão das relações discursivas genéricas existentes no texto, ou em determinado enunciado extraído do texto, e em seguida busca-se a explicação, através de um cálculo inferencial, para a determinação da informação estocada na memória discursiva que é ligada a um constituinte discursivo através da relação marcada por um conector ou para a determinação da relação não marcada existente entre os constituintes.

Assim, os conectores são vistos não apenas como elementos em torno dos quais o discurso se articula, mas também como guias para a interpretação, como elementos que podem facilitar a compreensão dos enunciados em que aparecem.

Como afirma Berrendonner (1983 apud MARINHO, 2003), se se quer dar conta de maneira homogênea das relações, é necessário admitir que os conectores se encadeiam sempre sobre as informações em memória discursiva e que eles podem ter sua fonte, seja em um constituinte anterior, seja no ambiente cognitivo imediato, seja nos conhecimentos enciclopédicos dos interactantes, daí a necessidade de Roulet (2001), já supracitado por meio de Marinho (2003), de fundar a descrição da organização relacional sobre uma lista reduzida de categorias genéricas, suficientes para descrever todas as formas de discursos, dialógicos e monológicos, a partir da noção de argumento, utilizada como categoria genérica para recobrir uma das classes de relações interativas.

Tendo em vista a necessidade de fundar a descrição da organização relacional sobre uma lista reduzida de categorias genéricas, Roulet (1999) considera que os conectores podem explicitar as seguintes relações:

a) argumento: porque, pois, visto que, uma vez que, devido a, se, então, portanto, de modo que, assim etc.

Gláuks 198

b) contra-argumento: mas, porém, entretanto, no entanto, embora, apesar de, mesmo que, ainda que, somente etc.

c) reformulação5: ou seja, ou melhor, enfim, finalmente, em suma etc.

d) topicalização: quanto a, no que se refere a, com relação a etc., ou o deslocamento à esquerda.

e) sucessão6: em seguida, depois etc.

f) preparação: sem marca específica, quando o constituinte subordinado precede o principal. É mais própria do discurso oral.

g) comentário: sem marca específica, quando o constituinte subordinado sucede o principal (pronome relativo).

h) clarificação: sem marca específica, e mais própria do discurso oral.

Para o autor, os conectores, não só marcam as relações interativas, mas também oferecem indicações quanto à hierarquia dos constituintes por eles articulados, já que é no módulo hierárquico em que se definem os constituintes de base da estrutura do texto, bem como as regras que permitem gerar as estruturas hierárquicas de todos os textos possíveis. Dessa forma, os conectores interativos que expressam uma relação argumentativa do tipo causal, explicativa ou de justificativa introduzem sempre um constituinte subordinado, enquanto que aqueles que expressam uma relação argumentativa do tipo conclusiva ou consecutiva introduzem um constituinte principal. Os conectores contra-argumentativos do tipo mas introduzem um constituinte principal e os do tipo embora, um constituinte subordinado. Os conectores reformulativos introduzem sempre

5 Indicam uma relação de equivalência entre duas formulações ou uma relação de

recapitulação da formulação anterior. 6 Indicam relações consecutivas entre os acontecimentos de uma narrativa.

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 199

constituintes principais, e os de topicalização, constituintes subordinados.

Embora sejam muito importantes, nem todas as relações interativas podem ser expressas por conectores. Para as relações como as de comentário, preparação e clarificação não existem marcadores específicos. Ainda porque a relação referencial entre os conteúdos ou as enunciações de dois atos já é bastante evidente, a presença do marcador se torna a presença do marcador desnecessária, como afirma Marinho (2003) citando Roulet (2001).

Quando as relações discursivas entre os atos e as informações da memória discursiva não são explicitadas por um conector, o analista vai se basear na possibilidade de inserção de marcadores no texto a fim de que possa identificar as relações, bem como determinar o estatuto funcional e hierárquico da unidade discursiva (ROSSARI, 1993).

Enfim, para o Modelo Modular, os conectores são concebidos como elementos que contribuem para a elucidação da articulação dos constituintes textuais, evidenciando as relações dominantes do texto e a forma como ele é construído (MARINHO, 2010).

7 Conclusão

Traçamos, neste trabalho, um panorama sobre os conectores e marcadores discursivos e algumas das teorias que abordam esses elementos. Grosso modo, apesar das diferenças estabelecidas entre os conceitos de conectores e MD, tratamos de uma classe de expressões linguísticas que reagrupa, além de certas conjunções de coordenação (mas, portanto, ora, então), certas conjunções e locuções conjuntivas de subordinação (porque, como, com efeito, em consequência, o que quer que

Gláuks 200

seja etc.), grupos nominais ou preposicionais (apesar disso etc.), advérbios e locuções adverbiais (no entanto etc.) e algumas estruturas que possuem um esvaziamento semântico, como parece acontecer com seja como for. Essas expressões linguísticas possuem a função de contribuir para o estabelecimento de uma relação coesiva com, pelo menos, o enunciado que as precede no discurso. Tal relação coesiva pode se referir a mais de um enunciado anterior, inclusive pode afetar toda a porção de discurso precedente, ou seja, pode conectar um enunciado a todo o texto que vem antes do conector. Ao ligar, portanto, unidades de diferentes níveis (palavras, proposições, conjuntos de proposições, grandes porções de texto), os MD guiam, de acordo com suas diferentes propriedades morfossintáticas, semânticas e pragmáticas, as inferências que se realizam no momento da comunicação. Por outro lado, algumas relações só existem entre diferentes segmentos textuais graças à presença desses elementos conectivos explícitos.

Fazer um resgate como este que fizemos pode ser de muita valia para analisar conectores e MD em textos, além de pesquisar expressões que ainda não foram estudadas sob essas nomenclaturas, o que torna a área dos marcadores uma grande promessa de novas investigações linguísticas e discursivas.

Referências

BLAKEMORE, D. Understanding Utterances. Oxford: Blackwell, 1992.

DELL-ISOLLA, R. L. P. Leitura: inferência e contexto sociocultural. Belo

Horizonte: Formato, 2001 (edição revisada e atualizada).

ESCANDELL VIDAL, Mª. V. Introducción a la pragmática. Barcelona:

Ariel, 2006 (nova edição atualizada).

FRASER, B. What are discourse markers? In: Journal of Pragmatics, n. 31,

p. 931-952, 1999.

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 201

GILI GAYA, S. Curso superior de sintaxis española. México: Minerva,

1943.

LABOV, W; FANSHEL, D. Therapeutic discourse. New York: Academic

Press, 1977.

LOUREIRO, V. J. S. Los marcadores del discurso dentro de la perspectiva

del análisis gramatical. In: BARROS, L. G.; COSTA, Mª J. D.; VIEIRA, V.

R. A. (Orgs.). Congresso Brasileiro de Hispanistas: Hispanismo 2004:

língua espanhola. Florianópolis: ABH, 2004.:p. 471-480.

MARINHO, J. H. C. A organização relacional do discurso. In: Cadernos de

Pesquisa. Nº 41. Belo Horizonte: NAPq/FALE/UFMG, abril, 2003.

MARINHO, J. H. C. Uma abordagem modular e interacionista da

organização do discurso. In: Revista da Anpoll. Nº 16. São Paulo. jan/jun.

2004.

MARINHO, J. H. C. A atuação do onde na articulação discursiva. In:

SARAIVA, Mª E. F.; MARINHO, J. H. C. (Orgs.). Estudos da língua em

uso: relações inter e intra-sentenciais. Belo Horizonte: Núcleo de Estudos da

Língua em Uso, Grupo de Estudos Funcionalistas da Linguagem, Faculdade

de Letras da UFMG, 2005.

MARINHO, J. H. C. Estudando expressões conectivas emergentes no

português brasileiro escrito. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL: 25

anos de ANPOLL – memórias e perspectivas, 25, Belo Horizonte, 2010.

MARTÍN ZORRAQUINO, Mª A.; PORTOLÉS LÁZARO, J. Los

marcadores del discurso. In: BOSQUE MUÑOZ, I.; DEMONTE BARRETO,

V. (Dir.). Gramática descriptiva de la lengua española. Tomo III. Madrid:

Espasa, 1999. p. 4051-4213.

MONTOLÍO, E. La teoría de la relevancia y el estudio de los marcadores

discursivos. In: ZORRAQUINO, M.; MONTOLÍO DURÁN, E. (Coord.).

Los marcadores del discurso: teoría y análisis. Madrid: Arco/Libros, S.L.,

1998. p. 93-119.

MONTOLÍO, E. Conectores de la lengua escrita. Barcelona: Ariel, 2001.

Gláuks 202

NEBRIJA, A. Gramática de la lengua castellana. Edición preparada por

Antonio Quilis. Madrid: Editora Nacional, 1980.

PORTOLÉS, J. Marcadores del discurso. Barcelona: Ariel, 1998a.

PORTOLÉS, J. La teoría de la argumentación en la lengua y los marcadores

del discurso. In: ZORRAQUINO, M.; MONTOLÍO DURÁN, E. (Coord.).

Los marcadores del discurso: teoría y análisis. Madrid: Arco/Libros, S.L.,

1998b.

ROSSARI, C. Les opérations de reformulation: analyse du processus et des

marques dans une perspective contrastive français-italien. Berne, Berlin,

Francfort, New York, Paris, Vienne: Peter Lang, 1993.

ROSSARI, C. Pour une approche lexicale des relations de discours:

l’example de donc. In: Revue de Sémantique et Pragmatique, n. 5, 1999.

ROSSARI, C. Connecteurs et relations de discours: des liens entre

cognition et signification. Nancy: Press Universtaires de Nancy, 2000.

ROULET, E. La description de l’organisation du discours: du dialogue au

texte. Paris: Didier, 1999.

ROULET, E. De la necessité de distinguer des relations de discours

sémantiques, textuelles et praxéologiques. Colloque internacional de

l’Université d’Aarhus. Mai. 2001.

SCHIFFRIN, D. Discourse markers. Cambridge: Cambridge University

Press, 1987.

VEZ, J. M. Fundamentos lingüísticos en la enseñanza de lenguas

extranjeras. Barcelona: Ariel, 2000.

ABSTRACT: This paper proposes a review of some theories that conceptualize and characterize connectors and discourse markers. They are considered linguistic elements that signal a cohesive relationship between two textual segments and guide, according to the morphosyntactic, semantic and pragmatic properties, inferences held at the moment of the communication. This review will provide theoretical contributions from

Dos Marcadores Discursivos e Conectores: Conceituação e Teorias Subjacentes 203

Pragmatics, Argumentation Theory, Relevance Theory, and Modular Analysis Model for the phenomenon of the connection that may be useful for future research in the field of Textual Linguistic and Discourse Analysis, for example.

KEYWORDS: Discourse markers. Connectors. Connection. Pragmatic theories. Cohesive relationship.

Data de recebimento: 31/05/2011

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks 204

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 205-226

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o Aluno e o

Espaço Escolar

Representations of English Teachers from Public Schools: a Glance at the Student and School Landscape

Vanderlice dos Santos Andrade Sól1

Maralice de Souza Neves2

RESUMO: Tendo como base a Teoria do Discurso e as contribuições da Psicanálise, o sujeito é visto em oposição ao sujeito cartesiano (existe quando pensa). Assim sendo, este estudo apresenta um recorte de uma pesquisa de doutoramento em andamento que investiga as tomadas de posição do professor. Esta é uma pesquisa de cunho qualitativo que segue uma abordagem metodológica que privilegia diferentes possibilidades de interpretação do corpus, utilizando questionários e entrevistas como instrumentos de formação do corpus. Os participantes, neste estudo, são 24 professores de inglês da rede pública de ensino da região Sudeste do Brasil. O foco do estudo está no fato de que esses professores são egressos de um curso de educação continuada para professores de inglês. Os resultados apontam que, ao tecer a rede de representações sobre as escolas onde atuam e os seus alunos, a maioria dos

1 Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG). Professora de Inglês do IFMG – Campus Ouro Preto. 2 Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas

(Unicamp). Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Gláuks 206

professores-enunciadores faz um desabafo de uma série de sintomas que impedem que eles desenvolvam um trabalho de qualidade. O dizer dos professores se apoia no binarismo: escola pública/escola particular e revela o desejo dos professores de ter um aluno ideal, que aprenderia se tivesse as qualidades desejadas.

PALAVRAS-CHAVE: Formação de professores. Educação continuada. Representações. Discurso. Escola pública.

Introdução

presente artigo tem como objetivo apresentar um recorte do estudo desenvolvido para a tese de

doutoramento em andamento intitulada “Trajetórias de professores de inglês egressos de um curso de educação continuada: identidades em (des)construção”.

Para subsidiar esta investigação, utilizaremos como apoio conceitos advindos de teorias do discurso e da Psicanálise. É imprescindível, na área de Linguística Aplicada (LA), problematizar a formação continuada do professor de Língua Estrangeira (LE) a partir da Teoria do Discurso em interface com a Psicanálise na tentativa de compreender como a identidade do professor é constituída.

O professor de línguas se apresenta como sujeito da falta sempre em busca de (alg)uma completude, inteireza e controle. Desse modo, o sujeito-professor, marcado pela falta e pelo desejo, é visto por Ghiraldelo (2006) como sujeito sócio-histórico, constituído na e pela linguagem, não possuindo, nessa perspectiva, controle sobre seu discurso e prática (o seu dizer será sempre afetado pelo inconsciente). Assim, a subjetividade é compreendida como algo em constante construção, calcada no

��

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 207

inconsciente, construída com e pelo (O) outro3 e é formada a partir da forma como o sujeito se relaciona com várias formações discursivas 4 . Assim, “discurso” é entendido como “tudo aquilo que é passível de ser verbalizado na forma oral, escrita, imagética (GHIRALDELO, 2006, p. 250). Nessa perspectiva, as teorias do discurso visam compreender como um objeto simbólico produz sentidos (ORLANDI, 2005).

1 Fundamentação teórica

A noção de “representação” adotada neste estudo transcende as noções ancoradas nos estudos sócio-culturais que abordam questões de identidade. Filiamo-nos à noção de “representação” atravessada pela Psicanálise, na qual as representações constituem o imaginário do sujeito e são de natureza inconsciente. Nesse sentido, temos a definição de sujeito como cindido, heterogêneo, atravessado pelo inconsciente e habitado por outros, assim, a identidade é entendida como algo em construção, em movimento e modificação constantes.

Para desenvolver o estudo em questão, nos baseamos em conceitos da teoria psicanalítica freudiana e lacaniana a fim de estabelecer uma interface entre a representação e a construção das subjetividades. Nesse sentido, Andrade (2008, p. 110)

3 Outro (com maiúscula) é definido por Lacan como o lugar do tesouro dos

significantes, ou um espaço aberto de significantes que o sujeito encontra desde o seu ingresso no mundo. É a referência ao simbólico. O conjunto dos termos que constituem esse espaço remete sempre a outros (da ordem do imaginário). Já outro (com minúscula), representa os sujeitos falantes, vem de fora, produz alteridade e marca a diferença nos sujeitos (LACAN, 2008).

4 A noção de formação discursiva na AD foi introduzida por Foucault e reformulada por Pêcheux. São as formações discursivas que determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada, funcionando como lugar de articulação entre língua e discurso.

Gláuks 208

afirma que representar implica dois elementos: representar “alguma coisa (1) para outra coisa (2)”. Isso nos remete à concepção de sujeito de Lacan (2008, p. 46), na qual um significante representa um sujeito para outro significante, ele “repudia a categoria de eterno, singularmente, ele é por si mesmo.” Assim, a representação está ligada à falta, a uma não-presença de um significante que vai sempre se remeter a outro e se apresenta sempre em cadeia no constante rearranjo discursivo.

Para Freud (1977), a representação está implicada com o processo de memória por meio de um jogo associativo. No caso dos professores envolvidos neste estudo, essa memória se apresenta como um conjunto de fragmentos desordenados, descontínuos, recalcados, diluídos, “esquecidos” no inconsciente, que, num determinado momento, um “eu” se põe a lembrar e a organizar na linguagem através de uma narrativa, dando um sentido para os pedaços que afloram no discurso, construindo, enfim, uma história de si e sobre si.

Nesse sentido, é válido problematizar o ensino/aprendizado de LE a partir das representações, uma vez que, assim, o professor poderá (re)significar suas angústias5 , mobilizando-as e tornando-as produtivas. Havendo essa movimentação de saberes, o aluno passará a assumir uma posição desejante frente à LE. Do contrário, poderá ser um simples processo técnico de transmissão de informação.

A Psicanálise pode subsidiar reflexões sobre questões relacionadas à Educação, problematizando questões do tipo: a

5 Segundo Lacan, a angústia está presente na relação do sujeito ao desejo do Outro.

Sendo assim, a angústia não é uma emoção. É um afeto, “[...] é esse corte [...] um pré-sentimento. Todos os desvios são possíveis a partir da angústia. Sua substância é: aquilo que não engana. [...] A angústia não é a dúvida, a angústia é a causa da dúvida.” (LACAN, 2005, p. 88). A angústia aparece como falta, mas na verdade a angústia aparece quando falta a falta.

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 209

ilusão da completude, a objetividade (tentativa de apagamento da subjetividade), o sonho de uma Educação plena (Educação para todos – quem seria esse “todos”), a singularidade (o inconsciente), a complexidade das metodologias e estratégias de ensino etc. Em suma, é nessa direção que o estudo aqui proposto pretende seguir, aliando conceitos da AD e da Psicanálise em um campo de investigação no qual a linguagem é vista como “meandros de luz e sombra” que fazem emergir “as resistências, os questionamentos, os impasses, os silêncios, etc.” (MRECH, 2005, p. 26).

Nessa perspectiva, as várias mazelas no contexto educacional levam o professor à angústia, à indecisão sobre o que fazer com seus alunos ou paralisação de seu fazer pedagógico. Nesse sentido, o professor só poderia definir o objeto da Educação a partir do sujeito. Assim, a Educação é vista como uma das atividades que pertencem à ordem do incompleto. Desse modo, o impacto da Psicanálise na Educação permite que se perceba a densidade trazida pelo fenômeno educativo. Sob o viés da Psicanálise, a Educação é vista como uma atividade que nunca termina e a prática, o professor, os alunos e a Educação perfeitos são da ordem do inatingível. Isso é algo que, ao mesmo tempo, pode angustiar e reconfortar, pode também consolar o professor, pois ele se lembrará que não é perfeito, seus alunos também não, mas que pode estabelecer laços sociais com eles que os permitam considerar a singularidade e investigar os processos de transmissão e sua recusa.

2 Abordagem metodológica

2.1 Percurso da investigação

Esta é uma pesquisa de cunho qualitativo, cuja modalidade segue uma abordagem metodológica que privilegia

Gláuks 210

diferentes possibilidades de interpretação sobre o material discursivo analisado, utilizando questionários e entrevistas como instrumentos de formação do corpus. Os participantes, neste estudo, são 24 professores de inglês da rede pública de ensino da região Sudeste do Brasil. O foco do estudo está no fato de que esse professores são egressos de um curso de educação continuada para professores de inglês. Neste artigo, apresentamos algumas representações dos professores de inglês sobre os alunos e o espaço escolar.

2.2 Condições de produção dos discursos e participantes da pesquisa

O estudo em questão está sendo desenvolvido com professores egressos do Curso de Educação Continuada para Professores de Línguas Estrangeiras – EDUCONLE, oferecido pela Faculdade Letras da UFMG. Para tal, foi feito um questionário semi-estruturado (Anexo A) e uma entrevista semi-estruturada (Anexo B).

Durante o mês de abril de 2010, a pesquisadora doutoranda entrou em contato, via telefone, com os 162 professores que participaram do projeto EDUCONLE de 2002 a 2009, perfazendo um total de oito turmas. Dessas oito turmas, vinte e quatro professores responderam aos questionários (Quadro 1 - Anexo C). A carga horária média de trabalho semanal dos professores é de vinte e oito horas/aula.

Na seção a seguir, serão apresentados os gestos de interpretação empreendidos. Para isso, desenvolvemos, neste estudo, mecanismos de escuta e gestos de interpretação que consideram a porosidade da linguagem; os fragmentos que denunciam a heterogeneidade do sujeito-professor; a “identidade camaleônica” do sujeito da falta, cindido, descentrado, em busca

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 211

de si mesmo, do preenchimento impossível da falta que o constitui e o inscreve como sujeito da linguagem (ECKERT-HOFF, 2008, p. 16). Por fim, para analisar sob tal perspectiva, foram observados, no discurso dos enunciadores, marcas do intradiscurso (linearidade do dizer); interdiscurso (já-dito esquecido); ressonâncias discursivas (repetições de marcas linguísticas) discutidas por Serrani (2005); modalizadores, denegação; contradição, regularidades e dispersão de sentidos.

3 Os gestos de interpretação: aquilo que (re)vela

Ao tentar uma definição do aluno de inglês, os professores também falam de si, uma vez que se constituem a partir do olhar do outro, mesmo não fazendo uma nomeação explícita. A rede de representações abaixo revela o aluno e o professor como angustiados por uma situação que não é favorável para ensinar e aprender uma LE. E muitos dos dizeres apresentam uma visão do aluno como passivo e o professor como detentor do conhecimento.

ALUNO PROFESSOR

Prof. 1 - Direciona ação do professor.

Prof. 2 - Ser sedento por conhecimento.

Prof. 4 - Curioso, ansioso porque não aprende em apenas 1h/aula semanal.

Prof. 5 - Alguém que almeja falar a língua “estranha”, não tem paciência.

Prof. 4 - Irritado porque não consegue fazer muito pelos alunos.

Prof. 5 - Aquele que enfrenta obstáculos (sala super lotada, escola pública, etc.).

Prof. 6 - Provedor de conhecimento.

Prof. 7 - Gosta do professor, mas não valoriza o conteúdo.

Gláuks 212

Prof. 7 - Gosta do inglês, mas se afasta porque acha difícil.

Prof. 8 - Alguém capaz de aprender e deve ser motivado.

Prof. 9 - Vagão.

Prof.10 - Não almejam melhorar.

Prof. 11 - Falta clareza do que é o aluno.

Prof. 12 - Aquele que enfrenta obstáculos para aprender.

Prof. 16 - Distante do professor por causa da tecnologia.

Prof. 8 - Facilitador, aquele que estimula.

Prof. 9 - Maquinista.

Prof. 10 - Amplia a visão do aluno.

Prof.12 - Aquele que enfrenta obstáculos para ensinar.

Prof. 17 - Preso ao tradicional. Professores da rede pública são resistentes à mudança.

Prof. 22 - Construtor, facilitador.

Fonte: Questionário Piloto6

E, ao falar do professor em geral, o dizer do professor deixa escapar a imagem de si. Neste caso, a própria enunciadora faz eco a outros discursos, a considerando mal preparada:

Os professores são mal preparados, eu era e ainda tenho um longo caminho pela frente. Os alunos têm grande vontade de falar Inglês, mas as turmas são muito cheias e eles ao longo dos anos perdem o interesse. (Juliana – Fonte: Questionário).

Outro aspecto capturado no dizer dos professores é a questão da necessidade de haver sempre uma justificativa para aquilo que impede seu fazer. Ora é a falta de proficiência na

6 Este quadro foi mantido no corpo do texto com o objetivo de facilitar a compreensão

do leitor e subsidiar a análise.

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 213

língua, ora é o alto número de alunos na sala de aula ou a falta de recursos materiais.

Várias sequências discursivas revelam o desejo dos professores de ter um aluno ideal, que aprenderia se tivesse as qualidades desejadas. O uso da modalidade deôntica “tem que” exemplifica tal questão. Em “O professor tem de”, temos uma marca da formação discursiva das metodologias de ensino contemporâneas, que definem o que um bom professor de línguas deve fazer para ser bem sucedido.

Aluno: sob meu ponto de vista o aluno tem que ter interesse, boa vontade, disciplina, e, sobretudo ser estimulado a pensar.

Professor: mediador do conhecimento. O professor tem de estimular o raciocínio do aluno fazendo uso de diversas estratégias até que ele (aluno) se sinta motivado e tenha interesse e gosto pelo que está aprendendo. Penso que o gosto por aprender o idioma Inglês distancia o aluno quando esse se depara com um vocabulário totalmente diferente do seu (o inglês não é uma língua neo-latina) enquanto o espanhol proporciona a ele respostas mais rápidas (por sua semelhança com o nosso idioma) (Charlote – Questionário).

Há, ainda, no recorte acima, a representação advinda do senso comum, na qual o aluno tem mais dificuldade com Inglês do que com Espanhol, porque este é língua latina. A ansiedade pela mudança leva a professora a se filiar a um imaginário que ela considera condizente com essa prática outra. Conforme afirma Eckert-Hoff (2009, p. 147),

o valor da verdade que é conferido ao “novo” evidencia que o sujeito é interpelado pela ideologia, circunscrita, em maior ou menor grau, em toda relação social, situação, ou fato. Denuncia também o valor mercadológico do novo, em que o velho é sempre refutado e o novo ganha valor de verdade, “esquecendo-se” de que o velho está lá, revestido pelo novo.

Gláuks 214

Várias sequências discursivas revelam um dilema pelo qual passam os professores de Inglês em relação à sua atuação na escola pública e na escola particular, evidenciando o binarismo: escola pública/escola particular. A primeira é o lugar onde não se consegue se realizar como profissional devido à falta de apoio e recursos, mas se tem liberdade para atuar. Já na escola privada, tem-se a situação ideal, mas o professor se sente preso ao cumprimento de metas e tem pouca flexibilidade. Temos aí uma contradição, pois se tem a impressão de que a escola pública não requer o cumprimento de metas. É válido ressaltar que dos vinte e quatro professores apenas duas atuam na rede privada de ensino. Sendo assim, o binarismo aparece como algo advindo do imaginário dos professores e não de uma experiência concreta.

O ((nome da escola)) é uma escola particular em que eu tenho todos os recursos a minha disposição (sala de informática, vídeo, biblioteca, xerox, apoio pedagógico). Todos os alunos possuem a apostila da rede ((nome da Instituição)) e eu preciso seguir um planejamento anual e finalizar todo o meu conteúdo, que de alguma forma me deixa presa ao cumprimento de metas.

Na prefeitura, os meus alunos são extremamente carentes, não possuem material, caderno, uniforme. Este ano tentei adotar um livro didático, mas por causa das dificuldades financeiras não foi possível. A professora de Inglês do turno da manhã montou uma apostila com um valor mais acessível para os alunos e eu irei adotá-la para os meus alunos. Possuo uma cota limitada de xerox, o que dificulta muito o meu trabalho. (Bilu – Questionário).

Pública: Pouco recurso didático oferecido pela escola, em contra partida, tenho a oportunidade de desenvolver o meu trabalho e direcioná-lo de forma mais flexível e criativa.

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 215

Particular: Mais recurso didático, porém com menos flexibilidade. Lá, o material é indicado e devemos usá-lo de forma que se cumpra todo o conteúdo dentro do prazo estabelecido nos períodos letivo. (Nina – Questionário).

Lu – Aí vamos entrar em questões mais burocráticas das duas situações, porque como funcionária pública eu tenho autonomia para fazer o que eu quiser dentro dos 50 minutos de aula, né.

P – a flexibilidade?

Lu – flexibilidade, flexibilidade. Agora em termos de aprendizagem é óbvio, o prazer que a escola particular me dá é muito grande, porque o menino já vem, a maioria, 70% da sala tem 3 ou 4 anos que frequenta um curso de idioma. Então tudo isso facilita demais a minha vida, né. Todas as salas são equipadas com data show, aquela coisa toda, eu tenho um som disponível na minha sala, eu não preciso sair para buscar o som, nem preciso usar o meu, né. É aquela coisa toda// os dois de maneiras diferentes são prazerosos, me dão satisfação pra trabalhar. (Lu – Entrevista).

Entendemos a contradição, não como algo negativo, mas como constitutiva da subjetividade, portanto, não pode ser eliminada, pois “é a própria lei de existência do discurso” Foucault (1979). A contradição é inerente ao discurso.

A sequência discursiva abaixo ilustra um drama pelo qual quase todos os enunciadores passam. No qual o professor revela a dificuldade de sua profissão, relacionando-a à falta de interesse do aluno pela disciplina. O uso da modalidade deôntica “tem que saber muito bem” revela o grau de cobrança que o professor tem para consigo.

É difícil ser professor, já que o Inglês é pouco valorizado nas escolas. Não só nas públicas, mas também nas privadas. O professor tem que saber muito bem o que está fazendo, ser inovador para despertar o interesse de seus alunos, já que os

Gláuks 216

mesmos não têm o inglês, como matéria prioritária em seu aprendizado (Naltiva – Questionário).

Na sequência discursiva a seguir, o dizer da enunciadora (re)vela a contradição, pois temos o aluno que aprende com poucos recursos desde que seja estimulado. Desse modo, não é a falta de recursos que o impede de aprender. O uso de “é preciso” evoca algo que falta acontecer para que o aluno aprenda. É possível perceber que o professor busca uma completude para orientar seu dizer.

o aluno é aquele que, mesmo sem grandes recursos, tem vontade de aprender. É preciso somente incentivá-lo e levá-lo a um mundo de descobertas e possibilidades. (Nina – Questionário).

O uso do advérbio “ainda”, no enunciado abaixo, mostra o desejo de completude da professora Naltiva. A professora fala desse “outro” que ela deseja ser, mas não sabe como. Temos, então, um funcionamento discursivo circular, no qual a falta é a mola propulsora.

Com o Educonle, tive a oportunidade de me tornar um profissional melhor, mas, ainda não sou o que ainda pretendo ser. (Naltiva – Questionário).

Conforme afirma Eckert-Hoof (2008, p. 134), “isso revela que o sujeito se constitui pela incompletude, que a sua identidade é descentrada, fluida e confusamente camaleônica”.

Ao tecer a rede de representações sobre as escolas onde atuam, os professores-enunciadores fazem um desabafo de uma série de sintomas que impedem que eles desenvolvam um trabalho de qualidade. As representações advêm de formações discursivas do imaginário dos professores de línguas

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 217

estrangeiras em geral, no qual se tem a Língua Inglesa como disciplina menos valorizada.

[...] eu leio nos olhos dos meus colegas de serviço, “Cê tá perdendo seu tempo”, né. Uma professora de língua portuguesa, eu passei por isso, “os meninos não sabem nem interpretar um texto em português”. Aí aconteceu que eu fui argumentar com ela e ela falou “Cê tá perdendo seu tempo” (Lu – Entrevista).

Esses sintomas dos professores podem advir também do olhar do outro (colegas de outras disciplinas, corpo administrativo, alunos, pais, poder público etc.). Há, nesse caso, uma demanda de reconhecimento por parte do outro. Esse olhar de “modo algum é um olhar visto, mas um olhar imaginado por mim no campo do Outro.” (LACAN, 2008, p. 87). Segundo Lacan (1964), para constituir-se como tal, o sujeito precisa da imagem de seu semelhante. Assim, Lacan define o estádio de espelho como o momento em que o sujeito se vê como eu imaginário e não mais na figura de um outro-eu, no caso a mãe. Assim, o corpo vai sendo inscrito a partir do outro. No registro simbólico, o sujeito faz a transcrição daquilo que é captado no imaginário e no real está o ponto da falta, onde está o inconsciente.

Nessa perspectiva, Lacan (1995) retoma o termo identificação como sendo uma categoria de incorporação, do imaginário. A identificação é importante porque é o lugar onde o sujeito é reconhecido. É importante retomar a definição de identificação discutida por Freud ([1856-1939] 1996, p. 115-116): “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa [...] é ambivalente desde o início; pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de alguém”. Segundo Lacan (1995, p. 168), “o sujeito se identifica com aquilo que está por trás do véu, com aquele objeto a que falta alguma coisa”. Nesse sentido, é

Gláuks 218

necessário discutir sobre a identificação neste estudo, uma vez que ela interfere na constituição identitária do sujeito.

Dentre os vários dizeres dos professores enunciadores, temos as seguintes representações do espaço escolar:

Lugar onde tem que exigir respeito, pois não se valoriza a disciplina de Língua Inglesa como as demais disciplinas (Profs. 1 e 8).

Lugar onde tento fazer o impossível (Prof. 7).

Rodeado de interferências de problemas familiares (Prof. 15).

Lugar de risco social, indisciplina, o que leva o professor ao desgosto (Profs. 5 e 9).

Vítima do descaso governamental e dos desvalores sociais. (Prof. 21).

Em suma, a maioria dos professores-enunciadores possui representações do espaço escolar como desprovido das condições favoráveis ao ensino de uma LE. Língua esta que não é legitimada nem pela comunidade escolar, nem pelos alunos e nem pelos próprios professores.

Dentre os 24 professores-enunciadores, dois revelam satisfação com seu trabalho e uma relação de desejo e amor com seu objeto de ensino (o Inglês), conforme o excerto a seguir:

A comunidade escolar, os pais eu vejo assim: é sério. Os alunos assim também veem como sério, é, alguns falam assim “agora eu tô aprendendo inglês, eu gosto da aula, alguns, alguns alunos me veem como a professora que tá trabalhando e alguns me veem como a professora chata, exigente demais. Com relação aos colegas, a gente não tem muito essa visão porque o trabalho nosso é muito solitário mesmo [...] então eu me vejo como uma professora séria, que trabalha. (Julia – Entrevista).

Na escola eu tinha sido eleita a professora representante dos alunos e dos professores. Os alunos viam uma sintonia daquilo que eu pedia (ficha onde os alunos a avaliavam) eu também

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 219

fazia. Os alunos se mostravam satisfeitos, só deles não matarem a minha aula eu achava fantástico. Outra resposta maravilhosa que eles me deram é que não adianta você querer ser apenas professor, tem que ser amiga. (Bernadete – Entrevista).

É interessante ressaltar que a professora Julia teve uma relação muito favorável ao aprendizado da língua durante sua formação. Conforme afirma Kupfer (2009, p. 27), “o que o professor deixa transparecer ao aluno não é que o seu objeto é ‘interessante’ e, sim, a intensidade da relação construída com aquele objeto – uma intensidade capaz de despertar no aluno o interesse em ter uma relação parecida”.

O discurso das professoras que se sentem apoiadas pela escola revela que há uma maior satisfação e realização pessoal e profissional por parte do professor ao dizer de si e de seus alunos.

Concluindo os gestos de interpretação ora empreendidos, o que parece perpassar o discurso dos professores-enunciadores é o discurso da falta, tanto em relação aos alunos quanto à escola.

4 Gestos de finalização

Ao falar de si, instado a relatar os acontecimentos das trajetórias pessoal e profissional que marcaram o seu fazer em sala, o sujeito-professor evidencia a incompletude que o constitui (ECKERT-HOFF, 2009), deixando flagrar vozes do inconsciente, fragmentos de lalangue 7 , marcados pelos

7 As traduções dos textos de Lacan apresentam a palavra alíngua ou lalíngua para se

referir a lalangue. Porém, optamos pelo neologismo lalangue tal como Lacan o criou. Assim, lalangue se apresenta como “uma forma de satisfação que não depende da significação. Cada lalangue é incomparável a qualquer outra, já que não

Gláuks 220

esquecimentos, lapsos, equívocos, metáforas, metonímias. Esses deslizes nos permitem chegar ao que é da ordem da subjetividade. Concluímos, então, que “[...] o sujeito capaz de esquecimento é sempre um ser falante [...] e o ser falante é sempre capaz de esquecimento” (MILNER, 1988, p. 67).

As representações dos professores sobre os alunos e a escola ecoam outros discursos presentes na contemporaneidade sobre o lugar da Língua Estrangeira no contexto de ensino brasileiro. Nesse sentido, Pereira (2008, p. 127) afirma que é válido reconhecer a definição de discurso como “um determinado grupo de fala decantado e sedimentado pela história: é a realização individual de todo o social que há na língua.”

A Psicanálise apresenta contribuições no sentido de nos remeter à importância de lidar com a incompletude. Nessa perspectiva, o estudo em questão tem o potencial de fornecer oportunidades para os professores (re)significarem suas práticas e compreenderem que o processo de formação é contínuo e que as “mudanças” tão desejadas não são tão simples conforme se poderia pensar.

Mediante o exposto, é necessário problematizar e (re)significar a identidade do professor de línguas, pois acreditamos que, apesar dos esforços dos cursos de Educação Continuada, ainda não nos sentimos preparados/confortáveis para lidar com a heterogeneidade que se instaura nesses contextos, com as frustrações dos professores, dos alunos, enfim, com todos os conflitos que emergem nesses contextos.

existem dois ditos que sejam iguais” (GÓIS et al, 2012, p. 2-3). O inconsciente é feito de lalangue, portanto ela transcende a comunicação.

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 221

Referências

ANDRADE, E. R. Entre o desejo e a necessidade de aprender línguas: a

construção das representações de língua e aprendizagem do aluno-

professor de língua inglesa. 2008. 266f. Tese (Doutorado em LA) Instituto

de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas, 2008.

ECKERT-HOFF, B. M. Escritura de si e identidade: o sujeito professor em

formação. Campinas: FAPESP/ Mercado de Letras, 2008.

ECKERT-HOFF, B. M. Escritura de si na formação do professor. In:

BERTOLDO, E. S. (Org.). Ensino e aprendizagem de línguas e a

formação do professor: perspectivas discursivas. São Carlos: Claraluz,

2009. p. 135-152.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. [1979] Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2009.

FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição

Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, [1856-1939] 1996. p. 115-116.

FREUD, S. (1891). A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70, 1977.

GHIRALDELO, C. M. Representações de línguas e formação de professores.

In: CASTRO, S. T. R.; SILVA, E. R. (Orgs.). Formação do profissional

docente: contribuições de pesquisa em LA. Taubaté: UNIATU/ Cabral

Editora e Livraria Universitária, 2006. p. 247-261.

GÓIS, et al. Lalangue, via régia para captura do real. Disponível em

www.psicanaliselacaniana.com/estudos/documents/LALANGUE.pdf. Acesso

em: 11 de agosto de 2012.

KUPFER, M. C. M. Amor e saber: a Psicanálise da relação entre professor e

aluno. In: COHEN, R. H. P. (Org.). Psicanalistas e educadores: tecendo

laços. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2009. p. 19-32.

LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais

da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985a.

_____. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1995.

Gláuks 222

_____. O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). 3. ed. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

MILNER, J. C. Le matériel de l’oubli. In: YERUSHALMI, Y. H. et al.

Usages de l’oubli. Paris: Seuil, 1988. p. 63-75.

MRECH, L. M. Mas afinal, o que é educar? In: MRECH, L. M. (Org). O

impacto da psicanálise na educação. São Paulo: Avercamp, 2005. p. 13-32.

ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 6. ed.

Campinas - SP: Pontes, 2005.

PEREIRA, M. R. A impostura do mestre. Belo Horizonte – MG:

Argvmentvm, 2008.

SERRANI, S. Discurso e cultura na aula de língua: currículo – leitura –

escrita. Campinas, SP: Pontes, 2005.

ABSTRACT: Discourse Theory and theories of Psychoanalysis hold that the subject is beyond the Cartesian view (one exists when he thinks), that is, one is seen as composed of the unconscious. Based on these preliminaries, this qualitative study aims at presenting part of an ongoing study for a doctoral thesis which investigates teachers’ decision making in their pedagogic practice. The corpus collection includes questionnaires and interviews with 24 English teachers from public schools, in the Southeast Region of Brazil. This study relies on the fact that those teachers participated in a continuing education project for English teachers. The results show that when teachers construct their representations of students and school landscapes, most of them disclose of a number of restraints that keep them from doing a quality job. Their discourse relies on the public school/private school dualism and profiles the ideal student, the one who, for those teachers, would actually learn.

KEYWORDS: Teacher education. Continuing education. Representations. Discourse. Public schools.

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 223

ANEXO A - QUESTIONÁRIO PILOTO SEMI-ESTRUTURADO

1. Você continua lecionando inglês?

SIM Onde, quantas aulas e em que situação (designado, efetivo e/ou outros)

NÃO Por que não?

2. Como você se via como professor(a) de Inglês e como você se vê hoje após o EDUCONLE?

3. Como você percebia ensinar e aprender uma língua estrangeira antes do EDUCONLE e como é esse processo para você hoje?

4. Como você define o aluno e o professor de inglês?

5. Como você define a(s) escola(s) onde atua?

6. Após o EDUCONLE você participou ou participa de algum outro curso de aperfeiçoamento?

SIM � Quais e o que eles representaram na sua vida pessoal e profissional?

NÃO � Por que não?

6. O que você acha de sua proficiência na língua inglesa hoje em relação ao que achava antes e durante o EDUCONLE?

7. Qual foi o papel do EDUCONLE na sua trajetória docente?

8. O que mais te marcou no EDUCONLE? Por quê?

9. Qual é o papel de um curso de educação continuada para professores de inglês?

10. Quais as críticas e/ou sugestões que você tem a fazer ao Projeto após tê-lo concluído há um certo tempo?

11. Como a sua escola e seus alunos viam a sua atuação como professor(a) antes do EDUCONLE e como eles veem agora?

Gláuks 224

12. Você concorda em ser entrevistada em data oportuna para algum aprofundamento das questões deste questionário? SIM � NÃO �

Representações de Professores de Inglês da Escola Pública: O Olhar sobre o... 225

ANEXO B - ENTREVISTA PILOTO

Roteiro para entrevista semi-estruturada destinada aos professores

1 Fale sobre sua trajetória como professor de inglês.

2 Fale sobre motivos que o(a) levaram a procurar o EDUCONLE.

3 Fale sobre suas experiências no EDUCONLE?

4 O que mais te marcou no EDUCONLE?

5 Fale sobre a sua prática.

6 Como você se vê como professor(a) de Inglês?

7 O que significa ensinar e aprender Inglês?

8 Como seus alunos e a comunidade escolar em geral veem seu trabalho?

9 Fique à vontade para acrescentar os comentários que desejar.

Gláuks 226

ANEXO C

QUADRO 1 – Professores egressos de diferentes anos respondentes dos questionários.

Número de professores entrevistados

Ano de conclusão do EDUCONLE

1 2003

1 2005

5 2006

5 2007

7 2008

5 2009

Fonte: Questionários

Data de recebimento: 31/05/2011

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 227-253

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação

Reflections on Pre-service Teachers’ Reading Strategies

Adriana da Silva1

RESUMO: Neste trabalho, analisam-se as práticas das estratégias de leitura de alunos do Curso de Letras. Considera-se que as estratégias de leitura influenciam a compreensão de textos. São os procedimentos realizados durante a atividade de leitura que facilitam a compreensão de textos ou as operações que realizamos ao abordar um texto (CHAMOT, 2005; ALVERMANN, 2001). Aplicou-se um questionário para identificar as práticas de leitura de alunos do quarto período de Letras, pois eles serão futuros professores de língua portuguesa e terão a tarefa de avaliar a leitura e a compreensão de seus alunos. Concluiu-se que esses futuros professores, muitas vezes, não se sentem seguros em relação à leitura, ora usam estratégias, ora não, mas não as usam de maneira consciente.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Estratégias. Compreensão. Formação de professor. Texto.

1 Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

Gláuks 228

1 Introdução

m nossa prática, constatamos que pouca atenção é dada à questão do ensino de leitura nos cursos de

Letras. Isso acontece, pois se considera que o aluno que chega à Educação Superior é um leitor que desenvolveu essa habilidade nos 12 anos de ensino de língua portuguesa na escola. Esperamos que esse aluno seja um bom leitor, mas existe uma grande diferença entre ser um bom leitor e ensinar o processo da leitura, pois, depois de formado, esse professor em formação deverá dominar e ensinar o processo da leitura.

Os alunos estão constantemente em contato com os mais diferentes textos orais ou escritos que circulam na nossa sociedade. Para obter sucesso na atividade de leitura, o leitor precisa dominar diferentes estratégias, conhecimentos linguísticos e até mesmo extralinguísticos. A teoria sobre a leitura já é bem conhecida, mas, na prática, ainda temos dificuldade de conduzir o processo de ensino da leitura. O problema é que, muitas vezes, a escola tem falhado na atividade de capacitar o aluno a ler. Assim, quando chega ao Ensino Superior, por exemplo, o aluno ainda tem dificuldades para realizar essa atividade.

Em sala de aula, nas licenciaturas, é possível constatar que os professores em formação têm dificuldades ao ler textos acadêmicos, mas também encontram dificuldades ao ler gêneros de circulação social. Considera-se que a habilidade de leitura é importante para qualquer universitário, mas torna-se especialmente mais importante, por exemplo, para o aluno do curso de Letras, pois no futuro será responsável pelo trabalho com o texto e os gêneros textuais em sala de aula. Ao trabalhar nesse curso, surgiu um questionamento: Será que o professor de língua materna em formação pode ser considerado um bom leitor e tem conhecimento da leitura enquanto um processo

��

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 229

complexo que envolve fatores linguísticos e extralinguísticos? Outras questões foram levantadas em busca de se compreender o perfil leitor desse professor em formação e sua perspectiva sobre a leitura. Será que esse aluno pratica o uso de estratégias na sua leitura? Como percebe a atividade da leitura? Domina diferentes estratégias de leitura?

Para tentar responder a essas questões, aplicou-se um questionário a alunos do 4° período de Letras de uma faculdade particular para avaliar suas práticas de leitura. O perfil leitor desses alunos de Letras foi traçado a partir das análises de suas respostas. Com isso, pretendeu-se verificar os conhecimentos desses alunos sobre as estratégias de leitura, pois eles serão futuros professores de língua portuguesa e terão a tarefa de, por exemplo, ensinar a leitura para seus alunos e avaliar a compreensão textual deles. Além disso, espera-se que esses alunos sejam conhecedores das estratégias, pois no futuro deverão trabalhá-las em suas aulas.

2 Leitura e estratégias

Em nosso cotidiano, é comum a ideia de que os jovens não leem e essa crença também é ressaltada pela mídia e por professores em geral. Até mesmo o governo, através dos Parâmetros Curriculares Nacionais, reconhece que o eixo do ensino de língua concentra-se no domínio da leitura e da escrita pelos alunos e as reconhecem como atividades responsáveis pelo fracasso escolar. É importante ressaltar que a leitura deve fazer parte desse processo.

A leitura é uma atividade que requer do leitor não apenas habilidades linguísticas, como reconhecer palavras, estruturas sintáticas, sentidos de frases, mas também extralinguísticas, como acessar seus conhecimentos, estabelecer objetivos e

Gláuks 230

expectativas para construir uma unidade de sentido (KLEIMAN, 1989; SILVA, 1997; KOCH, 2002; SILVA, 2004). As pesquisas em leitura e compreensão textual demonstram que há complexas interações entre leitor, texto e seus conhecimentos de mundo (CLARK, 1996; SILVA, 1997; KOCH, 2002). Nessa perspectiva, faz-se necessário adotar um modelo de leitura que leve em consideração tanto as informações linguísticas apresentadas no texto quanto as construídas pelo leitor, numa determinada situação de interação.

Estudar a leitura é importante para que possamos identificar como se dá essa interação entre produtor e leitor, em determinados contextos, a partir de diferentes tipos de textos e gêneros textuais. No entanto, como muitas vezes, na escola, através dos livros didáticos, os textos são usados apenas para exemplificar a estrutura morfossintática da língua portuguesa, percebe-se que os alunos passam anos estudando a língua na Educação Fundamental e na Básica, mas, quando chegam à Universidade, não sabem ler e escrever efetivamente, pois foram treinados para segmentar a língua e não para compreender e produzir textos (POSSENTI, 1996).

Os estudos sobre o texto, realizados por linguistas, psicólogos e educadores, indicaram novos caminhos para a compreensão do processo da leitura. Hoje, conhece-se mais sobre a leitura e compreensão de textos do que há 40 anos (KINTSCH; VAN DIJK, 1978; KINTSCH, 1988; BRITTON; GRAESSER, 1996; KOCH; TRAVAGLIA, 1989; KOCH, 2002), mas, mesmo assim, ainda não houve o impacto desse conhecimento acumulado no ensino de língua portuguesa.

Para desenvolver a habilidade de leitura, o leitor deve realizar uma série de estratégias de leitura que são os procedimentos realizados antes, durante e após a leitura e que facilitam a compreensão de textos. As estratégias de leitura levam o leitor a refletir sobre as relações de sentido de um texto

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 231

e a estabelecer a relação entre fatores linguísticos e extralinguísticos. É importante ressaltar que essas estratégias variam em função de leitores e operações cognitivas que eles fazem para compreender o texto, assim como aspectos textuais, por exemplo, a estrutura do texto, a organização interna do texto, o tipo e o gênero textual. Em função desses fatores, o leitor deverá construir “estratégias que permitirão elaborar e testar hipóteses que serão levantadas durante a leitura” (Di PIETRI, 2007, p. 22).

As estratégias de leitura (SOLÉ, 1998; JOLY et al., 2004) receberam outros nomes em função de suas especificidades, como, por exemplo, estratégias de compreensão (ALVERMANN, 2001; cognitivas e metacognitivas (KLEIMAN, 1989; SALATACI; AKYEL, 2002). Há autores que classificam as estratégias como conscientes e inconscientes. As inconscientes, por exemplo, são aquelas relacionadas aos conhecimentos lexical, sintático e semântico, mas as conscientes são aquelas técnicas de sublinhar as informações mais importantes do texto, ler com um objetivo, verificar títulos e subtítulos como pistas para construir a compreensão e ler efetivamente, ou seja, criar uma representação significativa para o texto, uma unidade de sentido (KOCH, 2002).

Joly et al. (2004, p. 261) afirmam que “as estratégias de leitura caracterizam-se por serem planos flexíveis que os leitores usam, adaptados às diferentes situações”. Em função disso, elas sempre variam e não funcionam como um modelo fixo a ser seguido por cada leitor, na leitura de todo e qualquer texto.

De acordo com essa perspectiva, a compreensão de um texto pode ser facilitada. Não há como seguir uma única fórmula, mas é possível treinar o leitor para adquirir essa capacidade de interagir com o texto a fim de construir o seu sentido. Assim, o leitor deixa de lado a passividade e se torna um sujeito ativo, capaz de estrategicamente construir o sentido

Gláuks 232

do texto. O problema é que a escola parece não incorporar essa realidade em seu cotidiano e, muitas vezes, o professor não está preparado para treinar o aluno, pois desconhece as estratégias que facilitam a leitura.

Muitos pesquisadores buscaram compreender as diferenças entre bons e maus leitores. Resumindo as ideias apresentadas por Duke e Pearson (2002, p. 1), verifica-se que os bons leitores: a) são leitores ativos; b) criam objetivos para a leitura; c) avaliam constantemente se sua leitura confirma os objetivos já levantados; d) fazem uma varredura pela superfície do texto antes de iniciar a leitura, para apreender a estrutura do texto e as seções que o compõem; e) elaboram predições sobre o que virá; f) leem seletivamente, tomando decisões; g) constroem, revisam e questionam os significados; h) assim como tentam determinar o significado de palavras e de conceitos desconhecidos a partir do próprio texto; i) selecionam, comparam e integram seu conhecimento prévio com as informações do texto; j) pensam sobre os autores do texto, seu estilo, opinião, intenções, ambiente histórico, e assim por diante; l) monitoram sua compreensão do texto, fazendo ajustes em sua leitura como necessário; m) o processamento de texto não ocorre somente durante a atividade de leitura, pois podem continuar processando-o mesmo depois de concluir a leitura. É nessa perspectiva que Di Pietri (2007, p. 22) considera “a leitura como uma atividade baseada na elaboração e verificação de hipóteses.”

Na verdade, espera-se que o futuro professor seja um bom leitor, capaz de ler estrategicamente. Dessa forma, espera-se que o professor de língua materna em formação conheça e utilize diferentes estratégias de leitura. Será que os professores em formação reconhecem o uso dessas estratégias na leitura? Será que eles usam algumas dessas estratégias em suas leituras? Cabe lembrar que essas estratégias não são usadas em qualquer

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 233

leitura, pois não se trata de uma lista a ser checada em cada leitura, mas se considera que ter a noção dessas estratégias pode facilitar a leitura. Mas é importante verificar como esses alunos percebem a leitura e as estratégias nela envolvidas para levá-los a refletir sobre esse processo. Chartier resume a preocupação que se tem com esse aluno:

Caberá aos futuros professores orientar leituras. Por isso, fazê-los refletir sobre suas maneiras de ler, sobretudo no contexto da formação inicial, poderia ajudá-los a definir estratégias e percursos de leitura mais adequados para o desenvolvimento de processos de formação de seus alunos (CHARTIER, 2005, p. 89).

O que se pretende é verificar como os futuros professores de língua portuguesa percebem a leitura e verificar se eles usam estratégias de leitura em suas leituras. É importante entender como isso ocorre na realidade desses alunos para se pensar em formas de trabalhar a leitura de forma eficiente nos cursos de graduação, principalmente nas licenciaturas.

3 Metodologia

Elaborou-se um questionário (Anexo A) que foi respondido por 27 alunos do 4° período de Letras, noturno, de uma Instituição de Ensino Superior particular localizada na periferia de Belo Horizonte. O questionário foi respondido em sala de aula, aplicado pela professora da turma, no primeiro dia de aula do semestre, na disciplina Linguística Textual, lecionada no primeiro semestre de 2008. A maioria dos alunos era do sexo feminino, com idades entre 21 e 50 anos, pessoas que trabalham durante o dia para pagar a faculdade. Todos oriundos do ensino público e muitos afastados da escola por vários anos.

Na verdade, partiu-se para a elaboração do questionário, pois os alunos dessa turma apresentavam muitas dificuldades de

Gláuks 234

escrita e sempre que solicitados em produções mais abertas, escreviam pouco. É conveniente lembrar que se tratava de uma turma de pessoas que trabalhavam o dia todo e à noite estudavam, em função disso, na hora das produções, estavam cansados e tinham muitas dificuldades. Por isso, a metodologia de uso de questionário adotada na turma permitiu que eles escrevessem mais. Reconhecemos as limitações do questionário, que pode levar o aluno a se guiar de forma a tentar respondê-lo de acordo com a vontade do professor, mas a turma não interagia de forma satisfatória nas produções livres, assim optou-se por um questionário fechado para verificarmos algumas indicações de problemas e percepções desses alunos para, no futuro, se trabalhar com outra metodologia.

4 Resultados

Aqui serão apresentados os resultados obtidos a partir das respostas dos alunos ao questionário, assim como a discussão desses dados.

4.1 Os futuros professores e a leitura

Inicialmente, procurou-se verificar como os professores em formação se viam enquanto leitores. É comum, em algumas licenciaturas, encontrar futuros professores que afirmam não gostar de ler. Na turma em questão, os alunos se queixavam muito das leituras, gostavam das aulas expositivas e participavam pouco dos debates em sala. Assim, as perguntas 1 e 2 (Anexo A) são questões relativas ao hábito de leitura dos futuros professores. Sobre a pergunta você se considera um bom leitor, constatou-se que 40,74% responderam que sim, 40.74% responderam não e alguns alunos criaram um novo item, o mais

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 235

ou menos. Assim, 18.52% responderam mais ou menos. Vê-se que, basicamente, não há diferença entre os alunos que se consideram bons leitores e os maus.

Gráfico 1 - Considerações sobre ser um bom leitor.

Parece que a maioria ainda não se considera um bom leitor, mas qual será o conceito de leitura na percepção desses alunos? Se não se consideram bons leitores, como poderão ensinar o gosto pela leitura no futuro? Para tentar entender isso, eles deveriam justificar suas respostas.

Ao analisar as razões apresentadas, notou-se que, no grupo dos alunos que responderam sim, 14,81% relacionaram leitura à quantidade e 25,93% disseram que buscam compreender o texto, associar seus conhecimentos e não ficar apenas na decodificação. Já no grupo daqueles que responderam não, detectou-se que 7,41% só leem quando o professor manda, 14,81% disseram que não leem tudo, 7,41% não têm tempo e 14,81% apontaram problemas com a interpretação e o desejo de não fazer apenas uma leitura de decodificação. No grupo dos

Gláuks 236

indecisos, 2% relacionaram à quantidade, 1% explicaram que só leem aquilo que interessa e 2% não souberam explicar.

No grupo dos professores em formação que se consideram bons leitores, prevalece a noção de leitura enquanto compreensão, não apenas decodificação, mas muitos ainda têm a ideia de que é a quantidade que garante o posto de bom leitor.

4.2 A verificação das estratégias de leitura usadas pelos professores em formação

Nas outras perguntas (Anexo A), procurou-se verificar se os professores em formação reconhecem o uso de algumas estratégias comuns aos leitores experientes, como, por exemplo, a leitura de títulos para inferir o assunto abordado no texto; o uso do contexto para definir palavras desconhecidas; a busca de novas fontes sobre o assunto para esclarecer pontos do texto; as técnicas de sublinhar partes importantes do texto e a de fazer anotações sobre o texto após a leitura.

É sabido que bons leitores fazem uma varredura pela superfície do texto antes de iniciar a leitura, para apreender a estrutura do texto e as seções que o compõem (DUKE; PEARSON, 2002, p. 1). Em sala de aula, foi possível verificar que muitos dos professores em formação não usavam esse tipo de estratégia em suas leituras.

Conforme ilustrado no Gráfico 2, muitos dos futuros professores utilizam estratégias de leituras antecipatórias, como, por exemplo, a leitura de títulos e subtítulos. De acordo com o gráfico, 1% afirmaram que não leem títulos e subtítulos, 4% leem apenas os títulos, 1% só algumas vezes e 84% afirmaram que leem, pois consideram que esses elementos servem como pistas para os leitores construírem o sentido dos textos. Assim, a maioria faz a leitura de títulos e subtítulos, pois os considera

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 237

como elementos que podem guiá-los na busca pelo sentido durante a leitura.

Gráfico 2 - Estratégias de leitura dos títulos e subtítulos.

Assim, essa é uma estratégia da qual os alunos têm consciência e a consideram importante na leitura de um texto.

De acordo com Duke e Pearson (2002, p. 1), os bons leitores tentam determinar o significado de palavras e de conceitos desconhecidos a partir do próprio texto. Nos nossos dados, 33,33% dos professores em formação afirmaram que buscam identificar primeiro a palavra no contexto e só depois fazem uso do dicionário, mas 66,67 % preferem procurar primeiro o significado dessas palavras no dicionário. Nesse aspecto, verifica-se que os alunos preferem usar o dicionário a tentar descobrir o significado através do próprio texto.

Gláuks 238

Gráfico 3 - O uso da estratégia de encontrar palavras desconhe-cidas pelo contexto ou recorrer ao dicionário.

A partir do Gráfico 3, é possível afirmar que os professores em formação preferem usar o dicionário e ainda não estão conscientes da importância de se usar o contexto para descobrir o significado das palavras no próprio texto. Sabe-se que não há um sinônimo perfeito e que o significado de uma palavra no texto está relacionado ao conjunto de palavras que estão ali relacionadas, assim, espera-se que o leitor proficiente seja capaz, na maioria das vezes, de usar a estratégia de leitura de inferir o significado de palavras desconhecidas a partir do próprio texto.

Ainda conforme ressaltado por Duke e Pearson (2002, p. 1), bons leitores são ativos; constroem, revisam e questionam os significados; monitoram sua compreensão do texto, fazendo ajustes em sua leitura como necessário. Assim, espera-se que, ao encontrarem alguma dificuldade na leitura de um texto, sejam capazes de reler esse texto e reformular a leitura. De acordo com as respostas dos futuros professores, 81,48% releem o texto e

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 239

procuram outras fontes, 14,82% desistem e 3,70% procuram a internet.

Gráfico 4 - Comportamento diante de alguma dificuldade na leitura de um texto.

Isso demonstra que eles procuram resolver o problema a partir do próprio texto, buscam estabelecer uma interação através da leitura. Dessa forma, percebe-se que a maioria age como um leitor ativo.

Na prática, em sala de aula, percebe-se que bons leitores têm o hábito de selecionar as informações textuais a partir de grifos e destaques. Observou-se que a maioria faz uso da estratégia de sublinhar o texto durante a leitura. No Gráfico 5, verifica-se que 7,41% afirmaram que nunca sublinham o texto; 77,78% sublinham conceitos, palavras desconhecidas; 14,81% só de vez em quando. Muitos dos professores em formação ressaltaram que aprenderam isso apenas no curso de Letras, pois na Educação Básica não tinham esse hábito.

Gláuks 240

Gráfico 5 - O uso da técnica de sublinhar o texto.

De acordo com a perspectiva de Duke e Pearson (2002, p.1), o processamento de texto feito por um bom leitor não ocorre somente durante a atividade de leitura, pois pode continuar processando-o mesmo depois de terminar a leitura do texto. Um exemplo de estratégia de leitura que pode ocorrer após a leitura é a elaboração de anotações textuais. Nos dados encontrados, 44,44% dos futuros professores costumam fazer anotações após a leitura; 22,22% apenas algumas vezes, quando têm dificuldades, ou o assunto é importante e 33,33% não fazem. De acordo com o Gráfico 6, a maioria costuma fazer anotações.

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 241

Gráfico 6 - O uso de anotações após a leitura como uma estratégia de leitura.

As respostas indicam que essa é uma estratégia usada pelos alunos. É sabido que as estratégias não são fixas e variam de leitor para leitor, de acordo com seus conhecimentos linguísticos e extralinguísticos e também em função do tipo e gênero textual. Neste trabalho, procuramos conhecer mais sobre as estratégias usadas pelos professores em formação.

Na próxima seção, os dados levantados nos resultados serão discutidos.

5 Discussão

Sabemos que o processo da leitura e compreensão de um texto envolve fatores linguísticos e extralinguísticos. A fim de controlar esse processo, o leitor faz previsões sobre o texto a ser lido e usa estratégias metacognitivas de monitoração para atingir o objetivo de verificação de suas hipóteses (KLEIMAN, 1989,

Gláuks 242

p. 43). Os experientes, de certa forma, controlam o processo da leitura através de estratégias que podem ser usadas antes, durante e após a leitura (DUKE; PEARSON, 2002, p. 1). O problema é que essa leitura participativa e reflexiva, geralmente, se opõe “aos automatismos e mecanismos típicos do passar do olho que muitas vezes é tido como leitura na escola” (KLEIMAN, 1989, p. 43).

É importante ressaltar que as estratégias variam, por exemplo, em função do grau de conhecimento do leitor em relação ao tema do texto, o tipo de texto, o gênero textual e o objetivo de leitura. Em sala de aula, no Curso Superior, é possível encontrar alunos que, na maioria das vezes, desconhecem as estratégias de leitura, pois foram treinados, na escola, para uma leitura mecânica ou apenas de passar os olhos. Muitos alunos não se consideram bons leitores e acham a leitura uma atividade chata e óbvia. Daí a necessidade de se investigar as crenças, as perspectivas e as concepções dos alunos sobre temas como a leitura.

A leitura é uma atividade tão incorporada ao cotidiano das pessoas que raramente tem-se a oportunidade de pensar em seu funcionamento. Os resultados mostraram que os alunos ainda estão divididos e consideram a leitura como interpretação ou como produto, prevalecendo aqui a quantidade de material lido e não a qualidade da leitura. Além disso, nem sempre usam as estratégias de leitura de maneira consciente e isso abre espaço para que o professor, mesmo na graduação, venha a trabalhar as estratégias explicitamente em sala de aula.

Nos últimos anos, houve um crescimento, no Brasil e no exterior, de estudos sobre as crenças no ensino e aprendizado de línguas, assim como seus métodos de investigação (BARCELOS; ABRAHÃO, 2006). Nessa perspectiva, é necessário investigar como os futuros professores concebem a leitura e quais são suas crenças sobre esse tema. A partir deste

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 243

trabalho, observa-se a necessidade de se estudar as crenças dos alunos em relação à leitura. Isso não foi feito neste trabalho, mas já se iniciou um projeto de pesquisa com esse objetivo. Os resultados indicaram que as noções de leitura e estratégias dos alunos ainda são fragmentadas e, muitas vezes, eles não têm a consciência de que a leitura é um processo do qual o leitor participa ativamente através de seus objetivos e hipóteses criadas antes, durante e após a leitura.

Através das respostas dos futuros professores para o questionário, é possível compreender um pouco mais quais são as suas perspectivas sobre a leitura e como eles trabalham ou não as estratégias de leitura. Quando questionados se seriam bons leitores, verificamos que eles ficaram divididos. A justificativa dada por eles serve para compreender mais sobre a perspectiva deles em relação à leitura. Observou-se que a leitura assume diferentes papéis para os professores em formação.

Sabe-se que a leitura pode ser vista na perspectiva de três modelos de processamento textual. No primeiro, a leitura é vista como uma atividade de decodificação, na qual o leitor deve buscar as informações apresentadas no texto. Assim, o leitor deve retirar do texto o significado que está por trás de rabiscos ou sons a ele apresentados, ou seja, uma atividade mecânica, na qual o trabalho do leitor é encontrar a intenção de seu escritor, por exemplo. No segundo, a leitura passa a ser considerada como um processo que se dá na cabeça do leitor através do uso de elementos linguísticos e extralinguísticos. Dessa forma, “o leitor deverá ser capaz de construir um sentido para o texto, tendo como base [...] as características textuais e os seus conhecimentos extralingüísticos” (SILVA, 1997, p. 13). No terceiro, a leitura é um processo de interação entre interlocutores estabelecida via texto. Desse modo, “a leitura não é uma atividade natural nem uma herança genética; nem uma ação

Gláuks 244

individual isolada do meio e da sociedade em que se vive” (MARCUSCHI, 2008, p. 229).

A leitura é uma atividade complexa, dependente de habilidade, interação e trabalho. Vários fatores que influenciam a leitura poderiam ser apresentados, mas o objetivo deste trabalho foi verificar se os professores em formação relatam usar estratégias de leitura no dia-a-dia. Verificamos que não houve uma diferença significativa entre aqueles que se consideram bons e os maus leitores. Na verdade, a maioria desses professores em formação considera que o fato de ser um bom leitor está relacionado à quantidade de leitura e não à qualidade e à interpretação. Dessa forma, conclui-se que eles ainda percebem a leitura como um produto e apresentam um modelo mais tradicional de leitura. A princípio, parece que alguns deles são mesmo maus leitores, mas quando verificamos o uso de estratégias, através do questionário, constatamos que nem tudo está perdido, mas, na maioria das vezes, não há o uso consciente dessas estratégias.

Por exemplo, a maioria lê os títulos e justifica isso informando que os considera como pistas para que o leitor possa (re)construir o sentido do texto. Em compensação, a maioria prefere usar o dicionário quando encontra uma palavra desconhecida. Assim, verificou-se que a maioria ainda tem uma postura passiva diante do texto, talvez, reflexo de uma concepção de texto enquanto um produto de decodificação. Esses leitores parecem ainda não conseguirem estabelecer uma interação com o texto, um diálogo, daí, se não reconhecem uma palavra, não são capazes de compreendê-la através do próprio texto. Ou pode ser que eles tenham em mente que o uso do dicionário é muito importante e que pode até mesmo ajudá-los na compreensão de textos. Essa é uma questão que merece ser mais investigada em outro estudo através da utilização de outros

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 245

instrumentos como, por exemplo, entrevistas, narrativas e tarefas escritas.

Os alunos têm o hábito de reler o texto quando encontram alguma dificuldade no próprio texto e apenas uma minoria desiste ou procura sanar as dúvidas na internet. Isso demonstra que, de alguma forma, eles acreditam que o texto é capaz de responder a qualquer dúvida que eles possam ter durante a leitura. Isso também merece ser mais estudado, pois a dificuldade pode existir em função de problemas textuais, por exemplo, uso inadequado de elementos coesivos, como também em função de elementos extralinguísticos, como, por exemplo, falta de conhecimento prévio sobre o tema apresentado. De qualquer forma, tanto a opção de reler como a de procurar uma maneira de resolver o problema através da internet pode indicar que esses sujeitos procuram estabelecer uma interação com o texto. Talvez, nesse momento, entendam “o texto como um evento comunicativo no qual convergem ações lingüísticas, cognitivas e sociais” (BEAUGRANDE, 1997, p. 10). Ou seja, tentam estabelecer a construção do sentido, revendo os fatores textuais e até mesmo os extratextuais que garantem a textualidade de um texto, percebendo “o texto como um processo e não um produto acabado” (MARCUSCHI, 2008, p. 96).

Outra estratégia de leitura usada por leitores proficientes é a de sublinhar as informações que eles julgam importantes durante a leitura (DUKE; PEARSON, 2002). Observou-se que os alunos, sujeitos da nossa pesquisa, usam essa estratégia e muitos ressaltam que aprenderam isso no curso de Letras. Eles informaram que sublinham partes importantes e elementos que desconhecem. Verifica-se que eles tentam processar o texto, interagir de alguma forma e não apenas decodificar, e, se fazem isso, de alguma forma, buscam: a) selecionar informações que julgam ser importantes e b) procurar informações que não poderão ser esclarecidas apenas no próprio texto.

Gláuks 246

Sobre a estratégia de anotação, a maioria faz anotações após a leitura, mas nem sempre. Isso já era esperado, pois as estratégias não são seguidas fielmente, elas variam em função do assunto, do texto e do objetivo de leitura (KLEIMAN, 1989). Pullin (2007) realizou um estudo sobre as práticas de leitura de estudantes universitários de licenciatura de Humanas e Exatas e alunos de pós-graduação, no qual constatou que essa estratégia é muito pouco usada pelos alunos. Na prática, percebe-se que eles não têm o costume de escrever sobre o texto lido. Isso acontece, pois, muitas vezes, são treinados para ler o texto enquanto descobridores do sentido idealizado pelo autor, como decodificadores e não como (des)construtores e (re)construtores de sentidos possíveis. A escola não se preocupa em desenvolver as estratégias de leitura, principalmente aquelas que ocorrem após a leitura. Na maioria das vezes, não está preocupada com o processamento textual, mas com a fixação de conteúdos gramaticais.

6 Considerações finais

A leitura, em uma perspectiva sóciointeracionista, pode ser comparada a um jogo, no qual o leitor participa ativamente (KOCH, 2002). Existe um discurso na sociedade e na mídia de que os alunos não sabem ler e, dessa forma, faz-se necessário pensar em alternativas para melhorar esse quadro. Além disso, é necessário verificar como, por exemplo, alunos de Letras, futuros professores, percebem a leitura e verificar se esses sujeitos reconhecem e dominam as estratégias de leitura.

Acredita-se que o professor de língua portuguesa deve levar o aluno a raciocinar sobre o texto através do uso de estratégias que poderão variar em função do tipo de texto, do gênero e também em função do leitor e de seus conhecimentos linguísticos e extralinguísticos. O problema é que a leitura

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 247

recebe pouca atenção nas aulas de língua materna; a escola parece se preocupar em ensinar o aluno a escrever e se esquece de ensiná-lo a ler. Mas será que o futuro professor está preparado para tal tarefa? Percebe-se que os participantes desta pesquisa, muitas vezes, usam as estratégias de leitura, mas não têm consciência disso. Para ensiná-las aos seus alunos de forma mais eficiente, eles precisam primeiro conhecê-las e usá-las de maneira consciente. Não podem considerar a leitura como uma atividade apenas de decodificação. Também não devem associar a leitura à quantidade, mas à qualidade e aos processos de compreensão e de interpretação de textos.

Convém ressaltar que um aluno com esse perfil chega à graduação com problemas de leitura que não foram sanados na escola e, muitas vezes, o professor da Educação Superior reconhece esse problema, mas se recusa a trabalhar a leitura em sala de aula, pois considera apenas que o aluno deveria ser capaz de ler e compreender os textos. Dessa forma, perpetua-se um círculo vicioso.

Concluiu-se que os alunos pesquisados não são maus leitores ou leitores mais ou menos, como se classificaram. Eles fazem o uso de estratégias de leitura, mas, muitas vezes, não de maneira consciente. Parece que consideram ainda a leitura como um produto de decodificação e não como o processamento de um texto. Por isso ainda estão preocupados com a quantidade de leitura e com fatores externos ao processo como falta de tempo, conflitos pessoais e textos chatos. Isso também indica que muitos desses alunos não têm a leitura como um hábito. Dessa forma, como poderão cobrar de seus alunos o gosto e o hábito de leitura? Através do questionário, concluiu-se que os alunos, futuros professores, ainda não se sentem confortáveis em relação à leitura.

Ao serem questionados sobre o uso de estratégias de leitura, percebeu-se que os alunos têm o costume de verificar

Gláuks 248

títulos e subtítulos, pois os percebem como pistas para a compreensão de textos. Dessa forma, eles têm consciência dessa estratégia que os possibilita fazer previsões sobre textos. Sobre a estratégia de tentar encontrar o significado de palavras desconhecidas a partir do próprio texto, os alunos ainda preferem usar o dicionário. Isso indica que eles ainda não têm consciência dessa estratégia. Além disso, é importante ressaltar que a maioria, ao encontrar alguma dificuldade na leitura, relê o texto, além de usar a técnica de sublinhar partes e conceitos do texto. Os alunos usam estratégias de leituras, mas não têm consciência de que, ao fazer coisas como, por exemplo, buscar o significado de palavras desconhecidas pelo contexto textual, reler o texto em busca de esclarecimentos e sublinhar partes importantes ou não compreendidas do texto, na verdade, estão processando o texto e agindo como estrategistas no jogo da linguagem. Em função disso, não se consideram bons leitores. Os resultados indicam que o professor de português da Educação Superior precisa conscientizar e instrumentalizar seus alunos para que possam aplicar as estratégias de leitura em suas leituras. Nos cursos de licenciatura, essa tarefa ainda é mais importante, pois esses alunos serão futuros professores que terão como tarefa cobrar a leitura e a escrita de seus alunos.

Neste trabalho, notou-se que, muitas vezes, os graduandos demonstraram usar as estratégias de leitura, mas, geralmente, não têm noção desse uso. Daí surge a necessidade de se investigar mais sobre as crenças e concepções desses alunos em relação à leitura e suas práticas de leitura. O professor de Educação Superior precisa verificar quais são as crenças desses alunos sobre a leitura, avaliar como eles praticam essa atividade, detectar falhas e dificuldades para que possa traçar caminhos que levem o aluno a desenvolver essa atividade de maneira satisfatória. A preocupação de qualquer professor, não apenas os língua materna, deve ser a de formar cidadãos críticos

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 249

e leitores proficientes. Para tal tarefa, o professor deve atuar como mediador, levar o aluno a conhecer e a aplicar as estratégias, a realizar a atividade de leitura como um jogo estratégico. Em trabalhos futuros, pretende-se abordar novamente essa questão e, para isso, serão usados questionários abertos e entrevistas para entender mais como os alunos de Letras compreendem o processo de leitura e como efetivam esse processo. Através desses estudos, espera-se compreender mais sobre o processo da leitura, entender como os alunos percebem o texto, se têm consciência da complexidade desse processo e, no futuro, propor metas de trabalho com a leitura em sala de aula.

Referências

ALVERMANN, D. E. Effective literacy instruction for adolescents.

Executive Summary and Paper by National Reading Conference.

Chicago, IL: National Reading Conference. 2001. Disponível em:

<http://www.coe.uga.edu/lle/faculty/alvermann/effective2.pdf>. Acesso em:

18 mar. 2008.

BARCELOS, A. M. F.; ABRAHÃO, M. H. V. (Orgs.) Crenças e ensino de

línguas. Foco no professor, no aluno e na formação de professores.

Campinas: Pontes, 2006.

BEAUGRANDE, R. de. New foundations for a science of text and

discourse: cognition, communication, and the freedom of access to

knowledge and society. Norwood: Albex, 1997.

BRITTON, B. K.; GRAESSER, A. C. (Eds.). Models of understanding

text. Mahwah: LEA, 1996.

CHAMOT, A. U. The cognitive academic language learning approach

(CALLA): an update. In: RICHARD-AMATO, P. A., SNOW, M. A. (Eds).

Academic success for English language learners: strategies for K-12

mainstream teachers, NY: Longman, 2005. p. 87-101.

Gláuks 250

CHARTIER, A. M. Os futuros professores e a leitura. In: BATISTA, A. A.

G.; GALVÃO, A. M. O. (Orgs.) Leitura: práticas, impressos, letramentos.

Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 89-98.

CLARK, H. Using language. Chicago: The University of Chicago, 1996.

Di PIETRI, E. Práticas de leitura e elementos para a atuação docente. Rio

de Janeiro: Lucerna, 2007.

DUKE, N. K.; PEARSON, D. Effective practices for developing reading

comprehension. In: FARSTUP, A. E.; SAMUELS, S. J. (Eds.) What

research has to say about reading instruction. Newark, DE: International

Reading Association. 2002. Disponível em:

<http://magma.nationalgeographic.com/ngexplorer/0809/ax/effectivepractice

s.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2008.

JOLY, M. C. R. A.; CANTALICE, L. M.; VENDRAMINI, C. M. M.

Evidências de validade de uma escala de estratégias de leitura para

universitários. Interação em Psicologia, v.8, n.2, p. 261-270, 2004.

KINTSCH, W. The role of knowledge in discourse comprehension: a

construction-integration model. Psychological Review, Washinton: DC, v.

95, p. 163-182, 1988.

____; VAN DIJK, T. A. Toward a model of comprehension and production.

Psychological Review, Washinton: DC, v. 85, p. 363-394, 1978.

KLEIMAN, Â. Leitura. Ensino e pesquisa. Campinas: Pontes, 1989a.

____. Texto e leitor. Aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes,

1989b.

____. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

____; TRAVAGLIA, L. C. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 1997

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.

São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

POSSENTI, S. Por que (não) ensinar a gramática na escola. Campinas,

SP: ALB: Mercado das Letras, 1996.

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 251

PULLIN, E. M. M. P. Leitura de estudo: estratégias reconhecidas como

utilizadas por alunos universitários. Ciência & Cognição, v.12, p. 51-61,

2007.

SALATACI, R.; AKYEL, A. Possible effects of strategy instruction on L1

and L2 reading. Reading in a foreign language, Honolulu: AI, v.14, n.10,

April, 2002. Disponível em:

<http://nflrc.hawaii.edu/rfl/april2002/salataci/salataci.html>. Acesso em: 18

mar. 2008.

SILVA, A da. A influência do conhecimento prévio e da estrutura textual

na leitura de textos procedimentais. 1997. Dissertação (Mestrado em

Estudos Lingüísticos) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas

Gerais, Belo Horizonte, 1997.

____. A leitura e a compreensão da anáfora conceitual. 2004. Tese

(Doutorado em Lingüística) – Instituto de Estudos da Linguagem,

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto Alegre, RS: ArtMed, 1998.

ABSTRACT: In this paper, we examine the practices of reading strategies of students majoring in Portuguese and Literature. It is considered that reading strategies influence reading comprehension, once the procedures performed during the reading activity help readers with the understanding of a text or the operations performed when addressing a text (CHAMOT, 2005; ALVERMANN, 2001). For the purpose of this study, we administered a questionnaire to identify the reading practices of those students majoring in Portuguese and Literature, since they would need to assess their students’ reading skills and text comprehension when they became in-service teachers. We concluded that those pre-service teachers do not often feel confident about their own reading strategies, they sometimes do

Gláuks 252

not use any strategy, and, when they do, they do not use strategies consciously.

KEYWORDS: Reading. Strategies. Comprehension. Teacher education. Text.

O Reconhecimento das Estratégias de Leitura por Professores em Formação 253

Anexo A

(Questionário apresentado aos alunos)

1. Você se considera um bom leitor? ________ Sim _______ Não.

2. Por quê? 3. Antes de ler um texto, você verifica seus títulos e

subtítulos? 4. O que você faz ao encontrar no texto uma palavra que

você não entende? 5. O que você faz quando encontra alguma dificuldade na

leitura de um texto? 6. Você sublinha os textos durante a leitura? O que o leva a

sublinhar partes ou palavras de um texto? 7. Você faz anotações após a leitura de um texto?

Data de recebimento: 27/03/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks 254

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 255-286

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um Estudo da Fala

Cotidiana na Telenovela O Astro

The Organization of Talk-in-interaction in a Brazilian Soap Opera: A Study of Daily Talk in the Soap Opera

O Astro

Leonardo Coelho Corrêa-Rosado1

Wânia Terezinha Ladeira2

RESUMO: O presente trabalho é um estudo da organização da tomada de turnos da fala-em-interação de uma telenovela brasileira. Nosso objetivo é descrever, em comparação com a conversa cotidiana espontânea, tal sistemática, observando os componentes, as regras e as principais características desse tipo de fala-em-interação; para tal, utilizamos os pressupostos teórico-metodológicos fornecidos pela Análise da Conversa Etnometodológica (AC). Para a realização deste trabalho, selecionamos uma cena da telenovela O Astro, exibida pela Rede Globo no horário das 23 horas, no período de 12 de julho a 28 de outubro de 2011. Através da seleção da cena, realizamos a transcrição, conforme as convenções disponibilizadas pela AC. Após a transcrição, descrevemos a organização da tomada de turnos seguindo os pressupostos utilizados. Os resultados mostram que, na conversa cotidiana da telenovela, a negociação

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos Discursivos) da

Universidade Federal de Viçosa (UFV). Bolsista CAPES/REUNI. 2 Doutora em Estudos Linguísticos pela PUC/RJ. Professora do Departamento de

Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

Gláuks 256

da organização da tomada de turnos é pré-determinada pelo roteiro que os atores, diretores, técnicos etc. devem seguir para que o produto seja exibido nos aparelhos de televisão dos telespectadores. Essa pré-determinação faz com que as principais características da conversa cotidiana não ocorram durante a fala-em-interação da telenovela, mesmo que ela tente fazer uma simulação de tais características.

PALAVRAS-CHAVE: Análise da Conversa Etnometodológica. Telenovela. Organização da tomada de turnos. Fala-em-interação. Enquadre.

1 Introdução

presente trabalho é um estudo da organização da tomada de turnos da fala-em-interação de uma

telenovela brasileira. Nosso objetivo é descrever, em comparação com a conversa cotidiana espontânea, tal sistemática, observando os componentes, as regras e as principais características desse tipo de fala-em-interação, utilizando, para tal, os pressupostos teórico-metodológicos fornecidos pela Análise da Conversa Etnometodológica, sobretudo pelo trabalho de Sacks, Schegloff e Jefferson (2003).

Para a realização deste trabalho, selecionamos uma cena da telenovela O Astro, remake da obra de Janete Clair, escrita por Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro e exibida pela Rede Globo de televisão no horário das 23horas, de terça a sexta-feira, no período de 12 de julho a 28 de outubro de 2011. Através da seleção da cena, realizamos a transcrição, conforme as convenções disponibilizadas pela Análise da Conversa; em seguida, descrevemos a organização da tomada de turnos seguindo os pressupostos utilizados.

��

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 257

O presente trabalho está dividido em três partes, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira parte, faremos uma apresentação do referencial teórico utilizado, no caso a Análise da Conversa Etnometodológica, apontando os seus principais pressupostos e conceitos. Na segunda parte, daremos uma descrição detalhada do corpus e das categorias consideradas para a análise. Por fim, apresentaremos os dados levantados na análise, comparando, quando possível, com a conversa cotidiana.

2 A análise da conversa etnometodológica: alguns apontamentos

A Análise da Conversa (doravante AC) é, de acordo com Garcez (2008), uma tradição de pesquisa de origem anglo-norte-americana que advém de uma vertente da Sociologia, a Etnometodologia, inaugurada através da publicação da obra de Harold Garfinkel, Studies in Ethnomethodology, no início da década de 1960.

A Etnometodologia, nas palavras de Watson (2011), surgiu em contestação aos métodos tradicionais de investigação da organização social utilizados pela Sociologia, nos moldes como ela era realizada até finais da década de 1950. Watson (2011) aponta que o projeto de Garfinkel era criar um tipo de sociologia que abolisse as distinções (vigentes no que ele chama de Sociologia Tradicional ou Macrossociologia) entre ação e estrutura, sujeito e objeto, distinções estas que colocava o sociólogo numa posição superior às pessoas comuns, como se este fosse o único capaz de explicar como se organiza a sociedade e como as pessoas agem nessa organização. Trata-se, então, de uma visão abstrata da organização social, na qual os elementos sociais eram dados apriorísticos com os quais o sociólogo trabalhava para explicar a vida em sociedade.

Gláuks 258

Garfinkel, de acordo com Watson (2011), queria romper com esta tradição e criar uma sociologia na qual as pessoas comuns, realizando suas ações, explicassem a situação analisada pelo sociólogo, desenvolvendo uma concepção da ordem social como algo mais palpável. Nesse sentido, o projeto de Garfinkel preenche a lacuna deixada pela Sociologia Tradicional que é a de considerar a interação entre as pessoas comuns como algo extremamente significativo, uma vez que é no interior dessas interações que as pessoas agem e dão sentido ao mundo ao seu redor. Assim, Watson (2011), utilizando a metáfora da roda-gigante (ferry-wheel), aponta que Garfinkel desejava levar a Sociologia do alto da roda-gigante, lugar onde as pessoas são minúsculas como “formigas” e os detalhes não são vislumbrados, para o baixo da roda-gigante, onde é possível ver as pessoas como elas se veem e contemplar as ações realizadas por elas, sobretudo, através da linguagem.

É dentro desse contexto que a AC surge como um aparato metodológico de investigação da ação, realizada através da linguagem, desempenhada pelos agentes sociais em contextos situados. Portanto, a unidade de análise da AC, conforme Garcez (2008), é a ação social humana.

Para Heritage e Atkinson (1984):

O objetivo central de pesquisas em Análise da Conversa é a descrição e a explicação das competências que os falantes comuns usam e de que se valem para participar de interações inteligíveis e socialmente organizadas. Em sua forma mais básica, esse objetivo é descrever os procedimentos por meio dos quais os participantes produzem seus próprios comportamentos e entendimentos e por meio dos quais lidam com o comportamento dos outros. Uma concepção básica é a proposta de Garfinkel (1967:1) de que essas atividades – produzir comportamento e entendimento e lidar com isso – são realizadas como produtos de um conjunto de procedimentos

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 259

passíveis de serem explicados. (HERITAGE; ATKINSON, 1984, p. 1) (tradução nossa). 3

O sociólogo Harvey Sacks foi o primeiro a vislumbrar as possibilidades analíticas de investigação de um evento social tão comum e corriqueiro como a conversa cotidiana. Juntamente com Garfinkel, Sacks descreveu os métodos (ou etnométodos) que as pessoas comuns utilizam para realizar ações no mundo através da fala-em-interação.

Os apontamentos de Sacks, publicados somente em 1992, com o título Lectures on Conversation, constituem um dos principais pilares da abordagem analítica da AC. Outra contribuição importante para a AC advém do trabalho de Sacks, Schegloff e Jefferson, intitulado A simplest systematics for the organizaton of turn-taking for conversation, publicado em 1974, na revista Language. Nesse trabalho, os autores procuram demonstrar, a partir de gravações em áudio de conversas mundanas, que a conversa não é uma ação humana tão caótica quanto parece e que as pessoas se organizam socialmente através da fala, já que, toda conversa é uma negociação entre interagentes.

Um pressuposto importante nas pesquisas em AC, conforme asseveram Silva, Andrade e Ostermann (2009), é analisar interações naturalísticas, implicando, dessa forma, que há, por parte do analista, uma preocupação com a não manipulação, seleção ou reconstrução dos dados baseados em

3 No original: “The central goal of conversation analytic research is the description

and explication of the competences that ordinary speakers use and rely on in participating in intelligible, socially organized interaction. At its most basic, this objective is one of describing the procedures by which conversationalists produce their own behavior and understand and deal with the behavior of others. A basic assumption throughout is Garfinkel’s (1967: 1) proposal that these activities - producing conduct and understanding and dealing with it -are accomplished as the accountable products of common sets of procedures.”

Gláuks 260

noções pré-concebidas daquilo que é provável ou importante. Assim, segundo as autoras:

A palavra “naturalística” indica que os dados não são experimentais ou gerados a partir de um roteiro prévio, mas que foram coletados no ambiente em que eles aconteceram. Ou seja, os dados que servem à AC não provém (sic) de coletas realizadas por meio de entrevistas pré-concebidas, questionários ou role-plays, por exemplo. Em outras palavras, a AC se volta para a investigação de situações que ocorrem no dia-a-dia e da maneira como elas aconteceriam, mesmo se não houvesse pesquisa sendo realizada. (SILVA; ANDRADE; OSTERMANN, 2009).

A obtenção de tais dados naturalísticos é feita a partir de gravação em áudio e/ou em vídeo das conversas dos participantes. Essas gravações são transcritas obedecendo a uma série de convenções que procuram sinalizar diferentes aspectos que permeiam uma determinada conversa naquela hora e naquele local, tais como as pausas realizadas pelos interagentes, a sobreposição de falas, a entonação ascendente ou descendente, as falas coladas, as palavras proferidas de forma incompleta, entre outras. Desse modo, as transcrições são utilizadas pelos analistas da conversa como uma maneira conveniente de representar o material gravado de forma escrita, tornando-o acessível a outros pesquisadores e descrevendo a conversa do modo “mais realístico” possível. Portanto, metodologicamente, a AC possui dois procedimentos básicos: a) gravação das conversas cotidianas para obtenção dos dados naturalísticos; b) transcrição das conversas, que não substitui a conversa em si, mas que auxilia o analista a descrever a organização da fala-em-interação.

Garcez (2008) arrola alguns pressupostos e compromissos fundamentais da AC. Dentre eles, destacamos: a) valorização da perspectiva êmica e os procedimentos de prova, que, ligada ao compromisso com a observação detalhada de

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 261

dados de uso da linguagem em ocorrência natural, diz respeito à valorização da perspectiva dos participantes sobre as ações conforme eles demonstram uns para os outros, indo, dessa forma, ao encontro do projeto de Garfinkel, segundo nos relata Watson (2011); b) primordialidade da conversa cotidiana entre os sistemas de troca de fala e formas de usos da linguagem, concernente ao fato de que os analistas da conversa, embora estudem a fala-em-interação de maneira bastante ampla, preocupam-se, primordialmente, com a forma básica de sistema de trocas de turnos, a conversa cotidiana, colocando as outras formas de fala-em-interação num plano secundário; c) intersubjetividade como convergência entre realizadores de ações, entendida como o fato de que os agentes sociais realizam suas ações cotidianas conjuntamente (agir conjuntamente); e d) desvalorização da explicação psicológica e do recurso analítico à intenção e pertencimento a categorias a priori, que, indo ao encontro das propostas de Garfinkel, postula que a preocupação do analista da conversa não é tecer considerações sobre “ilações relativas ao que os participantes possam ter dentro de sua cabeça” (GARCEZ, 2008, p. 32) e muito menos considerar categorias apriorísticas para analisar tais interações; ao contrário, eles procuram descrever e analisar o que os próprios interagentes fazem ao utilizar a linguagem.

Outras noções são centrais para a AC, tais como os conceitos de sequencialidade, adjacência e preferência, e, por isso, vamos tratá-los separadamente na seção abaixo.

2.1 Os conceitos de sequencialidade, adjacência e preferência na AC

Os primeiros estudos no interior da AC procuraram descrever a maquinaria que constitui a conversa cotidiana. Nesse

Gláuks 262

sentido, três noções foram desenvolvidas para explicar tal maquinaria: a) sequencialidade, b) adjacência e c) preferência.

A sequencialidade, segundo Loder, Salimen e Müller (2008), diz respeito ao fato de que as ações constituídas por meio da linguagem em interação social são organizadas em sequências de elocuções produzidas por diferentes participantes. Isso pressupõe que cada participante, ao produzir sua elocução, o faz de forma ordenada, levando em consideração o que o outro disse previamente. Desse modo, os turnos de fala devem ser analisados como elementos integrantes de uma configuração sequencial, e não como elementos estanques, que possuem o mesmo valor e que realizam as mesmas ações onde e quando quer que sejam produzidos. Assim, o eixo da sequencialidade possui dois elementos básicos: a) elocuções produzidas sucessivamente e b) alternância ordenada dos participantes na vez de tomar a palavra.

Já a adjacência está relacionada com os pares adjacentes identificados por Sacks. Conforme nos relata Loder, Salimen e Müller (2008), Sacks, em seus primeiros estudos, observou que há elocuções que se organizam sequencialmente em pares, constituindo, assim, uma unidade, os chamados pares adjacentes, tais como: pergunta-resposta, convite-aceitação/recusa, entre outros. De modo geral, os pares adjacentes são compostos de duas elocuções posicionadas uma em seguida da outra, sendo cada uma dessas elocuções produzidas por falantes diferentes. Assim, o par adjacente pergunta-resposta indica que um falante, através de sua elocução, realiza uma pergunta e torna relevante uma outra elocução, a resposta, que constitui seu complemento.

Loder, Salimen e Müller (2008) apontam que os pares adjacentes possuem características importantes. Primeiramente, há um ordenamento entre as elocuções que forma o par, já que uma vem antes de outra. Em segundo lugar, há uma relação

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 263

entre as duas elocuções, tal que, dada a primeira parte do par, não se segue uma segunda parte qualquer, mas apenas algumas são admissíveis. Assim, a ocorrência de uma determinada primeira parte do par cria a expectativa da ocorrência, em seguida, de uma determinada segunda parte do par (ou de um leque de segundas partes do par, como é o caso do convite, em que se cria a expectativa de ocorrência de uma aceitação ou de uma recusa), a chamada relevância condicional.

No que diz respeito à preferência, esta se relaciona com as possíveis alternativas para a segunda parte do par. Em outras palavras, há certas primeiras partes do par que admitem mais de uma segunda parte, como os convites e os pedidos. Assim, na conversa corrente, o falante dá preferência a uma dessas segundas partes admissíveis. Loder, Salimen e Müller (2008), baseando-se em Levinson (1983), ressaltam que nem todas as segundas partes potenciais possuem o mesmo estatuto. Diz-se, com isso, que há segundas partes que são preferidas e outras que são despreferidas. De acordo com Loder, Salimen e Müller (2008), as elocuções preferidas são normalmente mais breves e produzidas tão logo quanto possível; enquanto as elocuções despreferidas são normalmente produzidas com atrasos, prefácios, hesitações, justificativas etc., exigindo um trabalho interacional maior por parte do falante.

Vale ressaltar que o termo preferência, no âmbito da AC, não está relacionado com as motivações psicológicas dos interagentes (motivações essas que, como vimos com Garcez (2008), são desconsideradas), mas sim com o que os participantes demonstram, sequencialmente, uns para os outros a respeito de suas ações em curso.

A seguir, faremos uma breve exposição da organização da tomada de turnos em fala-em-interação, que é outro interesse de estudo importante no interior da AC.

Gláuks 264

2.2 Organização da tomada de turnos

Os autores Sacks, Schegloff e Jefferson (1974) procuraram descrever a sistemática de como os participantes de uma interação se organizam de forma a se entenderem e de serem capazes de manter uma conversa. Dessa forma, os autores apontam que os trabalhos sobre organização da tomada de turnos realizados em diferentes campos de pesquisa não tinham, até então, uma explicação sistemática centrada na organização em si; esses trabalhos estão mais preocupados com “algum resultado particular ou produto da operação da tomada de turnos, interpretado como relevante para algum outro problema” (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 2003, p. 13). Assim, os autores ressaltam que:

O assunto deste trabalho é o sistema de tomada de turnos na conversa, e o que já foi mencionado enquadra-se entre as questões às quais esse trabalho será direcionado. Outros autores já observaram que a organização da tomada de turnos na fala é um tipo de organização operante na conversa e localizaram uma gama de características e detalhes interessantes desse tipo de organização. Mas ainda não está disponível uma descrição da sistemática para a organização da tomada de turnos na conversa. Aqui, com base na pesquisa realizada com o uso de gravações em áudio de conversas de ocorrência natural, tentamos caracterizar, em sua forma sistemática mais simples, a organização da tomada de turnos na conversa e destacar alguns dos interesses dessa organização. (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, [1974] 2003, p. 11).

Portanto, a sistemática da tomada de turnos descreve a ordenação de regras, observadas na conversa, sob o ponto de vista da alocação das oportunidades de falar (FREITAS; MACHADO, 2008). Tal sistemática, sob a óptica de Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974] 2003), coloca a organização da tomada de turnos na conversa como, ao mesmo tempo, livre de contexto, já que há um aparato formal que parece ter um tipo

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 265

apropriado de abstração geral, e sensível ao contexto, uma vez que a conversa pode

acomodar uma vasta gama de situações, interações nas quais estão operando pessoas de variadas identidades (ou de variados grupos de identidades); ela pode ser sensível às várias combinações; e pode ser capaz de lidar com uma mudança de situação dentro de uma situação (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 2003, p. 14).

A sistemática elementar descrita pelos autores possui dois componentes básicos: a) a construção de turnos e b) alocação de turnos. Além desses componentes, há também regras, de caráter descritivo (e não prescritivo, como ressaltam os autores), que organizam a troca de turnos. Freitas e Machado (2008) resumem tais regras da seguinte maneira:

Regra 1- Para qualquer turno, no lugar relevante para transição (LRT) de uma unidade de construção de turno (UCT): (a) Se o falante corrente identificou ou selecionou um próximo falante em particular, então o falante selecionado deve tomar o turno nesse momento. (b) Se o falante corrente não selecionou o próximo falante antes do final da UCT, então qualquer próximo falante pode (mas não necessariamente precisa) se auto-selecionar nesse ponto. Se ocorrer auto-seleção, então o primeiro falante a se autoselecionar tem direito ao turno. (c) Se nenhum próximo falante se auto-selecionou, então o falante corrente pode (mas não necessariamente precisa) continuar a falar com uma nova UCT. [...]

Regra 2: Se o falante corrente não identificou ou selecionou um próximo falante em particular (1(a) acima) ou se, ao final da UCT, um próximo falante não tiver se auto-selecionado (1(b) acima), então as regras 1(a)-(c) passam a valer novamente para o próximo LRT e assim recursivamente até que a transição de turnos se realize. (FREITAS; MACHADO, 2008, p. 66-69).

Sobre o componente composição de turnos, Freitas e Machado (2008) ressaltam que o turno é “o seguimento construído a partir de Unidades de Construção de Turno (UCTs)

Gláuks 266

e pode corresponder, de maneira geral, a unidades como sentenças, orações, palavras isoladas, locuções frasais ou mesmo recursos prosódicos (...)”. Assim, as UCTs são unidades básicas da organização dos turnos na fala interacional. Elas são caracterizadas por dois traços: a) projetabilidade, que “se refere ao fato de que os participantes podem prever, no curso da UCT, que tipo de unidade está sendo produzida pelo interlocutor e, onde, provavelmente, o turno pode vir a terminar”; b) Lugares relevantes para transição (LRT), que se referem “ao fato de que há locais em que os falantes identificam uma possível completude de uma UCT e, com isso, podem fazer troca de turnos legitimamente, ou seja, sem que isso configure interrupção” (FREITAS; MACHADO, 2008, p. 63-64).

Já o componente alocação de turnos concerne às possibilidades de definir/selecionar quem será o próximo falante. Ela pode ocorrer de duas formas: a) seleção do próximo, “quando o falante corrente seleciona o próximo falante – geralmente dirigindo-se ao destinatário verbalmente ou pelo olhar”; b) autosseleção, “quando um interagente se auto-candidata para tomar o turno” (FREITAS; MACHADO, 2008, p. 65).

Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974] 2003) listam uma série de características gerais aplicáveis a qualquer conversa. Dentre elas destacamos:

1. A troca de falante se repete, ou pelo menos ocorre; 2. Na grande maioria dos casos, fala um de cada vez; 3. Ocorrências de mais de um falante por vez são comuns,

mas breves; 4. Transições (de um turno para o próximo) sem intervalos e

sem sobreposições são comuns. Junto com as transições caracterizadas por breves intervalos ou ligeiras sobre-posições, elas perfazem a grande maioria das transições;

5. A ordem dos turnos não é fixa, mas variável; 6. O tamanho dos turnos não é fixo, mas variável;

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 267

7. A extensão da conversa não é previamente especificada; 8. O que cada um diz não é previamente especificado; 9. A distribuição relativa dos turnos não é previamente

especificada; 10. O número de participantes pode variar; 11. A fala pode ser contínua ou descontínua; 12. Técnicas de alocação de turno são obviamente usadas.

Um falante corrente pode selecionar um falante seguinte (como, por exemplo, quando dirige uma pergunta à outra parte) ou as partes podem se autosselecionar para começar a falar;

13. Várias ‘unidades de construção de turnos’ são empregadas; por exemplo, os turnos podem ser projetadamente a ‘extensão de uma palavra’ ou podem ter a extensão de uma sentença;

14. Mecanismos de reparo existem para lidar com erros e violações da tomada de turnos; por exemplo, se duas partes encontram-se falando ao mesmo tempo, uma delas irá parar prematuramente, reparando, assim, o problema.

Essas características, bem como os componentes e regras da sistemática de organização da troca de turnos da fala interacional, serão observadas e descritas em relação à conversa cotidiana na telenovela brasileira. Na seção referente à análise de nosso corpus, discorreremos mais detalhadamente sobre esses elementos e observaremos como eles ocorrem na conversa de telenovela selecionada para este trabalho.

3 Descrevendo o corpus: a telenovela O Astro e a morte de Salomão Hayalla

A telenovela O Astro, exibida pela Rede Globo de Televisão, entre os dias 12 de julho a 28 de outubro de 2011, é

Gláuks 268

um remake4, escrito por Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro, da obra de Janete Clair de mesmo nome, também exibida pela mesma emissora, entre 6 de dezembro de 1977 e 8 de julho de 1978, num total de 186 capítulos, segundo informações do Dicionário da TV Globo (2003).

O enredo de O Astro conta a história de Herculano Quintanilha, um ilusionista que trabalha numa casa noturna no bairro da Penha, Rio de Janeiro, e que vê sua vida ser completamente transformada ao conhecer o filho de Salomão e Clotilde (vulgo Clô) Hayala, Márcio. A partir da convivência com Márcio, Herculano passa a integrar o grupo Hayala, primeiramente como assessor de Márcio – que, após a morte do pai, Salomão, assume a presidência do grupo – e, em seguida, como presidente do grupo. O grupo Hayala, que é formado pelos irmãos Salomão (o mais velho), Youssef, Amim e Samir Hayala, administra uma grande rede de supermercados, os Supermercados Hayala (que na trama era concorrente do Carrefour) e almeja adentrar no ramo da construção civil para se tornar concorrente do grupo Melo Assumpção, chefiado por Amanda Assumpção, engenheira civil e filha mais velha do Sr. Melo Assumpção. A ascensão de Herculano à presidência do grupo provoca a ira de Samir, que tenta de todas as formas derrubar Herculano e desmascará-lo para Márcio. Ao final, Herculano é forçado a deixar a presidência após uma auditoria, exigida por Samir, que evidencia que o mesmo desviava dinheiro da empresa para sua conta bancária particular.

Além da saga de Herculano Quintanilha, seja como bruxo/ilusionista, seja como presidente do grupo Hayala, a trama de O Astro também foi alimentada pela paixão de Herculano por Amanda, pelo romance de Lili e Márcio Hayala,

4 Utilizamos o termo remake tal como definido por Xavier (2007): “remakes são

regravações que podem sofrer mudanças para atualizar ou ajustar a obra”.

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 269

pelos trambiques e falcatruas de Neco, mas, sobretudo, pelo assassinato misterioso de Salomão Hayala, ocorrido no capítulo 15, exibido na quinta-feira, 04 de agosto de 2011. A novela teve um total de 64 capítulos e, durante 49 capítulos, a pergunta “quem matou Salomão Hayala?” foi alimentada pela trama.

Devido à importância que o assassinato de Salomão tem para o desenvolvimento do enredo de O Astro, selecionamos, para a análise da fala-em-interação na telenovela, a cena em que os personagens Inspetor Eustáquio e Inspetora Elizabeth (encarregados de desvendar o mistério) revelam quem, de fato, matou Salomão Hayala. Tal cena foi ao ar no último capítulo do remake em questão, exibido no dia 28 de outubro de 2011.

O ambiente da cena é a mansão dos Hayala e nela se encontram presentes os seguintes personagens (que denominaremos em nossas análises de participantes): Inspetor Eustáquio, Inspetora Elizabeth, Clô Hayala, Inácio (mordomo dos Hayalas), Youssef Hayala, Nádia Hayala (esposa de Youssef), Amim Hayala, Jamile Hayala (esposa de Amim), Melo Assumpção, Miriam Paranhos (namorada de Melo Assumpção) e Henri Sourrel (cabeleireiro particular de Clô). A duração da cena é de aproximadamente 10 minutos, com um intervalo comercial de 5 minutos. A ação dramática da cena centra-se na revelação do(s) assassino(s) de Salomão Hayala, sendo ela basicamente realizada pelo Inspetor Eustáquio.

Nosso corpus é constituído, então, da transcrição da fala-em-interação na cena em questão. A partir dessa transcrição, observaremos a sistemática da organização de turnos dos participantes (personagens) envolvidos na cena.

Vale ressaltar que estamos tomando, neste trabalho, a telenovela, com o seu roteiro, como um enquadre interativo, isto é, como “a definição do que está acontecendo em uma interação” (TANNEN; WALLAT, 1998, p. 123). Trata-se,

Gláuks 270

portanto, de uma moldura que “envolve” a atividade interacional, auxiliando na interpretação da atividade desenvolvida na fala-em-interação, visto que o enquadre é constituído de uma constelação de pistas contextuais.

A análise de enquadres, segundo Ribeiro e Hoyle (2002), é um modo de estudar a organização da experiência da vida cotidiana em uma perspectiva cognitiva e interacional, enfatizando a construção, comunicação e interpretação de significados. Os enquadres afetam o modo pelo qual categorizamos, relembramos, revisamos o que sabemos, o que dizemos ou queremos dizer, como os outros interpretam; enfim, como praticamos ações conjuntamente por meio da fala-em-interação. Logo, um frame ou enquadre constitui um tipo de organização da experiência da vida cotidiana que se realiza na construção, comunicação e interpretação de significados, ou seja, o frame é “resgatado” no momento da interação social (diferentemente do script ou esquema de conhecimento que é prévio, pois está “armazenado” na memória do indivíduo e constitui parte do seu conhecimento prévio) para dar significado a essa interação. Os enquadres não são entidades estanques e podem mudar dentro de uma mesma fala-em-interação. Por isso, podemos admitir laminações dos enquadres: há enquadres maiores e enquadres menores que estão encaixados nos maiores.

Desse modo, o remake de O Astro, neste trabalho, pode ser considerado como um enquadre maior, enquanto a atividade ocorrida no interior da cena5 corresponde a um enquadre menor, laminado do maior.

5 O termo cena, neste trabalho, está sendo compreendido como uma “unidade

dramática do roteiro, seção contínua de ação, dentro de uma mesma localização” (DOC COMPARATO, 1983, p. 245).

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 271

4 Fala-em-interação na telenovela em foco: analisando uma cena

Como apontado na seção anterior, escolhemos, para a análise da fala-em-interação, a cena da revelação dos autores da morte de Salomão Hayala, que ocorreu no último capítulo (capítulo 64) da telenovela O Astro.

A nossa análise tentará descrever a sistemática da organização da tomada de turnos, elaborada por Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974]2003), observando os componentes (composição de turnos e alocação de turnos), as regras e as características da mesma em comparação com a conversa cotidiana. Assim, realizaremos a nossa descrição de forma a apontar tais elementos, obedecendo esta ordem: a) componentes, b) regras e c) características. Ressaltamos, porém, que, embora estejamos separando tais elementos por uma questão didática e metodológica, na fala-em-interação, cotidiana ou de telenovela, tais elementos ocorrem simultaneamente.

4.1 Componentes e regras da organização da tomada de turnos

Na fala interacional transcrita e analisada para este trabalho, observamos que, em relação ao componente construção de turnos, as UCTs ocorrem, sendo bastante visíveis (ou audíveis) na falas dos participantes. A fala-em-interação da cena analisada é, de certo modo, comandada pelo Inspetor Eustáquio, pois é ele quem de fato revela os assassinos de Salomão Hayala:

Gláuks 272

Excerto 1 01 02 03 04 05 06 07

Inspetor Eustáquio

Nós convocamos também um casal amigo da família, doutor Assunção e dona Miriam Paranhos, e o Senhor Henri Sourrel... que já fez a cabeça de muita gente bacana aqui.. e que.. <provavelmente> não cometeu crime algum na nossa área.... >provavelmente<...a gente nunca sabe.

08 .. ((Henri olha para o Inspetor)) 09 10 11 12

O que se sabe, pela delegacia de sequestros.. é que ele é cúmplice no caso do filho do seu Herculano Quintanilha ...e pela roubos e furtos..que ele roubou a escultura do Capriart.

13 (2.8) ((música de suspense de fundo))

14 15 16

Em suma (2.2) prezados senhores e senhoras... é agora que nós vamos saber quem são os responsáveis, pela morte do doutor Salomão Hayala.

Teoricamente, se há UCTs nos turnos dos participantes, há, portanto, projetabilidade e locais relevantes para transição (LRT). Porém, tais características das UCTs, que na conversa cotidiana ocorrem de maneira espontânea sem alguma pré-determinação, na fala-em-interação analisada, elas são pré-determinadas, pois, como já apontamos, o diálogo entre as personagens de uma TN está determinado pelo o que está contido no roteiro enviado aos atores e memorizados por eles. Obviamente, podem ocorrer improvisações, como muitos atores apontam, mas, no geral, toda a ação dramática e o diálogo das cenas são pré-determinados. Com isso, a projetabilidade, que

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 273

permite ao interlocutor prever onde se encerra a UCT, é prescrita, ocorrendo, na verdade, uma simulação.

Na conversa que analisamos, podemos observar essa projetabilidade marcada através da falta de sobreposição entre falas (não houve recorrência de nenhuma sobreposição entre os turnos dos participantes), da falta de falas engatadas (também não houve recorrência desta na conversa analisada) e nas pausas abundantes entre os turnos do falante corrente (linhas 6, 7, 8, 11, 13, 14). Consideremos o excerto abaixo:

Excerto 2

01 02 03 04 05 06 07 08 09 10

Inspetor Eustáquio

((suspiro)) o doutor Salomão montou o seu cassino clandestino.. e: a senhora, dona Miriam..rece:be: u:ma:: pensão informal do falecido (1.1) RECEbia. (1.8) de repente ele <resolveu::> <suspender> a sua grana mensal >e talvez a senhora tenha achado< que isso era: razão suficiente..pra:: apagar o doutor Salomão.

11 Miriam ..É claro que não!

No fragmento acima, o Inspetor Eustáquio faz uma acusação a Miriam, apontando que, devido à suspensão da pensão de Salomão, esta poderia ser a autora do crime que levou morte deste último. Miriam, após meio segundo (linha 11, o símbolo (..) marca es`sa pausa), afirma que não havia sido ela a autora do crime. Vale ressaltar que a cena ocorre sob um clima de tensão e angústia, o que pressupõe agitação, sobretudo, na hora de tomar o turno por parte dos participantes. Numa situação cotidiana, provavelmente, antes mesmo de o Inspetor haver

Gláuks 274

terminado a acusação, o interlocutor, que desejasse evidenciar que ele não era o autor do crime, tomaria o turno do Inspetor sem nenhuma pausa.

Assim, a presença da pausa no excerto acima evidencia que a projetabilidade da conclusão do turno é pré-determinada e também simulada. Pretende-se que seja semelhante à conversa cotidiana, mas, por uma série de questões de ordem técnica, comercial etc, essa simulação não alcança totalmente o efeito de real.

Como a projetabilidade é calculada previamente, os LRTs também o são. Assim, os turnos não são localmente projetados como acontece na conversa cotidiana. O roteiro já determina quando e onde o participante da fala-em-interação deve alocar ou tomar os turnos. Assim, o enquadre maior da telenovela determina o componente de construção de turnos.

No que diz respeito ao componente alocação de turnos, observamos que, na conversa analisada, somente o procedimento de seleção do falante ocorre. Vejamos alguns excertos:

Excerto 3 01 02 03 04

Inspetor Eustáquio

((meneia a cabeça)) nisso eu não acredito. (1.2) Mas..de qualquer forma, isso já são especulações ultrapassa:das,num é inspetora Elizabeth?

05 06

Inspetora Elizabeth

..Verda:::de inspeto:r Eustáquio!

No excerto acima, o participante Inspetor Eustáquio aloca o seu turno selecionando a participante Inspetora Elizabeth para a tomada de turno. Observemos que a UCT “num é inspetora Elizabeth?” evidencia que houve a seleção de falante

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 275

por parte do interagente. Na fala cotidiana, o falante, selecionado para tomar o turno, aplica a projetabilidade na UCT, prevendo que, com essa seleção, o turno do primeiro falante tenha acabado. Assim, ele toma o turno e inicia a sua UCT. Na conversa analisada, isso não ocorre, já que, como apontamos, o enquadre telenovela, com o seu roteiro, determina os lugares e o momento que a alocação de turno vai ocorrer. O turno da participante Elizabeth, no Excerto 3 acima, embora simule uma tomada de turno por seleção de falante, já havia sido pré-determinado pelo roteiro. A pausa de meio segundo entre o fim da UCT do Inspetor Eustáquio e o início da UCT da Inspetora Elizabeth (linha 05) permite-nos também chegar a essa conclusão. Ao longo da conversa, outras tomadas de turno por seleção de falante ocorrem.

Como a alocação de turnos é pré-estabelecida pelo roteiro, as regras de transição de turnos levantadas por Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974]2003) ocorrem precariamente. Apesar das longas pausas, os participantes não se selecionam para a fala em lugares relevantes de transição, há a seleção do próximo falante pelo falante corrente. O turno é tomado com adiamento sem nenhuma razão aparente. Assim, a espontaneidade dos participantes da interação em análise não existe; esses funcionam como marionetes dentro do enquadre de telenovela.

4.2 Características

Dentre as catorze características levantadas por Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974]2003) para a conversa cotidiana, observamos que algumas delas podem ser aplicadas à fala-em-interação em telenovelas, analisadas neste trabalho, tais como: a) a troca de falante se repete, ou pelo menos ocorre, b) na grande maioria dos casos, fala um de cada vez e c) várias UCTs, de extensões variadas, são empregadas.

Gláuks 276

Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974]2003) apontam que a sobreposição de fala (ocorrências de mais de um falante por vez) é comum na conversa cotidiana. Entretanto, quando ocorrem, essas sobreposições tendem a ser breves. Freitas e Machado (2008) dão alguns exemplos que comprovam tal assertiva dos autores em relação à conversa cotidiana.

Na fala-em-interação analisada para este trabalho, observamos, porém, que essa característica não ocorre em momento algum. Como já apontamos, não há, em nenhum ponto da transcrição, sobreposições entre as falas dos participantes; ao contrário, os falantes tendem a terminar seus turnos, haver uma pausa e assim ocorrer a troca de turnos. A necessidade de ser audível e de ser compreendido pelos telespectadores, o que de certo modo particulariza o enquadre em questão, parece emoldurar a fala dos participantes, para que, assim, toda ação dramática em jogo possa ser compreendida. O roteiro, com suas pré-alocações e pré-determinações, também auxilia nessa não ocorrência de sobreposição. Consideremos o exemplo abaixo:

Excerto 4 01 02

Inspetor Eustáquio

Bo::m (2.1) doutor Amim...o senhor::... a <vida> inteira foi humilhado pelo doutor Salomão.

03 Amim ((riso))/mas/..o que que é isso? 04 05 06

Inspetor Eustáquio

Isso: é o que sempre se comentou no grupo <Hayala>. Consta...que:..um pouco antes do crime.. o doutor Salomão: explodiu com o senhor. (1.1)

07 flashback (20.1) 08 Amim O:::...o Salomão::..andava muito

nervoso... 09 10

Jamile Que coisa horrível me lembrar disso! /Horrível!/

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 277

11 12 13 14 15 16 17 18

Inspetor Eustáquio

Eu não sei se o que prevaleceu foi o bom senso ou a inércia mas o senhor:: preferiu::..engolir esse sapo.... O seu caso com a ju::stiça...é outro... O senhor poderá ser indiciado por perjúrio.. apesa::r de ser forma:do em dire::ito, como: me assegurou::... e como cúmplice do doutor Samir na morte da dona Valéria dos Santos.

No excerto acima, a troca de falas entre os participantes ocorre sem nenhuma sobreposição. Na maioria dos casos, há uma pausa de meio a um segundo. Esses elementos permitem tornar a conversa da TN mais compreensível para o público ouvinte.

Na conversa cotidiana, a alocação de turnos gera uma série de possibilidades para os falantes, isto é, ao terminar a sua UCT, o falante pode selecionar outro falante (seleção do próximo); outro falante pode se selecionar (autosseleção) em um LRT e, dessa forma, tomar o turno; ou ainda o falante pode continuar a falar, após perceber que nenhum participante tomou o turno em um LRT, o que pode acontecer com uma pausa. Logo, a ordem dos turnos não é fixa, mas variável como postularam Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974]2003).

Todavia, na conversa de telenovela que estamos analisando, esse ordenamento ocorre, como vimos mais acima, mas não de forma espontânea, isto é, não como uma negociação localmente construída entre os interagentes tal como na conversa cotidiana. A pré-alocação de turnos, determinada pelo roteiro, impede a ocorrência do modelo de troca de turnos local e interacionalmente administrado. Portanto, na fala-em-interação em análise, a ordenação de turnos é variável (já que vemos a

Gláuks 278

alocação de turnos entre os interagentes), porém pré-determinada, isto é, há uma pré-alocação.

O tamanho dos turnos, que na conversa cotidiana é variável, conforme postulam Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974]2003), na fala-em-interação em análise, observamos que o mesmo ocorre, porém, essa extensão é, da mesma forma que a ordenação, pré-determinada. O roteiro determina o tamanho da fala de cada personagem na cena, limitando e até mesmo impedindo a negociação entre os interagentes no que diz respeito ao tamanho dos turnos de cada um. Da mesma maneira, a extensão da conversa e o conteúdo dos turnos é também pré-determinado pelo roteiro. Assim, diferentemente da conversa cotidiana, na qual as possibilidades de tamanho, extensão e conteúdo são negociadas localmente, a fala-em-interação de telenovela, como a demonstrada a partir de nosso corpus, impede que haja essa negociação por parte dos interagentes. Na verdade, o que há, como já apontamos várias vezes, é uma simulação de um modelo de troca de turnos. Consideremos o exemplo abaixo:

Excerto 5 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12

Inspetor Eustáquio

Quando foi empurra:do: pela jane:la, o doutor Salomão tinha na mão um: botão... Esse botão foi arrancado..por ele, doutor Salomão:, da roupa do assassino numa tentativa desesperada de se salvar... Ele tinha também nas mãos..esse tufo de cabelo.... Mas co:mo ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo..esse tufo de cabelo só vai servir como:: constatação de quem

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 279

<executou> o crime. (3.4) A senhora, <por acaso> sabe quem é o assassino... dona Clotilde?

13 (2.3) 14 15 16 17 18 19

Clô Sei (1.9) o senhor não precisa de se dar o trabalho de me denunciar. (1.8) Fui eu! (2.7) Eu matei o Salomão!

20 (3.5)((todos os participantes olham para Clô))

21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49

E não me arrependo disso! (2.6) Eu suportei a truculência dele durante anos e anos e anos. (3.4) Eu sempre soube... que a maior parte dos homens desse mundo..é assim...brutos!..Grosseiros!...CANALHAS! (2.2) Eu sempre procurei (2.6) me defender, e me proteger. (1.8) Mas quando eu soube... que ele fez a cruelda:de..de mandar dopar...e internar meu filho adora:do..num hospício (2.7) só porque o menino...teve a ousadia..de expor, de expressar sua visão de mundo diferente da visão dele,claro (1.5) Aquele dia, ali (1.7) a partir daquele momento...eu comecei a fantasiar(2.0)a morte do /Salomão/. (3.0) E matei. (3.8) Matei!

Gláuks 280

(1.4) Matei!(1.1) com a mais <absoluta> tranquilidade espiritual> <emocional>. (1.5) Matei.... Com a certe::za (1.2) de que eu estava me <libertando>, de que estava libertando o meu filho...de um DITADOR, de um TIRANO...de um de um de um de um MO::NS.TRO!

50 51

Flashback (14.9)((mostra-se a cena em que Clô mata Salomão empurrando-o da janela))

52 53 54 55 56 57

Inspetor Eustáquio Clô

O tal tufo de cabe::lo que o doutor Salomão:: Hayala arrancou do assassino, agora nós <podemos> os exames= =((risos altos)) que:: exames inspetor? Pra quê exames? ((risos)) Eu matei Salomão Hayala, inspetor

No excerto acima, no qual o Inspetor Eustáquio explica que, preso à mão de Salomão Hayala, encontrava-se um tufo de cabelo e o mesmo, já tendo eliminado os demais suspeitos da realização do crime, seleciona Clô para a fala, perguntando-a sobre quem seria o assassino de Salomão. Clô, em respeito à adjacência da organização da tomada de turno, responde dizendo que o Inspetor não precisaria gastar o tempo dele para denunciá-la, pois era ela quem havia matado Salomão, dando uma série de explicações pelas quais ela teria feito o crime. Observemos que, durante a troca de turnos, há uma pausa muito grande entre os mesmos (linha 13), o que permite compreender que há algo “por detrás” da fala interacional em questão. Inclusive, o próprio “monólogo” de Clô, através do qual ela dá as justificativas para

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 281

a morte do marido, é cheio de pausas (linhas 14, 16, 20, 22, 24, 27, 28, 29, 32, 34, 35, 36, 37, 39, 41, 45, 47), o que nos permite concluir que há uma pré-determinação sendo seguida para que a fala seja o mais inteligível possível.

Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974]2003) ainda apontam que, na conversa cotidiana, a distribuição relativa dos turnos não é previamente especificada, já que essa é estabelecida à medida que a interação avança e a negociação local é realizada, bem como o número de participantes de uma conversa pode variar, pois existe um conjunto de falantes em potencial que podem tomar o turno e avançar a interação.

Na fala-em-interação de telenovela, embora haja a simulação de que tudo ali está ocorrendo espontaneamente, tanto a distribuição dos turnos quanto o número de participantes são pré-determinados. Calza (1996) ressalta que, durante a gravação de uma determinada cena, seja ela externa ou interna, somente os atores envolvidos naquela ação dramática permanecem no set de filmagem. Portanto, a negociação na distribuição dos turnos na fala-em-interação em análise é pré-estabelecida, ou seja, o roteiro prevê exatamente quem, o que, como, onde e quando fala.

No que diz respeito aos mecanismos de reparo, ou seja, mecanismos que tentam lidar com os mal entendidos da ordem da fala, da audição ou do entendimento (SILVA; ANDRADE; OSTERMANN, 2009), na fala cotidiana, tais mecanismos são bastante comuns, visto que, em vários momentos, os falantes utilizam tais mecanismos para resolver problemas locais da sequência interacional. Entretanto, na fala-em-interação de telenovela que estamos analisando, percebemos que tais mecanismos não ocorrem em nenhum momento, isto é, os participantes da interação não reparam seus turnos de modo a resolver problemas da sequencial interacional.

Gláuks 282

Como vimos através dos exemplos que disponibilizamos nas páginas anteriores, as falas dos participantes possuem várias pausas, o que minimiza a ocorrência de problemas na sequência interacional. A busca pelo audível parece também explicar o porquê de não haver mecanismos de reparos, sobreposições e interrupções na fala-em-interação analisada.

Portanto, o que podemos perceber das características da conversa cotidiana da telenovela é que a negociação da organização da tomada de turnos é, em todos os sentidos, pré-determinada pelo roteiro que os atores, diretores, técnicos, cameramen, editores etc. devem seguir para que o produto seja exibido nos aparelhos de televisão dos telespectadores sem os “defeitos” da fala-em-interação da vida cotidiana. Essa pré-determinação da organização da tomada de turnos faz com que as principais características da conversa cotidiana (variação na extensão, tamanho, ordem e conteúdo dos turnos, sobreposições de falas, mecanismos de reparo, entre outros) não ocorram durante a fala-em-interação da telenovela, tendo em vista que os turnos não são gerenciados localmente. Desse modo, o que temos é uma simulação das características da conversa cotidiana. Na verdade, o que todos envolvidos na preparação de uma TN buscam é tornar o mais compreensível possível a ação dramática desenvolvida no interior da trama, para que, assim, o novelo da TN possa se desenrolar e os telespectadores possam ter seu entretenimento garantido.

5 Considerações finais

O presente trabalho procurou descrever a organização da tomada de turnos da fala-em-interação de uma telenovela brasileira, no caso, a telenovela O Astro, exibida pela Rede Globo, no período de 12 de julho a 28 de outubro de 2011.

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 283

Para efeitos de análise, foi transcrita, utilizando os métodos disponibilizados pela AC, a conversa cotidiana dos personagens da cena na qual os assassinos de Salomão Hayala são revelados. A partir da transcrição, realizamos a análise da fala-em-interação em questão ,considerando os pressupostos, os componentes, as regras e as características da conversa tal como descritas por Sacks, Schegloff e Jefferson ([1974]2003).

Os nossos resultados revelaram que, de modo geral, a fala-em-interação na telenovela analisada é pré-determinada por um roteiro previamente memorizado e ensaiado pelos atores que interagem no interior da cena. Tal pré-determinação acarreta, para a interação ocorrida na cena analisada, uma supressão da negociação local da ordenação de turnos entre os interagentes: os autores, os diretores, os editores e os demais agentes envolvidos na produção de uma telenovela estão preocupados em desenvolver a ação dramática tal como estipulada pelo roteiro, pois esse é previamente aprovado pela emissora e pelos produtores. Assim, a supressão do gerenciamento local da ordenação de turnos faz com que as principais características da conversa cotidiana sejam, na conversa da telenovela, suplantadas e minimizadas ao máximo (mas não totalmente, já que algumas características ainda permanecem). Logo, tais características são pré-estabelecidas e, por isso, a espontaneidade da interação é completamente suprimida. Na verdade, tudo deve ocorrer conforme o script.

Embora nossa análise apresente alguns dados facilmente observáveis, eles não são totalmente inválidos, pois, a partir deles, podemos perceber as nuanças que a TN coloca para a nossa organização social. Já afirmarmos anteriormente que a mesma é um produto cultural importantíssimo na sociedade e sua influência é observável em várias ações sociais. Logo, descrever a organização de turnos de uma conversa de telenovela permite-nos compreender como a representação que

Gláuks 284

ela tenta fazer da realidade é, na verdade, uma grande simulação com vistas a encenar efeitos de real os mais próximos possíveis da realidade e da organização social em que nós vivemos. Assim, perceber como tal simulação opera e como ela é produzida, seja na fala-em-interação que ela tenta simular, seja na própria produção desse produto televisivo, pode nos ajudar a compreender melhor nossa realidade e a maneira como somos, de certo modo, representados pelas produções televisivas.

Referências

CALZA, Rose. O que é telenovela. São Paulo: Brasiliense, 1996.

DICIONÁRIO DA TV GLOBO, v. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

DOC COMPARATO. Roteiro: arte e técnica de escrever para cinema e televisão. Rio de Janeiro: Nórdica Editora, 1983. 263p.

FREITAS, Ana Luiza Pires de; MACHADO, Zenir Flores. Noções fundamentais: a organização da tomada de turnos na fala-em-interação. In: LODER, L.; JUNG, N. M. (Orgs.). Fala-em-interação social: introdução à análise da conversa etnometodológica. Campinas/SP: Mercado das Letras, 2008. p. 59-93.

GARCEZ, Pedro M. A perspectiva da análise da conversa etnometodológica sobre o uso da linguagem em interação social. In: LODER, L.; JUNG, N. M. (Orgs.). Fala-em-interação social: introdução à análise da conversa etnometodológica. Campinas/SP: Mercado das Letras, 2008. p. 17-38.

HERITAGE, John; ATKINSON, Maxwell. Introduction. In: ATKINSON, M.; HERITAGE, J. Structures of social action. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

LEVINSON, Stephen. Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

LODER, Letícia Ludwig; SALIMEN, Paola Guimaraens; MÜLLER, Marden. Noções fundamentais: seqüencialidade, adjacência e preferência. In: LODER, L.; JUNG, N. M. (Orgs.). Fala-em-interação social: introdução à análise da conversa etnometodológica. Campinas/SP: Mercado das Letras, 2008. p. 39-58.

A Organização da Fala-em-interação na Telenovela Brasileira: Um... 285

RIBEIRO, Branca Telles; HOYLE, Susan M. Frame Analysis. Palavra, Rio de Janeiro/RJ, n. 8, p. 36-53, 2002.

SACKS, Harvey; SCHEGLOFF, Emanuel; JEFFERSON, Gail. Sistemática elementar para a organização da tomada de turnos para a conversa. Veredas – Revista de Estudos Linguísticos, Juiz de Fora/MG, v. 7, n. 1 e n. 2, p. 9-73, jan./dez. 2003.

SILVA, Caroline Rodrigues da; ANDRADE, Daniela Negraes; OSTERMANN, Ana Cristina. Análise da conversa: uma breve introdução. ReVEL, v. 7, n.13, 2009.

TANNEN, Deborah; WALLAT, Cynthia. Enquadres interativos e esquemas de conhecimento em interação: Exemplos de um exame/consulta médica. In: RIBEIRO, B. T.; GARCEZ, P. M. Sociolinguística interacional: antropologia, linguística e sociologia em análise do discurso. Porto Alegre, ACE, 1998. p. 120-141.

XAVIER, Nilson. Almanaque da telenovela brasileira. São Paulo: Panda Books, 2007. 372p.

WATSON, Rodney. What is ethnomethodology? Anotações de curso. 2011.

ABSTRACT: The present work is a study of the turn-taking organization of talk-in-interaction in a Brazilian soap opera. Our goal is to describe, in comparison with spontaneous daily talk, such systematics, observing the components, the rules, and the main characteristics of this type of talk-in-interaction, within the theoretical and methodological framework of Conversation Analysis (CA). For this study, we selected a scene from the soap opera O Astro, aired on Globo TV, at 11 p.m., from July 12 to October 28, 2011. The scene was transcribed according to the conventions of CA. After transcription, we described the turn-taking organization following our framework. The results showed that, in the representation of daily talk in the soap opera, the negotiation in turn-taking organization is predetermined by the script which actors, directors, technicians, etc., must follow in order to have the product being displayed on television screens. This pre-determination do not allow the main features

Gláuks 286

of a daily talk to occur (at least in terms of denial) during a situation of talk-in-interaction in the soap opera, even if they try to fake the features.

KEYWORDS: Ethomethodological Conversation Analysis. Soap Opera. Turn-Taking organization. Talk-in-interaction. Frame analysis.

Data de recebimento: 27/03/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 287-312

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do Português: do Passado ao Presente, a Gênese de um Processo

de Mudança Linguística em Curso

Se Constructions in the History of Portuguese: from the Past to the Present, the Source of a Process of Linguistic

Change in Progress

Edson Ferreira Martins1

RESUMO: No presente trabalho, realizamos um estudo sobre a sintaxe histórica da língua portuguesa, focalizando as construções com se apassivador/indeterminador. Partindo de uma concepção de língua histórica, considerada em sua dimensão sociolinguística (COSERIU, 1979; WEINREICH, LABOV e HERZOG, 2006, e LABOV, 1972), analisamos a situação de variação e mudança linguística por que passam tais construções na gramática do português arcaico. Para tanto, utilizamos quatro corpora, representativos da prosa literária e não literária do português dos séculos XIII, XIV, XV e XVI.

PALAVRAS-CHAVE: Mudança linguística. História da língua portuguesa. Sintaxe histórica. Construções com se.

“O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto

1 Doutor em Linguística pela Universidade de Évora (Portugal). Professor Adjunto do

Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

Gláuks 288

outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas. Às vezes saem-lhes lacraus ou escolopendras, grossas roscas brancas ou crisálidas a ponto, mas não é impossível que, ao menos uma vez, apareça um elefante [...]”

José Saramago (2008, p. 29)

1 Introdução

uma pesquisa anterior, dedicando-nos à análise das construções tradicionalmente denominadas de voz

passiva pronominal ou sintética em português, a partir da análise de um corpus de língua escrita do Português Brasileiro (doravante PB) do século XX, encetamos um estudo sociolinguístico das construções com se 2 . Nesse estudo, pudemos atestar a situação de variação linguística que envolve a gramática destas construções no PB contemporâneo.

A literatura disponível sobre o tema (SAID ALI, 1919; NARO, 1976; NUNES, 1990) sinalizava, entretanto, para a questão como um caso de mudança linguística em curso na sintaxe do português, que começaria a ser percebida em meados do século XVI. As limitações com as quais lidamos nesse estudo preliminar, motivadas sobretudo pelo recorte sincrônico que operamos na língua, pouco permitiram aprofundar sobre o fato da mudança em questão, de maneira que saímos dali com a certeza de maiores perguntas.

A busca das respostas continuou, entretanto, numa segunda etapa, em que realizamos uma pesquisa em nível de doutorado na Universidade de Évora, Portugal. Com o propósito específico de realizar um estudo histórico-linguístico das construções com se na gramática do português, a pesquisa se

2 Cf. Martins (2004).

��

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 289

desenvolveu norteada pelos seguintes objetivos: (i) fazer um “mapeamento” do estatuto sintático-semântico das construções com se apassivador e indeterminador, ao longo dos séculos que compreendem o período arcaico da língua (cf. a proposta periodológica de Mattos e Silva, 2008), a partir das teorias modernas sobre a mudança, como as desenvolvidas por Coseriu (1979), Weinreich, Labov e Herzog (2006) e Labov (1972); (ii) compreender como a gramaticografia de língua portuguesa, a filologia e os estudos histórico-linguísticos construíram a teorização sobre esse sintaticismo; (iii) contribuir para o melhor conhecimento da língua portuguesa, a partir de uma concepção de língua entendida em termos coserianos como “real e histórica” (COSERIU, 1979, p. 94).

No presente texto, buscamos apresentar uma síntese dos resultados obtidos no estudo diacrônico que empreendemos sobre as construções com se na história do português, particularmente no que tange aos itens (i) e (iii) dentre os objetivos específicos citados acima3.

2 Sobre a situação de variação e mudança linguísticas envolvendo as construções com se apassivador e indeterminador

Um dos objetivos que motivaram a realização da pesquisa era investigar em que momento particular e sob que condicionamentos sociolinguísticos se construiu o processo de mudança linguística por que passam as construções com se apassivador/indeterminador na história da língua portuguesa. A literatura existente apontava para o período compreendido entre o quinhentos e o seiscentos, sob a observação de que “the non

3 Para uma análise do que estabelecemos como objetivo no item (ii), veja-se Martins

(2010).

Gláuks 290

agreeing construction gained general acceptance sometime between the mid-15th century and the mid-16th century” (NARO, 1976, p. 798).

Em nossa pesquisa, dedicando-nos à tarefa de analisar detidamente o período arcaico da língua4, também encontramos usos da forma inovadora, que podem ser entendidos de duas maneiras: (i) como casos de reinterpretação semântica do clítico, que passa de apassivador a indeterminador; e (ii) ou como casos de concordância verbal facultativa.

2.2.1 A reinterpretação semântica do clítico

Nos textos que compõem os corpora dos séculos XIII e XIV, não foram encontrados exemplos da forma inovadora, em que não se observa a concordância entre o verbo e o objeto semântico/sujeito lógico 5 . Exemplos dessa natureza foram detectados apenas a partir do século XV, com 7 ocorrências, às quais se somam outras 4, encontradas em textos do século XVI. Nesse conjunto de 11 ocorrências, há que se observar a diferença sintática entre dois tipos de representação do sujeito, que pode vir expresso por um SN (6 casos) ou por um pronome relativo (5 casos).

No que se refere aos exemplos coletados em textos do século XV, os dados se distribuíram da seguinte forma: encontramos 4 ocorrências com sujeito representado por SN, sendo 1 exemplo de prosa não literária e 3 de prosa literária

4 O corpus foi montado com a utilização tanto de textos literários quanto não

literários, escritos em prosa, e distribuídos ao longo dos quatro primeiros séculos da história do português, do XIII a meados do XVI, conforme a proposta periodológica de Mattos e Silva (2008) para a cronologia do português arcaico.

5 Resultado semelhante obteve Mariana Oliveira, analisando corpora diacrônicos do mesmo período (cf. OLIVEIRA, 2005, p. 56-57).

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 291

(contidos no LEBCTS 6 , texto produzido em 1437-1438), conforme os exemplos (1), (2), (3) e (4) transcritos a seguir:

(1) [...] e mays vos damos out(r)o jornal de vjña q(ue) jaz en(n)a rribeyra, e mays outra ((L014)) peça de vjña q(ue) jaz en(n)as vielas, as q(ua)es d(i)tas vjñas vos damos & aforamos p(ar)a senpre ja mays por jur ((L015)) de herdade & a vosos suçesor(e)s q(ue) de vos deçenderen & a tal co~diçio~ q(ue) a vosa mort(e) de vos os d(i)tosGarçia Polo ((L016)) & vosa moll(e)r lo no~ posades deyxar saluo a hu~a p(er)sona & q(ue) p(ar)a senpre ja mays en vosa vida & morte ((L017)) & de vosos suçesor(e)s no~ se deujda por herd(eyr)os av~n q(ue) seja~ moytos [...]. (TNGNP, século XV, in MAIA, 1986).

(2) E aquestas cousas suso scriptas nom devem seer

reguardadas pera cavalgar em qual quer besta, mais soomente se deve proveer pera algu~a que seja muyto fazedor; (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

(3) [...] o assessego e a ssoltura se gaanha per saber da

manha e husança della, como ja tenho scripto. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

(4) Pera derribar qual quer alymaria, achei certa speriencia se

a lança trazia de forte aste e bem asteada: em ferindo, se bem entrava, tirava de ssolacada per ella ao trave´s, carregando contra o cha~a~o, por que ficava em maneira d’alçaprema, poucas se tiinha que nom caysse, stremadamente se o fazia da viinda do cavallo; (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

Em (1), exemplo retirado de um texto datado de 1475, o

6 A referência aos textos utilizados na pesquisa é feita aqui por meio de abreviaturas,

conforme a seguinte convenção: LEBCTS = Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela; CA = Crónica de Afonso X; CRB = Chronica dos Reis de Bisnaga; CP = Castelo Perigoso; DCS = Dos Costumes de Santarém; DPCA = Documentos Portugueses da Chancelaria de D. Afonso III; FG = Foros de Garvão; FRA = Foro Real de Afonso X; TA = Testamento de D. Afonso II; TNGNP = Textos Notariais da Galiza e do Noroeste de Portugal; TN = Textos Notariais; TNOx = Textos Notariais do Arquivo de Textos do Português Antigo; TP = Tempos dos Preitos.

Gláuks 292

encadeamento sintático característico dos textos notariais faz com que o SN fique muito distanciado do respectivo verbo, o que pode ter contribuído para que a relação de concordância não tenha sido observada. Já em (2), o SN que é sujeito da primeira oração não vem expresso na coordenada adversativa, o que pode ter favorecido o “descuido” do autor do texto; a forma verbal desta última demonstra que não existe aí relação de concordância sujeito-verbo, marca sintática típica da forma conservadora. Em (3), por sua vez, o SN apresenta dois núcleos, está contíguo ao verbo, e tampouco se observa a concordância verbal. O exemplo (4) apresenta o verbo “ter” no sentido existencial, acompanhado do clítico, e, como se percebe, também não se observa a concordância entre o verbo e o sintagma.

A esses 4 casos de sujeitos representados por SNs, ainda no século XV, se somam 3 ocorrências de sujeitos realizados por pronome relativo, 2 encontradas em textos de prosa não literária, datados, respectivamente, de 1426 e 1434, e 1 ocorrência encontrada na prosa literária, contida no LEBCTS. Nos três casos, ainda que o pronome relativo retome SNs de número plural, não há concordância entre o verbo e o sujeito (= pronome relativo):

(5) [...] et nos deades en cada hu~u an(n)o por dia ((L022)) de Netal seys mrs ou moeda q(ue) os valla segu~do correr ao tenpo ((L023)) et faredes todolos outros boos husos et custumes q(ue) se senp(re) ((L024)) delo fezo a nos et ao d(i)to noso moest(e)i(r)o [...]. (TNGNP, século XV, in MAIA, 1986).

(6) [...] & a ley do Valiano q(ue) he en ajuda ((L029)) das

molleres & a ley q(ue) dis q(ue) geeral rren(u)nciaço~ no~ valla & todas las out(r)as bo~as rrazo~es ((L030)) & d[e]fenso~es q(ue) por mj~ podese dizer & alegar en contrario desto q(ue) d(i)to he & en esta ca(rt)a se ((L031)) cont[e~]; (TNGNP, século XV, in MAIA, 1986).

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 293

(7) E esto mede^s faz nos cuydados dalgu~as obras, que lhe parecerem boas e virtuosas, que se despo~o~e a elles assy destemperadamente que nom te~e~ cuydado de comer, dormyr, nem da folgança ordenada que o corpo naturalmente requere. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

Complementando os exemplos acima citados, referentes ao século XV, encontramos, no século XVI, 2 ocorrências com sujeitos representados por SN. Ambas são exemplos de prosa literária, e estão contidas na CRB:

(8) Capitullo do despojo que dos mouros ficou, e elrey fez queimar todos os mortos, e do que fez Xpova~o de Figueiredo, &c. Estamdo elrey asy no arayal, mamdou recolher ho despojo que dos mouros ficara, no quoal se achou cimco capitae~es, que era~o captivos, os mays primcipaes, os quoaes se achara~o antre os mortos, o mays primcipall d elles era Salebeteca~o, que este era capita~o geral de toda a gente do ydalca~o [...]. (CRB, século XVI, in LOPES, 1897).

(9) Ymdo adiante temdes hu~a rua larga e fremosa,

acompanhada de boas casaryas e ruas da maneyra que dito tenho que ellas sa~o, e entemde se as casas dos home~es que sa~o pera ysso; (CRB, século XVI, in LOPES, 1897).

O exemplo (8) é significativo para a compreensão da força centrípeta que, em face do aparecimento da forma inovadora, a norma literária começaria a exercer sobre a sintaxe das construções com se, força essa construída sob a ideologia dicotômica do certo versus errado. Como podemos perceber na leitura do fragmento, a forma inovadora é substituída, na sequência, pela forma conservadora. A situação de variação envolvendo as duas formas sintáticas, aqui, é evidente, dado que as duas construções apresentam os mesmos constituintes mínimos, a diferença se resumindo à presença ou não da

Gláuks 294

concordância verbal. Tão evidente quanto é a preocupação do autor do texto em se autocorrigir imediatamente, em função da estigmatização que a construção sem concordância provavelmente já sofria. Conforme salienta WLH (2006) ao tratarem do problema da avaliação dos falantes sobre a mudança linguística, os usuários de uma língua percebem tanto os elementos invariantes quanto os variáveis envolvidos na interação linguística. Dessa forma, o julgamento que fazem das formas linguísticas variantes é fundamental para a compreensão dos limites com que concebem sua própria liberdade criativa frente ao sistema linguístico.

Ainda no corpus do século XVI, há outras 2 ocorrências, com sujeitos representados por pronome relativo, 1 exemplo colhido em texto de prosa não literária, documento produzido em 1514, e outro, de prosa literária, encontrado na CRB:

(10) [...] E p(or)quamtoelles anbos dantre sy querja~ esscusar p(r)ejt(os) (e) demandar ((L016)) hodehos (e) mallquere~cas gastos (e) despesas de suas faze~das q(ue) se sob(re)ello ((L017)) podeRja Recreçer [...]. (TN, século XVI, in MARTINS, 1994).

(11) [...] por que as cousas d esta cidade na~o sa~o como as

das outras cidades, que muytas vezes lhes falta~o os mantimentos e provyso~is, e nesta sempre sobeija tudo, e asy manteiga e azeyte e muito leite, que cada dia se vemde, he cousa que se na~o pode deixar de escrever, e a muyta criaça~o de vacas e bufaras que ha na cidade, em gramde parte se na~o achara outra que tal tenha; (CRB, século XVI, in LOPES, 1897).

De posse dos dados acima comentados, em síntese, pode-se concluir que estamos diante da seguinte realidade linguística:

(i) Ao longo do desenvolvimento do período arcaico da língua portuguesa, as passivas pronominais se constituem tradicionalmente com a presença da

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 295

relação de concordância verbo-sujeito, sendo que nas duas primeiras centúrias do referido período (séculos XIII e XIV) não há nenhum registro de ocorrência da forma inovadora, “the non agreeing construction”, como lhe chama Naro (1976, p. 798).

(ii) partindo do que nos permite analisar a documentação remanescente, observamos que, no século XV, inicia-se o processo de variação linguística em torno das construções com se; nesse período da língua, encontramos 7 casos de reinterpretação semântica do clítico; desse processo reinterpretativo, a marca mais saliente é a perda da relação de concordância entre o verbo e o sintagma, que passa a desempenhar a função de complemento verbal em tais construções.

(iii)A situação de variação linguística detectada no século XV se estende ao século XVI, em cujos textos encontramos 4 ocorrências da forma inovadora.

Tendo por base o que afirmamos em (ii), e retomando os apontamentos descritivos feitos por Naro (1976), pode-se concluir que o autor está correto quanto à cronologia que propõe, uma vez que, efetivamente, os casos de se apassivador reinterpretado como se indeterminador inexistem antes do século XV. Nos textos analisados nesta pesquisa, o primeiro exemplo de uso da forma inovadora que encontramos se deu num texto notarial, datado de 1426. Entretanto, observamos que a afirmação do referido autor de que as construções envolvendo o uso da forma inovadora tenham ganhado aceitação geral a partir de meados do século XV é contestável, se levarmos em consideração a sua frequência em contraste com o número de ocorrências da forma conservadora (cf. Gráfico 1 infra).

De acordo com a presente pesquisa, em todo o século XV, foram computadas 309 ocorrências de passivas

Gláuks 296

pronominais. Dessas, isolamos os casos em que ocorrem somente sujeitos em número plural — situação que “obriga” o autor do texto a se posicionar quanto ao estabelecimento ou não da relação de concordância verbal nas passivas pronominais (cf. Tabela 1).

Tabela 1 - Distribuição das formas inovadoras e conservadoras com sujeito em número plural nos corpora dos séculos XV e XVI

SÉCULO XV SÉCULO XVI

PnL PL PnL PL

TIPO DE

CONSTRUÇÃO

TN CP LEBCTS TN CRB

TOTAL

formas conservadoras

23 10 92 4 39 168

formas inovadoras

3 Ø 4 1 3 11

TOTAL 132 47 179

Em relação ao século XV, somando-se os exemplos de prosa não literária e literária, constatamos que existem 132 ocorrências de sujeitos no plural. Desse conjunto, nada menos que 125 ocorrências, ou seja, 94.7% dos casos, referendam o uso da forma conservadora, usos esses que coexistem ao lado dos 7 casos já comentados em que surge a forma inovadora, o que representa apenas 5.3% dos exemplos coletados no corpus desse século. A situação não é muito diferente no século XVI, em cujos textos encontramos, ao todo, 47 ocorrências de sujeitos no plural, o que nos dá uma proporção de apenas 4 casos de uso da forma inovadora (8.5%) contra 43 ocorrências da forma conservadora (91.4%). Se quisermos considerar as estatísticas

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 297

dos dois séculos finais do período arcaico em conjunto, concluímos que, em 93.8% dos casos (168/179 ocorrências), prevalece o uso da forma conservadora. Nesse sentido, em lugar de “aceitação geral” para as construções com se indeterminador que rivalizam com as de se apassivador nesse período da história da língua, deve-se falar, com mais propriedade, em resistência à sua implementação.

Gráfico 1 - Distribuição das formas inovadoras e conservadoras

com sujeito em número plural nos corpora dos séculos XV e XVI7.

Esse quadro analítico permite concluir que, em algum momento do século XV, os usuários do português começaram a oscilar seu juízo quanto à ideia de que a construção contivesse, de fato, um sentido passivo 8 . Mas há que se pensar o 7 No Gráfico 1, os valores foram dados em porcentagem. 8 Em relação à observação que fazemos, cumpre aqui retomar a análise sempre lúcida

que faz Said Ali dos fatos da língua. Referindo-se à baixa frequência de uso da forma inovadora, bem antes dos avanços científicos por que passaria a linguística histórica no último século, já tinha notado o eminente sintaticista brasleiro que “existem, mesmo em escriptores apreciados, exemplos de verbo no singular, como ajuntou-se tambem a estas differenças as tomadias que os nossos fizeram, Barros, Déc. I, 6, 1; primeiro se nota . . . os perigos, ib. 3, 2, 1; com outras obras se consegue . . . estes nomes, ib. 1, 9, 2. Mas estes casos constituem insignificante minoria quer na linguagem literaria em geral, quer na linguagem de um mesmo autor. Não autorisam o uso da discordancia; provam todavia que quem assim

Gláuks 298

desenvolvimento do português arcaico como um todo. A ausência da forma inovadora nos textos dos séculos XIII e XIV mostra que as passivas pronominais já tinham se estabelecido na prosa literária e não literária do português como uma tradição sistemática (COSERIU, 1979). Igualmente, julgamos que o número esparso de ocorrências da forma inovadora nos séculos XV e XVI é significativo para se dimensionar em que proporções começava a se travar a “luta” entre as duas sintaxes, numa competição que, iniciada desde aquele momento, se estende até a sincronia atual, num lento e gradual processo de variação e mudança linguística na gramática do português.

O fato cronológico do surgimento da forma inovadora, situado na primeira metade do século XV, põe em evidência o papel desempenhado pelo falante, que modifica a língua tradicional a partir de sua atividade linguística, conforme a sua percepção dos sentidos negociados pelo uso da construção sem concordância. Nesta perspectiva, o estudo diacrônico das construções com se em português confirmam o ponto de vista coseriano sobre a importância de se conceber a mudança como parte essencial dentro do plano da teoria geral da linguagem, pois

a língua se refaz porque o falar se fundamenta em modelos anteriores e é falar-e-entender; supera-se pela atividade lingüística porque o falar é sempre novo; e renova-se porque entender é entender além do que já se sabia pela língua anterior ao ato. A língua real e histórica é dinâmica porque a atividade lingüística não é falar e entender uma língua, mas falar e entender algo novo por meio duma língua (COSERIU, 1979, p. 94).

Ao mesmo tempo, a inovação representada pela construção sem concordância confirma a importância da compreensão do problema do encaixamento linguístico no

escreveu devia ter o sentimento de regimen com relação ao substantivo posposto” (SAID ALI, 1919, p. 157).

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 299

estudo da mudança. Conforme observam Weinreich, Labov e Herzog, é muito raro que fatos de língua em mudança passem de um sistema inteiro para outro, sendo mais comum que “um conjunto limitado de variáveis” altere “seus valores modais gradualmente de um pólo para outro” (WLH, 2006, p. 123). Sobre as formas em variação tem papel ativo o falante, que é concebido sociolinguisticamente como um sujeito dotado de uma competência multidialetal. Nesta perspectiva, a análise que fizemos da inserção das formas inovadoras no conjunto de dados que formam o sistema linguístico do português no período arcaico referendam as posições teóricas defendidas por WLH (2006).

2.2.2 Os casos de concordância verbal facultativa

Nas orações adverbiais finais do tipo pera se infinitivo, os exemplos coletados demonstram que, nessas estruturas, ocorre um caso de concordância variável no português arcaico em que ora se considera o SN (i) um complemento verbal, ora se vê nele (ii) o sujeito sintático. Assim, na relação sintática apontada em (i), não se estabelece o mecanismo de concordância, como em (12), e o clítico funciona como indeterminador:

(12) Como se deue fi´j´r ho omi´zio. Cus(tume) he de fi´j´r ho omizio aquel que ha-de correger & estar e~ geolhos & meter o seu cuitelo na ma´a´o aquel q(ue) ha quejxume dele & ho outro deue-o a filhar pela ma´a´ & erge-lo & beiga-lo ante home´e´s bo´o´s & pera lj fiqua~ amigos Como sse g(uar)da. E ora por q(ue) no~ fiq(ua) omizio antre as p(ar)tes husa-sse como sse as partes aue´e´m. pera sse parti´r sas contendas. (DCS, século XIV, in RODRIGUES, 1992).

Gláuks 300

Já na situação descrita em (ii), o SN e o verbo concordam normalmente, conforme ocorre em (13), o clítico funcionando como apassivador:

(13) E todos se devem trabalhar pera saberem muitas dellas, segundo o estado, hidade e desposiçom em que forem, por o grande proveito e folgança que dellas muytas vezes percalçom e filham os que dellas sabem husar, reguardando geytos e tempos segundo compre pera se bem fazerem. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

Essas construções totalizaram 8 casos, sendo que em 5 delas o SN é tratado como complemento verbal, conforme os exemplos (12), (15), (16), (17) e (18); nas outras 3 ocorrências, o SN é tido como sujeito, mantendo-se a concordância na relação SN-SV, como ocorre em (13), (14) e (19). Abaixo estão transcritos os outros dados referentes à estrutura em questão:

(14) Por que nom ha despesa pera que mais sem empacho requeiram mercees aos senhores que pera se comprarem bestas e as governarem, nem os senhores mais geeralmente acustumem de fazer. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

(15) E quem soomente serve por temer, ainda o desejo

e o amor ficam livres pera se juntar a outra cousa, e crecendo muyto farom passar a força do temor. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

(16) E aqueste exempro ponho aquy por cada hu~u~ conhecer

se acerta bem [em] esta manha, veendo a avantagem que faz sobre seu lanço de cavallo quando a lança de pee, e esso meesmo tomarem avysamento, quando quiserem lançar, de sse guardarem quanto bem poderem de todollos contrairos das avantage~e~s suso scriptas que se devem filhar pera se fazer grandes lanços. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 301

(17) It(em) ma~do q(ue) a noujdade de ogan(n)o de Ponferrada et de Colinbraa~os et de seust(er)mjnos asy pa~ com(m)o vjño q(ue) a no~ ((L063)) venda~ fasta pasado o Natal ou q(ua)ndo viren q(ue) mays valrra´ p(ar)a se reparar os d(i)tos be~es et p(ar)a conp(r)ir meutestam(en)to. (TNGNP, século XV, in MAIA, 1986).

(18) [...] enta~o mamdou elrey trazer todollos home~es

que estava~o presos, que merecia~o morte, e os mamdou ally degollar, e com ysto foy a obra avante, e fez hu~a serra no meyo d este valle ta~o gramde e ta~o larga, que avera na largura hu~u tiro de beesta, e de comprido, e gramdes espaços, e por bayxo deyxou canos por homde a augoa saya, e quoamdo querem çarra~o nos, e com esta augoa se fezera~o muytas bemfeytorias nesta cidade, e muytas levadas de que se rega~o arozes e hortas, e pera se fazer bemfeytorias, deu estas terras, que se rega~o com esta augoa, por nove anos de graça, atee fazerem bemfeytorias, de maneira que remde jaa agora vinte mill pardaos. (CRB, século XVI, in LOPES, 1897).

(19) Este rey fez na cidade de Bisnaga muytos muros e

torres, e cercou ha novamente, por que a cidade a este tempo na~o hera nada, por nella na~o aver augoa pera se poderem fazer ortas nem pumares, salvo a augoa de Nagumdym que vay afastado d ella, por que ha que na terra avya era toda salgada, que na~o deixava cryar nada; (CRB, século XVI, in LOPES, 1897).

Em termos da cronologia do período arcaico, essas estruturas de concordância variável se distribuíram pelos séculos XIV (1 ocorrência), XV (5 ocorrências) e XVI (2 ocorrências), estando ausentes no século XIII, pelo menos nos textos que analisamos.

Outro tipo de situação que se enquadra nos casos de concordância facultativa se verifica em exemplos de sujeito coordenado pelas conjunções e e ou, em que o verbo concorda

Gláuks 302

com o elemento mais próximo da série coordenada. No caso da coordenação por e, foram encontrados 3 exemplos, todos em textos do século XV:

(20) [...] & uos au(er)des os dous t(er)ços por uoso lauor & collerd(e)s o d(i)to pan & bjño p(e)lo mo~je & home do d(i)to ((L023)) most(eyr)o & dard(e)s de comer & de beberaaq(ue)l q(ue) porlo d(i)to most(eyr)o esteu(er) a coller o d(i)to pa~ & byño en q(ua)nto se ((L024)) coller & byndimar. (TNGNP, século XV, in MAIA, 1986).

(21) Com paao e vara enssynam, ajudam e correm as bestas

em tempos desvayrados, dos quaaes poerey algu~u~s exempros por os quaaes nos semelhantes se pode filhar consselho e avysamento pera dello se aproveitar. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

(22) [...] do boo saber e husança desta manha se perde muyto

a preguyça e empacho pera provar e saber muytas outras, pello corpo que se faz pera ello mais desposto, e as outras seerem de menos trabalho e mays sem periigo do que esta he. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

Ocorrências semelhantes foram detectadas por Mattos e Silva (1989, p. 167-173), em sua análise dos Diálogos de São Gregório. A autora observa que, nestes casos, em que o sujeito é constituído por expressões sinônimas (ou parossinônimas), o português arcaico permite a concordância verbal facultativa. Acreditamos que os exemplos (21) e (22) estão contemplados pela explicação fornecida pela linguista brasileira, enquanto que em (20) o sujeito, se não é parossinônimo, apresenta-se como um todo indivisível, portanto, equivalente a uma forma de número singular.

Encontramos também nos dados outros 3 exemplos com sujeitos compostos, coordenados por ou, em que o verbo fica no singular: no primeiro deles, (21), o pronome relativo pode estar se relacionando anaforicamente tanto a “ladro~” quanto a

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 303

“malfeytor”, situação análoga a (22), em que o relativo pode se referir a um dos três elementos — “proveito, honra ou prazer”. Já no exemplo (23), os termos coordenados aparecem topicalizados e preposicionados, sendo que o verbo auxiliar está flexionado em P3 e a concordância parece se fazer com o termo mais próximo:

(21) E enestes dyas ia dictos nenhuu omen no~ seya ousado nen (co)nstraniudo d’entrar en preyto se no~ for a p(ra)zer dos alcaydes e d’ambas as p(ar)tes ou se [no~] for p(re)yto q(ue) seya d’ome de fora de nosso reyno, ou se no~ for ladro~ ou malfeytor de q(ue) se deue a faz(er)justiça [...]. (FRA, século XIII, in FERREIRA, 1987).

(22) E dizem que se faz algu~a cousa por desejo de honesta

fym, quando nos praz de a fazer por amor dalgu~a virtude symprezmente, nom avendo princypal te[n]çom a outro proveito, honrra ou prazer que se dello seguyr possa, mes sollamente por sabermos que he bem o fazemos, sem aver sperança por tençom principal a gallardom que dele se spere. (LEBCTS, século XV, in PIEL, 1944).

(23) De feri´da asi´na´a´da ou de ne~bro tolheyto como se

deue correger. Custume h(e) q(ue) sse faço a´ a´lgue~ feri´da

asi´j´na´a´da di´z q(ue) lhy tolhy ne~bro q(ue) demande do ne~bro. se qui´s(er) ou de feri´da p(er) ssy qual qui´s(er). E sse qui´s(er) dema~dar do ne~bro no~-no pode faz(er) p(er) ssa Jura con a feri´da. (DCS, século XIV, in RODRIGUES, 1992).

Entendemos que os casos arrolados nesta seção não devam ser interpretados como exemplos de reanálise semântica do clítico, dado que o uso do verbo no singular configura-se, na verdade, como uma escolha estilística dos usuários.

Gláuks 304

2.2.3 Os casos de hipercorreção

Segundo Dubois et al. (2001, p. 323), o fenômeno da hipercorreção — também dito hiperurbanismo — consiste no ato de o usuário da língua buscar um princípio de correção que acaba por se elevar “acima da própria correção”. Temendo cometer equívocos linguísticos, entendidos numa perspectiva normativa como “erros populares”, o usuário termina por criar enunciados que trazem a marca do que seus autores mais temem: o próprio desvio da norma gramatical estabelecida.

Assim como no caso da inovação linguística, a hipercorreção se relaciona ao problema da avaliação, isto é, o problema de se compreender a maneira pela qual os falantes se posicionam em termos dos juízos de prestígio ou estigma em face de formas variáveis de uma determinada língua.

No caso do uso das construções com se apassivador/indeterminador, enunciados9 como

(24) Vende-se mudas.

(25) Aluga-se 2 cômodos.

são a forma a ser evitada, por serem tidos historicamente na tradição gramatical em língua portuguesa como um tipo de “erro sintático”.

Como resultado da hipercorreção que age sobre o uso de tais construções, surgem frases em que os usuários se valem de estruturas que, via de regra, apresentam um verbo na terceira pessoa do plural em discordância com o sintagma que realiza sintaticamente o sujeito frasal. Nos dados analisados, encontramos dois exemplos de hipercorreção (cf. 26 e 27 abaixo). No primeiro deles, encontrado na prosa literária do

9 Exemplos colhidos em Martins (2004, p. 73), com base em dados do Português

Brasileiro, em corpus de língua escrita, datado do século XX.

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 305

século XV, o sujeito é representado pelo SN “exemplo”, que está no singular, em P3, a despeito de o verbo “po~em” estar no plural, flexionado em P6:

(26) C(api´tul)o #XXXIII — Da pacie^ncia, em q(ue) se poem exemplo desa meesma (CP, século XV, in NETO, 1997)

Outro caso se observa na Chronica dos Reis de Bisnaga, onde consta o seguinte exemplo:

(27) [...] elrey faz muito gramde honrra ao que daa a beijar os pees, porque as ma~os na~o daa a beijar a nenhu~a pesoa, e asy quoamdo quer contentar os capita~es, ou pesoas de quem tem recebidos, ou quer receber serviço, da lhe pachari pera suas pessoas, que he muita honrra, e ysto faz cada um aos capita~es no tempo que lhe paga~o sua remda, que he no mes de setembro, omde nove dias se fazem gramdes festas, hu~s dizem que se fazem a honrra dos nove meses que nossa senhora trouxe seu filho no ventre, e outros dizem que se na~o fazem sena~o porque neste tempo vem estes capita~es pagar as remdas a elrey, as quoaes festas sa~o d esta maneira, comvem a saber. (CRB, século XVI, in LOPES, 1897).

Nesse caso, parece lícito supor que o autor tenha querido fazer a concordância com a expressão no plural que ocorre no SPrep “dos nove meses”, desrespeitando a relação sintática esperada, que deveria ter sido feita entre o verbo e o núcleo do SN, “a honrra”. Seja como for, temos aí um caso de hipercorreção, em que fica explícito o temor do solecismo10 a ser evitado.

10 Parafraseando Labov (1994), poderíamos dizer que, aqui, a análise do que ocorre no

presente explica o que aconteceu no passado, na medida em que um dos mais renomados filólogos e gramáticos brasileiros contemporâneos, fazendo coro à ideologia do temor em relação a esse “erro de sintaxe”, recomenda ao consulente da sua Moderna Gramática Portuguesa, numa seção intitulada “Vícios e anomalias de Linguagem”, que evite solecismos como “Aluga-se casas” (BECHARA, 2000, p. 598).

Gláuks 306

3 Considerações finais

Durante a elaboração da pesquisa, quanto mais realizávamos a revisão da extensa literatura dedicada ao estudo das construções com se, mais patente ficava a noção de que um estudo estritamente sincrônico não conseguiria abarcar a complexidade do problema sintático em causa. Como pressuposto teórico fundamental, seguimos, então, a proposta de Eugênio Coseriu, que supera a polarização engendrada pela dicotomia saussuriana sincronia vs. diacronia (SAUSSURE, 1997). Nessa guinada, inverte-se a linha proposta pelos estudos que seguem a orientação saussuriana, em que o estudo diacrônico é visto como assistemático, uma vez que, conforme propõe o linguista romeno, “é necessário partir da mudança para entender a formação do sistema (não para descrever um sistema, em um momento determinado), pois a realidade do sistema não é, certamente, menos problemática que a da mudança (COSERIU, 1979, p. 228).

Em relação aos subsídios para a melhoria do ensino da língua portuguesa – conforme o item (iii) dos objetivos –, nosso estudo se coaduna com a proposta de Marcos Bagno, para quem o estudo da história da língua deve servir, também, no combate ao preconceito linguístico:

A Gramática Histórica ou História do Português precisa se transformar numa investigação de Sociolingüística diacrônica. O estudo das fases anteriores da língua não pode ser feito como um objetivo em si, como mero reconhecimento dessas fases, nem muito menos como argumento para justificar a preservação de regras gramaticais em fase de obsolescência: é necessário que ele esteja fortemente vinculado à necessidade de explicar os aspectos atuais, sincrônicos, da língua. A Gramática Histórica tem ampla possibilidade de se tornar uma ferramenta eficaz no processo de desconstrução ideológica do preconceito lingüístico (BAGNO, 2001, p. 303).

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 307

Um exemplo é particularmente ilustrativo aqui. Em trabalho anterior11 , analisando o uso das construções com se num corpus formado por produções textuais realizadas como prova para o ingresso em uma universidade brasileira, encontramos uma situação claramente denunciadora de como a visão do saber gramatical tradicionalmente instituído age 12 coercivamente sobre os limites da expressão da gramática intuitiva dos falantes (cf. Anexo 1). Numa dessas produções textuais, o candidato, ao fazer a redação a caneta, não pôde apagar o que já havia escrito. Embora estivesse, neste exato momento, redigindo seu texto com o uso da forma inovadora, subitamente ele interrompe a escrita, cancelando com um traço o “erro” sintático que ia cometendo; finalmente, ele reescreve a frase agora em consonância com o que pede a norma “culta”. Pois bem, o exemplo (8) que analisamos no presente trabalho lança luz sobre o que Bagno defende, na medida em que o estudo diacrônico alinha-se aqui com o estudo sincrônico, mostrando que as perspectivas se complementam para o melhor conhecimento da gramática do português concebido como “língua real e histórica” (COSERIU, 1979).

No que se refere aos contributos teóricos da presente pesquisa, é preciso salientar que, para a história das construções com se apassivador/indeterminador em português, além das observações cronológicas de Said Ali (1919) e José Maria

11 Cf. Martins (2004, p. 48 e ss.). 12 Neste ponto, fazemos nossas as palavras de John Lyons (1987, p. 38): “Devemos

agora frisar - e este ponto é muitas vezes mal entendido - que ao traçarmos uma distinção entre descrição e prescrição, não estamos dizendo que não haja lugar para o estabelecimento e prescrição de normas de uso. Obviamente há vantagens administrativas e educacionais, no mundo moderno, para a padronização do dialeto principal empregado em um determinado país ou região. (...) O problema de selecionar, padronizar e promover uma determinada língua ou dialeto em detrimento de outros está envolto em dificuldades políticas e sociais. É parte do que tornou-se conhecido por planejamento lingüístico - uma área importante no campo da sociolingüística aplicada”.

Gláuks 308

Rodrigues (1914), dispúnhamos dos trabalhos de Naro (1976) e Nunes (1990), este último consideravelmente extenso, recobrindo a diacronia relativa aos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e XX. Faltava, contudo, um olhar acurado sobre o período das origens da língua. A análise linguística que realizamos possibilitou preencher essa lacuna no estudo desse sintaticismo na história do português. Nessa perspectiva, o trabalho realizado pretende contribuir para o alargamento do conhecimento da língua portuguesa tanto numa dimensão pancrônica, como no âmbito específico da estrutura e funcionamento sintático da língua no período arcaico. Sobre essa questão, vale a pena trazer à tona as palavras de quem tem se dedicado com afinco ao conhecimento do período da formação da língua portuguesa:

Não se pode dizer que o português arcaico não foi estudado. Pelo contrário. Dos estágios passados da história da língua portuguesa é certamente o mais estudado. O que, no entanto, deve ser marcado é que a bibliografia numerosa que se contruiu sobre esse período se desenvolveu, sobretudo, dos fins do século XIX para os meados do século XX. Na sua quase totalidade ela representa uma tradição de estudos filológico-linguísticos própria ao historicismo oitocentista: os métodos desenvolvidos pela linguística do século XX pouco foram aplicados ao português arcaico. Tanto no que diz respeito a possíveis estudos sincrónicos sobre essa fase pretérita, como no que se refere a estudos de mudança linguística, ou seja, de diacronia no tempo real. (MATTOS E SILVA, 2008, p. 60).

No estudo do português, certamente ainda existem muitos temas que carecem de estudos. Outros há sobre os quais já correram rios de tinta. Neste segundo tipo se insere o estudo das construções com se. Ao termos concluído esta “viagem” diacrônica, nos parece apropriado retomar o pensamento de Vergílio Ferreira (1992, p. 226): «Não tenhas a pretensão de ser inteiramente novo no que pensares ou disseres. Quando nasceste já tudo estava em movimento e o que te importa, para seres novo, é embalares no andamento dos que vinham detrás».

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 309

Damo-nos por realizados se o trabalho feito tiver conseguido contemplar essa verdade.

Referências

BAGNO, M. Dramática da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000.

COSERIU, E. Sincronia, diacronia e história: o problema da mudança lingüística. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979.

DUBOIS, J. et al. Dicionário de lingüística. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

FERREIRA, J. A. (Ed.). Afonso X, Foro Real. Lisboa: I. N. C. M., 1987. p. 125-309.

FERREIRA, V. Pensar. Venda Nova: Bertrand, 1992.

LABOV, W. The social motivation of the sound change. In: __. Sociolinguistics Patterns. Oxford: Basil Blackwell, 1972. p. 1-42.

____. Principles of linguistic change. v. 1. Oxford: Blackwell Publishers, 1994.

LYONS, J. Linguagem e lingüística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1987.

MAIA, C. A. Textos Notariais da Galiza e do Noroeste de Portugal (1401-1497) In: __. História do Galego-Português. Coimbra: INIC, 1986. p. 19-295.

MARTINS, A. M. (Ed.). Clíticos na História do Português - Apêndice Documental. Textos Notariais (sem data ou datados entre 1504 e 1548). Tese de Doutoramento. v. 2. 1994. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1994.

MARTINS, E. F. Variação e mudança lingüística na análise da dita voz passiva sintética em português. Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2004.

___. Da postulação da voz passiva pronominal em Português: Tradição e ruptura no pensamento gramatical brasileiro. In: Revista Gláuks, Viçosa, v. 10, p. 111-129, 2010.

Gláuks 310

MATTOS E SILVA, R. V. Estruturas trecentistas: elementos para uma gramática do português arcaico. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989.

____. O português arcaico. Uma aproximação. v. I - Léxico e morfologia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008.

NARO, A. The genesis of the reflexive impersonal in Brazilian Portuguese: a study in syntactic change as a surface phenomenon. In: __. Language, New York: Baltimore, v. 52, n. 4, p. 779-810, 1976.

NETO, J. A. S. (Ed.). Duas leituras do Tratado Ascético-Místico Castelo Perigoso. 1997. Tese de Doutoramento. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 1997.

NUNES, J. M. O famigerado se: uma análise sincrônica e diacrônica das construções com se apassivador e indeterminador. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1990.

OLIVEIRA, M. F. A voz passiva portuguesa: um estudo diacrônico. Dissertação de Mestrado. 2005. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2005.

PIEL, Joseph. Livro da ensinança de bem cavalgar toda sela. Edição crítica de Joseph Piel. Lisboa: Bertrand, 1994.

RODRIGUES, J. M. Sobre um dos usos do pronome se: as frases do tipo vê-se sinais. In: __. Boletim da Segunda Classe da Academia de Sciências de Lisboa. Coimbra, Imprensa da Universidade, v. 2, p. 3-14, 1914.

RODRIGUES, M. C. M. Dos costumes de Santarém. Dissertação de Mestrado. 1992. Lisboa: F. L. L, 1992. p. 160-251.

SAID ALI, M. O pronome Se. In: __. Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Typ. Besnard Frères, 1919. p. 141-167.

SARAMAGO, J. A viagem do elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SAUSSURE, F. Cours de linguistique générale. Édition critique préparée par Tullio de Mauro. Postface de Louis-Jean Calvet. Paris: Payot, 1997. (Coleção Grande Bibliothèque Payot).

WEINREICH, U; LABOV, W; HERZOG, M. I. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

Construções com se Apassivador e Indeterminador na História do... 311

ABSTRACT: In this paper, we carry out a study on Portuguese historical syntax, focusing on the se constructions. Based on a conception of historical language, considered in its sociolinguistic dimension (COSERIU, 1979; WEINREICH; LABOV e HERZOG, 2006; e LABOV, 1972), we analyze linguistic variation and change which these constructions undergo in the grammar of Old Portuguese. We used four corpora, representative of literary and non literary Portuguese prose of the 13th, 14th, 15th, and 16th centuries.

KEYWORDS: Linguistic change. History of Portuguese. Historical Syntax. Se constructions.

Gláuks 312

ANEXO I

Reproduzimos abaixo um texto que analisamos em um trabalho anterior (MARTINS, 2004, p. 83), ao qual nos referimos nas Considerações Finais do presente artigo:

Data de recebimento: 27/03/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks v. 12 n. 1 (2012) 313-339

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma Professora de Inglês em um

Projeto de Formação Continuada

Transformative Education: Experiences of Participation of an English Teacher in a Continuing

Education Project

Maria da Conceição Aparecida Pereira Zolnier1

Laura Stella Miccoli2

RESUMO: O objetivo deste trabalho é descrever as experiências vivenciadas por uma participante no Projeto de Educação Continuada para Professores de Língua Inglesa (PECPLI). Para desenvolver este estudo de caso, os dados foram coletados por meio de gravações em vídeo, entrevistas e anotações de campo, em contexto de observação participante. Os resultados evidenciam que experiências recorrentes de interação acolhedora, aprendizagem significativa, reflexão sobre a prática e disposição para mudanças levam a transformações: na identidade de professora mais segura em sala de aula; nas concepções sobre o ensino e o papel do professor; nas práticas de ensino que se tornam mais direcionadas aos interesses dos estudantes e, por fim, na vida pessoal, com maior prazer no trabalho e consequente superação da depressão. Como contribuição para a área de Linguística Aplicada, este estudo

1 Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

2 Doutora em Educação pela University of Toronto. Professora Associada do Departamento de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Gláuks 314

traz implicações para a formação continuada de professores de línguas, destacando a importância desse espaço para relacionamentos de apoio e confiança, onde os participantes possam falar de si para partilhar vitórias e conflitos; espaço de aprendizagem e troca, de forma que se sintam valorizados, possuidores de diferentes formas de conhecimento para partilha.

PALAVRAS-CHAVE: Educação continuada. Língua Inglesa. Experiências de aprendizagem. Reflexão. Transformações identitárias.

1 Introdução

ensino e a aprendizagem de língua estrangeira no Brasil são marcados por uma série de obstáculos

como indisciplina, escassez de materiais didáticos, desinteresse dos estudantes etc. (ZOLNIER, 2007) e muitos professores não se sentem preparados para superá-los (MICCOLI, 2007). Dessa forma, algumas universidades como UNICAMP, UFMG, UFV, UEL, UNESP e PUC-SP têm desenvolvido projetos que contribuem para a reflexão, atualização e crescimento dos professores dessa disciplina.

Visando a ampliar a compreensão sobre a influência que esses projetos exercem sobre a vida de seus participantes, este artigo apresenta a trajetória de participação de uma professora no Projeto de Educação Continuada para Professores de Língua Inglesa (PECPLI), coordenado por professoras do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa. Nesse espaço, todos podem falar de si mesmos, refletir sobre o trabalho que

��

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 315

desenvolvem em suas escolas, compartilhar experiências e aprender sobre teorias de ensino e aprendizagem de línguas.

Os participantes também têm oportunidade de repensar suas identidades profissionais, algo que falta nos programas superiores de formação de professores, já que muitos estudantes de Letras passam de estudante a professores, sem que tenham tido oportunidades de construírem identidades profissionais, identidades de transformadores do mundo social (MICCOLI, 2010). Por isso, O PECPLI cria oportunidades para que os professores possam refletir sobre suas práticas de ensino, discutir seus contextos de vida, se descobrindo capazes de efetuar mudanças, tendo consciência do tipo de cidadão que quer formar.

Oferecer condições para que esses profissionais possam refletir sobre teorias da Linguística Aplicada e, a partir delas, questionar suas histórias de vida, suas identidades e práticas de ensino é essencial para que as universidades possam fazer chegar à comunidade escolar os conhecimentos nelas produzidos. Além disso, os projetos de educação continuada podem contribuir para que os professores tenham um espaço de troca de experiências e formação contínua, onde eventuais lacunas na formação profissional possam ser preenchidas.

2 Aprendizagem transformadora

Uma importante perspectiva da formação de professor reflexivo é o conceito de aprendizagem transformadora, desenvolvido por Mezirow no contexto do movimento feminista, ocorrido nos Estados Unidos na década de 1970, quando um grande número de mulheres adultas retornou às universidades, depois de muito tempo distante delas. Esse tipo de aprendizagem é definido por Cranton (1994) como o processo pelo qual as

Gláuks 316

pessoas examinam situações problemáticas para torná-las mais claras e abertas a mudanças.

Cranton relata que geralmente a educação de adultos é vista como colaborativa, sendo que os educadores se colocam mais como facilitadores e coaprendizes do que como professores, considerando uma atmosfera confortável e segura, tanto física quanto psicológica. Segundo a autora, a aprendizagem transformadora diz respeito à produção de sentido das experiências anteriores, visto que as expectativas das pessoas são construídas a partir de acontecimentos passados, ou seja, são produtos de suas experiências.

Mezirow (2000) destaca a urgência de compreendermos a experiência humana, uma vez que, se não formos capazes de entendê-la, acabamos por lhes atribuir significados imaginários. Ele define a aprendizagem como um processo de atribuir sentido a algo e defende a importância de a aprendizagem de adultos enfatizar o contexto e a reflexão crítica sobre suas experiências e concepções.

O autor destaca que a educação de adultos deve oferecer condições ideais de interação, nas quais todos sejam informados, antecipadamente, sobre os tópicos a serem discutidos e tenham tempo de estudo anterior à discussão, para que possam contribuir de forma igualitária. Também enfatiza a centralidade da troca de turnos cortês, para que haja escuta atenta ao outro.

Segundo Mezirow, a teoria da aprendizagem transformadora reconhece o papel crucial dos relacionamentos de apoio, que tornam possíveis sentimentos de maior confiança para controlar e determinar as próprias ações no contexto de atuação. Para o autor, a aprendizagem transformadora pode ser entendida como um “processo de autoempoderamento” (p. 27) e o objetivo da educação de adultos devem ser o de ajudá-los a se

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 317

tornarem aprendizes responsáveis, autônomos e reflexivos, para aprenderem o que quiserem.

Daloz (2000) acrescenta que as pessoas possuem potencial para transformação, mas sua realização poderá ou não ocorrer, dependendo dos contextos particulares de suas vidas. O autor relata que a transformação até pode ocorrer como resultado de um evento isolado, mas, em seus estudos sobre aprendizagem transformadora, em todos os casos investigados, os efeitos foram cumulativos. Assim, apresenta quatro condições para transformação: presença de outros para efetuar trocas, diálogo reflexivo para compreender o significado das experiências, “comunidade mentora” (p. 106) e oportunidades para ações comprometidas.

Segundo o autor, as pessoas se compreendem melhor em relação às outras pela participação em “redes de relacionamentos” (p. 115) ou comunidades mentoras, o que Oliveira (2006, p. 140) chama de “redes de conhecimento e contato” e Cohen e Piper (2000, p. 206), “comunidade de aprendizagem”. Nessas comunidades ou redes, são essenciais os relacionamentos de confiança e apoio, pelos quais os formadores se colocam como mentores, como orientadores, reconhecendo e valorizando cada pessoa não apenas por suas características positivas, mas também por suas experiências, conhecimentos e incertezas. Os mentores oferecem, assim, oportunidades para adquirir conhecimento para elaborar planos e colocá-los em ação.

Daloz (2000) destaca ainda que a aprendizagem transformadora deve ter por objetivo o empoderamento dos participantes, desenvolvendo uma agenda baseada em seus interesses, aceitando as emoções e os conflitos como parte importante e legítima do processo. O autor pontua também que mudanças profundas levam tempo, cuidado estratégico, paciência e convicção de que não estamos trabalhando sozinhos.

Gláuks 318

Enfatiza que as mudanças são pequenos passos que tornam outros possíveis.

Ao apresentar um projeto desenvolvido com adultos em uma comunidade residencial, Cohen e Piper (2000) observaram que, ao contar suas histórias na comunidade de aprendizagem e entrelaçá-las aos seus estudos, “os adultos combinam discurso interpessoal e acadêmico para refletir sobre suas narrativas. Dessa forma, aprendizes e mentores (professores ou formadores) dialogam enquanto revisam suas interpretações subjetivas dos eventos de vida e constroem uma perspectiva mais crítica” (p. 206).

Completando a discussão sobre a importância da aprendizagem afetiva e dos relacionamentos positivos, Taylor (2000) apresenta um vasto levantamento bibliográfico sobre a aprendizagem de adultos e assevera que “é dada atenção demasiada à reflexão crítica e não é dada atenção suficiente para a importância da aprendizagem afetiva, para o papel das emoções no processo de transformação” (p. 303). O autor mostra estudos que revelam que a reflexão crítica somente pode começar depois que as emoções são valorizadas e trabalhadas. Assim, defende que tanto a reflexão crítica quanto a aprendizagem afetiva desempenham papéis importantes no processo transformativo.

O autor destaca também que a aprendizagem afetiva leva a uma maior autoconfiança e autovalorização: “É no estabelecimento de relacionamentos de confiança que os indivíduos participam de discussões questionadoras, ou seja, informações podem ser compartilhadas abertamente para que uma compreensão mútua possa ser alcançada” (p. 307). Assim, “desenvolver relacionamentos com indivíduos que pensam de forma similar é essencial para que a aprendizagem transformadora se desenvolva”. (p. 307).

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 319

Nos diversos estudos sobre aprendizagem transformadora, apresentados por Taylor (ibid.), o principal ponto em comum é a importância dos relacionamentos de confiança por meio dos quais os aprendizes desenvolvem abertura e segurança necessárias para lidar com a aprendizagem em nível afetivo e administrar as experiências conflituosas de transformação. Para o autor, sem relacionamentos saudáveis, a reflexão crítica se torna impotente e superficial.

A partir dos estudos apresentados sobre a aprendizagem transformadora, acreditamos na importância de projetos de educação continuada, através dos quais os professores possam refletir sobre situações problemáticas enfrentadas no ensino e aprendizagem de Inglês nas escolas regulares, de forma a atribuir diferentes sentidos às experiências vivenciadas e desenvolver expectativas e atitudes mais positivas com relação ao próprio trabalho e às identidades de transformadores sociais. Na possibilidade de aprenderem em ambientes onde se sintam confortáveis, seguros e respeitados, os professores poderão se tornar mais autônomos e reflexivos, buscando o que venha ao encontro de suas necessidades.

3 Metodologia

Este trabalho visa a apresentar a compreensão do sentido alocado por uma das participantes às ações desenvolvidas no Projeto de Educação Continuada para Professores de Língua Inglesa (PECPLI), em funcionamento na Universidade Federal de Viçosa, desde 2004. Miccoli (2006, p. 208) destaca que, nas investigações com foco nas experiências, a teoria emerge da observação da prática e da voz de quem vivencia o processo, ou seja, “a visão sistêmica emerge e a compreensão daquilo que investigamos é ampliada quando aquele que vivencia é quem conta a história”.

Gláuks 320

Com a finalidade de documentar as experiências da participante do PECPLI e investigar de que modo essa participação contribui para mudanças, foi desenvolvido um estudo de caso, o que, segundo Brown e Rodgers (2002), tem por objetivo investigar profundamente uma unidade social (indivíduo, grupo, instituição ou comunidade). Para a coleta de dados, foram usados os seguintes instrumentos: anotações de campo, gravações em vídeo dos encontros e em áudio das entrevistas que forneceram as narrativas sobre as experiências de ensino e aprendizagem. O contexto de coleta foi de observação participante onde a primeira autora deste trabalho atuava como voluntária.

A participante Cris (pseudônimo) é professora de Inglês há sete anos, tem 46 anos, é casada e mãe de dois filhos adultos. Graduou-se em Letras em uma faculdade particular na cidade onde mora, cerca de 50 quilômetros de Viçosa. Estuda Inglês em um curso livre desde 2001 e participa do PECPLI há seis. Possui dois cargos em escolas públicas, um de Inglês (25 aulas semanais) e um de Português (18 aulas). Esse último foi temporariamente substituído pelo de vice-direção por um ano, o que coincidiu com o período da pesquisa.

Em 2009, ocasião da coleta de dados para a realização deste trabalho, o projeto contava com onze docentes de escolas públicas. Os encontros aconteciam aos sábados, duas vezes ao mês. Na parte da manhã, eram realizados encontros pedagógicos nos quais os participantes refletiam sobre suas práticas do ensino de línguas, tendo como suporte textos de Linguística Aplicada, selecionados de acordo com os interesses dos professores. À tarde, tinham aulas de Inglês ministradas por um estudante de Letras.

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 321

4 Análise de dados

Apresentamos a análise de dados, traçando a trajetória de participação de Cris no PECPLI, seguindo Allwright (1991), que descreve três fases constitutivas do processo de aprendizagem: (a) o que os aprendizes trazem para a sala de aula; (b) as interações e oportunidades de aprendizagem e (c) os resultados (o que os aprendizes levam).

4.1 O que a aprendiz traz

Os dados relativos à chegada da participante foram organizados na seguinte ordem: formação acadêmica, experiências difíceis vivenciadas nas escolas onde leciona, identidades sociais, sentimentos iniciais no PECPLI e expectativas relacionadas ao projeto. Essa sequência de apresentação visa a compreender o que a professora traz consigo, que tipo de pessoa se reconhece ser, como se sente, a princípio, e o que busca.

Sobre a formação acadêmica, Cris relata que tinha grande desejo de estudar veterinária e não o fez por ausência de recursos para sair de sua cidade. Assim, escolheu Letras por ser esse o curso com o que mais se identificava onde morava. Ela assevera sua identificação com as disciplinas do curso de Letras, embora tivesse dificuldades com a Língua Inglesa: “Eu me identifiquei mesmo com as matérias. Em algumas, eu me saía bem. Em outras, eu tinha dificuldade. Quando eu entrei, eu tinha um pouco de dificuldade com o Inglês. A professora de Inglês sabia muito, mas não tinha didática pra saber passar pra gente. Então, na hora da prova, ela saía de sala pra dar chance de a gente colar.” (Ent. 1: 12.09.09).

Gláuks 322

As experiências pessoais mais marcantes com relação à formação universitária, segundo relata, se referem à professora de Inglês que tinha amplos conhecimentos da língua, mas não conseguia ensinar de forma efetiva. Por isso, oferecia condições para que seus estudantes pudessem trocar informações durante as provas. Essa percepção sobre a má qualidade do ensino superior justifica, juntamente com outros fatores, a adesão ao PECPLI, uma vez que, no projeto, busca preenchimento das lacunas deixadas pela faculdade, principalmente em termos de boa competência linguística, que considera essencial ao desempenho profissional. Esses dados referentes à formação precária do professor de Inglês condizem com os estudos de Almeida Filho (2002), Barcelos e Coelho (2010) e Miccoli (2010).

Sobre as experiências difíceis vivenciadas nas duas escolas onde leciona, Cris relata se sentir sozinha e trabalhando com uma disciplina que é desvalorizada pelos gestores, estudantes e professores de outras disciplinas:

Eu me sentia muito sozinha na minha escola. Eu era a única professora de Inglês e os professores desprezavam o ensino de Inglês na escola [...]. Antes eu sabia fazer meu serviço direito, só que eu era muito insegura. Eu fazia e ficava assim: “Será que estou fazendo da maneira certa?” “Será que a supervisora vai apoiar?” [...] Antes [os gestores] falavam e eu “amém”. Eu só abaixava a cabeça (Ent. 1: 12.09.09). Os alunos não têm interesse (Enc. 3: 12.10.09).

Conforme apresentado em Paiva (2006) e Miccoli (2010), Cris revela identidades de professora solitária, que leciona uma língua cujo valor não é reconhecido pela comunidade escolar. Além da ausência de companheiros que ensinem o mesmo conteúdo, a participante destaca se sentir desamparada com relação aos supervisores e orientadores, o que contribui ainda mais para a insegurança para lecionar. Pelo

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 323

relato de Cris, é possível perceber que não basta o professor desenvolver um bom trabalho, visto ser preciso também ter segurança. Pelo fato de se ver sozinha, relata que ficava aguardando apoio dos gestores, se sentindo incapaz de contestar as decisões deles e de se colocar como profissional. Assim, apenas aceitava, sem questionar, aquilo que lhe era imposto.

Além de trabalhar sozinha e sem orientação dos gestores, outra dificuldade vivida pela participante no contexto escolar é a falta de motivação dos estudantes. Dessa forma, a realidade de seu trabalho pode ser resumida em três pontos centrais: o desinteresse dos estudantes, a desvalorização da disciplina no contexto escolar e a solidão por não ter a quem recorrer diante das dificuldades.

A desvalorização da disciplina que leciona influencia as identidades da professora que também passa a se sentir desvalorizada. Apesar disso, ela revela traços de não acomodação, persistência e esforço para desenvolver o melhor possível em seus empreendimentos. Assevera estar sempre em busca de aprendizagem, superação e aperfeiçoamento. Gosta de ser professora e relata dar sempre o máximo de si, guiada pelo desejo de se destacar entre outros professores, fazendo diferença na vida do estudante, de quem se sente próxima:

Eu tento a cada dia buscar e me aperfeiçoar, aprender. Eu me sinto muito bem como professora (Ent. 1: 12.09.09). Eu sou uma professora que tenta dar o máximo de si. Eu tento me vencer a cada dia, tento estar do lado do aluno quase o tempo todo. [...] O que eu sei dizer de mim é que eu busco melhorar a cada dia (Ent. 3: 12.10.09).

Em síntese, a participante se vê como perfeccionista, idealista e buscadora de uma aprendizagem capaz de capacitá-la para desempenhar um papel significativo na vida de seus estudantes. Por isso, afirma que seu objetivo central é o crescimento do aluno. Os depoimentos revelam que o trabalho

Gláuks 324

docente não é feito por dinheiro apenas, mas por amor aos alunos. Para ela, ser professora de Inglês é uma causa que se assume e se luta por ela. Assim, acredita estar sempre em busca de algo melhor, procurando não se acomodar diante das situações adversas:

Eu adoro ser professora de Inglês. [...] É sacrificado, ganha pouco, mas eu faço porque eu gosto. [Relata conversa com os estudantes] “No dia tal, o meu pagamento está lá, mas como eu sou uma pessoa muito honesta e gosto do que faço e faço o que gosto, eu vou me sentir bem se eu souber que estou ganhando e eu ficar sabendo que vocês estão aprendendo” [...]. O que a Cris tem de bom como professora é esse aconchego com os alunos. (Ent. 1: 12.09.09).

Cris considera que uma de suas principais características é o relacionamento harmonioso e carinhoso com seus estudantes, procurando sempre o bem-estar deles e o próprio. Assim, mesmo ganhando pouco, as dificuldades e carências que encontra na escola pública não a desmotivam a fazer o que acredita ser melhor. Dessa forma, desenvolver um bom trabalho é essencial para que possa sentir que o salário recebido foi conquistado de forma honesta. Trabalhar com seriedade, de acordo com os próprios princípios, de modo que os estudantes aprendam é fundamental para seu sentimento de realização profissional. Em suma, valores como honestidade e compromisso moldam todo o trabalho realizado na escola, mesmo que ela não se sinta valorizada em termos salariais.

Buscando se superar a cada dia, Cris aceita, com muita apreensão inicial, o convite para participar do PECPLI: “Eu era muito insegura [...]. Eu não tinha também o referencial teórico que estou começando a ter. [...] Eu tinha depressão [...]. Eu cheguei com muito medo, não sabia o que falar.” (Ent. 1: 12.09.09).

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 325

Ela chega ao projeto se sentindo insegura, desvalorizada, doente (sob tratamento para depressão) e com conhecimentos teóricos insuficientes para desenvolver um ensino de qualidade, mas aceita o convite com boas expectativas de adquirir conhecimentos que poderão contribuir para que consiga trabalhar melhor:

[O PECPLI] não é pra ganhar mais porque a gente não ganha mais por causa disso. Isso é para o meu engrandecimento pessoal. É um prazer que tenho [...]. O PECLI nos ajuda a não ficar no comodismo (Ent. 2: 12.09.09). Eu quero deixar alguma marca, quero fazer alguma diferença. Eu sei que lá [no PECPLI] eu vou aprender a fazer essa diferença. Lá eu sei que posso aprender, posso conquistar as coisas que vão fazer eu me superar a cada dia. [...] Eu vou lá buscar forças. (Ent. 3: 12.10.09).

Esse excerto evidencia que a participante tem consciência de suas limitações e sabe que precisa se aperfeiçoar para se destacar entre os demais professores. Ela revela estar no PECPLI para buscar motivação e aprendizagem capazes de lhe proporcionar crescimento pessoal contínuo e estratégias de superação das próprias limitações. Esses resultados relativos à busca de motivação e conhecimento são também apresentados pelas demais participantes, conforme destacam Barcelos e Coelho (2010) e Miccoli (2010).

4.2 O que encontra no projeto

Murphey et al. (2010) defendem que o pertencimento emocional antecede a aprendizagem. Portanto, o processo de educação continuada se inicia quando os participantes se sentem aceitos no grupo. É exatamente o que acontece com Cris. Ela revela que, ao longo do tempo, encontra seu lugar no PECPLI e

Gláuks 326

passa a se sentir parte dele: “Eu já chego e tomo meu espaço, meu lugarzinho que já está guardado ali.” (Ent. 2: 12.09.09).

As interações entre os membros do grupo se dão de forma muito harmoniosa, com muito respeito, amizade, confiança e companheirismo. A participante, então, encontra apoio, troca experiências e se sente confortável para pedir ajuda quando encontra dificuldades para aprender ou ensinar:

[O PECPLI] Significa um apoio, um amparo, uma segurança. Uma dá o suporte para a outra, a gente ri junto, a gente chora. (Ent. 1: 12.09.09). Eu acho que há uma cumplicidade muito grande. [...] A gente passa mesmo uma confiança para o outro [...]. Estamos em sintonia e isso é muito grande no grupo [...]. É a interação do grupo, o comprometimento, a paixão que temos [...]. Nós nos vemos de igual para igual. [...] Não vejo ninguém querendo ser mais que o outro. (Ent. 2: 12.09.09). A gente se completa, o que faltava pra gente, a gente encontra aí. (Ent. 4: 07.11.09). Esse partilhar do que deu certo é muito bom. (Ent. 5: 12.12.09).

Cris descreve a sintonia, interação, cumplicidade, confiança entre os membros do grupo, já que cada um dos membros dá suporte aos outros e partilha práticas de ensino que consideram eficientes. Assim, ela resume as identidades das professoras participantes do PECPLI como grupo: “o que a gente tem de mais importante que é a vontade de aprender, a vontade de partilhar. E isso é comum a todas.” (Ent. 5: 12.12.09). Os resultados relativos às interações de amizade e apoio que ocorrem no PECPLI, fazendo com que a participante se sinta fortalecida, corroboram as perspectivas da aprendizagem reflexiva (ZEICHNER, 2003) e transformadora (MEZIROW, 2000; DALOZ, 2000).

Além da amizade com os professores membros do projeto, a participante destaca também o bom relacionamento com as formadoras: “Eu acho muito legal a humildade com que elas se colocam no mesmo patamar que a gente, às vezes até

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 327

menos.” (Ent. 5: 12.12.09). Ela revela gostar muito das formadoras e admirar a capacidade que elas possuem de estabelecer relações simétricas com os professores, sendo solidárias ao ouvir os relatos de dificuldades e angústias vividas nas escolas.

Quanto às emoções sentidas no projeto, as análises revelam que, de um modo geral, são muito positivas. Ela destaca se sentir parte do grupo, ter prazer com a aprendizagem e as interações que ocorrem ao longo dos encontros:

Tinha [...] a expectativa de saber o que vai acontecer no encontro [...]. Prazer de saber que eu vou lá e vou trazer alguma coisa de bom que vai me ajudar pra ter outra semana, já é recompensa. [No final do encontro] O cansaço já foi embora. Já fiquei naquele ambiente tranquilo, ri bastante, a gente brinca... Eu sinto como se eu estivesse cheia, a bagagem. [...] Eu chego cansada e estou vazia de alma e quando vou embora, vou de alma cheia. É como se lá fosse uma fonte da juventude, se eu tomasse daquela água para estar pronta para quando eu sair. (Ent. 3: 12.10.09).

Cris relata chegar se sentindo vazia e desmotivada, mas, ao sair, sente-se restaurada, recomposta, uma vez que encontrou motivação, forças e rejuvenescimento que viera buscar. Dessa forma, se a escola desmotiva e envelhece a professora, é no projeto que ela encontra renovação e energia para desenvolver seu trabalho semanal.

Ao refletir sobre as atividades desenvolvidas nos encontros, Cris destaca grande motivação e destaca o quanto elas se enquadram às necessidades das professoras: “Quando vi o e-mail da Ana sobre o texto da Vera [PAIVA, 2007], eu falei: ‘Ôba, vai cair bem dentro do que estou querendo’.” (Ent. 2: 12.09.09). Sobre as principais experiências vivenciadas no PECPLI, os dados apontam um maior número de experiências de aprendizagem e reflexão: “Eu aprendi coisas que não aprendi em minha vida inteira. (Ent. 3: 12.10.09). Ali há aprendizagem e

Gláuks 328

reflexão em todos os sentidos. O tempo todo, a gente está ali refletindo e aprendendo. A teoria dá suporte pra gente o tempo todo.” (Ent. 4: 07.11.09).

A professora destaca que a aprendizagem, constantemente, ocorre de forma a associar as teorias de ensino à prática de sala de aula, visando a apoiar o professor na busca de conhecimento capaz de ajudá-lo a ter melhor qualidade de vida e de trabalho nas escolas (ZEICHNER, 2003). Assim, o conhecimento é produzido a partir da reflexão sobre teoria sobreposta à prática do grupo, respeitando o professor como agente de mudanças e como possuidor de conhecimento de valor a ser partilhado.

Apesar disso, a aprendizagem no PECPLI nem sempre acontece livre de conflitos, mesmo que sua ocorrência seja restrita, já que, do total de excertos de experiências quantificadas, apenas 1% se referia a eles: “Aquilo que ela explicou ali eu já fazia do meu jeito, mas na teoria eu fiquei um pouco confusa [...]. [E a experiência de escrever o capítulo do livro?] Está sendo muito importante, mas está sendo muito difícil também.” (Ent. 3: 12.10.09).

As dificuldades relatadas pela participante dizem respeito às novas teorias de ensino de línguas, especificamente sobre gêneros textuais naquele semestre e a escrita de um capítulo do livro publicado por Barcelos e Coelho (2010). Apesar de poucos conflitos, as formadoras reconhecem que eles são partes legítimas do processo de aprendizagem (DALOZ, 2000) e fornecem importantes pistas sobre o que é mais significativo ou problemático para os aprendizes. Assim, procuram estar atentas a eles, oferecendo orientação e suporte naquilo de que os participantes mais necessitam.

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 329

4.3 Resultados do projeto: Transformações

Um dos principais objetivos do PECPLI é ser agente propulsor de transformações nas vidas e práticas de seus participantes. Assim, as professoras que se inserem nesse projeto de educação continuada buscam alguma forma de melhoria, uma vez que oportunidades de educação efetiva em um grupo de aprendizagem no qual as pessoas estabeleçam relações de amizade podem oferecer boas condições para mudanças (DALOZ, 2000).

Dessa forma, após muitas interações recorrentes acontecidas com o passar do tempo, as principais mudanças que a participante afirma experimentar ocorrem nas identidades, em termos de autopercepção: como se vê, se sente e o que acredita sobre si mesma. As transformações mais recorrentes se referem à segurança e autoconfiança, como pessoa e professora, como mostra o seguinte excerto: “[Na escola] Hoje eu já posso questionar. Já posso dar a minha opinião. Já posso interferir [...]. Agora hoje eu tenho coragem pra falar ‘eu não sei’.” (Ent. 1: 12.09.09).

Ela destaca insegurança, medo e vergonha iniciais, chegando a uma situação atual de maior conforto não só no PECPLI, mas também em sua escola e família. Os termos segurança e confiança foram citados inúmeras vezes, em contraste com sentimentos negativos anteriores. A segurança não se refere somente ao conhecimento adquirido, mas também para se posicionar na escola, questionando e interferindo nas decisões dos gestores. Ela também passa a se aceitar como passível de erros e revela coragem para admitir o que não sabe. Esses dados relativos à coragem como resultado da educação transformadora condizem com Barcelos e Coelho (2010), Mezirow (2000), Miccoli (2010) e Taylor (2000).

Gláuks 330

Magalhães e Celani (2005) defendem que os projetos de educação continuada para professores de língua estrangeira dão voz a uma categoria que é minoria nas escolas. Os dados revelam que, ao se inserir no PECPLI, a professora busca a própria voz, busca companheiros a quem expor dificuldades e frustrações; com quem possa aprender a trabalhar de acordo com os interesses dos estudantes. Quando encontra a própria voz, recupera a autoestima e se sente encorajada a trabalhar de forma mais eficiente.

Uma importante característica da aprendizagem transformadora, o empoderamento, é evidenciada pela segurança (MEZIROW, 2000; DALOZ, 2000) que se manifesta ao ensinar a língua estrangeira de uma forma efetiva, ao assumir uma posição ativa na escola, interferindo e transformando o contexto de trabalho; questionando e defendendo as próprias concepções e a disciplina lecionada.

Além de se sentir uma professora mais segura, Cris revela também mudanças de crenças e práticas de ensino. Barcelos (2006, p. 18) define crenças como “forma de pensamento, construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos”. Exemplos de experiências de mudanças de crenças foram revelados no seguinte excerto: “Eu achava antes que se eu fosse parar para responder uma pergunta de um aluno eu iria deixá-los defasados naquilo que eu estava ensinando. Agora não. [...] Agora eu tenho noção de que nem tudo tem hora marcada.” (Ent. 1: 12.09.09).

A crença anterior a que Cris se refere concebe um professor que deve ministrar suas aulas exatamente conforme o planejado, de forma a não prejudicar os estudantes em termos de conteúdo programático. A mudança se evidencia na compreensão de que mais importante do que cumprir o programa é trabalhar com os interesses e necessidades dos estudantes.

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 331

Essa mudança de crenças acarreta transformações na prática, ou seja, as crenças podem influenciar as ações, como defende Conceição (2004). Cris relata que, antes do PECPLI, acreditava ter que trabalhar sempre fiel a seus planejamentos. Depois de mudar essa crença, se permite conduzir uma aula de forma diferente da que foi preparada, se orientando pelos interesses dos estudantes, mesmo que estejam associados a conteúdos de outras disciplinas: “Às vezes, eu até fecho o material e vou conversar sobre o assunto que eles estão querendo. Até perguntas do tipo: ‘Professora, é verdade que transar pela primeira vez engravida?’ [...] A partir do PECPLI, eu comecei a parar minha aula [...] e se eles me perguntam sobre sexo é porque eles têm intimidade comigo.” (Ent. 1: 12.09.09).

Ao avaliar e compreender as próprias práticas, a professora adquire segurança com o que elas possuem de positivo e, com os novos conhecimentos, consegue coragem para abandonar práticas ineficazes e desenvolver outras novas e mais produtivas. Assim, a professora não precisa abandonar totalmente sua prática, mas incorpora o novo a ela.

Essa mudança, conforme defendido por Oliveira (2006) e Miccoli (2010), é uma possibilidade que surge a partir da reflexão, da aprendizagem de teorias de ensino e de trocas de experiências significativas com outros professores. As pequenas aberturas a diferentes formas de trabalhar indicam que, com a participação contínua no PECPLI, provavelmente outras mudanças poderão surgir.

Outra forma de segurança revelada pela participante se refere à comunicação oral na língua inglesa, como no evento descrito a seguir:

Quando eu conheci o João (nome fictício), ele só me colocava em situação de risco porque ele [...] vinha falando Inglês e eu murchava, eu amarelava. Isso até eu me sentir mais segura lá no meu curso e no PECPLI. Um dia eu estava com Bete (nome

Gláuks 332

fictício) e encontramos com ele no caminho. Ele veio todo metidão, querendo conversar e não corri “hoje eu vou falar em Inglês com ele”. Quando eu comecei, a conversa não parou. E nós ficamos uns 20 minutos só falando Inglês. Depois ele desistiu e foi embora e eu falei “hoje eu me vinguei”. Depois disso, ele nunca mais conversou em Inglês comigo. (Ent. 5: 12.12.09).

Essa maior segurança para conversar com outras pessoas em Inglês aponta para uma maior confiança como usuária legítima da língua (COOK, 1999). Além disso, a sensação de pertencimento emocional (MURPHEY ET AL., 2010) a uma comunidade de aprendizagem e todo o conteúdo a que teve acesso, tanto no projeto quanto no curso livre, contribuíram para o empoderamento da professora, inclusive com relação à própria saúde. Um exemplo disso é a superação da depressão que ela enfatiza ter sido alcançada, em grande parte, como consequência da participação no PECPLI:

Então eu cheguei à conclusão que não adiantava fazer terapia. Você gasta dinheiro com o psicólogo, mas o que o psicólogo faz por você, o PECPLI faz. O psicólogo te escuta e ele te dá dicas e no PECPLI a gente tem dicas, calor humano, apoio e amor. Na terapia não tem amor. Você senta de um lado, ele senta do outro, você fala e ele fala, sai, vai embora e pronto. (Ent. 1: 12.09.09).

Essas mudanças, refletidas na própria saúde, são importantes resultados evidenciados nos estudos sobre aprendizagem transformadora, em que as pessoas relatam mudanças relativas a hábitos alimentares e abandono de vícios como o cigarro (TAYLOR, 2000). Assim, as mudanças ocorrem em diversos aspectos da vida da participante e ela se descobre mais corajosa para “ser, acreditar, sentir, fazer” (LUCAS, 1994, p. 318), ou seja, coragem para assumir as próprias identidades, crenças, emoções e ações. Transformações que, com certeza, ultrapassam os limites da sala de aula.

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 333

5 Considerações finais

A trajetória de participação da professora Cris no PECPLI inclui tudo aquilo que ela traz para o projeto, as experiências que vivencia e as transformações que resultam dessa participação. A professora relata ter se inserido no grupo doente (com depressão), se sentindo sozinha, insegura para ensinar, sem orientação dos gestores, incapaz de contestar as decisões da escola e trabalhando com uma disciplina desvalorizada pelos estudantes. Além disso, ela destaca deficiências na sua formação docente, em que não aprendeu a falar fluentemente a língua inglesa.

Por enfrentar muitas dificuldades no trabalho e se ver como perfeccionista, como alguém que investe na própria aprendizagem e deseja se superar continuamente, chega ao PECLI buscando elevar a autoestima, buscando forças e motivação para desempenhar um trabalho de qualidade e melhorar o ensino.

No projeto de educação continuada, estabelece relações amorosas e igualitárias de partilha de conhecimentos e dificuldades. Recebe orientações e suporte para desempenhar um trabalho diferente na escola, sente que pertence ao grupo, sente prazer e sempre tem expectativas elevadas. Acredita que chega vazia e cansada aos encontros, mas, aos poucos, se envolve nas atividades, se diverte, se alegra. Quando volta para casa, sente-se descansada e pronta para o trabalho.

Quanto às atividades desenvolvidas no PECPLI, a participante reconhece que a reflexão é o principal objetivo dos encontros e descreve o projeto como espaço de aproximação entre as teorias de ensino de línguas e a prática de sala de aula, como recomendam Celani (2000 e 2001), Celani e Magalhães (2002), Miccoli (2010), Wallace (1991), Zeichner (2003) e Zeichner e Liston (1996).

Gláuks 334

Assim, Cris destaca ter aprendido a desenvolver um trabalho diferenciado, de maior qualidade e mais prazer, para ela e seus estudantes. Ao aprender a trabalhar melhor, sem adoecer, sentindo prazer com o trabalho, adquire melhor qualidade de vida como recomendam Allwright (2003) e Taylor (2000).

Se os encontros funcionam como uma ponte entre a teoria e a prática, como fonte de motivação, como lugar onde se adquire conhecimentos para superar as dificuldades, os obstáculos continuam no caminho da professora, mas ela aprende a transformá-los e, principalmente, a analisá-los a partir de novas perspectivas, como relatam Barcelos & Coelho (2010). Assim, o PECPLI funciona como uma “comunidade mentora” (DALOZ, 2000, p. 106), que orienta e oferece suporte teórico e emocional à professora naquilo em que ela se sente mais fraca.

As mudanças na vida profissional destacadas se referem a (a) maior segurança como professora e falante da língua inglesa, (b) superação da depressão e (c) transformação em pessoa mais reflexiva e questionadora, mais aberta ao diálogo no trabalho e na vida familiar (ZOLNIER; MICCOLI, 2009). Com o passar do tempo, a participante passa a ver os conflitos da escola (obstáculos ao ensino de Inglês) e os do PECPLI (diferentes teorias e escrita de artigo) de uma forma mais natural e as pequenas mudanças se revelam pequenos passos que tornam outros possíveis (DALOZ, 2000).

Diante desses resultados, concordamos com Maturana (2006, p. 76) ao defender que “se há encontro, sempre há um desencadear de mudança estrutural no sistema. A mudança pode ser grande ou pequena, não importa, mas desencadeia-se nele uma mudança estrutural”. A partir desse autor, cremos na mudança como um processo lento, assim como o amadurecimento. Ela não é visível, de um dia para o outro, mas é contínua, desde que as interações também o sejam. Assim, no

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 335

PECPLI, as mudanças ocorrem como consequência das interações recorrentes que somente são possíveis a partir da persistência no projeto, no qual a participante vivencia experiências significativas nos domínios cognitivos, sociais e afetivos.

Referências

ALLWRIGHT, D. Understanding classroom language learning. Plenary talk

given at XI ENPULI. Anais do XI Encontro Nacional de Professores

Universitários de Língua Inglesa. São Paulo: 1991. p. 14-27.

______. Exploratory practice: rethinking practitioner research in language

teaching. Language Teaching Research, v.7, n. 2, p. 113-141, 2003.

ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimensões comunicativas no ensino de

línguas. Campinas: Pontes Editores, 2002.

BARCELOS, A. M. F. Cognição de professores e alunos: Tendências

recentes na pesquisa de crenças sobre ensino e aprendizagem de línguas. In:

BARCELOS, A. M. F.; VIEIRA ABRAHÃO, M. H. (Orgs.). Crenças e

ensino de línguas: foco no professor, no aluno e na formação de

professores. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.

______; COELHO, S. H. (Orgs.). Emoções, reflexões e (trans)form(ações)

de alunos, professores e formadores de professores de línguas. Campinas,

SP: Pontes Editores, 2010.

BROWN, J. D.; RODGERS, T. Doing second language research. Oxford:

Oxford, 2002.

CELANI, M. A. A. You've snatched the carpet from under my feet. In:

Koike, I. (Ed.) Selected Papers from AILA´99. Tokio: Waseda University

Press, 2000. p. 242-258.

______. Ensino de línguas estrangeiras: ocupação ou profissão? In: LEFFA,

V. J. (Org.). O professor de línguas estrangeiras: Construindo a profissão.

Educat. Ed. da Universidade Católica de Pelotas, 2001.

Gláuks 336

______; MAGALHÃES, M. C. C. Representações de professores de Inglês

como língua estrangeira sobre suas identidades profissionais: uma proposta

de reconstrução. In: MOITA LOPES, L. P.; BASTOS, L. C. (Orgs.).

Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de

Letras, 2002. p. 319-338.

COHEN, J. B.; PIPER, D. Transformation in a residential adult learning

community. In: MEZIROW, J. et al. Learning as transformation: critical

perspectives on a theory in progress. San Francisco: Jossey-Bass, 2000. p.

205-228.

CONCEIÇÃO, M. P. Vocabulário e consulta ao dicionário: analisando as

relações entre experiências, crenças e ações na aprendizagem de língua

estrangeira. 2004. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos). Belo

Horizonte: UFMG, 2004.

COOK, V. Going beyond the native speaker in language teaching. TESOL

Quarterly, 33, p. 185-209, 1999.

CRANTON, P. Understanding and promoting transformative learning: a

guide for educators of adults. San Francisco: Jossey-Bass, 1994.

DALOZ, L. A. P. Transformative learning for the common good. In:

MEZIROW, J. et al. Learning as transformation: critical perspectives on a

theory in progress. San Francisco: Jossey-Bass, 2000. p. 103-123.

LUCAS, L. L. The role of courage in transformative learning.

Unpublished Doctoral Dissertation. Madison: University of Wisconsin, 1994.

MAGALHÃES, M. C. C.; CELANI, M. A. A. Reflexive sessions: a tool for

teaching empowerment. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 5, n.

1, p. 135-160, 2005.

MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2006.

MEZIROW, J. Learning to think like an adult: core concepts of

transformation theory. In: MEZIROW, J. et al. Learning as transformation:

critical perspectives on a theory in progress. San Francisco: Jossey-Bass,

2000. p. 3-33.

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 337

MICCOLI, L. S. Tapando buracos em um projeto de formação continuada à

distância para professores de LE: avanços apesar da dura realidade.

Linguagem & Ensino, v. 9, n. 1, p. 129-158, 2006.

______. Por um novo tratamento da experiência na Linguística Aplicada ao

ensino de língua estrangeira. Revista Crop, n. 12, p. 263-283, 2007.

Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlm/crop/>. Acesso em: 12 dez.

2011.

______. O poder da educação continuada para a transformação do ensino. In:

BARCELOS, A. M. F.; COELHO, H. S. H. (Orgs.). Emoções, reflexões e

(Trans)form(ações) de alunos, professores e formadores de professores

de línguas. Campinas: Pontes Editores, 2010. p. 27-40.

MURPHEY, T., PROBER, J.; GONZALES, K. Emotional belonging

precedes learning. In: BARCELOS, A. M. F.; COELHO, S. H. (Orgs.).

Emoções, reflexões e (trans)form(ações) de alunos, professores e

formadores de professores de línguas. Campinas, SP: Pontes Editores,

2010. p. 43-56.

OLIVEIRA, A. L. A. M. Hermes e bonecas russas: um estudo comparativo

para compreender a relação teoria-prática na formação docente. 2006. Tese

(Doutorado em Estudos Linguísticos). Belo Horizonte: UFMG, 2006.

PAIVA, V. L. M. O. Memórias de aprendizagem de professores de língua

inglesa. Contexturas, v. 9, p. 63-78, 2006.

______. Linguagem, gênero e aprendizagem de língua inglesa. In:

ALVAREZ, M. L. O; SILVA, K. A. Linguística Aplicada: múltiplos

olhares. Campinas: Pontes Editores, 2007.

TAYLOR, E. W. Analyzing research on transformative learning theory In:

MEZIROW, J. et al. Learning as transformation: critical perspectives on a

theory in progress. San Francisco: Jossey-Bass, 2000. p. 285-328.

WALLACE, M. Training foreign language teachers: A reflective approach.

Cambridge: Cambridge, 1991.

ZEICHNER, K. M. Formando professores reflexivos para a educação

centrada no aluno: possibilidades e contradições. In: BARBOSA, R. L. L.

Gláuks 338

Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: Editora

UNESP, 2003. p. 35-55.

______; LISTON, D. P. Reflective teaching: an introduction. Mahwah:

Lawrence Erlbaum Associates, 1996.

ZOLNIER, M. C. A. P. Língua inglesa: expectativas e crenças de alunos e

de uma professora do ensino fundamental. 2007. Dissertação (Mestrado em

Linguística Aplicada). Campinas: UNICAMP, 2007.

______; MICCOLI, L. S. O desafio de ensinar Inglês: experiências de

conflitos, frustrações e indisciplina vivenciadas por professores. Revista do

Gel, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 169-200, 2009.

______. Crenças de professoras sobre a habilidade de produção oral. In:

BARCELOS, A. M. F.; COELHO, H. S. H. (Orgs.). Emoções, reflexões e

(Trans)form(ações) de alunos, professores e formadores de professores

de línguas. Campinas: Pontes Editores, 2010. p. 27-40.

ABSTRACT: The objective of this study is to describe the experiences of one participant in a continuing education project (PECPLI). To develop this case study, data were collected through video recordings, interviews, and field notes, in a context of participant observation. The results show that the recurrent friendly interactions, meaningful learning, reflection about teaching practice, and willingness to change lead to modifications: in the identities of a teacher who feel self-confident in the classroom, in her conceptions about teaching and the role of the teacher, in her teaching practices that become more directed to the interests of students and, finally, in her personal life, with greater pleasure at work, and the overcoming of depression. As a contribution to the field of Applied Linguistics, this study has implications for the continuing education of language teachers, as an opportunity to build supportive and reliable relationships, through which participants can talk about themselves to share victories and conflicts, plus

Educação Transformadora: Experiências de Participação de uma... 339

learn and exchange knowledge, in a way that they feel valued and owners of different forms of knowledge to be shared.

KEYWORDS: Continuing education. English Language. Learning experiences. Reflection. Identity transformations.

Data de recebimento: 27/03/2012

Data de aprovação: 29/06/2012

Gláuks 340