uso do tempo e praticas sociais

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Usos do tempo

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  • O Uso do Tempo Livre e as Prticas Culturais na Regio Metropolitana de So Paulo

    Isaura Botelho Maurcio Fiore1

    A pesquisa sobre o Uso do Tempo Livre e as Prticas Culturais na RMSP teve como objetivo contribuir para um melhor conhecimento dos fatores que interferem nas prticas de lazer, puro e simples, ou de lazer cultural. Ou seja, conhecer melhor o que preside as escolhas que as pessoas fazem na ocupao de seu tempo livre.

    Os resultados da primeira etapa sondagem realizada num universo de 2002 pessoas residentes na Regio Metropolitana de So Paulo j apontaram a enorme desigualdade de acesso cultura tradicional e o peso respectivo das variveis scio-demogrficas, como nveis de escolaridade e de renda, faixa etria e localizao domiciliar.

    1 Isaura Botelho doutora em Ao Cultural pela Universidade de So Paulo e pesquisadora do

    Centro de Estudos da Metrpole/CEM do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento/CEBRAP. Maurcio Fiore mestrando em Antropologia Social na Universidade de So Paulo e assistente de pesquisa no CEM/CEBRAP.

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    Os dados obtidos na primeira fase sero complementados com entrevistas em profundidade realizadas com uma sub-amostra de cerca de 5% dos entrevistados na etapa quantitativa, selecionada a partir do acmulo de prticas culturais, escolaridade, faixa etria e regio do domiclio. Essas entrevistas, que j esto sendo realizadas, permitiro a explorao mais precisa das escolhas e dos fatores que definem o uso do tempo livre e das prticas culturais na RMSP.

    O pano de fundo da pesquisa , de um lado, a produo de conhecimento sobre a efetiva vida cultural da populao, entendida como o conjunto de prticas e atitudes que tm uma incidncia sobre a capacidade do homem de se exprimir, de se situar no mundo, de criar seu entorno e de se comunicar, j que a vida cultural do indivduo comporta tambm atitudes em diferentes perodos de sua vida cotidiana. A contraparte desse pano de fundo a relao da pesquisa com a necessria avaliao do quadro hoje hegemnico nas diferentes esferas dos poderes pblicos, onde h uma demanda na direo de uma formulao mais adequada de polticas pblicas. Estas, para serem eficazes, precisam de mecanismos capazes de mapear no s o universo da produo (tarefa mais fcil), mas tambm de caracterizar melhor, pela coleta mais rigorosa de dados, a relao que os indivduos mantm com os equipamentos e com a vida cultural.

    Por isso, procurou-se dar ateno no apenas s atividades legitimadas socialmente como culturais ir ao teatro, ao cinema ou a espetculos musicais, por exemplo , mas tambm quelas que so mais diretamente relacionadas ao entretenimento, como uso do tempo livre fazer palavras cruzadas, croch ou praticar esportes e passeios de tipos variados, como ir a parques, visitar amigos, por exemplo. Sabe-se que o limite entre prtica cultural e entretenimento cada vez mais tnue na medida em que a vida cultural dos indivduos vista como um consumo em meio aos demais e est em permanente competio com eles. Como as variveis de uma pesquisa quantitativa freqentemente no revelam quase nada sobre as modalidades de engajamento dos entrevistados em suas diferentes prticas e consumos, optou-se pela realizao de uma segunda etapa complementar, de natureza qualitativa, com entrevistas em profundidade com um universo de cerca de 100 entrevistas com tipos de praticantes representativos da diversidade encontrada na primeira fase. Este segundo momento tem o intuito de oferecer condies de entender melhor os valores dados pelas pessoas a suas atividades, bem como alargar nossa percepo sobre os mecanismos de transmisso de gostos e hbitos culturais. Esta a nica maneira de avaliar a relao que existe entre as atividades e as condies nas quais os indivduos so levados a consumir ou praticar: h prticas mais ou menos obrigatrias (escola, profisso, famlia, amizades,

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    etc.), h prticas rotineiras, sem envolver grande entusiasmo, h a prtica associada ao interesse ou ao prazer e, enfim, h aquela vivida de maneira mais intensa, como uma paixo. Grande parte das prticas culturais individuais, muitas vezes a maioria, no so ligadas a gostos, mas a circunstncias, como os dados nos revelaram e veremos adiante no caso da freqncia a bibliotecas e no da leitura.

    Nossa pesquisa procura dar um passo para se afastar do que norma neste tipo de investigao onde a cultura erudita geralmente privilegiada, j que ela representa o segmento sobre o qual as estruturas governamentais se debruam, em funo de sua legitimidade. Estamos habituados a pensar a cultura dominante que se impe e se faz reconhecer como a nica cultura legtima e que termina por constituir o paradigma para se constatar as desigualdades de acesso Cultura, com letra maiscula. Esta constatao que deu origem s polticas de democratizao cultural nos anos 60/70. Isto significa dizer, polticas pblicas desenvolvidas com o objetivo de solucionar as desigualdades de acesso da maioria da populao "Cultura" (aquela considerada clssica e legtima). Tais polticas repousam sobre dois postulados: o primeiro define que a cultura erudita aquela que deve ser difundida; o segundo supe que basta haver o encontro (mgico) entre a obra e o pblico (indiferenciado) para que este seja por ela conquistado. As polticas de democratizao da cultura levam em conta fundamentalmente os obstculos materiais s prticas culturais, como a m distribuio ou ausncia de espaos culturais e preos muito altos, que continuam sendo vistos como os entraves bsicos a um maior consumo cultural, sem atentar para outros fatores que so to decisivos quanto os citados e que no se reduzem dimenso econmica ou de oferta. H distines de formao e de hbitos no tecido da vida cotidiana que tm grande incidncia sobre as prticas culturais, a comear pelo fato de a cultura erudita, embora dominante no plano oficial por razes histricas e pelos valores que agrega, ser apenas uma vertente que convive com outras formas de produo e outras tradies populares, tudo bastante infiltrado pela dimenso industrial e mercantil dos processos nos dias de hoje. Avanar, portanto, na reflexo sobre o perfil das prticas partir desta dinmica de pluralidade (no plano da produo e de suas razes) e de unificao (no plano do controle da distribuio e dos circuitos de consumo), condio para que se estabelea uma poltica pblica articulada que contemple as vrias dimenses da vida cultural sem preconceitos elitistas ou populistas. Hoje parece claro que investir na democratizao cultural no induzir a totalidade da populao a fazer determinadas coisas, mas sim oferecer a todos a possibilidade de escolher entre gostar ou no de algumas delas, colocando os meios disposio, combatendo o no acesso, no caso da

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    produo menos vendvel, e o excesso de oferta da produo que segue as leis do mercado, procurando o que seria uma efetiva democracia cultural, algo distinto da democratizao unidirecional at aqui orientadora de polticas.

    Entretanto, todos os estudos que vm sendo desenvolvidos desde os anos 70 continuam tendo como premissa a democratizao cultural, incorporando muito pouco o debate que motivou a mudana de paradigma para o da democracia cultural: a difuso da cultura erudita continua sendo de maneira geral em todo o mundo a prioridade oramentria dos poderes pblicos. Isto faz com que o enfoque das pesquisas se volte para as prticas ditas legtimas socialmente e, no caso europeu, por exemplo, adota-se geralmente uma definio, deliberadamente arbitrria, de cultura como nomenclatura de atividades, para se colocarem ao abrigo de acusaes de parcialidade com relao s diversas definies de cultura.2 Nossa preocupao, diferentemente das pesquisas de mercado, com o conhecimento aprofundado sobre o que significa a vida cultural para as pessoas e nosso enfoque tem uma preocupao especfica com as polticas pblicas. Nesse sentido, demos nfase embora no exclusiva - a essas prticas (eruditas, tradicionais, clssicas) nesta primeira etapa, deixando a explorao do universo do entretenimento, das relaes de sociabilidade e dos usos da metrpole, para a fase qualitativa, j em curso.

    Um aspecto que no pode ser desconsiderado quando se trata da regio metropolitana de So Paulo o fato de que a capital uma cidade onde h uma baixa correspondncia entre o crescimento urbano e a distribuio dos equipamentos culturais. O que, para efeitos desta pesquisa, chamamos de Centro Expandido, a regio que concentra todas as vantagens: concentrao de equipamentos culturais, populao de maior renda e escolaridade, melhor sistema de transporte. Ao desequilbrio na distribuio pelo espao da cidade, devem-se acrescentar outras formas de gerao de diferenas no uso destes equipamentos, pois h outros fatores decisivos na definio do seu uso por parte da populao, vizinha ou no, de algum teatro, museu, cinema ou centro cultural. Ou seja, a anlise da sua distribuio espacial apenas um dos lados da questo e ser motivo de uma considerao mais especfica, ao lado da apreciao de outros fatores.

    De qualquer forma, a presente pesquisa j demonstrou, em sua primeira etapa, o peso da localizao domiciliar: morar no Centro Expandido representa 160% a mais de chances de ser um grande praticante em relao queles que residem em outras regies.

    2 Ver Les pratiques culturelles en Europe de Jean-Michel Guy, pesquisador do ministrio da

    cultura da Frana. In: Participation la vie culturelle en Europe. Tendances, stratgies et dfis. Paris: La documentation Franaise, 1993.

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    Demonstrou tambm que a intensidade da vida cultural da populao no feita pelas prticas legitimadas, aquelas com as quais se preocupam os gestores culturais que administram os equipamentos da cidade, prticas ditas de elite (teatro, museus, bibliotecas, por exemplo), mas principalmente pelo recurso a equipamentos e produtos da indstria cultural, sobretudo eletrnicos. 3

    As prticas dos indivduos foram divididas, para efeito de anlise, entre aquelas realizadas em casa (prticas domiciliares) e aquelas que exigem deslocamento (prticas externas)4. Estas ltimas dependem de investimento de tempo e dinheiro, o que as torna mais distintivas. A pesquisa mostrou o predomnio das prticas domiciliares, fenmeno massivo em escala internacional, e que vem sendo chamado, pela literatura especializada, de cultura de apartamento ou cultura em domiclio. Uma das razes da generalizao deste tipo de prtica a disseminao e barateamento dos equipamentos eletrnicos, que permite uma diversidade maior de prticas de cultura e de lazer, sem que haja a necessidade de despender tempo e dinheiro, propiciando a simultaneidade de atividades, como escutar msica o dia inteiro enquanto se faz outras coisas, por exemplo.

    Prtica externa x prtica domiciliar

    A cultura de apartamento poderia sugerir a hiptese de que haveria concorrncia entre as prticas que implicam no sair de casa e aquelas realizadas em domiclio. Neste caso, poder-se-ia imaginar que as prticas domiciliares prejudicariam as externas, no sentido de substitu-las, tal como aconteceria com a menor freqncia ao cinema porque existe a televiso e, mais recentemente, o vdeo. No entanto, os dados apontaram que, cerca de 97% daqueles que tm um alto ndice de prticas externas so grandes ou mdios praticantes domiciliares.5 Da mesma maneira, verificou-se que, por outro lado,

    3 Para maiores detalhes sobre a distribuio de equipamentos na cidade de So Paulo, ver o artigo

    de Isaura Botelho Os equipamentos culturais na cidade de So Paulo: um desafio para a gesto pblica, disponvel no stio www.centrodametropole.org.br e publicada na revista Espao e debates .SP: USP/NERU, 2003. 4 As prticas domiciliares utilizadas como critrio para identificar os nveis de prtica foram:

    informtica (uso de computador, acesso Internet, jogos eletrnicos); leitura (revista, jornal, livro por prazer); audiovisual (televiso, vdeo/DVD); msica. As prticas externas foram: ir ao cinema, ao circo, ao teatro, a espetculos de dana (bal, dana moderna, popular), espetculos musicais (popular, concerto, pera), visita a museus, a exposies de arte, a cidades histricas e freqncia a centros culturais e bibliotecas. 5 Tendo de arbitrar estes nveis de acmulo de prticas definiu-se que o grande praticante tem de

    5 a 8 prticas domiciliares e de 8 a 14 prticas externas; o mdio praticante acumula de 3 a 4 prticas domiciliares com 4 a 7 prticas externas; o pouco praticante aquele que tem apenas 1

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    cerca de 97,1% dos pouco praticantes ou no-praticantes domiciliares so tambm pouco ou no praticantes externos. Ou seja, os resultados apontaram para as chances significativamente maiores de algum com grandes prticas domiciliares ter tambm outras prticas externas. Quem faz mais em casa, faz tambm fora.

    Ou seja, a competio no no nvel suposto. No entanto, embora a diferena entre os dois tipos de prticas tenha sido significativa, ambos se distribuem pelos grandes recortes da amostra, considerando idade, escolaridade e classe, com o predomnio, tanto nas domiciliares quanto nas externas, dos mais jovens, escolarizados e ricos.

    No estar vinculado a uma atividade profissional, os dados apontaram, torna-se um grande desestmulo a ser um ativo praticante fora de casa: aqui no se considera apenas o desemprego, mas tambm a aposentadoria e as atividades domsticas. Nesse caso, a questo financeira assume um peso importante. Tambm o isolamento, o baixo nvel de informao propiciado pela falta de convvio com a prpria cidade podem ser considerados como fatores que a relao com o mundo exterior ao espao domstico.

    Numa viso geral, dado o fato de que h uma correlao entre ao pertencimento ao grupo dos grandes praticantes externos e a intensa e diversificada prtica domiciliar, verifica-se que as diversas prticas se alimentam mutuamente, tal como foi indicado em outros pases. Ou seja, quem se informa (leitura de jornais e revistas) ter maior tendncia a buscar mais informao sob outras formas, em prticas culturais domiciliares como buscar novas leituras, ouvir novos discos ou em prticas externas, como ir ao cinema, ao teatro, a concertos, espetculos diversos, etc.

    Toda prtica cultural exige a acumulao prvia de um mnimo de informao e, na maior parte dos casos, de conhecimentos: como ir ao teatro quando se ignora a existncia de um perto de sua casa ou quando nada se sabe de sua programao? Como comprar um livro numa livraria especializada se no se conhece seu autor nem seu ttulo? Aquilo que chamamos correntemente nvel cultural tem um peso determinante sobre as condies de recepo da obra e sobre as diversas modalidades de prticas culturais: as expectativas de uma pessoa com relao a um espetculo, por exemplo, bem como a sua satisfao dependem, em grande parte, de seu nvel de informao e das maneiras como ela o adquiriu.

    ou 2 prticas domiciliares e de 1 a 3 prticas externas; e, finalmente, o no praticante, aquele que no tem nenhum dos dois tipos de prtica.

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    Esta tendncia, freqentemente observada no domnio cultural, referida na literatura sobre o assunto como lei do acmulo: as mesmas categorias da populao, e freqentemente os mesmos indivduos, tm a tendncia a acumular as diversas formas de participao na vida cultural. Indo alm desta constatao, espera-se que uma anlise mais detalhada possa colocar em evidncia a complexidade destas relaes de complementaridade/substituio, principalmente entre as atividades ligadas ao audiovisual que acontecem no espao domstico e as atividades concorrentes, que acontecem no espao exterior (por exemplo, ver um filme em casa ou ir v-lo no cinema, escutar um disco ou ir ao concerto, consultar um CD-ROM/Internet ou ir ao museu, assistir a um programa cmico e/ou novela na TV ou ir ao teatro).

    interessante, por exemplo, observar os dados sobre a relao entre ir ao cinema e assistir ao vdeo ou DVD, equipamentos j comuns no conjunto da populao, presentes em cerca de 56% dos domiclios pesquisados (atingindo, inclusive, cerca de 8% das classes D/E). Ir ao cinema permanece como a prtica cultural externa mais popularizada: cerca de 35% foram pelo menos uma vez nos ltimos doze meses e 19,4% vo de uma a quatro vezes por ms.6 Destes, 23,2% foram ao cinema e tambm assistiram vdeo ou DVD, pelo menos uma vez no ano; outros 19,4% foram ao cinema pelo menos uma vez, mas assistiram ao vdeo/DVD cerca de uma vez por ms. Temos o caso inverso daqueles que assistiram apenas eventualmente ao vdeo/DVD no ltimo ano, mas que vo ao cinema pelo menos uma vez por ms, que representam 13,6% da populao. Finalmente, temos 11,7% que assistem ao vdeo ou DVD e vo ao cinema pelo menos uma vez por ms. Se contabilizarmos os mais assduos (pelo menos uma vez no ms, deixando de lado os que foram/assistiram apenas uma vez no ano), numa ou noutra prtica, temos porcentagens semelhantes: 31% assistem ao vdeo/DVD pelo menos uma vez no ms e 25,3% vo ao cinema. Semelhantes tambm so as porcentagens inversas; 65% da populao no foram ao cinema no ano anterior pesquisa, da mesma maneira que cerca de 58% no viram vdeo ou DVD. Ou seja, os cerca de 7% de diferena a favor da prtica domiciliar poderiam configurar, mais do que uma questo de gosto ou preferncia, as dificuldades de deslocamento e a sensao de insegurana na regio metropolitana e o custo dos ingressos7, apontando, inclusive, para uma certa complementaridade entre as duas prticas. Claro que no d para checar

    6 Apesar disso, o cinema registra alta porcentagem de entrevistados que nunca o freqentaram na

    vida, cerca de 17%. E tambm alta a porcentagem dos que no foram no ltimo ano: 65 %. 7 Dados de mercado apontam a existncia de 313 salas de cinema e 4 milhes e meio de

    espectadores anuais na RMSP.

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    quem quem, ou seja, se os que no vem filme na sala de cinema ou em casa so os mesmos, mas a correlao sugestiva, pois a lei do acmulo diria que em grande parte so os mesmos. Entre os que no foram ao cinema nos 12 meses, 19% assistem vdeo ao menos uma vez por ms. No total da amostra, esse grupo representa 12,2% do total, ou seja, cerca de 1 em cada 10 entrevistados, satisfaria sua demanda por ver filmes em casa. 8

    Televiso e rdio

    A posse de aparelho de televiso absolutamente disseminada, em todas as classes sociais. O aparelho de TV em cores est em cerca de 96% dos domiclios, sendo que mesmo entre as classes D/E, esse nmero atinge 87%. O hbito de assistir televiso atinge 91,8% da populao, sendo que desses, os 69% que afirmam assisti-la diariamente pertencem s classes mais altas, so mais escolarizados e mais jovens. No h uma diferena sensvel entre a audincia durante a semana e fins-de-semana, o que de certa maneira surpreende, pois, tendo em vista as dificuldades de deslocamento na metrpole, supor-se-ia que as pessoas assistissem mais televiso nos fins-de-semana. Homens e mulheres assistem televiso em porcentagens praticamente iguais, com uma insignificante superioridade masculina, tanto durante a semana como nos fins-de-semana.

    A pesquisa mostra tambm que o rdio no foi abandonado em funo da televiso: 93% possuem rdio, 58,4% o ouvem diariamente, e 15%, algumas vezes por semana, configurando-se como a segunda prtica mais disseminada na regio metropolitana. Tudo indica que a escuta musical o principal motivo de consumo, seguido da informao. Esse fato nos indica a necessidade de uma maior ateno aos estudos sobre essa mdia, que tem sido muito pouco atendida pela pesquisa acadmica, que d muito maior nfase TV, como se o rdio tivesse perdido o seu papel: os dados nos apontam que no verdade.

    Internet e computador

    8 Na verdade, o fator decisivo para a perda de pblico do cinema est mais diretamente

    relacionado televiso aberta, fator este j identificado desde os anos 50/60 nos Estados Unidos e nos anos 70/80 no Brasil.

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    Os dados apontam que apenas 28% da populao tm computador em casa, sendo 2,6% pertencentes s classes D/E. Cerca de 18% da populao usam computador diariamente, 29% o fazem vrias vezes por semana e 30% tm acesso Internet. Os 71% que afirmaram no usar ou usar raramente o computador so compostos principalmente de pessoas com baixo nvel de escolaridade (65,3%), cujos pais tambm tm baixo nvel de escolaridade (90%) e pertencem s classes econmicas mais baixas (38,8% nas D/E e 42,3% na C). O acesso ao equipamento e Internet, no entanto, feito em outros espaos: no trabalho, na escola, na faculdade, na casa de parentes ou amigos ou em rgos pblicos que os colocam disposio para a populao. Isto significa que 14,3% dos que no possuem computador em casa tm acesso Internet nesses outros locais, grupo que formado, basicamente, por pessoas de 15 a 39 anos, com nveis alto ou mdio de escolaridade (24,6% e 59,5% respectivamente) e pertencentes s classes B e C (31,3% e 54,%). Entre os jovens de 15 a 24 anos, o trabalho (40,8%) e a escola ou faculdade (30,9%) so os locais mais comuns de acesso.

    A faixa etria est entre os principais preditores para o uso do computador e do acesso Internet. A populao acima dos 40 anos a que menos utiliza essas tecnologias: perfazendo 44,7% do total da amostra, correspondem a apenas 27,4% dos que usam o computador e 31,6% dos que acessam a Internet.

    Msica

    Ouve-se muita msica. Os shows de msica popular tm um pblico mais significativo do que a msica erudita: 43,3% nunca foram a um show de msica popular, 37% no foram nos doze meses anteriores e apenas 19,4% foram. Vai-se muito pouco a concertos de msica erudita, o que era esperado e vai ao encontro das pesquisas em outros pases: 88,8% nunca foram em suas vidas e daqueles que foram, 6,9% no o fizeram no ano anterior.

    O hbito de ouvir msica diariamente ou algumas vezes por semana foi relatado por quase trs quartos dos entrevistados (73,9%). O envolvimento com a prtica musical amadora, como ter estudado ou estudar um instrumento musical ou canto/cantar, tambm se distribuiu da mesma maneira. Em que pese as diferenas econmicas e de escolaridade, as porcentagens de jovens entrevistados envolvidos com prticas musicais foram relevantes; os jovens tocam/aprendem a tocar instrumentos, ouvem msica,

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    cantam e estudam canto mais do que qualquer outra faixa etria. A posse de um instrumento musical em casa atinge 27% da populao e 15% tocam ou esto aprendendo algum tipo de instrumento, enquanto 63,4% afirmam ter o hbito de cantar. Quanto aos gneros prediletos, a msica nacional tem a primazia sobre todas as outras: a msica sertaneja, a MPB, o rock nacional, o samba, dentre outros gneros populares, so os mais citados. A msica religiosa alcana um ndice alto de preferncia, 16,3%. A msica erudita alcana 7% e a pera 2,4%, compatveis com os 2,1% que afirmaram ter ido pera no ano anterior.

    importante atentar que, a despeito das porcentagens de freqncia serem proporcionalmente mais altas entre os mais escolarizados e mais ricos, a porcentagem dessa populao que afirmou no ter ido a espetculos musicais foi considervel. No caso dos shows de msica popular, cerca de 1 em cada 5 entrevistados com alto nvel de escolaridade afirmou nunca ter ido durante a vida. Essas porcentagens foram, obviamente, ainda menores para os espetculos mais raros: no caso da msica clssica, cerca de 2 em cada 3 entrevistados com nvel alto de escolaridade afirmaram nunca ter ido a um concerto na vida e, entre os que j foram, 60,7% no o fizeram nos ltimos 12 meses. No caso da pera, cerca de 3 em cada 4 entrevistados com alto nvel de escolaridade afirmaram nunca ter ido e, dentre esses, 71% no o fizeram nos ltimos 12 meses. Numa anlise atravs do recorte etrio, os jovens foram mais aos shows de msica popular e menos aos concertos de msica clssica e pera.

    Leitura por prazer e freqncia a bibliotecas

    Ter lido um livro por prazer no ano anterior pesquisa atingiu uma porcentagem de 40,5% da populao: entre os 15 e os 40 anos se l mais, nos nveis mdio e alto de escolaridade e, sem muita surpresa, com maior participao das classes A/B (54,6%) e uma grande concentrao de jovens (15 a 19 anos). No entanto, os ndices referentes s classes C 41,4% - e D/E 24,9% - surpreenderam, na medida em que se fala com muita naturalidade que se l pouco no Brasil. Poder-se-ia supor que houvesse uma relao entre a leitura por prazer e a freqncia a bibliotecas. Contrariamente, os dados apontaram que cerca de dois teros dos que leram pelo menos um livro por prazer no freqentaram uma biblioteca nesse perodo. Os que no freqentam so, em geral, mais velhos e menos escolarizados, mas temos, tambm, um contingente expressivo de pessoas (50,6%) que, tendo um nvel alto de escolaridade, no foram a uma biblioteca no

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    ano anterior. Mais surpreendente foi verificar que 4,3% da populao altamente escolarizada nunca o fizeram na vida.

    Artes cnicas: o teatro, o circo e a dana

    A sada recente (12 meses anteriores) de casa para assistir a uma pea teatral, seja num teatro, seja em qualquer outro local, foi uma prtica relatada por uma porcentagem baixa dos entrevistados: 57,9% deles afirmaram nunca ter ido a um teatro, 66,5% nunca assistiram a uma pea em nenhum outro local e 45,3% deles nunca fizeram nem uma coisa nem outra. Nveis de escolaridade e classe social foram, mais uma vez, variveis decisivas para a freqncia ao teatro. Entretanto, os entrevistados com nvel mdio de escolaridade tambm registraram porcentagens significativas de freqncia, superando o que seria sua representao na amostra. interessante notar, tambm, que cerca de um em cada trs entrevistados pertencentes s classes A e B (31%), 1 em cada 7 (14,2%) com nvel alto, e cerca da metade com nvel mdio de escolaridade (49,2%, 16,7% do total), afirmou nunca ter ido a um teatro para ver uma pea na vida. Verifica-se que a freqncia ao teatro diminui progressivamente com o avano da idade do entrevistado, caindo de 44,8% (para a faixa de 15 a 19 anos) para 17,3% (para a faixa acima dos 60 anos). Alm disso, entre os que j foram ver uma pea num teatro pelo menos uma vez na vida, na faixa etria dos 15 aos 19 anos que se registra a maior porcentagem de freqncia tambm nos ltimos 12 meses anteriores pesquisa (47,5%). Essa proporo varia de 29,2% (para a faixa entre 20 e 24 anos) a 35,8% (para a faixa de 40 a 59 anos). Uma das possveis explicaes que assistir a peas teatrais faz parte das atividades curriculares da escola.

    Diferentemente do teatro, a ida pelo menos uma vez na vida a um circo foi relatada pela grande maioria dos entrevistados, cerca de 3/4 (76,1%) Mas, se por um lado, a ida ao circo pelo menos uma vez na vida atingiu altas porcentagens, a ida mais recente (ltimos 12 meses) foi relativamente rara, sendo citada por apenas 8,9% dos entrevistados, porcentagem ainda menor que a ida ao teatro ou a qualquer outro lugar para ver uma pea. Ainda que importantes, as clivagens entre os diferentes nveis de escolaridade no foram to significativas quanto no caso de outras prticas, como teatro e cinema. Duas variveis especialmente importantes no caso da freqncia ao circo foram idade e ter ou no ter filhos. No recorte etrio, a diferena significativa fica por conta dos entrevistados com mais de 60 anos, cujo ndice de freqncia no ltimo ano foi menos da

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    metade das outras faixas etrias (4%), diferena que, apesar de menor, tambm ocorre com relao a ter ido pelo menos uma vez durante a vida. Alm disso, controladas as diferenas etrias, os entrevistados com filhos registraram, em mdia, 36,6% mais casos de ida recente ao circo do que os entrevistados sem filhos.

    Quanto dana, cerca de 28% gostam de sair para danar, sendo que 14% saem pelo menos uma vez por ms. No entanto, 78% da populao nunca foram assistir um espetculo de dana em suas vidas, e quando se trata de bal a porcentagem dos que nunca foram sobe para 88%. Trata-se de uma prtica rara mesmo para os nveis mais altos de escolaridade e renda: metade daqueles pertencentes classe A nunca foi. Como no caso das artes plsticas, verificou-se a relao entre o aprendizado formal e a prtica amadora e a freqncia a espetculos, o que corresponde aos 72% da populao que nunca saem para danar. Ou seja, h mais chance de uma pessoa de qualquer nvel de escolaridade ter ido, pelo menos uma vez na vida, a um espetculo de dana ou bal se ela tiver estudado ou tiver o hbito de sair para danar.

    Entre as mulheres, 18,7% j estudaram ou estudam dana, enquanto apenas 6,1% dos homens fizeram o mesmo. No caso de saber ou estar aprendendo a tocar instrumentos, os homens correspondem a 22,5%, enquanto apenas 8,1% das mulheres o fazem.

    Artes plsticas e visita a museus

    Trs tipos de prticas de visitas relacionadas s artes plsticas e acervos histricos ou cientficos foram includas na pesquisa: museus, exposies de arte e visitas a cidades histricas. Em todas elas no houve registro de porcentagens surpreendentes, o que indica a baixa disseminao dessas prticas. Uma pequena parcela dos entrevistados foi a um museu ou a uma exposio de arte nos ltimos 12 meses, sendo a maioria deles de setores mais ricos e escolarizados. Nesse grupo, algumas surpresas: entre os entrevistados com nvel alto de escolaridade, 14,4% nunca foram a um museu e 27,5% nunca foram a uma exposio de arte. Preocupante o fato de que 44,7% nunca foram a um museu e 64,7% a uma exposio so dados que expressam a pouca relevncia ou da falta de conhecimento de uma parcela significativa da populao com relao a equipamentos ou manifestaes que, no caso das grandes exposies de arte, por exemplo, tm grande repercusso na mdia.

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    A grande diferena entre museus e exposies de arte foi sua ocorrncia ao longo da vida, substancialmente maior no caso dos museus. Essa diferena parece estar relacionada a duas razes. Em primeiro lugar, os museus so muito mais numerosos e tradicionais que as exposies de arte, cujo fenmeno de expanso recente. Em segundo lugar, as excurses escolares para alguns museus mais conhecidos, como o Museu Paulista, so bastante comuns e, portanto, ajudam a entender a porcentagem razovel de freqncia pelo menos uma vez na vida.

    Ainda com relao s artes plsticas, foi perguntado aos entrevistados se haviam realizado durante a vida, e nos ltimos doze meses, algum trabalho artstico, excetuando-se trabalhos de tric, croch e bordados. Como era esperado, alm de uma porcentagem absoluta pequena, os entrevistados mais escolarizados, ricos e jovens (provavelmente devido idade escolar) alcanaram as maiores porcentagens. No entanto, como foi visto na primeira parte do texto, independente do nvel de escolaridade, o fato de ter realizado um trabalho artstico aumenta as chances de o entrevistado ter freqentado um museu ou uma exposio de arte.

    Outros hbitos e prticas de lazer

    Ao lado da nfase da pesquisa sobre as prticas culturais legitimadas socialmente enquanto tais, outras formas de uso do tempo livre foram tambm objeto de observao. Os dados revelaram que justamente os entrevistados que mais acumulam prticas culturais so os que tambm mais acumulam atividades de lazer de outros tipos, como prticas esportivas, jogos diversos, passeios, idas ao zoolgico, ia festas, etc. Ou seja, pensar na questo do acmulo de prticas ultrapassa a questo cultural stricto sensu.

    Ir ao shopping center a passeio se revelou a atividade externa ao domiclio mais disseminada: cerca de 71% o fizeram nos ltimos doze meses, sem distino de gnero que fosse significativa, com predomnio de entrevistados mais jovens, mais ricos e mais escolarizados. Essa estrutura se manteve em outras diverses pesquisadas, como ir a um parque de diverses (42%), a um jardim zoolgico ou botnico (29%), praia (57%), a festas populares (46%) e a feiras de artesanato ou antigidades (31%). A nica atividade que apresentou freqncia bem distribuda entre as classes sociais, ainda que hajam diferenas sutis, foi a dos desfiles carnavalescos, quer como participante, quer como pblico (22% para as classes A/B; 21% para a classe C e 16% para as classes D/E).

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    No caso dos esportes, o habitante da regio metropolitana joga duas vezes mais futebol (30%, dos quais cerca de 10% so mulheres) do que assiste a partidas profissionais (15,7%). A pescaria tem 26% de adeptos, 35,7% fazem algum tipo de ginstica e 30% jogam bilhar. O videogame tem 31% de fs e 36% gostam de jogos eletrnicos, seja em casas especializadas ou no computador.

    Uma prtica com distribuio surpreendente foi a de fazer palavras cruzadas (45,5%), que se revelou maior entre a populao mais jovem, resultado que no era esperado: 58% dentre aqueles que tm de 15 a 19 anos, 55% dos que tm entre 20 e 24 anos e 47% dos que esto entre 25 e 39 anos. Inesperadamente, os mais velhos, que tm mais de 60 anos, atingem o menor ndice quando se trata dos amantes de palavras cruzadas, 30%. Esse pode ser um efeito da varivel escolaridade, que foi decisiva na resposta positiva a esse tipo de atividade.

    Entre outras prticas que geralmente acontecem no domiclio, os consertos no profissionais apresentaram as maiores porcentagens, atingindo mais da metade dos entrevistados. Os homens tiveram uma representao um pouco maior do que as mulheres, assim como os entrevistados na faixa etria entre 25 a 59 anos. O maior nvel de escolaridade e de renda tambm foram variveis importantes, o que se repetiu no caso da prtica da jardinagem, atividade que atrai, de forma equilibrada, tanto homens como mulheres e porcentagens maiores entre os entrevistados com mais de 40 anos. A experimentao ou inveno de receitas culinrias registrou um ndice surpreendente (46,5%), no qual os homens tm uma participao tambm inesperada (31%), embora representem a metade da porcentagem feminina. Os adeptos dessa prtica esto principalmente entre os entrevistados mais ricos e escolarizados.

    Trabalhos manuais como croch, tric, bordados, so as nicas prticas que se caracterizaram como tipicamente femininas. Elas tm um aspecto democrtico, pois so equilibradamente distribudas em todas as classes sociais, em torno de 20% de cada uma delas. Apesar de uma distribuio razovel entre as diversas faixas etrias, quanto mais velha a entrevistada, maior a chance de ter realizado esse tipo de atividade.

    Gnero

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    Quanto questo de gnero, verificou-se que ela tem pouca influncia em geral, sendo significativa apenas em dois ou trs aspectos. Por exemplo, o fato de os homens terem um pouco mais de prticas domiciliares que as mulheres, cerca de 2%, e se igualarem no que se refere s prticas externas, , mesmo que a diferena seja pequena, um fato indicativo de mudanas na sociedade. Se o espao domstico ainda considerado como privilgio ou obrigao das mulheres, pode-se verificar, principalmente quando observamos que homens e mulheres tm nveis de prticas externas equivalentes, que tudo aponta para a transformao do papel da mulher na vida social.

    Nas regresses gerais realizadas, o gnero no foi importante para a clivagem entre ser muito ou pouco praticante. Apenas no caso de jovens at 24 anos, ser mulher ter quase o dobro de chance de no ter nenhuma prtica. Surpreendentemente, no caso das pessoas com mais de 60 anos, ser mulher aumenta em mais de 200% as chances de ter tido pelo menos uma prtica externa.

    Entre os homens com alta escolaridade, 12,6% tm muitas prticas externas e 11,2% so no-praticantes. Este um ndice alto, j que ter um alto nvel de escolaridade e renda considerado, pela literatura especializada, um bom preditor da cultura do sair. Entre as mulheres com alto nvel de diploma, 20,6% so muito praticantes e 7,2% so no praticantes.

    Canta-se bastante: 63,4% da populao tm esse hbito, com distribuio relativamente equilibrada entre classe social e escolaridade. A nica categoria que tem menos da metade de praticantes (44,8%) a daqueles que tm mais de 60 anos. Cantar em casa, sozinho, o local preferido: 55,6%. Em segundo lugar, as festas com amigos (17%), a igreja (16,8%) e o karaok (14,4%). As mulheres cantam mais do que os homens (71% e 55% respectivamente), embora a diferena no seja to grande. Entre as mulheres, 18,7% j estudaram ou estudam dana, enquanto apenas 6,1% dos homens fizeram o mesmo. No caso de saber ou estar aprendendo a tocar instrumentos, os homens correspondem a 22,5%, enquanto apenas 8,1% das mulheres o fazem.

    No caso de freqncia a bibliotecas, temos um equilbrio entre os gneros, mas quanto leitura as mulheres superam os homens: 44,7% delas leram pelo menos um livro por prazer no ano anterior, enquanto que o ndice masculino foi de 36%. A leitura de jornal faz uma grande diferena entre eles: enquanto 41,2% dos homens o lem com regularidade, as mulheres apresentam 28% de leitoras assduas. A leitura de revistas

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    uma preferncia feminina: 45,6% das mulheres tm o hbito de l-las, enquanto os homens so 34%.

    Escolaridade dos pais

    Conforme j observado em pesquisas similares em outros pases, verificou-se o peso do nvel de escolaridade dos pais na intensidade da relao com o mundo da cultura. O fato de algum ter ambos os pais com baixo nvel de escolaridade aumenta em 395% a sua chance de ser um no-praticante da cultura do sair. O fato de apenas um dos pais ter o nvel mdio de escolaridade j aumenta a possibilidade do indivduo ser um grande praticante. A bagagem cultural herdada dos pais identificada como um preditor decisivo na vida de um adepto da cultura do sair: ter pais altamente escolarizados mais importante do que o nvel de renda e de diploma do prprio indivduo.9 Ou seja, sabe-se que o acesso cultura resulta fortemente das transmisses familiares: filhos de pais com nvel alto de escolaridade tm o acesso cultura tradicional facilitado.

    Se de maneira geral os resultados desta primeira etapa da pesquisa sobre o uso do tempo livre e as prticas culturais na RMSP confirmaram alguns dos principais pressupostos resultantes das pesquisas internacionais realizadas em diversos pases, como o peso dos fatores escolaridade, renda, faixa etria e localizao domiciliar na relao das pessoas com a vida cultural, ela tambm apontou para questes que vo em direo ao trabalho do socilogo francs Bernard Lahire.

    Lahire prope um novo olhar sobre as pesquisas sobre prticas culturais, no caso francesas, chamando a ateno para as diferenas internas a cada indivduo antes de visar as diferenas entre classes sociais. Desta maneira, afirma ele, tem-se a oportunidade de observar que com relao a todos os indivduos, em todos os grupos sociais, a fronteira entre a legitimidade cultural (a alta cultura) e a ilegitimidade cultural (a baixa cultura, o simples divertimento) no separa simplesmente as classes, mas divide as diferentes prticas e preferncias culturais dos prprios indivduos. A isso ele chama de dissonncias vistas muitas vezes como rudos - no comportamento cultural dos indivduos, e essas seriam mais provveis nas classes mdias e superiores do que nas populares, em todos os nveis de diploma (mesmo se muito mais provvel naqueles que

    9 Para maiores detalhes, ver: DEP. Les pratiques culturelles des Franais. Paris: La documentation

    Franaise, 1990.

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    tm pelo menos o 2 grau do que nos menos escolarizados) e em todas as faixas etrias (mesmo que com menor probabilidade quanto mais se avana na idade).

    Ele alerta que maior a chance, para os indivduos que compem o universo dos entrevistados, de terem um perfil cultural consonante por baixo (baixa legitimidade) do que pelo alto (forte legitimidade). Ou seja, muito difcil se encontrar algum que tenha exclusivamente prticas altamente legitimadas, ou seja, absolutamente consonantes; o contrrio seria, em princpio, mais possvel, na medida em que as prticas com ndice alto de legitimidade esto correlacionadas com nveis altos de escolaridade e renda.

    Desta forma, ele aporta novas contribuies sociologia da cultura, inaugurada por Pierre Bourdieu em seu estudo inaugural sobre os pblicos dos museus europeus e, posteriormente, sobre a distino.10 Aqui, o olhar se dirige principalmente para a distribuio desigual das obras, das competncias culturais e das prticas. uma sociologia das desigualdades e das funes sociais da cultura dominante. Bourdieu chama a ateno, em primeiro lugar, para o desejo de distino do que considerado vulgar (nos dois sentidos do termo: o comum e o grosseiro), desejo que se faz acompanhar de um outro, o desejo de legitimidade, de excelncia. Dentre as contribuies desses trabalhos, a luta contra a ideologia do dom natural, ou gosto inato, se configura como uma das mais importantes, apontando para a existncia de uma correlao estatstica entre a hierarquia das artes (ou dos gneros) e a hierarquia social/escolar dos pblicos.11

    Lahire chama a ateno para o fato de que a noo de cultura legtima s pode existir em meio queles que acreditam em sua importncia, e mesmo na superioridade de certas atividades e de certos bens culturais com relao a outros. Por isso, s se pode falar em desigualdade de acesso quando h um forte desejo alimentado coletivamente. Os desejos cultivados nos limites de subgrupos ou de pequenas comunidades jamais constrem condies de surgimento de desigualdades sociais. necessrio que este desejo alcance populaes mais vastas, o que termina apontando, mais uma vez, para a importncia da educao, seja ela formal ou informal, no sistema de constituio de gostos.12

    10 BOURDIEU, P.; DARBEL, A. Lamour de lart. Une tude sur les publics des muses dart

    europens. Paris: ditions de Minuit, 1966. E La distinction: une critique du jugement. Paris: ditions de Minuit, 1979. 11

    LAHIRE, Bernard. La culture des individus. Dissonances culturelles et distinction de soi. Paris: La dcouverte, 2004. 12

    A importncia da educao formal se deve ao fato de a escola ter um pblico cativo, o que a torna um espao privilegiado de transmisso de conhecimento. Idem.

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    As prticas de relaxamento, o esvaziar a cabea so freqentes em todos os meios sociais e contribuem, em parte, para criar perfis culturais dissonantes nas populaes mais fortemente escolarizadas. Isto significa dizer que essas pessoas se permitem ter prticas que elas mesmas consideram pouco legtimas culturalmente, em nome da quebra de uma rotina considerada estressante. Seriam aqueles, segundo Lahire, mais dependentes dos mercados culturais classicamente legtimos ou que esto em condio de se avaliar o mais freqentemente face s normas legtimas clssicas burguesia e pequena burguesia culturais, essencialmente que mais se ressentem dos efeitos de legitimidade da ordem cultural dominante.13

    Voltando aos dados da pesquisa sobre os habitantes da regio metropolitana de So Paulo, ao compararmos a disseminao de algumas prticas da cultura do sair entre os muito praticantes e o restante da amostra, verificamos resultados bastante ilustrativos da existncia de uma zona hbrida extremamente importante entre os plos extremos dos grandes praticantes e dos pouco praticantes. A tabela abaixo indica a

    necessidade de se ter um olhar mais fino sobre os mecanismos de transmisso de gostos, relativizando o peso das variveis classe, renda e escolaridade, principalmente porque os dados nos informaram haver, mesmo que pequeno, um pblico das classes C, D/E, em prticas altamente distintivas, como ir pera e a concertos de msica clssica.

    DISSEMINAO DE ALGUMAS PRTICAS EXTERNAS ENTRE OS MUITO PRATICANTES E O RESTANTE DA AMOSTRA

    Ter ido no ltimo ano

    Porcentagem de muito praticantes

    (x) Porcentagem de mdio

    e pouco praticantes (y)

    Porcentagem de muito praticantes no

    total de freqentadores

    Porcentagem de mdio e pouco em relao aos muito

    praticantes (x/y)100

    pera 27,4% 1,1% 46,4% 4,0% Concerto msica

    clssica 42,6% 2,9% 34,3% 6,8%

    Bal clssico 31,8% 2,7% 29,9% 8,5% Festival de artes 62,9% 5,5% 29,3% 8,7% Espetculo de

    dana 73,5% 7,1% 27,5% 9,7%

    Circo 37,3% 3,9% 14,7% 10,5% Centro cultural 68,0% 8,6% 22,2% 12,6 %

    Museu 87,9% 11,3% 21,9% 12,9% Teatro 89,1% 12,1% 21,2% 13,6%

    Exposio de arte 84,4% 12,4% 19,7% 14,7% Cidade histrica 65,0% 13,3% 15,0% 20,5% Show msica

    popular 76,8% 17,3% 13,8% 22,5%

    Biblioteca 75,0% 19,2% 12,4% 25,6%

    13 LAHIRE, B. op.cit.

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    Cinema 94,0% 32,9% 9,4% 35,0%

    Esse quadro aponta que, do grupo dos muito praticantes externos, 27,4% foram pera nos ltimos doze meses; dos outros grupos somados, apenas 1,1% o fizeram. No entanto, como os outros grupos somados correspondem a 96,5% da amostra total, o clculo indica que o grupo dos muito praticantes corresponde a 46,4% do pblico da pera e os outros somados correspondem a 53,6%.

    Da mesma maneira, se 89% dos grandes praticantes foram ao teatro e 12% dos mdio ou pouco praticantes afirmam o mesmo, o pblico do teatro seria composto por 21% de grandes praticantes, enquanto o restante seria formado pelos mdio ou pouco praticantes, onde estariam, provavelmente aqueles que adoram o teatro e que no se interessam muito por outras artes, alm de uma parcela de freqentadores eventuais. Esses dados vo ao encontro das questes levantadas por Lahire, com um indicador altamente positivo para aqueles que no esto classificados entre os grandes praticantes externos, sobretudo quando estamos considerando prticas bastante legitimadas, sendo que ir pera reconhecidamente uma das mais distintivas em todo o mundo.

    A tabela segue uma escala que vai da prtica mais distintiva da cultura do sair quela mais popular, que o cinema, e vemos que a proporo daqueles que tm menos prticas externas e legitimadas esto presentes em todas elas, compondo uma porcentagem importante do pblico destas atividades.

    Embora os muito praticantes externos correspondam a apenas 3,5% da amostra, eles constituem quase metade (46,4%) dos freqentadores de pera. No caso, este mesmo grupo corresponde a 9,4% dos freqentadores de cinema. Verifica-se que a razo entre a disseminao de uma prtica na amostra geral e no grupo de muito praticantes aponta o quanto determinada prtica mais ou menos associada ao fato de o indivduo ser muito praticante. Assim, ter ido ao cinema est muito menos relacionado a um entrevistado com grande acmulo de outras prticas externas, enquanto ir pera ou a um espetculo de msica clssica est associado mais diretamente ao grupo dos muito praticantes. Ou seja, ir ao cinema est mais bem distribudo entre os diferentes grupos do que qualquer outra prtica externa, o que demonstra sua popularidade. Inversamente, o ir pera , dentre as prticas pesquisadas, a que tem maior correlao com o grupo de muito praticantes. A pera e a msica clssica esto muito mais associadas aos

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    entrevistados que acumulam um nmero maior de prticas do que o ir biblioteca ou ao cinema.

    O mesmo pode ser dito das prticas domiciliares, dentre as quais o hbito de ver televiso e ouvir msica so disseminados de maneira uniforme, enquanto ter acesso Internet, por exemplo, tem alta correlao com o grupo de muito praticantes. A tabela define, quando se faz o movimento descendente, um grau crescente de democratizao das prticas.

    DISSEMINAO DE ALGUMAS PRTICAS DOMICILIARES ENTRE OS MUITO PRATICANTES E O RESTANTE DA AMOSTRA

    Ter o hbito ou ter feito... Porcentagem de muito

    praticantes (x)

    Porcentagem de mdio e pouco

    praticantes (y)

    porcentagem de muito praticantes no total dos que tiveram

    essa prtica

    porcentagem de mdio e pouco praticantes em

    relao aos muito praticantes (x/y)100

    Acesso Internet 75,6% 28,1% 8,9% 37,2% Usar computador 70,2% 27,2% 8,5% 38,7%

    Ler jornal 78,0% 32,7% 7,9% 41,9% Leitura por prazer (ano

    anterior) 86,4% 38,9% 7,4% 45,0% Assistir a vdeo/DVD 67,3% 30,3% 7,4% 45,0%

    Leitura de revista 78,7% 38,7% 6,9% 49,2% Ouvir msica 77,5% 73,7% 3,7% 95,1%

    Assistir televiso 94,5% 93,9% 3,5% 94,4%

    Podemos verificar que 75,6% dos muito praticantes tm acesso Internet, enquanto 94,5% deste mesmo grupo tm o hbito de assistir televiso. 28,1% dos mdio e pouco praticantes tm acesso Internet, enquanto 32,7% deste mesmo grupo tm hbito de ler jornal. O grupo de muito praticantes perfaz 8,9% dos que tm acesso Internet e 3,5% dos que tm hbito de assistir televiso. De cima para baixo, temos um ndice crescente de democratizao das prticas. Em termos numricos, a chance de um pouco ou mdio praticante ser um telespectador 94,4% da chance de um muito praticante s-lo. A chance de um pouco ou mdio praticante ter o hbito de ler jornal 41,9% da chance de um muito praticante ter o hbito de ler jornal.

    guisa de concluso

    Considerando os dados obtidos por esta primeira etapa da pesquisa, pode-se dizer que, em grande parte, h uma confirmao dos fatores que influem no perfil das prticas encontrados em outros pases: idade, nvel de escolaridade, nvel de escolaridade dos

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    pais, localizao domiciliar. Confirma-se tambm a lei do acmulo de prticas, da cultura em domiclio (ou de apartamento). Podemos pensar talvez que na Regio Metropolitana de So Paulo, considerada as diferenas econmico-sociais em face do Primeiro Mundo podem at aumentar a importncia de tal cultura, dada a dificuldade de acesso cultura paga. Confirma-se tambm o que Lahire observa sobre a dissonncia entre as prticas culturais, principalmente dos mais escolarizados e ricos.

    Os dados tambm confirmaram a presena na RMSP de hbitos associados ao que, de um lado, define uma particularidade brasileira com conseqncias culturais e polticas: a hipertrofia da televiso; de outro, ao que se associa, nos discursos sobre identidade, aos traos nacionais: a maior vivncia da msica popular brasileira, em seus diferentes matizes, tanto no consumo quanto no fazer, face a outros gneros de msica e a outras artes; o significativo engajamento em atividades carnavalescas numa cidade pouco favorvel ao carnaval como So Paulo, bem diferente de contextos como os do Rio de Janeiro, de Salvador ou de Recife. A manuteno das prticas tradicionais ligadas sociabilidade, como a pescaria, a sinuca, a preferncia por jogar futebol em detrimento da ida ao estdio.

    Por ser a primeira pesquisa com tal amplitude realizada no Brasil, deve-se ter cautela na interpretao dos dados. O refinamento que ser propiciado pela etapa qualitativa complementar poder nos apontar novos aspectos que devero ser explorados se pudermos contar com a possibilidade de uma investigao continuada, com novas enquetes por sondagem geradoras de dados a serem comparados com estes.

    Como um raio X da populao, esta pesquisa oferece uma plataforma para estudos mais pontuais que rgos pblicos podem promover para se orientar na conduo de suas polticas referidas, no s s vrias artes, como tambm aos usos diversificados da metrpole e de seus equipamentos, no apenas culturais como tambm de esportes e de lazer.