89114-126848-1-pb

40
Para além de terras altas e terras baixas: modelos e tipologias na etnologia sul-americana Ricardo Cavalcanti-Schiel Universidade Estadual de Campinas RESUMO: Este artigo procura pôr em questão a forma e os recursos con- ceituais pelos quais a etnologia moderna buscou consagrar a divisão entre as terras altas e as terras baixas da América do Sul como domínios etnográficos diferentes por natureza. O que aqui se defende é que esta divisão é, antes de mais nada, sucedâneo de um modelo analítico. Uma mudança de modelo etnológico poderia, dessa forma, desembocar na dissolução de fronteiras presumidas como naturais. Entre Andes e Amazônia, por exemplo. Nesse sentido, procura-se aqui sugerir, sintética e preliminarmente, a partir de um caso etnográfico específico, uma aproximação interpretativa dos contextos etnográficos dessas duas regiões, por meio de uma perspectiva antagônica àquela que consagrou a “grande divisão” continental. PALAVRAS-CHAVE: Americanismo, modelos etnológicos, áreas culturais, Andes, Amazônia, história da antropologia. Há fundamentalmente duas opções por meio das quais se pode apreen- der e dar inteligibilidade ao confronto entre a paisagem etnográfica dos Andes e das terras baixas da América do Sul: ou se presume uma dis- tinção totalizadora (terras altas e terras baixas como expressões de dois fenômenos fundamentalmente diferentes, não importa sua natureza – evolutiva, sociológica, ontológica ou histórica); ou se presume que as diferenças perceptíveis possam se arranjar sob uma lógica (ou seja, uma

Upload: eduardo-santos-goncalves-monteiro

Post on 01-Oct-2015

3 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

k

TRANSCRIPT

  • Para alm de terras altas e terras baixas:modelos e tipologias na etnologia sul-americana

    Ricardo Cavalcanti-Schiel

    Universidade Estadual de Campinas

    RESUMO: Este artigo procura pr em questo a forma e os recursos con-ceituais pelos quais a etnologia moderna buscou consagrar a diviso entre as terras altas e as terras baixas da Amrica do Sul como domnios etnogrficos diferentes por natureza. O que aqui se defende que esta diviso , antes de mais nada, sucedneo de um modelo analtico. Uma mudana de modelo etnolgico poderia, dessa forma, desembocar na dissoluo de fronteiras presumidas como naturais. Entre Andes e Amaznia, por exemplo. Nesse sentido, procura-se aqui sugerir, sinttica e preliminarmente, a partir de um caso etnogrfico especfico, uma aproximao interpretativa dos contextos etnogrficos dessas duas regies, por meio de uma perspectiva antagnica quela que consagrou a grande diviso continental.

    PALAVRAS-CHAVE: Americanismo, modelos etnolgicos, reas culturais, Andes, Amaznia, histria da antropologia.

    H fundamentalmente duas opes por meio das quais se pode apreen-der e dar inteligibilidade ao confronto entre a paisagem etnogrfica dos Andes e das terras baixas da Amrica do Sul: ou se presume uma dis-tino totalizadora (terras altas e terras baixas como expresses de dois fenmenos fundamentalmente diferentes, no importa sua natureza evolutiva, sociolgica, ontolgica ou histrica); ou se presume que as diferenas perceptveis possam se arranjar sob uma lgica (ou seja, uma

  • 252

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    organizao interpretativa) mais ampla da continuidade que aquela que nos oferecem os esquemas tipolgicos imediatos. A abordagem etnol-gica do subcontinente sul-americano ou, talvez mais precisamente, a di-viso de tarefas nas provncias etnogrficas acadmicas da antropologia, assume atualmente, de forma tcita, a primeira alternativa, aquela das distines totalizadoras, de modo que tal opo praticamente se consagra como uma naturalidade a orientar de antemo o olhar dos analistas sobre os domnios e as paisagens etnogrficas do subcontinente. Nem sempre foi assim. Mais que isso, talvez possamos at mesmo vislumbrar outras razes para que a dualidade disposta por essa peculiar grande diviso (cf. Goody, 1977) no continue sendo afirmada de forma to taxativa, para alm das comodidades institucionais sustentadas pelas estratgias de localizao (Fardon, 1990) do trabalho interpretativo e do ofcio antropolgico. Diante da possibilidade de outros desafios tericos, pode-se inclusive colocar em questo o quo proveitosas efetivamente seriam as convenincias dessa nossa grande diviso domstica continental, a validade das tipologias que a avalizam e a naturalidade da prescrio do recorte de reas culturais como ponto de partida para o trabalho etno-lgico. Ou seja: podem no haver razes, mais que as de uma histria intelectual, para pensarmos sempre segundo os termos que nos soam to imediatamente acessveis, no que respeita dualidade terras altas/terras baixas da Amrica do Sul.

    O presente artigo se prope a alentar um enfoque nesse outro sentido. Dessa forma, recusamos aqui a convenincia da estratgia das grandes (ou nem to grandes assim) divises e o que lhe vem consequentemente incorporado: a necessidade de supor como (pr)determinantes certas totalizaes (lgicas e fenomenolgicas) como Andes, Amaznia, Brasil Central, Chaco, Araucnia etc. No mesmo sentido, recusamos a eventual necessidade de constituio de domnios intermedirios ou hbridos, presumivelmente totalizveis, do mesmo modo como recusamos a supo-

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    253

    sio de que totalizaes tipolgicas possam servir para descrever certas dinmicas sociais como ocorre, por exemplo, na tese da araucanizao da pampa argentina durante o sculo xviii (cf. a crtica de Ortelli, 1996). Evidentemente que os rtulos etnogrficos mencionados (e outros mais) continuam sendo bastante teis como ndices geogrficos. Nesse sentido indexical, eles podem at aludir a algumas tendncias fisionmicas, o que no implica necessariamente a imposio de fronteiras tipolgicas cabais, para que delas se possa inferir a propriedade ou no de fenmenos sociais (ou culturais). Reivindicar especificidades e particularismos irredutveis para sustentar o estatuto de realidade ltima daquelas totalizaes pode ser, como sugere Philippe Descola em outra situao:

    [...] produto desses hbitos intelectuais caractersticos de todas as especia-lizaes por reas culturais, que incitam os etngrafos a reconhecer, na so-ciedade que estudam, as expresses de certas realidades tornadas familiares pela tradio ilustrada prpria regio da qual se ocupam, e descuidar dos fenmenos que no se enquadram muito bem nos moldes interpretativos que essa tradio elaborou (Descola, 2005: 51, traduo nossa).

    Para este ensaio, seguiremos duas pistas aparentemente discrepantes, em objeto e em escala. A primeira pista nos leva a perseguir a histria da consagrao da dicotomia terras altas/terras baixas como fato etnol-gico, bem como as razes e pressupostos com que operou. A segunda pista nos faz partir de fenmenos etnogrficos mais especficos do mun-do andino, inscrev-los naquele que acreditamos ser o quadro referencial de relaes simblicas que lhes outorga sentido, e, finalmente, lanar pontes interpretativas no usuais (seno at inusitadas para a tradio intelectual que os aborda), aproximando-os da paisagem etnogrfica da rea cultural vizinha, a Amaznia. Objetiva-se, assim, demonstrar que, alterando-se os modelos e recusando-se as prescries das tipologias, o

  • 254

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    que antes estava separado pode se apresentar at mesmo como logica-mente contguo. Esperamos, com tudo isso, insinuar tambm que pode j ser tempo de se comear a pr em pauta problemas que estiveram calados, a partir do momento em que se assumiu como naturalidade a diviso etnolgica entre terras altas e terras baixas da Amrica do Sul.

    A consagrao de um modelo, o silncio tcito e as premissas de uma grande diviso

    H quase duas dcadas, Eduardo Viveiros de Castro publicava na Annual Review of Anthropology um artigo em que buscava sintetizar o estado da arte do americanismo amaznico, e comeava por constatar a obso-lescncia do marco tipolgico das sociedades indgenas sul-americanas apresentado pelo Handbook of South American Indians, publicado sob a direo de Julian Steward entre 1946 e 1950 (Viveiros de Castro, 1996). So bem conhecidos os fundamentos do modelo neoevolucionista que organiza essa volumosa coletnea: a conjugao de uma escala evolutiva presumidamente universal (a transio do simples ao complexo) com a caracterizao de grandes reas culturais. Essa articulao segue junto com a suposio de um determinismo ambiental, pelo qual se oporiam a cordilheira andina cujo ponto culminante de maximizao das es-pecificidades culturais se encontraria nas altas civilizaes dos Andes Centrais e a floresta tropical espao ocupado no mximo (nos termos da escala evolutiva) por slash-and-burn horticulturalists (agricul-tores de coivara), aos quais se somariam os representantes do antpoda evolucionista absoluto das altas civilizaes, os caadores e coletores das tribos marginais do Brasil Central. O determinismo ecolgico alinhado ao modelo evolucionista da complexificao social percorreu boa parte da historia da arqueologia indgena do subcontinente, com particular

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    255

    relevncia na arqueologia amaznica, a partir, sobretudo, dos trabalhos de Betty Meggers (cf. Meggers, 1954, 1971). Conhecemos igualmente bem o resultado do programa neoevolucionista: o aspecto geral de uma Amrica do Sul dividida em grandes conjuntos sociais vistos, cada um, como tipologicamente homogneo ou contendo em si variaes expli-cadas a partir do pressuposto de um padro ideal de tipificao.

    Ao colocar as sociedades amaznicas sob a rubrica geral da simplici-dade (no contexto e contedo aportado por aquela escala evolutiva), o Handbook deu passo mais vigorosa provocao com a qual os etnlogos amazonistas tiveram que se confrontar. Assim, a constatao feita por Viveiros de Castro de obsolescncia do modelo do Handbook para a Amaznia tem a ver com a recusa da escala evolutiva do simples ao com-plexo, nos termos de uma certa gramtica analtica do que muitos ainda hoje continuam compreendendo como organizao social e poltica, e finalmente, sustentar que no nela (nessa organizao social), mas em outro lugar, que est a complexidade.

    Ainda que constatada a obsolescncia daquele modelo e sua baixa rentabilidade analtica para o caso emblemtico das sociedades das ter-ras baixas, seus vestgios, contudo, permaneceram. Eles se converteram em uma espcie de senso comum mais ou menos ligeiro, que at bem recentemente frequentava as imagens emprestadas e manipuladas pelos prprios analistas, como igualmente nota Viveiros de Castro no mesmo artigo: A Amaznia ainda era vista como o habitat de grupos pequenos, dispersos e isolados, autnomos e autocontidos, igualitrios e tecnologi-camente parcos (Viveiros de Castro, 1996: 182, traduo nossa).

    Frente a esta caracterizao, a imagem clssica das altas civilizaes andinas e a sombra histrica da larga extenso territorial unificada do Tawantinsuyu (o imprio inca) projetando um horizonte cultural provido de um aparato logstico estatal, sua burocracia e sua casta de membros, to ou mais eficiente e poderosa que seus congneres europeus

  • 256

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    poca da chegada dos conquistadores, toda esta (quase demasiada-mente evidente) expresso dos fenmenos sociolgicos da hierarquia, da coero e da complexidade fulgem, evidentemente, como a imagem refletida ao revs daquele cromo amaznico, como se um fosse o inverso perfeito do outro. Assim, os Andes, da mesma maneira que os lugares comuns amaznicos, tambm acabam sobrecarregados de uma imagem ideal, que, se no imediatamente cmoda para alguns analistas, pode, ao menos, permanecer como uma intuio necessria da realidade (even-tualmente buscada, em um passado projetado).

    Nosso grande divisor do mundo etnolgico sul-americano no deixa de ser, por conseguinte, uma dupla projeo ideal, frente qual fazemos orbitar as sociedades indgenas que analisamos: de um lado, plancies abaixo, as que so contra o Estado (Clastres, 1974), ainda que no o conheam; do outro, montanhas acima, as que, se por casualidade no o dispem no momento, so, ao menos, a favor dele. No deixa de ser uma curiosa distino, baseada no deslocamento de um juzo sobre o que h para um juzo sobre o que deveria (ou poderia) haver.

    Pr em questo construes contrastivas artificiosas como essa im-plica considerar como so idealizadas, propostas e operadas as compara-es. Para isso, antes mesmo de examinar como, no Handbook, se reifica a organizao social como critrio pela qual as sociedades devam ser comparadas, pode ser igualmente til que perscrutemos brevemente a forma como a paisagem etnogrfica sul-americana era vista antes do Handbook.

    No alvorecer da antropologia americanista moderna, ou seja, da que se construiu a partir do final do sculo xix, a tradio tributria do difusio-nismo alemo tinha como termo de possvel confrontao e aproximao (mais que simples e passiva comparao) entre povos e sociedades o que se convencionou chamar de cultura material. Essa noo parece traduzir um certo fascnio ideolgico pela tecnologia legado pela Revoluo Industrial.

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    257

    Para os pioneiros que olharam (ou se interessaram por), simultaneamen-te, as terras altas e baixas, como Max Uhle (1856-1944), Max Schmidt (1874-1950), Erland Nordenskild (1877-1932) e, em certa medida, Paul Rivet (1876-1958) talvez com a nica exceo de Rafael Karsten1 , as realizaes materiais dos homens e suas conquistas tcnicas emoldurariam uma dinmica de hipotticos (mas necessrios) intercmbios, uma espcie de interpenetrao cultural de larga escala geogrfica, ou uma antropo-geografia, como a chamou Nordenskild (1912).

    Claro est que, tambm aqui, como sobressai em todo o ambiente intelectual do final do sculo xix, se supunha uma gradao evolutiva das sociedades nativas sul-americanas. Em certa medida, isso j estava pre-sente na apreciao da diversidade do subcontinente desde, pelo menos, os argumentos a respeito da classificao das gentes do Novo Mundo, feita na Historia Natural y Moral de las Indias, de 1590, do jesuta Jos de Acosta. Para ele, alm dos povos nativos que conheciam (ainda que imperfeitamente) a Deus e a um rei, e que por isso viviam em boa po-lcia (como se referira, em 1559, o Frei Bartolom de Las Casas), havia aqueles outros mais brbaros e silvestres, gente que vive do seu arco e flechas e que no haveria como reduzi-los a polcia e obedincia seno se sujeitados por alguma honesta fora para ensin-los primeiro a ser homens e depois a ser cristos (Acosta, 1590: 453, traduo nossa). Contra estes ltimos, a guerra justa e o direito de escravido seriam aplicveis. Como caracterstico da tradio jurdico-interpretativa tri-butria da Escolstica de Salamanca, que havia nascido com o Padre Francisco de Vitoria (1483-1546), supe-se aqui que os povos sejam educveis, ou seja, passveis de serem convertidos pela doutrina crist a deixar seu estado de barbrie. Esse estado seria, por conseguinte (ao menos no caso americano, como o defende Las Casas (1559) na con-cluso da sua Apologtica Historia), potencialmente transitrio, e no expresso de uma natureza social predeterminada.

  • 258

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    Desde ento, a escala dessa evoluo dos povos mudou: da sua capa-cidade de compreenso das leis naturais que expressariam a Lei Divina e, por consequncia, a aplicao do bom governo (ou boa polcia) para o acmulo de conquistas tecnolgicas. O que ainda no estava em jogo antes do Handbook era a ideia de uma complexificao social determinada pelo ambiente e traduzida como estratificao e especializao produ-tiva, isso , expressa no que se quis entender (estruturalmente) como a organizao social.

    No que respeita, no entanto, hiptese difusionista da grande rede de intercmbios e transmisso de ideias, j em 1909, Max Uhle sintetizaria, para o seu caso particular de estudo, o sentido geral dessa perspectiva, com sua frmula sobre a constituio cultural do que ele chamou o pas dos Incas: A quantidade das influncias que recebeu o Peru foi idntica que ele exerceu (Uhle, 1909: 6).

    Em 1913, Paul Rivet manifestaria sua adeso tese da influncia das civilizaes amaznicas sobre os Andes (Rivet, 1913). Seguindo a pista deixada por Uhle sobre uma possvel origem amaznica da lngua falada pelos Uru do Altiplano andino (Uhle, 1909: 7), formu-laria, um ano depois, com Georges de Crqui-Montfort, a hiptese de que o (suposto) antigo idioma falado pelos Uru, o pukina, seria uma lngua arwak (Rivet e Crqui-Montfort, 1918). Por essa poca, uma conexo ancestral Andes-arwak frequentava as especulaes dos etnlogos, pondo uma nota nova na constatao que vinha j de fins do sculo xviii sobre a considervel disperso geogrfica dessa famlia lingustica como se sabe, desde o norte do Chaco at, virtualmente, toda a extenso da Amaznia Ocidental, envolvendo as grandes reas pano, karib, tukano e tupi, e, no momento da chegada dos europeus, alcanando provavelmente a quase totalidade das Antilhas (cf. Hill e Santos-Granero, 2002). Sugerida por Nordenskild (1913: 250-254), a partir da similaridade dos traos estilsticos da cermica de Mojos

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    259

    (Chaco) e dos Andes Centrais, essa pretendida conexo, pensada j ento mais precisamente desde o Altiplano andino, foi tomada por Max Schmidt (1917: 84-86) como parte da dinmica que ele pre-tendeu elucidar no seu estudo sobre os arwak, que sintomaticamente tomou como ttulo: Os arwak: uma contribuio ao problema da di-fuso cultural 2.

    Mais tarde, os trabalhos de lingustica histrica de Alfredo Torero, dados luz a partir de 1965, demonstrariam que no h nenhuma evi-dncia de que o pukina chegou a ser falado pelos Uru, e que tampouco o atual uruquilla ou mesmo o antigo pukina (dos registros missionrios coloniais e dos arcasmos do discurso xamnico dos atuais Kallawaya) sejam lnguas arwak (Torero, 2002). De qualquer modo, a aventura pukina-arwak de Rivet serviria para sugerir como as relaes entre terras altas e terras baixas poderiam ser observadas a partir de um olhar bem diferente daquele das fronteiras pressupostas e dos determinismos eco-lgicos estritos.

    Poder-se-ia dizer, de uma maneira geral, que, a despeito das pres-suposies estritamente evolutivas, os muitos fenmenos concernentes vida social das populaes nativas sul-americanas eram vistos como fundamentalmente comparveis em termos de heranas mtuas. Como consequncia dessa possibilidade de aproximao, as formaes sociais podiam ser vistas como potencial e mutuamente comunicantes. Antes que a fenmenos (ou presumidos fenmenos) empricos verificveis, tudo isso diz respeito a uma certa maneira de ver, de apreender anali-ticamente os lugares relativos, as conexes e disjunes entre aquelas formaes sociais.

    Em 1927 Nordenskild est em atividades acadmicas em Berkeley e recebe de Franz Boas e Robert Lowie o encargo de planejar uma edi-o que congregasse os principais especialistas europeus na etnologia sul-americana (entre eles Paul Rivet, Alfred Mtraux e Rafael Karsten),

  • 260

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    para que se pudesse publicar um handbook dos ndios sul-americanos (Lindberg, 1999: xiii), o que ampliaria para o resto do continente o esforo de Boas e seus alunos na elaborao de handbooks para os n-dios norte-americanos. Todavia, uma sbita deteriorao da sade de Nordenskild, seguida de sua morte em 1932, e o fracasso de Lowie em conseguir o financiamento para o projeto euro-americano acabaram por inviabilizar o plano inicial. Naquele mesmo ano de 1932, o Natio-nal Research Council, sob sugesto de Lowie, encampou o projeto do Handbook, mantendo-o intocado at 1940, quando Julian Steward, que havia ento ascendido a uma confortvel posio de manejo de fundos oramentrios do Comit Internacional para a Cooperao Cientfica e Cultural, do Departamento de Estado norte-americano, encarregado de concretizar o projeto (Patterson e Lauria-Perricelli, 1999)3. Sob a direo de Steward e sob as novas configuraes da agenda estratgica e institucional norte-americana para o conhecimento de outros povos, j no contexto internacional posto pela Segunda Grande Guerra e seus desdobramentos4, a obra transforma-se num projeto quase exclusiva-mente norte-americano, no qual no apenas se desestimariam as fontes alems, francesas e escandinavas (Salomaa, 2002: 254) como tambm tornou-se muito diferente do que Nordenskild supostamente teria procurado fazer, particularmente com Steward, trabalhando desde uma perspectiva materialista neoevolucionista, e rearranjando todo o quadro da distribuio cultural para a Amrica do Sul (Lindberg, 1999: xiii-xiv; traduo nossa).

    Caberia agora a Alfred Mtraux (1902-1963), suo de nascimento, aluno tanto do sueco Nordenskild como do francs Rivet, um lugar secundrio na elaborao do Handbook. Em uma correspondncia sua a Steward, feita publicar por John Murra, Mtraux expressaria em 13 de novembro de 1939 seu desgosto:

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    261

    Estou muito preocupado com o fato de no ter respondido antes, pois o objeto desta carta de primordial importncia para mim. Eis que se vo dez anos que eu projeto um Handbook geral. Muitas das minhas publica-es me parecem captulos dessa obra.

    Em 1932 Nordenskild e eu redigimos o plano de um Handbook semelhante, que eu tinha inteno de escrever to logo que estabelecido. No caso de que o vosso projeto fosse prorrogado de forma indefinida, eu tinha inteno de comear em janeiro. [...] Estava decidido a enredar-me nesse trabalho com ou sem cooperao. No uma ambio desmedida: durante esses ltimos quinze anos acumulei muitas notas, tendo em mente este Handbook [...].

    Estou um tanto desiludido com fato de que a minha parte tenha sido reduzida apenas a alguns temas [...]. Por que o Sr. me tirou os ndios do altiplano, que eu estudei mais que qualquer outro de nossa poca? [...]

    Estou mais que vido por tratar dos mitos sul-americanos e inclusive da religio. So os dois aspectos das culturas sul-americanas que melhor conheo. Se o Sr. consultar minha bibliografia, ver que tenho certo direito a essa reclamao [...]. O Dr. Lowie no se opor [...]. Quero a mitologia mais que qualquer outra coisa (apud Murra, 1992: 77-78; traduo nossa, nfase do original)5.

    Com efeito, Mtraux se ocupou de algumas partes do Handbook, e casualmente no volume que recolhe suas contribuies onde se tornam talvez mais evidentes as disposies por meio das quais as sociedades na-tivas sul-americanas so classificadas e confrontadas sob a disposio de um modelo geral6. O quinto volume do Handbook majoritariamente ocupado por um assim chamado cross-cultural survey of South Ameri-can Indian tribes, disposto em diferentes tpicos que englobariam as manifestaes socioculturais dos povos nativos sul-americanos, desde a cultura material (arquitetura, engenharia, manufaturas e tecnologia) at

  • 262

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    os domnios mais abstratos (arte, religio, tradies, memria e apren-dizado), passando pelo inescusvel social and political life. Nesse elenco de rubricas h apenas dois momentos em que se institui uma diviso sinttica prvia entre terras altas e terras baixas. Um, quando se trata de descrever as prticas mdicas tpico deixado inteiramente a cargo de um s autor, Erwin Ackerknecht , um tema que, frente a todo o resto que se apresenta e pela forma como apresentado, se poderia reconhecer como menos relevante; e o outro momento, quando se trata de descrever a organizao social e poltica. Este sim, se pode decididamente dizer, o momento forte. A, tudo o que est disperso, multifacetado e plurir-regional nos demais tpicos cede disposio prvia que prescreve uma diviso excludente, de natureza, entre Andean peoples (cujo tratamento coube a Paul Kirchhoff), de uma parte, e Tropical Forest and Marginal Tribes (confiado a Robert Lowie), de outra. Kirchhoff, que em 1943 j havia cunhado o conceito de Mesoamrica para especificar outra rea cultural presumidamente bem delimitada (Kirchhoff, 1943)7, sintetiza agora a diviso em pauta: A diferena entre a rea andina e o resto da Amrica do Sul que a organizao social deste ltimo est baseada no parentesco, enquanto que a dos Andes possui todo um conjunto de ins-tituies no baseadas no parentesco (Kirchhoff, 1949: 293; traduo nossa).

    Em uma palavra, entre um e outro, a diferena est dada pela com-plexificao social que tornou possvel o Estado. Em outra seo deste mesmo volume do Handbook, a sntese comparativa ensaiada por Ste-ward consagraria tal interpretao:

    O Imprio Inca introduziu nos Andes Centrais uma cultura de Estado por sobre as culturas locais ou tradicional-populares [folk culture], alm de um sistema de controle, por meio de uma legislao estatal, que talvez tenha sido apenas levemente evidente para os povos da rea subandina e

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    263

    circumcaribenha, e inteiramente desconhecida entre as tribos nas quais a unidade sociopoltica era o grupo de parentesco. Este sistema resultou da necessidade de amalgamar uma populao formidvel e geograficamente dilatada e de faz-la servir aos seus conquistadores (Steward, 1949: 737; traduo nossa).

    No mesmo sentido, a cultura material (como traduo da tecnologia), que havia sido tomada como critrio central por parte dos difusionistas, fica agora subordinada condio de corolrio intrnseco do primado da organizao social:

    Os povos dos Andes Centrais se distinguiam dos demais da Amrica do Sul pelo nmero de processos que aplicavam s manufaturas e pela quanti-dade e qualidade de sua produo, antes que por fundamentos tecnolgi-cos. Eles tambm se distinguiam, especialmente dos povos marginais e da selva tropical, pela especializao da produo e do consumo, de acordo com o sistema social e poltico. Bens e construes simples eram de uso de todos, mas a maioria dos mais elaborados produtos e construes era destinada ao governo, classe sacerdotal e nobreza (Steward, 1949: 739; traduo nossa).

    Dessa maneira, essa apreenso da organizao social supe no apenas o sistema de parentesco, mas tambm uma sociomorfologia evolutiva da agrupao e do controle, pela qual o Estado no s se torna possvel em termos causais, como tambm sociologicamente pensvel. Por conse-quncia, a explicao das sociedades andinas contemporneas, despro-vidas de formaes estatais evidentes, acaba sendo feita por meio de um funcionalismo bastante primrio, pelo qual um elemento social admite ser substitudo por outro, desde que este cumpra a funo do anterior:

  • 264

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    O efeito da Conquista nos Andes Centrais como um todo foi similar quele da rea circumcaribenha. As formas mais organizadas e distintivas dos padres dos Andes Centrais foram substitudas pelas formas europias, enquanto a cultura tradicional-popular [folk culture] permaneceu relati-vamente intacta. O sistema governamental incaico foi substitudo pelo es-panhol, com seu tronco e base na Espanha. As castas sociais nativas foram niveladas, exceto no caso dos kurakas [caciques], que passam a encontrar seu lugar no rearranjo europeu (Steward, 1949: 766-767; traduo nossa).

    Ainda que engenhosa, essa explicao nos leva irremediavelmente a de-duzir tambm que o que parece constituir de fato as formaes sociais andinas seria uma espcie de ncleo duro persistente no tempo, a assim chamada folk culture, que, prontamente, j no precisa mais do Estado para ser compreendida em sua natureza. Talvez ento, tal como para as sociedades das terras baixas, lhe bastaria o parentesco para explicar sua organizao social, relegando ao (epi)fenmeno do Estado a condio de uma incontornvel inconvenincia histrica (mesmo que evolutiva-mente justificvel). Parece-nos que a nica alternativa para salvar do paradoxo esta concepo de Estado, de forma consequente com o esquema evolucionista, seria ento fazer como Anna Roosevelt (1994) o fez para a Amaznia: alegar uma regresso ps-conquista dos padres da organizao social dos grupos andinos. Postulada a regresso, a histria passa a ser, por consequncia, um elemento exgeno ao curso natural da adaptao ao meio, o que suporia para a adaptao uma natureza mais natural do social, enquanto a histria, autonomizada desse campo de determinao lgica, instituiria uma natureza mais cultural. De uma parte, retornaramos assim, resolutamente, aos filsofos do sculo xviii, para quem os amerndios expressariam, em essncia, uma condio de natureza (Descola, 1985), e se duplicaria em outro nvel a dicotomia natureza/cultura como critrio e expresso da grande diviso ns/eles:

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    265

    uns, constrangidos pela natureza; outros, liberados (ou apartados) dela (inclusive, ou sobretudo, pela histria). E de outra parte, finalmente, no horizonte epistmico legado pelo modelo neoevolucionista, restaria aos ndios americanos, aps a Conquista, ocupar uma posio perma-nentemente tensa, seno dbia, entre os atavismos da natureza e a determinao histrica8.

    Naquele extenso repertrio comparativo do quinto volume do Handbook, quando se trata de rubricas etnogrficas, ainda que ordenadas sob o ttulo da vida social e poltica, mas sem uma relao fenomnica (aparentemente) imediata com essa concepo de organizao social como alguns ritos (couvade e iniciao masculina), guerra, canibalismo e trofus humanos, alm de religio e xamanismo, confiados todos, h que se notar, a Alfred Mtraux , as barreiras bem estabelecidas que delimi-tam as reas culturais so singelamente abolidas. Dito em outros termos, como se esses temas mais simblicos e menos poltico-morfolgicos fossem suficientemente suaves para permitir o livre trnsito compara-tivo para alm das fronteiras prvias demarcadas pela organizao social 9. , portanto, este critrio (a organizao social), com os paradoxos que apontamos, que dirige a construo e delimitao de reas culturais ou, pelo menos, o que interessa (desde sua perspectiva) ser posto em confrontao. A construo de uma diferena intransponvel entre gru-pos humanos se realiza aqui por meio dele e do corolrio necessrio do Estado como relativa exterioridade jural de um grupo social ampliado; como se esse Estado nos Andes tivesse que ser explicado apenas por tal dimenso e perspectiva, a juralista10.

    evidente que o modelo do Handbook no permaneceu intocado, tampouco inamovivelmente legitimado nos diversos domnios nos quais a etnologia e a arqueologia indgenas sul-americanas se especializaram. No entanto e talvez isso seja o menos perceptvel , ele conseguiu se constituir como o lastro implcito que preenche os pontos cegos entre

  • 266

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    as especializaes etnogrficas que supem que Andes e Amaznia (por exemplo) devam ser essencialmente diferentes ou diferentes por na-tureza. Nisso, o silncio tcito legado pelo neoevolucionismo segue absolutamente atual. No nosso entendimento, sair daquela naturalidade divisria e comear a pr em questo esse silncio implica recusar a mi-ragem da organizao social (e, por conseguinte, do seu juralismo) como critrio. Ou seja, de forma singela: os princpios organizativos da vida social podem simplesmente no estar assentados sobre uma fenomeno-logia da complexificao que vai da parentalidade institucionalidade.

    Se certo que a suposio do determinismo ecolgico, que est na base do modelo do Handbook, s supervel, como sugere Viveiros de Castro (1996), se a articulao categorial analtica entre natureza e cul-tura deixa de ser pressuposta a partir de fora, de forma extrnseca, como usa dizer esse autor, e passa a ser regida pela lgica engendrada pelas cosmologias nativas, ento o mesmo pode (e deve) ser feito com relao a categorias como poder e autoridade, no que respeita miragem da complexificao social. Assim, vencer por inteiro o atascadeiro juralista significa considerar o sentido de existncia das sociedades a partir de suas cosmologias, ou seja, a partir das disposies constitutivas de suas lgicas simblicas, das gramticas de construo dos sentidos de mundo, que pem em lugares significativos especficos categorias como as que acima aludimos. Seria a partir do trabalho comparativo (ou, se preferir, de uma sintaxe) das mltiplas disposies categoriais do pensamento amerndio que comearamos a dar confrontao Andes/Amaznia, por exemplo, no o enquadramento das tipificaes excludentes, mas e talvez como j suspeitava Mtraux a possibilidade de anlises que insinuem um modelo etnolgico mais geral, ou, em outras palavras, a possibilidade de que reas etnogrficas como essas possam, antes que se encantoar em aparentes especificidades fenomnicas, efetivamente dialogar na teoria antropolgica. O que propomos a seguir um brevssimo exerccio de

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    267

    confrontao aproximativa de interpretaes etnolgicas, a partir de um caso etnogrfico privilegiado, que nos sugere que Andes e Amaznia podem no estar to distantes assim.

    Os Andes, no to estranhos Amaznia... E vice-versa

    O que a etnologia andina consagra hoje como os Andes Meridionais na verdade a poro centro-meridional da cordilheira, a partir do entorno do lago Titicaca, rumo ao sul, at o noroeste da Argentina, que em certa medida tem como base a zona de expanso da antiga formao preincai-ca de Tiwanaku (700 d.C. - 1200 d.C.) (retirando-lhe a poro costeira). Aps passar por um perodo de disperso poltica, foi incorporada ao horizonte incaico e ento reconfigurada, seja por novas disposies de alianas locais e supralocais, seja por intensos movimentos populacio-nais de colonizao, organizados a partir de Cusco, que incidiram so-bre praticamente toda a extenso recortada de vales de seu contraforte oriental. Regio ainda no muito explorada por pesquisas antropolgicas sistemticas, apesar das j conhecidas advertncias a respeito de suas es-pecificidades (cf. Saignes, 1985; Schramm, 1993), esse reborde andino do Altiplano ou seja, as serras e vales orientais deu origem a um arco geogrfico leste-sul de lngua quchua to distinto dos padres morfo-lgicos da rea aymara do Altiplano quanto variado. A impresso geral, poder-se-ia dizer, que nessa poro em particular estaramos frente a formaes sociais morfologicamente mais fluidas que as dos dualismos ubquos do Altiplano, com dinmicas constitutivas centradas em outros lugares que no necessariamente na territorialidade ou nas mnemotec-nias genealgicas que alhures parecem recorrentes. No queremos com isso dizer que estamos aqui diante de um mundo andino sui generis, que deve ser recortado como uma conformao parte, mas sugerir

  • 268

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    como problema para reflexo, com suas consequncias lgicas e tericas, que isso tambm constitui uma possibilidade desse mesmo mundo, e que compartilha com ele uma lgica profunda, que no est na morfologia.

    Na altura do ponto mdio desse arco quchua, no norte do atual De-partamento boliviano de Chuquisaca, encontramos um complexo local situado no entorno montanhoso do povoado de Tarabuco (distante 55 km de Sucre, a capital do Departamento), e ocupando quase exclusivamente o piso ecolgico da cabeceira rida de vale (em torno dos 3.000 msnm). Disperso em cerca de 70 comunidades autnomas, com entre 200 e 1.300 membros cada uma, esse grupo tem como referncias mais visveis de identificao comum (ao menos visto desde fora) a realizao de um mesmo calendrio ritual e o uso de um mesmo padro txtil e de vesturio.

    Durante o perodo colonial, a regio constituiu-se como o repar-timiento de Tarabuco e Presto, que conformava parte da muitas vezes belicosa frontera com os Chiriguano, grupos de guarani das terras baixas. Mesmo com uma populao indgena inicialmente reduzida aos dois povoados que davam nome ao repartimiento na dcada de 70 do sculo xvi e mesmo diante da incisiva presena das haciendas de espanhis desde as primeiras dcadas da Colnia, conservou-se a, durante muito tempo, a forma original da organizao social por ayllus e suas auto-ridades tradicionais11. Como provncia livre da mita minera (o envio compulsrio e peridico de contingentes de mo-de-obra ao brutal tra-balho das minas de Potosi), a regio recebeu, durante praticamente todo o perodo colonial, a afluncia de ndios fugidos das provncias obrigadas mita, convertendo-se numa verdadeira mquina social de incorporao de gente (Cavalcanti-Schiel, 2008). Na verdade, pode-se aventar como hiptese bastante verossmil que o permanente movimento de pessoas foi uma dinmica constitutiva da paisagem social andina de uma manei-ra geral h muitssimo tempo (cf. Nez e Dillehay, 1979; Browman, 1984; Guffroy, 2008), e que as formas de regulao social estabelecidas

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    269

    sob essa circunstncia poderiam estar na base dos sucessivos horizontes culturais pr-histricos, encontrando progressivamente nos preceitos de reciprocidade uma linguagem panandina de entendimento e incluso social (Cavalcanti-Schiel, 2011).

    O avano intensivo das haciendas no ltimo quartel do sculo xix (Langer, 1987; 1989) provocou a desapario definitiva dos antigos ayllus na regio de Tarabuco e a converso das lealdades, que um dia marcaram o modelo de autoridade tradicional, ao sistema de colonato das haciendas (Heyduk, 1971). O processo de Reforma Agrria que se seguiu Revoluo Nacionalista boliviana de 1952 outorgou a proprie-dade individual da terra aos campesinos indgenas que formavam aquele colonato e conformou a constelao das atuais comunidades, abrigadas no sistema de organizao sindical camponesa que, em certa medida, vigora at hoje.

    Os atuais Tarabuco os chamamos assim por convenincia analtica no se reconhecem como uma totalidade tnica, como alguma uni-dade sociopoliticamente diferenciada, e no se remetem a nenhum ns tnico englobante. Sua medida de singularidade coletiva e de pertenci-mento a comunidad. parte disso, eles se reconhecem como campesi-nos, como quaisquer outros indgenas bolivianos, diferentes, portanto, dos mozos (a populao hispnica) das cidades. Aos domingos, vo ao povoado de Tarabuco para fazer o trueque (troca no monetria) de seus produtos agrcolas com aqueles outros produzidos pela gente dos vales temperados circunvizinhos. Essa gente tambm fala quchua e tambm se identifica como campesinos, mas se veste como os citadinos e apenas pontual e esparsamente pratica ritos do calendrio anual similares aos dos Tarabuco, tal como tambm o faz a gente de origem rural dos su-brbios de Sucre. Para um Tarabuco de uma comunidad, no entanto, a aparente distncia identitria que o separa de um valluno a mesma que o separa de algum outro tata12 de outra comunidad 13.

  • 270

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    Por tudo isso, os Tarabuco no parecem absolutamente dispostos a mobilizar algum emblema de unidade tnica que sirva de argumento ou de pretexto organizativo, reivindicatrio ou representacional do grupo como totalidade singular. De outra parte, suas comunidades no so divi-didas em metades, como comum nos Andes; no possuem marcos de territorialidade, referentes divisrios e topogrficos para estabelecer limi-tes definidos, com funes rituais; no estabelecem oposies simblicas entre alto e baixo, centro e margem, como classicamente recorrente nas etnografias andinas; no se encontram em batalhas rituais; no recorrem a ancestrais mticos fundadores para estabelecer especificidades distintivas de unidades locais ou autoridades rituais, tal como ocorre em outros muitos lugares dos Andes com o fenmeno das wakas (marcos divinizados de ancestralidade) e dos apus (divindades tutelares, que podem assumir a forma de montes ou acidentes topogrficos similares); no dispem de em-blemas genealgicos que reconstituam um discurso fenomnico (ou seja, que enuncie alguma forma de facticidade) sobre a permanncia do grupo ou alguma continuidade ancestral; do mesmo modo como no dispem de nenhum tipo de narratividade que informe algo sobre a existncia dos antigos ayllus, de eventos histricos que no sejam aqueles dos quais as geraes ainda vivas se lembrem, ou de alguma insondvel unidade tnica perdida. Algum poderia at mesmo dizer que essa gente, alm de no reter a forma clssica de organizao social andina, no possui sequer me-mria social (pressupondo-a como coisa anloga e substitutiva histria, uma pretensamente inexorvel historicidade indgena).

    No obstante, o sentido ontolgico de continuidade para os Tara-buco se codifica e se expressa, de forma refinadamente bem regrada, na gramtica simblica do calendrio ritual e na semiologia de seus txteis o que identificamos como dois regimes textuais , nas quais as organizaes lgicas do tempo e do espao (respectivamente) se ar-ticulam como discursos complementares sobre a ordem das coisas, do

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    271

    intercmbio e da reproduo da vida no mbito do (ou melhor, dos) pacha(s) (categoria andina que funde as noes de espao e de tempo, e que se poderia glosar precariamente como mundo). A continuidade que interessa para os Tarabuco no uma continuidade tnica que abra caminho a (e subsidie) uma certa retrica (to trivial quanto fastidiosa nos estudos andinos das duas ltimas dcadas) da resistncia indgena , mas uma continuidade ontolgica, ou seja, que expressa, antes, uma obstinao cultural do sentido do mundo, a obstinao da inteligibilidade e da linguagem. O que a discursividade daqueles regimes textuais enuncia e dispe como (cosmo)logicamente operante que a re-produo e continuidade da vida s possvel por meio do intercmbio permanente de esforos (em quchua, kallpa) entre as muitas agncias do cosmos, e que a ordem lgica das coisas (ou melhor, seres) que inte-ragem de forma regrada para engendrar tal reproduo necessria a da complementaridade.

    De uma parte, as potncias brutas dos muitos sujeitos do cosmos (dos homens inclusive) so perigosas; podem causar dano, doena, pesar; tm que ser idealmente submetidas a um acordo sobre sua justa medida, para que possam efetivamente se manifestar como esforos produtivos; acordos sempre instveis, que necessitam ser ocasional e ciclicamente re-novados, porque os muitos atores da negociao se movem conforme to apenas suas prprias subjetividades. Sob o cdigo geral da reciprocidade, o ritual o procedimento discursivo pelo qual esses acordos (csmi-cos e humanos) se estabelecem (ou, antes, se renovam). O calendrio ritual torna-se ento o motor simblico de um ritmo temporal ordenado de prestaes de esforos que ope, como distintos em natureza, mas necessariamente complementares, o tempo da prevalncia do trabalho humano nas colheitas (o chaki tiempo) e o tempo da prevalncia do trabalho das potncias sobre-humanas na germinao e crescimento dos cultivos (o qumir tiempo).

  • 272

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    A semiologia txtil, de sua parte, figura a cartografia lgica das rela-es posicionais igualmente complementares das potncias reprodutivas, a partir de um jogo elementar entre figurao e no-figurao, entre luminosidade e ausncia de luz, entre o domnio que expressa por ex-celncia o trabalho construtivo da tecel, o pallay, e aquele que o da escurido ou do monocromatismo austero da indistiguibilidade (ou da no-visibilidade), a pampa, espao txtil onde se inscreve a pura potn-cia da fecundidade, ddiva elementar sobre a qual germina e floresce o discernimento humano da cor e da forma discernimento, portanto, que aqui se consuma tambm sob a forma de trabalho.

    A mensagem cultural transmitida pelo que chamamos de regimes textuais dos Tarabuco o calendrio ritual e a semiologia txtil a de que a reproduo da vida s possvel por conta desse arranjo ne-cessariamente complementar de potncias diferentes por natureza. No por acaso, a diviso cultural de tarefas (e no uma simples especializao social da produo), tal como em muitas outras atividades, mas tambm aqui, nessa gramtica lgico-reprodutiva do tempo e do espao que constitui o que reconhecemos ser a efetiva memria social dos Tara-buco , estabelece que o ritual ofcio (ou melhor, esforo) dos homens; o txtil, das mulheres. Toda reproduo , simultaneamente, biolgica e cultural; ou mais apropriadamente, no h biologia que no seja aquela apreendida pela linguagem e pelo sentido.

    Fenmenos etnogrficos que constituem um marco saliente para o entendimento dos Tarabuco no se reportam a (nem se explicam como) mera idiossincrasia Tarabuco, e tampouco como rara particularidade do arco quchua dos Andes Sul-Orientais bolivianos. Uma vez apreen-dida sua lgica gerativa, o que vislumbramos atravs deles so dispo-sies simblicas recorrentes na regio da cordilheira, para alm das particularidades fenomnicas do estritamente etnogrfico, pelas quais, do contrrio, os Tarabuco seriam quase que a negao dos referentes

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    273

    empricos mais triviais do mundo andino e da forma como se expressa sua organizao social. A fluidez morfolgica do arco quchua sugere-nos que tambm o sentido-do-andino est em outro lugar.

    Com efeito, o princpio formal da complementaridade de desiguais e o dispositivo semntico do consrcio reciprocitrio de potncias pare-cem presentes em todo o pensamento andino, e o que torna subsistente falar de uma cosmolgica comum, algo que, diferena da Amaznia, confere inclusive um ar de familiar inteligibilidade a toda a paisagem dos muitos fenmenos sociais andinos quando observada pelos analistas nela iniciados, ainda que a partir de lugares etnogrficos particulares.

    Em termos paradigmticos, as narrativas cosmolgicas andinas dispem o ordenamento do universo segundo o tropo da dualidade de mundos. Ao mundo-este (kay pacha), o mundo da contemporaneidade, da exteriori-dade e da luminosidade solar (e, portanto, da plena visibilidade), ope-se um mundo-interior (ukhu pacha), subterrneo, escuro, refgio de todo o passado14. Quando observamos anteriormente que a categoria pacha fusio-na as noes de tempo e de espao, remetamo-nos tambm a essa dupla clivagem, pela qual o passado ocupa necessariamente um lugar espacial, atravs do qual ele continua, sua medida, presente. por essa razo que a potncia dos ancestrais, mobilizada no circuito dos intercmbios, continua propiciando a reprodutibilidade humana contempornea, e dessa forma, a continuidade do ayllu, como famlia e linhagem simblicas, , sobretudo, um dom das wakas. Anloga e reversamente, toda continuidade temporal exige um regime de disposio espacial da existncia, de modo que espao e tempo so simultaneamente coetneos e coextensivos. Distintos em na-tureza, os dois mundos elementares, exatamente por no se sustentarem, em termos lgicos, como existncias elementares individuadas, conformam uma necessria complementaridade ontolgica. Nesse contexto (e por con-sequncia disso), os muitos seres que os povoam so dotados de anima e potncia, o que faz deles agentes e sujeitos das dinmicas de intercmbio.

  • 274

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    No estamos aqui nada distantes das proposies analticas, de ori-gem amazonista, do animismo (Descola, 1996, 2005) e do multinatu-ralismo (Viveiros de Castro, 2002). O trao comum a esses dois cons-tructos tericos o reconhecimento de subjetividade prpria que as cosmologias amaznicas atribuem aos muitos agentes do cosmos, ou seja, seu reconhecimento como sujeitos sociais. Com efeito, igualmente no caso andino, o intercmbio de esforos entre os muitos agentes da socialidade ampliada da comunidade csmica (ou, poderamos dizer simplesmente: da plenitude dessa socialidade) tem como fundamento a pressuposio da linguagem (e da mtua inteligibilidade) como forma do universal, como topos ontolgico do encontro dos agentes das muitas naturezas: humana, animal, vegetal, topogrfica, mineral e sobrenatu-ral; visveis, pouco visveis ou no-visveis, ou, ainda mais precisamente, para fazer jus amplitude semntica da categoria pacha, tanto as diversas naturezas de matria quanto as diversas naturezas cronolgicas, dispostas ao longo da dualidade de mundos. O intercmbio de esforo, fora, potncia ou energia que aproximadamente o campo semntico da categoria kallpa seria a gramtica fundamental dessa linguagem, seja esse intercmbio positivo (que o objeto e propsito dos regimes dis-cursivos que procuram orden-lo), seja negativo (sob a forma da pre-dao de energia vital ou, simplesmente, a ao da capacidade predadora inerente s potncias no controladas e da a enfermidade, o dano e a intemprie). Essas duas formas de expresso do intercmbio de kallpa (positiva e negativa), que distinguimos, antes de mais nada para fins analticos, so em geral reconhecidas, no ordinrio da experincia, como mutuamente reversveis uma outra.

    A passagem do presente ao mundo outro dos ancestrais, do espao-tem-po-este (kay pacha) da superfcie solar, ao espao-tempo do subterrneo, do antes, do mais-adentro (ukhu pacha), parece expressar-se, nos Andes, como a transformao paradigmtica, na qual uma mudana de natureza

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    275

    sinalizada por uma mudana de sustncia. Pierre Duviols (1978) iden-tificou-a sob a rubrica da litomorfizao: a passagem condio mineral (ou smile-mineral) caracterstica dos seres do ukhu pacha (como os ossos e as mmias dos mortos). Nesse nosso particular contexto multinaturalista, o processo transformacional dos seres implicado no seu trnsito entre na-turezas reconhecido, ao que tudo indica, e diferena dos seus anlogos na Amaznia, como fundamentalmente irreversvel. Excees existem. Em situaes (e espaos) liminares, nos quais sujeitos de diferentes naturezas eventualmente se encontram em interlocuo direta, o que vigora uma dubiedade dos corpos e substncias (tanto quanto da visibilidade). Os condenados (similares ao que chamaramos de almas penadas) e pichtaqus (ladres de gordura)15, por exemplo, se apresentam (ou seja, mostram-se traioeiramente visveis) sob a forma humana, para que posam interpelar os humanos e causar-lhes dano mortal ao subtrair-lhes vitalidade. Estabe-lecida a interlocuo, a dinmica de uma potncia que a sintetizar e a caracterizar. No mesmo sentido, em algumas situaes rituais nos Andes, os homens tornam-se certos apus (e gozam de seus atributos) ao portarem (ou, sobretudo, vestirem) algum emblema material distintivo dessa con-dio, e, com isso, tornam-se tambm capazes de capitalizar algum tipo de proteo e fortuna s suas comunidades. Finalmente, ao ingerirem lcool em grande quantidade (e simultaneamente oferec-lo aos seres do mundo-outro sob a forma de challa libao), as fronteiras da forma, da presencialidade e da visibilidade se alargam, e as pessoas humanas podem conviver e interagir em situao de iguais com os mortos, os animais e os muitos seres outros (como, por exemplo, os estrangeiros Saignes, 1989). No entanto, mais que a substncia, o substrato e, pode-se mesmo dizer, o resultado incontornvel do intercurso de subjetividades entre seres de distintas naturezas nos Andes o intercmbio de kallpa.

    A irreversibilidade da transformao paradigmtica de substncia nos Andes contrasta com a fluente e reversvel transformabilidade dos seres

  • 276

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    a ela associada na Amaznia. Se nesta ltima o fenmeno epistemolgi-co do perspectivismo (Viveiros de Castro, 2002) sugere que a nfase no intercmbio de pontos de vista entre os muitos sujeitos da socialidade csmica tem como base uma dinmica transformacional controlada, idealmente sob o signo da reversibilidade (que encontra seu ofcio por excelncia no trabalho xamnico), nos Andes o comrcio das subjetivida-des enfatizaria, por outro lado, o intercmbio de potncias e de esforos, uma vez que as transformaes apenas residualmente tenderiam a ser reversveis. Fazendo uso da distino cunhada por Marilyn Strathern16, a sociabilidade (especfica, positiva, produtiva), mais alm da socialida-de (genrica e difusa), tambm nos contextos multinaturalistas parece forjada no campo de possibilidades instaurado pela expectativa de um manejo timo ou feliz: o intercmbio positivo por excelncia, nos Andes; a reversibilidade transformacional por excelncia, na Amaznia. Afinal, se a socialidade suposta a partir de uma escala ampliada, por que deveria a sociabilidade ser restrita aos humanos?

    Ainda que seja possvel estimar uma incidncia bastante exgua do perspectivismo nos Andes, os andinos no deixam de ser multinaturalistas sua maneira. Se, como sugere Viveiros de Castro, o perspectivismo pa-rece expressar uma ideologia de caadores (Viveiros de Castro, 2002: 357), seramos forados a reconhecer que os andinos teriam decidida-mente abraado uma ideologia de agricultores, na qual a fecundidade e o esforo sistemtico seriam signos mais salientes. De qualquer forma, o que a ampliao do raio comparativo tambm nos sugere que o pers-pectivismo poderia ser visto, no contexto de um horizonte amerndio, como uma forma particular de um multinaturalismo mais geral.

    Por fim e sinteticamente, em termos de tendncias interpretativas genricas (e no de tipificao excludente), poderamos dizer que, se a dinmica transformacional na Amaznia parece implicar o concurso da substncia, nos Andes o negcio das subjetividades suporia, fundamen-

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    277

    talmente, o intercmbio de esforos17. Anloga e curiosamente, se na Amaznia as pessoas sociais tenderiam a ser produzidas (ou fabricadas) por meio das sustncias (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1978), parece ser por meio dos esforos que elas o so nos Andes (cf. Weisman-tel, 1998; Lestage, 1999; Yapu e Torrico, 2003: 271-306). No obstante, em ambas as situaes, a premissa de uma multiversidade de agentes, distintos na conformao de seus regimes corpreos, mas dotados do mesmo atributo de subjetividade a cultura como termo do universal e a natureza como termo do particular, como o sintetiza Viveiros de Castro para o multinaturalismo , que, atravs da interao dialgica (seja positiva, seja negativa), funda ontologicamente o espao da socialidade, no qual a vida (toda ela, e no s aquela afeta s pessoas humanas) no s possvel como tambm, perpetuvel.

    Consideraes finais

    As confrontaes que ensaiamos acima entre referentes andinos e ama-znicos, em vez de reinstaurar dicotomias essenciais (que fundam di-ferentes naturezas sociais), apenas pretendem enfatizar circunstncias particulares, disposies diferenciadas, de regimes ontolgicos funda-mentalmente similares, a propsito dos quais se poderia inferir uma possvel continuidade amerndia, um projeto intelectual, como bem se sabe, j sugerido pelas Mitolgicas de Lvi-Strauss. Esse projeto, contudo, ainda no venceu os lugares comuns das divises por reas culturais, nutridos pelo silncio tcito legado pelo neoevolucionismo e no tanto por conta da sua escala evolutiva da adaptao ao meio, mas, antes, por conta da sua premissa da organizao social como critrio no apenas de distino sociolgica, mas tambm de identificao da natureza de uma formao social. Se o debate crtico em torno daquela escala evo-

  • 278

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    lutiva foi mais explcito na arqueologia indgena, sobretudo amaznica, e tambm levou Viveiros de Castro (1996) a postular a obsolescncia do modelo standard tributrio do Handbook para essa regio, j parece ser o momento de abrir mais francamente o debate etnolgico sobre os silncios subentendidos na naturalizao da ideia de organizao social. Deduzir uma razo de especificidade das sociedades andinas a partir do horizonte ideal e necessrio suposto pela imagem do Estado ou, antes, pelos seus implcitos lgicos: a hierarquia e a coero incorrer no mesmo equvoco que deduzir uma razo de especificidade das socieda-des amaznicas a partir dos (igualmente projetados) constrangimentos adaptativos impostos pelo meio natural. Mas a preocupao analtica aqui no se restringe, evidentemente, a essa ou quela regio etnogrfica. Pode-se decretar a obsolescncia do modelo neoevolucionista para a to-talidade das reas culturais, uma aps a outra, e ainda assim manter-se essa diviso por reas intocada e imune a questionamentos. A preocu-pao analtica a que nos referimos incide, antes, sobre a generalidade da paisagem etnogrfica sul-americana, na medida em que questiona os modelos etnolgicos dos quais se parte para interpretar os fenmenos dessa paisagem, tanto quanto o sentido da manuteno das clivagens tipolgicas.

    Apesar de parecer um trusmo, no custa notar que os fatos etnogr-ficos s so fenomenologicamente comparveis caso se suponha a prece-dncia lgica de um universal (um arcabouo categorial e classificat-rio) extrnseco. Do contrrio, no seriam comparveis, encerrando-se no solipsismo de sua imanncia singular (uma espcie de, perdoada a antinomia, absoluto relativista). De outra parte, o que, sim, so compa-rveis, so os contextos (ou disposies) significacionais nos quais esses fenmenos se inserem, nos termos analticos de uma sintaxe do sentido. isso o que procuramos fazer na aproximao Andes-Amaznia que ensaiamos aqui. Ultrapassar os limites dessa diviso implica, portanto,

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    279

    recusar os marcos ordenadores emprestados por universais extrnsecos e buscar apreender como eventuais continuidades estariam constitudas e dispostas a partir da arquitetura sinttica das lgicas de pensamento.

    Por mais que uma certa episteme geral da antropologia sublinhe (e em alguns casos inclusive reifique) a diferena, tambm possvel que os contextos humanos sejam reconhecidos a partir das aproximaes e continuidades, o que implica, muitas vezes, reconhecer diferenas antes graduais que cabais. Parece-nos que isso est mais relacionado a uma poltica do olhar antropolgico que constri tanto as grandes divises como as divises nem to grandes assim que aos termos de alguma Lei Geral da Existncia Humana. A questo estratgica, em suma, est em por onde se aproximar e por onde se distanciar, em lugar simples-mente de pressupor a proximidade (ou a universalidade) per se ou a di-ferena per se. Isso significa, em ltima instncia, recusar as totalizaes uniformizadoras que vm em socorro s tipologias categricas. Ou seja, isso requer pr de lado objetos (ou, antes, hipstases) como rea cultu-ral, sociedade, cultura (esta ou aquela), grupo tnico, raa (um velho conceito que parece ter voltado moda) e no importa a amplitude que se lhes outorgue ou sua pluralizao em uma srie de homlogos , e tratar, em seu lugar, de complexos relacionais de significao e dos contextos de reconhecimento de legitimidade que instauram, tanto quanto as eventuais heterogeneidades discursivas a partir deles (e frente a outros) engendradas. Antes que promulgar diferenas pela autoridade emanada de uma raison ethnologique (Amselle, 1990), possvel to simplesmente mobilizar os distanciamentos para apreender domnios permanentemente relativos de significao. Acreditamos que j hora de ensaiar olhares nesse sentido para o panorama geral do mundo ame-rndio sul-americano (pelo menos).

  • 280

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    Notas

    1 Discpulo de Edward Westermarck, o finlands Rafael Karsten (1879-1956), cons-truiu a parte essencial da sua obra sobre o esforo de uma anlise evolucionista do fenmeno religioso, por onde props uma hierarquizao das culturas de acordo com algumas caractersticas cognitivas atinentes s crenas religiosas, o que as disporia mais prximas do primitivo ou do civilizado. Para isso tomou como marcos de comparao a religiosidade Inca, a religiosidade Jvaro (Shuar) e a religiosidade dos grupos do Chaco do curso do Rio Pilcomayo (Mataco, Chorote, Toba e Ashluslay) (cf. Karsten, 1926). Para uma interpretao geral de sua obra ver Salomaa (2002).

    2 Os questionamentos sobre as influncias arwak nos Andes, na esteira das proposi-es difusionistas, perdurariam pelo menos at a dcada de 40, com as renovadas ponderaes feitas por Samuel Lothrop (1940).

    3 Veja-se tambm o testemunho do prprio Lowie, que declina em favor de Nordens-kild e Rivet a ideia original do Handbook, remontando-a a 1924 (Lowie, 1959: 125).

    4 Patterson e Lauria-Perricelli (1999) detalham o desenvolvimento e a configurao ins-titucional daquela agenda. Se, durante a dcada de 20, os estudos de pases e culturas estrangeiras, nos Estados Unidos, haviam enfatizado a China e o Japo, por conta do seu interesse comercial, em 1940 criado um Joint Commitee para estudos de Amrica Latina, seguido, no ps-guerra, pela criao de Joint Commitees para o Sudeste Asi-tico e para Estudos Eslavos. Nesse nterim, autoridades do governo reconheceram a importncia dos estudos regionais [area studies] to logo os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra. [...] Em 1943, o Departamento de Defesa [War Department] estabeleceu os estudos de reas e lnguas estrangeiras como parte do Programa Espe-cializado de Treinamento do Exrcito em 55 universidades e instituies superiores. 13.185 homens alistados estavam inscritos nesse programa em dezembro de 1943. As Escolas de Treinamento em Assuntos Civis do Exrcito, estabelecidas mesma poca em 10 universidades, treinaram oficiais para administrar, aps a guerra, os territrios ocupados (Patterson e Lauria-Perricelli, 1999: 221-222, traduo nossa).

    5 As duas cartas que John Murra fez publicar, uma de Steward a Mtraux e a outra de Mtraux a Steward, saram luz em uma edio francesa, sendo indicadas como traduzidas por Murra. No h informao sobre se esta de Mtraux tenha sido escrita originalmente em francs ou em ingls. Murra no menciona o fundo documental de origem. Os papis de Steward se encontram no fundo que leva seu nome, na Universidade de Illinois.

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    281

    6 Ainda que o Handbook no tenha sido o nico, foram poucos os esforos por realizar uma sntese etnolgica da Amrica do Sul. Imediatamente antes dele, Paul Radin (1942) compendiaria o que ele acreditava que fossem os traos culturais mais expres-sivos dos grupos indgenas do subcontinente. Outros autores, como Clark Wissler (1917) e Walter Krickeberg (1946), dedicaram-se a recenses gerais do panorama etnogrfico americano, sem se deter mais criteriosamente na Amrica do Sul e assim, pode-se dizer, fiis escala mais ampla da antropogeografia de Nordens-kild (1912). Trabalhos como esses expressavam o ambiente geral das preocupaes interpretativas, mas apenas um chegou a sintetizar explicitamente um modelo (e especificamente para a Amrica do Sul): o esquema interpretativo clssica e radical-mente difusionista, baseado na teoria dos crculos culturais (Kulturkreise), do padre Wilhelm Schmidt (1913), que nunca havia posto os ps neste lado do Atlntico. Traduzido para o portugus por Srgio Buarque de Hollanda para ser publicado em 1942 como um volume a parte (sob o ttulo Ethnologia Sul-Americana) na conhecida Coleo Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, este trabalho, ao que tudo indica, jamais chegara (ou chegaria) a exercer maior influncia, e o mais significativo manifesto da agenda difusionista ficou sendo o curto artigo (de sete pginas) de 1912 de Nordenskild. Dessa forma, o difusionismo permaneceu apenas como uma agenda implcita, a ponto de um analista como Carlos Fausto chegar a declarar de forma categrica (e, ao que tudo indica, um tanto afoita): o nico modelo geral sobre as sociedades indgenas da Amrica do Sul de que dispomos aquele proposto por Julian Steward no hsai [Handbook of South American Indians] (Fausto, 2005: 11).

    7 Para o debate sobre a herana e lugar do hoje polmico conceito de Mesoamrica, consulte-se o nmero temtico a ele dedicado da revista Dimensin Antropolgica (n. 19, 2000), publicada no Mxico pelo Instituto Nacional de Antropologa e Historia. O contedo dos artigos encontra-se disponvel em: http://www.dimen-sionantropologica.inah.gob.mx/?cat=76

    8 Para alguns, a simples absolutizao do plo da determinao histrica represen-taria a superao definitiva do modelo legado pelo Handbook. Essa parece ser a posio dos defensores da mais recente Cambridge History of the Native Peoples of the Americas (Salomon e Schwartz, 1999). Essa opo pode at ser uma superao do Handbook no que diz respeito ao primado adaptacionista, mas como eventual ou pretendida proposta de modelo etnolgico no d conta da especificidade das lgicas indgenas. E, nesse caso, a mera reificao da causalidade histrica, tal como a adaptao, continuaria operando como um critrio extrnseco e transcendente.

  • 282

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    9 Apesar de Mtraux aproximar-se da macrotipologia de Steward em sua sntese sobre as sociedades indgenas sul-americanas publicada em 1950 (e posteriormente republi-cada em 1982 com o ttulo Les Indiens de lAmrique du Sud) em que faz uso de um esquema de trs grandes reas culturais: Andes (ou civilizao andina); selva tropical; e Araucnia (ou cultura dos caadores e coletores nmades da poro meridional) , essa disposio pode tambm ser lida como tributria de uma gramtica difusionista prvia, que operava segundo conceitos como crculos e estratos. Evidentemente que o impacto das postulaes neoevolucionistas tambm pode ter contribudo para cristalizar essa disposio no esquema de Mtraux. No entanto, a pressuposio de um arranjo evolucionrio que demarcasse fronteiras intransponveis permaneceu como objeto de reticncias, como parece atestar uma de suas ltimas contribuies, publica-da postumamente: O contraste entre a civilizao andina e as culturas dos povos da selva ou das pampas argentinas no foi certamente to forte como se quis sustentar. Estes ltimos, por no haver criado Estados nem fundado cidades, no viviam em completa barbrie (Mtraux, 1965: 343, traduo nossa). J mesmo no Handbook, quando era o caso de se tratar de fenmenos atinentes ao domnio cosmolgico (aquele da mitologia, de que reclamara em sua carta a Steward), o mesmo tipo de advertn-cia incide: Ainda que os elaborados e espetaculares ritos das religies inca e chibcha fossem vistos como muito distanciados das prticas simples dos ndios da selva, h, contudo, muitos elementos comuns (Mtraux, 1949: 575, traduo nossa).

    10 Ainda que lancemos mo dessa terminologia (jural e juralismo), classicamente afeita tradio britnica, para caracterizarmos a sociolgica do Handbook, no cremos estar incorrendo em uma impropriedade lgica. Na realidade, o lugar estratgico da orga-nizao social nesse discurso terico parece ser, sua medida, o contraponto ao que, por ento, se propunha do outro lado do Atlntico. De resto, para uma interpretao cosmolgica do Estado no Andes, vejam-se Ossio (1973) e Cavalcanti-Schiel (2011).

    11 O termo ayllu, do quchua, reporta-se originalmente a famlia e linhagem (no sentido da descendncia a um ancestral comum de carter mtico). Dada a enorme variao de suas manifestaes empricas, , no entanto, difcil defini-lo apenas em termos de parentesco (seja consanguneo, afim ou ritual), no sentido de uma poss-vel tendncia endogmica, como j foi aventado por muitos andinistas. Em termos sociolgicos mais genricos, o que talvez melhor o caracterize seja o intercmbio prescritivo de trabalho entre seus membros, muitas vezes realizado sob a forma de ritos coletivos (ayi e minka), o que determina um espao de relativa interioridade social, a partir do qual se pode ampliar a abrangncia dos intercmbios, ampliando-

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    283

    se igualmente o nvel do ayllu. Em termos simblicos mais abstratos, associada noo de famlia, a idia de ayllu se reportaria ao engendramento de complemen-taridades que tornam possvel a reproduo, como se abordar logo adiante.

    12 Tata: forma de tratamento quchua (literalmente: papai ou senhor) destinada (como forma respeitosa impositiva) aos homens, e que na regio em pauta denota tambm o modo de vestir masculino tradicional por excelncia. Estar de tata significa vestir-se com calzn branco, almilla (camisa) negra, unku (pequeno poncho interior) e poncho.

    13 Os dados etnogrficos extensivos podem ser consultados em Cavalcanti-Schiel (2005).

    14 O discurso catlico dos missionrios espanhis pretendeu criar um terceiro mundo para a teologia nativa, o de cima (janaq pacha), visando abrigar os anjos, santos e as almas dos fiis que, segundo a escatologia crist, no poderiam ter como destino um lugar abaixo, que se confundisse com o inferno. Os indgenas an-dinos usualmente afirmam que tambm suas almas vo para o janaq pacha, mas na funcionalidade simblica da disposio universal das potncias, o janaq pacha simplesmente no tem lugar lgico, e a ambiguidade que toca aos santos catlicos (como divindades protetoras), por serem reconhecidos como potncias do ukhu pacha, permanente. No por acaso, uma das manifestaes coreogrficas mais populares na Bolvia a diablada, em que os danarinos fantasiados de diabos cometem o absurdo teolgico de danar em devoo Virgem Maria.

    15 Pichtaqu ou akaq so os termos quchuas para o que em aymara se usa chamar de kharisiri (ou likichiri). Sua traduo para o espanhol recorre voz com que se designa uma figura que acabou importada pelo folclore peninsular, o sacamantecas. Mais que o sangue, a gordura concebida, nos Andes, como veculo e reserva de vitalidade. So abundantes os relatos etnogrficos sobre esta relao e sobre os circuitos (objetivos ou supostos) pelos quais pode transitar a gordura dos homens e dos animais.

    16 A ttulo de lembrana sinttica: ao recusar a utilidade analtica do conceito de sociedade, reconhecendo-o como uma entidade hipostasiada, Marilyn Strathern (1996) sugere o conceito de socialidade como a matriz relacional (sem forma e sem limites) da convivncia, enquanto a sociabilidade (Strathern, 1988) seria a conformao moral que incide como uma especificao ideal (ou mesmo prescri-tiva) dessa convivncia.

    17 Este intercmbio de esforos no impede que o signo das substncias (gordura, coca, lcool, cinzas, sangue, fumaa de incenso etc.) comparea e sublinhe os intercmbios, basicamente como seu acionador ritual.

  • 284

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    Referncias bibliogrficas

    Acosta, Joseph de[1590] 1998 Historia Natural y Moral de las Indias. Madrid, Ediciones de Cultura Hispnica.

    Amselle, Jean-Loup1990 Logiques mtisses. Anthropologie de lidentit en Afrique et ailleurs. Paris, Payot.

    Browman, David1984 Tiwanaku: Development of interzonal trade and economic expansion in the

    altiplano. In Browman, D; Burger, R. & Rivera, M. (orgs.). Social and Economic Organization in the Prehispanic Andes. Oxford, British Archaeological Reports, pp. 117-125.

    Cavalcanti-Schiel, Ricardo2005 Da relutncia selvagem do pensamento. Memria social nos Andes meridionais. Rio

    de Janeiro, tese, ufrj.2008 Por qu los Tarabuco no son descendientes de los Yampara. Anuario de Estudios

    Bolivianos, Archivsticos y Bibliogrficos del Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia, 14: 99-141.

    2011 Limites turvos, objetos fugidios, identidades inconstantes: as populaes indgenas na etnohistoriografia dos Andes Meridionais. Anos 90, 18 (34): 77-107.

    Clastres, Pierre1974 La socit contre ltat. Paris, Minuit.

    Descola, Philippe1985 De lindien naturalis lindien naturaliste: socits amazoniennes sous le

    regard de lOccident. In Cadoret, A. (org.). Protection de la nature: histoire et ideologie. De la nature lenvironnement. Paris, LHarmattan, pp. 221-235.

    1996 Constructing natures. Symbolic ecology and social practice. In Descola, P. & Plsson, G. (orgs.), Nature and Society. Anthropological perspectives. Londres, Routledge, pp. 82-102.

    2005 Par-del nature et culture. Paris, Gallimard.

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    285

    Duviols, Pierre1978 Un simbolisme andin du double: la lithomorphose de lanctre. In xliime

    Congrs International des Amricanistes (Actes...) vol. iv, Paris, Socit des Am-ricanistes/Fondation Singer-Poulignac, pp. 359-364.

    Fardon, Richard1990 General Introduction. Localizing Strategies: The Regionalization of Ethno-

    graphic Accounts. In ______. (org.), Localizing Strategies: Regional Traditions of Ethnographic Writing. Edinburgh/Washington, Scottish Academic Press/Smithsonian Institution, pp. 1-35.

    Fausto, Carlos2005 Entre o passado e o presente: mil anos de histria indgena no Alto Xingu.

    Revista de Estudos e Pesquisas- Funai, 2 (2): 9-51.

    Goody, Jack1977 The domestication of the savage mind. Cambridge, Cambridge University Press.

    Guffroy, Jean2008 Cultural Boundaries and Crossings: Ecuador and Peru. In Silverman, H. &

    Isbell, W. (orgs.), The Handbook of South American Archaeology. Nova Iorque, Springer, pp. 889-902.

    Heyduk, Daniel1971 Huayrapampa: bolivian highland peasants and the new social order. Ithaca, Cornell

    University.

    Hill, Jonathan & Santos-Granero, Fernando2002 Comparative Arawakan Histories. Rethinking Language Family and Culture Area

    in Amazonia. Urbana, University of Illinois Press.

    Karsten, Rafael1926 The Civilization of the South American Indians. With Special Reference to Magic

    and Religion. Londres, Kegan Paul, Trench, Trubner & Co.

    Kirchhoff, Paul1943 Mesoamrica. Sus lmites geogrficos, composicin tnica y caracteres cultura-

    les. Acta Americana, 1 (1): 92-107.

  • 286

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    1949 The social and political organization of the Andean peoples. In Steward, J. (org.), Handbook of South American Indians vol. 5. Washington, Smithsonian Institution, pp. 293-311.

    Krickeberg, Walter1946 Etnologa de Amrica. Mxico, Fondo de Cultura Econmica.

    Langer, Erick1987 La comercializacin de la cebada en los ayllus y las haciendas de Tarabuco

    (Chuquisaca) a comienzos del siglo xx. In Harris, O.; Larson, B. & Tande-ter, E. (orgs.), La participacin indgena en los mercados surandinos. Estrategias y reproduccin social. Cochabamba, Ceres, pp. 583-601.

    1989 Economic Change and Rural Resistance in Southern Bolivia (1880-1930). Stanford, Stanford University Press.

    Las Casas, Bartolom de[1559 (manuscrito)] 1992 Apologtica Historia Sumaria. Madrid, Alianza.

    Lestage, Franoise1999 Naissance et petite enfance dans les Andes prouviennes. Paris, LHarmattan.

    Lindberg, Christer1999 Editors preface. In Nordenskild, E., The Cultural History of the South

    American Indians. Nova Iorque, ams, pp. xii-xv.

    Lothrop, Samuel1940 South America as seen from Middle America. In Hay, C. et al. (org.), The

    Maya and their neighbors. Nova Iorque, Appleton-Century, pp. 417-429.

    Lowie, Robert1959 Robert H. Lowie, Ethnologist. A Personal Record. Berkeley, University of Califor-

    nia Press.

    Meggers, Betty1954 Environmental Limitations on the Development of Culture. American An-

    thropologist, 56 (4): 801-841.1971 Amazonia: Man and Culture in a Conterfeit Paradise. Chicago, Aldine.

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    287

    Mtraux, Alfred1949 Religion and shamanism. In Steward, J. (org.), Handbook of South American

    Indians vol. 5. Washington, Smithsonian Institution, pp. 559-599.1950 Peux rouges de lAmriques du Sud. Paris, Bourrelier.1965 Sudamericane Indigene Culture. In Enciclopedia Universale dellArte vol. xiii.

    Veneza, Instituto per la Collaborazione Culturale, pp. 343-370.

    Murra, John1992 Correspondance entre J. H. Steward et A. Mtraux, propos du Handbook of

    South American Indians, choisie et traduite par.... In Lecoq, D. (org.), Prsence dAlfred Mtraux. Paris, Acphale, pp. 75-78.

    Nordenskild, Erland1912 Une contribution la connaissance de lanthropogographie de lAmrique.

    Journal de la Socit des amricanistes, ix: 19-25.1913 Urnengrber und Mounds im bolivianischen Flachlande. Baessler-Archiv, 3:

    205-255.

    Nez, Lautaro & Dillehay, Tom1979 Movilidad Giratoria, Armona Social y Desarrollo en los Andes Meridionales:

    Patrones de Trfico e Interaccin Econmica. Antofagasta, Universidad Catlica del Norte.

    Ortelli, Sara1996 La araucanizacin de las pampas: realidad histrica o construccin de los

    etnlogos?. Anuario del iehs, 11: 203-225.

    Ossio, Juan1973 Guaman Poma: Nueva Coronica o Carta al Rey. Un Intento de Aproximacin

    a las Categoras del Pensamiento del Mundo Andino. In ______. (org.). Ideologa Mesinica del Mundo Andino. Lima, Ignacio Prado Pastor, pp. 153-213.

    Patterson, Thomas C. & Lauria-Perricelli, Antonio1999 Julian Steward and the Construction of Area-Studies Research in the United

    States. In Clemmer, R; Myers, L. & Rudden, M. (orgs.), Julian Steward and the Great Basin. The Making of an Anthropologist. Salt Lake City, University of Utah Press, pp. 219-240.

  • 288

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    Radin, Paul1942 Indians of South America. Garden City, Nova Iorque, Doubleday.

    Rivet, Paul1913 Linfluence des civilisations amazoniennes sur le haut plateau andin. Journal

    de la Socit des Amricanistes, x: 543-544.

    Rivet, Paul & Crqui-Montfort, Georges de1918 LOrigine des aborignes du Prou et de la Bolivie. Paris, Auguste Picard.

    Roosevelt, Anna1994 Amazonian anthropology: strategy for a new synthesis In ______. (org.),

    Amazonian Indians from Prehistory to the Present: Anthropological Perspectives. Tucson, University of Arizona Press, pp. 1-29.

    Saignes, Thierry1985 Los Andes Orientales. Historia de un Olvido. Cochabamba, Ceres.[1989] 1993 Borracheras andinas: por qu los indios ebrios hablan en espaol?. In ______.

    (org.), Borrachera y memoria. La experiencia de lo sagrado en los Andes. La Paz, Hisbol, pp. 43-71.

    Salomaa, Ilona2002 Rafael Karsten (1879-1956) as a Finnish scholar of religion. The life and career of

    a man of science. Helsinki, University Press.

    Salomon, Frank & Schwartz, Stuart (orgs.)1999 The Cambridge History of the Native Peoples of the Americas vol. iii (South Amer-

    ica). Cambridge, Cambridge University Press.

    Schmidt, Max1917 Die Aruaken. Ein Beitrag zum Problem der Kulturverbreitung. Leipzig, Veit.

    Schmidt, Wilhelm1913 Kulturkreise und Kulturschichten in Sdamerika. Zeitschrift fr Ethnologie,

    45: 1014-1124.

  • revista de antropologia, so paulo, usp, 2014, v. 57 n 2.

    289

    Schramm, Raimund1993 Fronteras y territorialidad. Reparticin tnica y poltica colonizadora en los

    Charcas (valles de Ayopaya y Mizque). Jahrbuch fr Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamericas, 30 :1-26.

    Seeger, Anthony; Da Matta, Roberto & Viveiros de Castro, Eduardo[1978] 1987 A construo da pessoa nas sociedades indgenas brasileiras. In Oliveira Fo, J.

    (org.), Sociedades Indgenas e Indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro, Marco Zero/Editora da ufrj, pp. 11-29.

    Steward, Julian (org.)1946-1950 Handbook of South American Indians. Washington, Smithsonian Institution.

    Steward, Julian 1949 South American cultures: An interpretative summary, In ______. (org.),

    Handbook of South American Indians vol. 5. Washington, Smithsonian Institu-tion, pp. 669-768.

    Strathern, Marilyn1988 The gender of the gift. Problems with Women and Problems with Society in Mela-

    nesia. Berkeley, University of California Press.1996 The concept of society is theoretically obsolete. In Ingold, T. (org.). Key

    Debates in Anthropology. Londres, Routledge, pp. 60-66.

    Torero, Alfredo2002 Idiomas de los Andes. Lingstica e historia. Lima, Institut Franais dtudes

    Andines/Horizonte.

    Uhle, Max1909 La esfera de influencias del pas de los Incas. Revista Histrica, iv: 5-40.

    Viveiros de Castro, Eduardo1996 Images of Nature and Society in Amazonian Ethnology. Annual Review of

    Anthropology, 25: 179-200.2002 Perspectivismo e multinaturalismo na Amrica Indgena. In ______. A in-

    constncia da alma selvagem. So Paulo, Cosac & Naify, pp. 345-399.

  • 290

    Ricardo Cavalcanti-Schiel. Para alm de terras altas e terras baixas...

    Yapu, Mario & Torrico, Casandra2003 Escuelas primarias y formacin docente en tiempos de Reforma Educativa, tomo i.

    La Paz, pieb.

    Weismantel, Mary1998 Viachina: Hacer guaguas en Zumbagua, Ecuador. In Arnold, D. (org.),

    Gente de carne y hueso. Las tramas de parentesco en los Andes. La Paz, ilca, pp. 83-96.

    Wissler, Clark[1917] 1938 The American Indian. An Interpretation to the Anthropology of the New World.

    Nova Iorque, Oxford University Press.

    Beyond highlands and lowlands: Models and typologies in South American ethnology

    ABSTRACT: This article tries to question the manner and the conceptual tools by which the modern ethnology managed to establish the division between highlands and lowlands in South America, ethnographical fields recognized as different by nature. This division here is fundamentally seen as an outcome of a specific analytical frame. A change of ethnological model could dissolve frontiers presumed as natural, for example between Andes and Amazonia. In this sense, and from a specific ethnographic case, this paper suggests, at least in a synthetic and preliminary way, an approximation of those two regions. This is only possible taking an opposite theoretical perspective from that other that established the continental great divide.

    KEYWORS: South american ethnology, ethnological models, cultural areas, Andes, Amazonia, history of anthropology.

    Recebido em junho de 2013. Aceito em junho de 2014.