albert camus no brasil

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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: http://www.researchgate.net/publication/279198417 Albert Camus no Brasil ARTICLE · DECEMBER 2013 READS 74 1 AUTHOR: Ivo Carneiro de Sousa City University of Macau 231 PUBLICATIONS 2 CITATIONS SEE PROFILE Available from: Ivo Carneiro de Sousa Retrieved on: 13 November 2015

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Artigo sobre a viagem de Camus no Brasil em 1949, escrito em portugues de portugal, para a Universidade de Macau (china)

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AlbertCamusnoBrasil

ARTICLE·DECEMBER2013

READS

74

1AUTHOR:

IvoCarneirodeSousa

CityUniversityofMacau

231PUBLICATIONS2CITATIONS

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Availablefrom:IvoCarneirodeSousa

Retrievedon:13November2015

Page 2: Albert Camus no Brasil

Nasceu em 1913, em Mondovi, hoje Dré-an, na Argélia, de pai francês, morto em 1914 na batalha do Marne, e de mãe de origem espan-hola: Albert Camus transformou-se no mais conhecido, lido e discutido pied noir (como se chamavam os franceses ar-gelinos), agora revis-itado em ano de cen-tenário, celebrado mais intensamente em França, mas com ecos um pouco por todo o mundo culto e em mais fugazes memórias mediáti-cas, distribuídas en-tre evocações de circunstância mui-tas e alguns ensaios bem mais sérios. A sua biografia é sobe-jamente conhecida, vivida na infância em Argel com dificul-dades, estudante li-ceal graças ao apoio do seu professor primário, Louis Ger-main, e estudante universitário mercê do apoio de um dos seus mestres de Liceu, Jean Grenier. Por Argel, licenciou-se em Filosofia, escreveu uma tese equivalente a mes-trado sobre Plotino e concluiu uma dissertação de dou-toramento sobre Santo Agostinho. Estaria fadado para uma carreira aca-démica, não fosse a tuberculose que, desde 1930, o fragilizou para sempre. Em 1935, adere ao Partido Comunista, mas rapidamente se incompatibiliza com as suas posições face ao problema argeli-no que, muito mais tarde, durante a guer-ra que estala desde 1954, vai dividir Camus mais profundamente. Por 1939, o

lusofoniasnº 21 | 02 de Dezembro de 2013

Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO:Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS:• O Rio de Janeiro: encanto,favelas, macumba e muita paciência• No Recife: bumba-meu-boi• S. Salvador da Bahia:barroco e candomblé• De São Paulo a Iguape• A Romaria do Bom Jesus de Iguape• Porto Alegre: cidade feia, EricoVeríssimo e a decadência europeia• A Pedra que Cresce• Epílogo em actualidade

Dia 10 de Dezembro:A Claridade

de Cabo Verde

APOIO:

Albert Camusno Brasil

Page 3: Albert Camus no Brasil

II Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS

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LUSOFONIAS - SUPLEMENTO DE CULTURA E REFLEXÃO

lusofonias

Nasceu em 1913, em Mondovi, hoje Dréan, na Argélia, de pai francês, morto em 1914

na batalha do Marne, e de mãe de origem es-panhola: Albert Camus transformou-se no mais conhecido, lido e discutido pied noir (como se chamavam os franceses argelinos), agora revisi-tado em ano de centenário, celebrado mais in-tensamente em França, mas com ecos um pouco por todo o mundo culto e em mais fugazes me-mórias mediáticas, distribuídas entre evocações de circunstância muitas e alguns ensaios bem mais sérios.

A sua biografia é sobejamente conhecida, vivida na infância em Argel com dificuldades, estudante liceal graças ao apoio do seu professor primário, Louis Germain, e estudante universitário mercê do apoio de um dos seus mestres de Liceu, Jean Grenier. Por Argel, licenciou-se em Filosofia, es-creveu uma tese equivalente a mestrado sobre Plotino e concluiu uma dissertação de doutora-mento sobre Santo Agostinho. Estaria fadado para uma carreira académica, não fosse a tuberculose que, desde 1930, o fragilizou para sempre. Em

1935, adere ao Partido Comunista, mas rapida-mente se incompatibiliza com as suas posições face ao problema argelino que, muito mais tar-de, durante a guerra que estala desde 1954, vai dividir Camus mais profundamente. Por 1939, o jornal em que trabalhava, o Soir Republicain, é fechado por ordens do prefeito de Argel.

Instala-se sem a família em Paris, em 1940, sendo secretário de redacção no Paris-Soir, mas a invasão alemã obriga o jornal a transferir-se para Lyon e Camus a colaborar com a Resistência. Seguem-se os seus mais conhecidos livros: O Mito de Sisifo e O Estrangeiro publicam-se em 1942, A Peste sai em 1947, e as suas encenações Calígula, escrito em 1938, estreado em 1945, e O Malen-tendido que chega aos palcos ainda em 1944.

Em 1948, a sua independência polémica ma-nifesta-se inteligente com um texto intitulado Ni Victimes ni Bourreaux, condenando toda e qualquer legitimação do assassinato, mesmo em nome de uma melhor sociedade futura, o que foi muito mal recebido entre os comunistas e várias outras esquerdas francesas. Em rigor, a polémica

transportava já muitos dos argumentos da sua famosa ruptura com Sartre, em 1952, até en-tão assíduo companheiro de trago e tertúlias nas noites do Saint-Germain.

Continuou a publicar intensamente, destacan-do-se em 1951 o muito célebre e corajoso O Ho-mem Revoltado e, em 1956, a edição do roman-ce A Queda. Morreu estupidamente cedo, com as chuvas de Janeiro, em 1960, num acidente de automóvel em Yvonne, perto de Sens. Camus ocupava o tristemente célebre «lugar do mor-to», tendo morte imediata quando o automóvel conduzido pelo seu editor e amigo, Michel Galli-mard, se espatifou violento contra um plátano. Datas, títulos e eventos mais do que conhecidos.

Alimentando mais uma vez essas irritantes classificações em que a sua escrita complexa se vaza nessa repetida ideia de filosofia do absurdo em que Camus não se revia, criticando, como escreveu, “a fúria contemporânea de confundir o escritor com o seu tema, que não é sensível a esta liberdade relativa do escritor. E assim nos tornamos profeta do absurdo”.

Albert Camusno Brasil

Ivo Carneiro de Sousa

A visitA Ao BrAsil em 1949

Muito menos lembrada é a visita de Albert Camus, em 1949, ao

Brasil. País que o continua a ler e a discutir, sendo muitas as conferên-cias, exposições, cursos e seminá-rios que este ano se espalham por universidades brasileiras, centros de investigação e bibliotecas. Contras-tando com Portugal, onde passadas as ocasionais necrologias de cente-nário nos principais meios de comu-nicação, pouco ficará. A minha gera-ção, que chegou à Universidade logo depois do 25 de Abril de 1974, já não lia e muito pouco conhecia de Ca-mus, mais frequentado nas décadas de 1950 e 1960 quando os seus livros eram lidos em Portugal entre paixão

e saudável provocação.No Brasil, a editora Record, deten-

tora dos direitos de Albert Camus, anunciava recentemente várias reedições dos seus livros, esclare-cendo também ter já comercializa-do cerca de 290 mil exemplares dos 11 títulos do autor traduzidos em português do seu catálogo. Neste volume estimável de vendas, mais de 115 mil cópias devem-se, como seria de esperar, a O Estrangeiro, a que se seguem os apreciáveis 55 mil exemplares de A Peste. A bra-sileira viagem de Camus talvez não seja estranha a estes números num país que o consagrou com nomes de praças, ruas e até uma alameda

no parque da Gruta do Senhor, em Iguape, a cidade do Bom Jesus no litoral paulista.

A viagem de Camus à América do Sul foi decidida em Janeiro de 1949 pelo governo francês como parte de um programa de estreitamento das relações culturais com o Brasil, o Uruguai, a Argentina e o Chile. No princípio do Verão europeu, Camus embarcou no cargueiro Campana para atravessar o Atlântico. A via-gem foi extremamente desagradá-vel para o escritor que, nesta al-tura, preparava aquele célebre O Homem Revoltado. Foi anotando diariamente a sua demorada tra-vessia transatlântica, escrevendo

desesperado: “Por duas vezes, ideia de suicídio. A segunda vez, sempre olhando o mar, uma terrível quei-madura me vem à têmpora. Creio que agora eu compreendo como al-guém se mata”. Na verdade, passou parte da travessia febril, cansando--se com facilidade, pelo que as suas anotações convocam mesmo essa sua muito discutida metafísica em que declarava grave: “o suicídio é a única questão filosófica séria”. Apesar de tudo, sobreviveu às pro-vações da viagem, organizou ra-zoavelmente o seu Diário e chegou mesmo ao Rio de Janeiro. Doente, muito fatigado, mas genuinamente interessado.

Page 4: Albert Camus no Brasil

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 III

o rio de JAneiro: encAnto, fAvelAs,mAcumBA e muitA pAciênciA

O Campana que transporta este já muito cansado Albert Camus

chega ao Rio de Janeiro a 15 de Julho de 1949. Esta marítima che-gada, em nevoenta madrugada, à singular baía de Guanabara, apare-ce finamente descrita no seu Diário de Viagem com rigor, admiração, as palavras mais do que certas: “Às quatro da manhã, um estardalhaço no convés superior me desperta. Saio. Ainda está escuro. Mas a cos-ta está muito próxima: serras ne-gras e regulares, muito recortadas, mas os recortes são redondos – ve-lhos perfis de uma das mais velhas terras do globo. Ao longe, luzes. Seguimos o litoral, enquanto a noi-te clareia, a água mal estremece, fazemos uma grande manobra e as luzes agora estão diante de nós, mas longínquas. Volto para o meu camarote. Quando torno a subir, já estamos na baía, imensa, um pouco fumegante no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas. A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o ‘Pão de Açúcar’, com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das montanhas, que parecem esma-gar a cidade, um imenso e lamen-tável Cristo luminoso. À medida que nasce a luz, vê-se melhor a ci-dade, espremida entre o mar e as montanhas, estendida no compri-mento, interminavelmente estira-da. No centro, prédios enormes. A cada instante, um ronco acima de nós: um avião descola no dia nas-cente, confundindo-se, de início, com a terra, elevando-se depois em direcção a nós, passando por cima de nossas cabeças. Estamos no meio da baía e as montanhas, à nossa volta, fazem um círculo qua-se perfeito. Finalmente, uma luz mais sanguínea anuncia o raiar do sol, que surge por trás das monta-nhas a leste, em frente à cidade, e começa a subir, num céu pálido e fresco. A riqueza e a sumptuosida-de das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma vez mais. Um instante depois, as cores parecem as mesmas, mas é o cartão-postal. A natureza tem horror dos milagres longos demais.”

Ao desembarcar, Camus é rece-bido por uma jovem secretária da embaixada francesa que designa simplesmente no seu diário por M. (como grande parte das outras pessoas que foi conhecendo e, com muita frequência, detestando…), mais um jornalista que conhece-ra em Paris, “muito simpático”, à frente de uma sortida legião de repórteres brasileiros em busca da francesa celebridade. É convidado a escolher entre alojar-se na em-

baixada francesa (o Rio foi capital do Brasil de 1763 a 1960), quase completamente deserta à noite, e um palacete carioca. O escritor foge da “sale gueulle du palace” e agradece por encontrar um quarto simples na residência diplomática totalmente vazia de noctívagos lo-catários.

Interrogado pelos muitos jornalis-tas sobre o que primeiro queria co-nhecer no Brasil, Camus pede que o levassem a assistir a uma partida de futebol. Solicitação que não ve-ria satisfeita, mas remetendo para essa juventude em que parece ter sido um muito bom guarda-redes da selecção universitária da então Ar-gélia francesa, desportiva vocação definitivamente perdida por essa tuberculose que cedo o atacou, perseguiu e deixou marcas terríveis para toda a sua vida. Fascinava-o o amor brasileiro pelo futebol que queria compreender e escrever. Em rigor, o futebol sempre o fascinou e chegou mesmo a escrever sole-ne: “O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, devo ao futebol”.

A partida de futebol não assis-tiu e, a 16 de Julho, mal dormido e adoentado, Camus foi visitar o carioca Country Club, assistindo à apresentação de vários barcos de

Guerra, “um deles, que parece da-tar de há muito, chama-se Terror do Mundo”. Encontra-se, em segui-da, com um grupo de actores ne-gros que querem montar a sua peça Calígula. Salta para um encontro organizado pela sua Embaixada em que lhe são apresentados vários in-telectuais brasileiros que não fixou e algumas outras inteligências es-trangeiras que lamentou como “um filósofo polaco do qual o céu, se for bom, me preservará”.

O pior, porém, estava ainda para vir: “quando eu acho que tudo aca-bou, Mme. M. anuncia-me que eu jantarei com um poeta brasileiro. Eu não digo nada, prometendo a mim mesmo cortar tudo que não é indispensável a partir de amanhã. E resigno-me. Mas eu não esperava a provação que devia seguir-se. O poeta chega, enorme, indolente, os olhos enrugados, a boca caída. De quando em quando, inquieta-ções, uma brusca agitação, logo ele se mexe na sua poltrona e res-folega um pouco. Levanta-se, dá voltas, retorna à poltrona. Fala de Bernanos, Mauriac, Brisson, Halé-vy. Conhece todo o mundo, apa-rentemente. Foram maus para com ele. Ele não faz política franco--brasileira, mas criou uma fábrica de adubos com franceses. Aliás,

não o condecoraram. Condecora-ram todos os inimigos da França neste país. Mas não ele. etc., etc.”

O poeta brasileiro em questão é Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), mistura de empresário, co-merciante, autor de uma poesia grandiloquente que se queria mo-dernista, mais livreiro, jornalista e intelectual católico. Com o poeta está outra personagem que Camus refere apenas como um señorito, assim mesmo em castelhano. Pers-pectiva-se apavoradamente um jantar. O nosso escritor mobiliza de imediato um biólogo francês que lhe tinha sido apresentado pela embaixada, Letarguet, “furiosa-mente simpático”.

Neste arranjado quarteto, toma solene a palavra o tal señorito “semelhante a esses que passea-vam com cães erguidos sobre as patas na Calle Major em Palma de Mallorca, antes de irem assistir como connaisseurs às execuções de 36”. O señorito pontifica, “decide tudo, eu devo ver isto, fazer aqui-lo, o Brasil é um país onde a única coisa que se faz é trabalhar, não existem viciados, aliás não se tem tempo, trabalha-se, trabalha-se, e Bernanos lhe dizia, e Bernanos criou neste país um estilo de vida, ah: nós amamos a França”.

Partem para jantar na noite ca-rioca: “no carro, peço para não irmos jantar num restaurante de luxo. E o poeta emerge de seus 150 quilos e me diz, um dedo ergui-do: Não existe luxo no Brasil. Nós somos pobres, miseráveis, baten-do afectuosamente nas costas do chauffeur engalanado que dirigia o seu enorme Chrysler. Tendo o poe-ta falado, suspira dolorosamente e volta ao seu nicho de carne, onde se põe distraidamente um dos seus complexos. O señorito mostra-nos o Rio, que está na mesma latitude de Madagascar e é mais belo que Tananarive”.

Chegam os quatro a um restau-rante “iluminado tão brutalmente a neon que temos o ar de peixes pálidos evoluindo numa água ir-real”. O señorito quer obrigar Ca-mus a comer camarões, o que ele recusa, explicando que já conhece tal prato, muito comum na Argélia. Depois, “com a ajuda do cansaço, vem-me uma cólera tola e já afas-to a minha cadeira para retirar--me. Uma gentil intervenção de Letarget e também a simpatia que sinto, apesar de tudo, por esse curioso personagem-poeta, retêm--me e faço um grande esforço para acalmar-me. ‘Ah’, diz o poeta, chupando os dedos, ‘é preciso mui-

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Page 5: Albert Camus no Brasil

IV Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIAS

Aos vários eventos vividos com dificuldade no Rio segue-se a viagem para a capital

de Pernambuco: “positivamente, gosto de Recife, Florença dos Trópicos, entre as suas florestas de coqueiros, as suas montanhas vermelhas, as suas praias brancas”.

Apesar de febril, Camus continuava a ano-tar cuidadosamente no seu diário caderno estas suas impressões de viagens sobre estes vários pedaços brasileiros em que, entre con-ferências, homenagens, encontros e muitos jantares, se sentia um estranho, o estran-geiro, como, afinal, nos outros sítios do mundo por onde passou atento mas quase sempre dividido entre cansaço, en-fado e várias depressões.

Pe r m a n e -ceu apenas dois dias em Pernambuco. Saiu do avião por volta das 13h do dia 21 de Julho de 1949. Consti-pado, torna--se um refém do calor. Recebido por três franceses, percebe que todos têm mais de 1,80 m de altura: “Estamos bem representa-dos”, regista no seu diário, com essa ironia seca que marcava com frequência a sua es-crita exemplar. Levado para o Grande Hotel, no centro do Recife, não consegue descansar. Quatro horas depois, é arrastado para uma visita à cidade. Aníbal Fernandes, o director de redacção do Diário de Pernambuco, “o mais antigo jornal da América do Sul”, diri-ge o selecto grupo que arrasta Camus para o Centro Histórico do Recife, ali entre os bair-ros de Santo António e São José. O já muito consagrado escritor francês aprecia as “igre-jas coloniais admiráveis”, as “ruas calçadas com grandes pedras pontiagudas”, recorda a Capela Dourada e o Pátio de São Pedro, igreja que está “completamente escurecida pela fumaça dos torrefactores. Está literal-mente patinada de café”.

Depois de jantar no hotel, Camus ofere-ce uma conferência na vetusta Faculdade de Direito do Recife, reunindo uma centena de pessoas “que, ao saírem, têm um ar de muito cansadas”. O que não era de admirar já que, seguindo o camusiano diário da sua viagem pelo Brasil, os intelectuais locais fi-zeram tantos e tão demorados discursos que o nosso escritor nem sequer tirou do bolso a palestra previamente preparada, sublinhan-do que aquelas distintas personalidades ti-nham falado tudo por ele.

No dia seguinte, mesmo com mais febre e definitivamente com gripe, Camus espera no hotel “por três intelectuais que fazem ques-tão de me ver. Dois simpáticos”. É levado a Olinda, admirando sinceramente o Conven-to de São Francisco. Depois de um almoço na casa do cônsul francês, passeia à beira--mar na Boa Viagem, deslumbrando-se com as florestas de coqueiros e as tradicionais embarcações de pesca. Pelas 17h, participa

numa mesa-redonda na Associação Cultural Franco-Brasileira, actividade que confessa ter aguentado “graças a dois uísques”.

Na sua última noite no Recife, Albert Camus é o convidado de honra de um espectáculo de bumba-meu-boi, fixado no seu Diário de via-gem como “macumba-chique”. Uma rápida página de apontamentos apresenta o festivo evento como um “balett grotesco dançado por máscaras e figuras totémicas, sobre um tema que é sempre o mesmo: a matança de um boi”, depois gozando com a saudação

que recebeu no final: “Viva o señor Camus e os cem reis do Oriente!”. Cerca das 23h, regressa ao hotel, vol-tando a ter dificuldades em dormir e descansar. No dia seguinte, pelas 9h da manhã, segue para Salvador da Bahia.

A 23 de Ju-lho, depois da partida de Ca-mus, o Diário

de Pernambuco consagra-se destacadamen-te a relatar em pormenor a festa do bumba--meu-boi oferecida ao escritor francês, em peça intitulada Um espectáculo tipicamente popular para Albert Camus. Fica-se a saber que o agitado serão ocorreu no pátio de di-versões da Cerâmica de Apipucos, proprie-dade do empresário Baby Salgado, esclare-cendo-se que o bumba-meu-boi “constitui sempre um espectáculo divertido para um estrangeiro de gosto e que ame o que se chama povo”. O que, a acreditar na repor-tagem, muito terá impressionado Camus que repetia constantemente: “é extraordinário, é inesquecível”, depois demonstrando mes-mo intelectual interesse em recolher biblio-grafia sobre o bumba-meu-boi que não terá sequer esgotado o sarau, continuado com o Xangô de Pai Apolinário. Seguindo a elogiosa peça do jornal, “Camus ficou particularmen-te impressionado com todo aquele espectá-culo tipicamente popular e disse que levava de tudo uma recordação inesquecível. Veio ao Brasil para isso mesmo. Não veio para ver avenidas nem arranha-céus, nem hotéis de luxo”, concluía o muito antigo e probo Diá-rio de Pernambuco.

O que o jornal se esqueceu de escrever foi que o muito popular e folclórico espectácu-lo oferecido no Recife em honra de Albert Camus tinha sido sugerido por essa figura maior em que nos habituámos a ler o fami-gerado luso-tropicalismo: Gilberto Freyre, o mais do que célebre autor de Casa-Grande & Senzala, obra editada em 1933, cumprem-se oitenta anos. Freyre telegrafou propositada-mente do Rio de Janeiro a um amigo pedindo que convocasse o pintor Lula Cardoso Aires, o poeta Ascenso Ferreira e o seu pupilo Ed-son Nery da Fonseca para acompanharem a gaulesa celebridade: “Preparem um bom maracatu, que Camus gosta disso, ele não é muito académico”.

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no recife: BumBA-meu-Boita paciência com o Brasil, muita paciência.’ Digo apenas, como única vingança, que a mim não parecia ter-me falta-do paciência até agora. Apesar de tudo, o resto da refei-ção passa-se com calma, se bem que o poeta e o señorito não parem de fazer apartes em português, nos quais julgo compreender que reclamam um pouco de mim. Além disso, essa grosseria, essa falta de modos, se expõe de forma tão natural que se torna amável.” E assim termina este primei-ro dia de Albert Camus no Brasil.

O 16 de Julho é mais sossegado e, após um passeio de lancha na Guanabara, Camus conhece Murilo Mendes (1901-1975), por quem sentiu grande afinidade, descrevendo-o como “poeta e doente” (era, como ele próprio, um ex-tu-berculoso...), personalidade de “espírito fino e resistente, um dos dois ou três que realmente me chamaram a atenção aqui.” À noite, assiste a um espectáculo de macumba em Caxias, a uns quarenta quilómetros do Rio. Camus interessa--se pelo ritual evento, mas fatigado escreve no seu Diário de Viagem: “São duas horas da manhã. O calor, a poeira e a fu-maça dos cigarros, o odor humano, tornam o ar irrespirável. Eu saio, cambaleante, e enfim respiro com delícia o ar fres-co. Eu amo a noite e o céu, mais que os deuses dos homens”.

Nos dias seguintes, o muito solicitado escritor francês vai também descobrindo as contradições e as misérias profun-das apunhalando o coração do Rio: visita as favelas. Es-creve sentidamente no seu Diário: “o contraste mais cho-cante é dado pela ostentação do luxo dos palácios e dos edifícios modernos com as favelas, às vezes a cem metros do luxo, espécie de bidonvilles encravadas no flanco das colinas, sem água nem luz, onde vive uma população mise-rável, negra e branca. As mulheres vão buscar água ao pé das colinas, onde elas fazem fila, e trazem a sua provisão em latas que carregam sobre a cabeça como as mulheres cabilas. Enquanto elas esperam, passam à sua frente, em fila ininterrupta, os monstros niquelados e silenciosos da indústria automobilística norte-americana. Jamais luxo e miséria me pareceram tão insolentemente misturados. É verdade que, segundo um de meus companheiros, eles se divertem muito, pelo menos. Lástima e cinismo. B., o úni-co generoso, me levará às favelas que conhece muito bem: Fui repórter policial e comunista, diz ele. Duas boas condi-ções para conhecer os bairros da miséria”.

Em contraste com estes muitos jantares, sucessivos en-contros e conferências sem fim que o vão progressivamente cansando e tornando ainda mais adoentado, Camus desta-cou com indisfarçável felicidade o seu encontro com o gran-de poeta e vulto nacional que era então Manuel Bandeira (1886-1968) – “pequeno homem extremamente fino” – em serão mais do que animado por Dorival Caymmi, designado no seu Diário de Viagem simplesmente por Kaimi. Visitando estas páginas de memórias, o escritor francês recordava que “depois do jantar, Kaimi, um negro que compõe e es-creve todos os sambas que o país canta, vem cantar com o seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar e o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam e vê-se um negro, um deputado, um professor da Faculdade e um tabelião cantarem esses sambas em coro, com uma graça muito natural. Totalmente seduzido.”

Sedução mútua também entre os dois homens que tinham vivido o mesmo drama da tuberculose.

Em 1960, ao receber a mortal notícia do acidente que tinha ceifado a vida de Camus, Manuel Bandeira escreve com delicada humanidade sobre essa noite vivida entre saboroso demorado jantar, conversa sem fim e a música singular de Dorival Caimmi nesse Rio de Janeiro dos idos de 1949: “Por aí fomos num papo sem nenhuma formalidade, falamos da nossa doença, falamos de muitas outras coisas e ele acabou dando-me o seu telefone privado em Paris para que eu o procurasse quando fosse à França. Durante todo o tempo que o ouvi, senti-me à vontade e encantado. Surpreso. Não havia naquele homem vestígio dessa perso-nagem odiosa que é a celebridade itinerante. Não parecia um homem de letras. Era um homem da rua, um simples homem, dando a outro homem um pouco da sua substân-cia espiritual, simplesmente humana. Senti vontade de ser seu amigo. Quando, um ano depois, estive em Paris, quis procurá-lo. Ele estava ausente. Agora, o desastre. Deixo nestas pobres linhas a minha saudade do homem Camus, tão simples, tão simpático, tão despretensioso na sua gló-ria mundial”.

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Page 6: Albert Camus no Brasil

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 V

numa mesa-redonda na Associação Cultural Franco-Brasileira, actividade que confessa ter aguentado “graças a dois uísques”.

Na sua última noite no Recife, Albert Camus é o convidado de honra de um espectáculo de bumba-meu-boi, fixado no seu Diário de via-gem como “macumba-chique”. Uma rápida página de apontamentos apresenta o festivo evento como um “balett grotesco dançado por máscaras e figuras totémicas, sobre um tema que é sempre o mesmo: a matança de um boi”, depois gozando com a saudação

que recebeu no final: “Viva o señor Camus e os cem reis do Oriente!”. Cerca das 23h, regressa ao hotel, vol-tando a ter dificuldades em dormir e descansar. No dia seguinte, pelas 9h da manhã, segue para Salvador da Bahia.

A 23 de Ju-lho, depois da partida de Ca-mus, o Diário

de Pernambuco consagra-se destacadamen-te a relatar em pormenor a festa do bumba--meu-boi oferecida ao escritor francês, em peça intitulada Um espectáculo tipicamente popular para Albert Camus. Fica-se a saber que o agitado serão ocorreu no pátio de di-versões da Cerâmica de Apipucos, proprie-dade do empresário Baby Salgado, esclare-cendo-se que o bumba-meu-boi “constitui sempre um espectáculo divertido para um estrangeiro de gosto e que ame o que se chama povo”. O que, a acreditar na repor-tagem, muito terá impressionado Camus que repetia constantemente: “é extraordinário, é inesquecível”, depois demonstrando mes-mo intelectual interesse em recolher biblio-grafia sobre o bumba-meu-boi que não terá sequer esgotado o sarau, continuado com o Xangô de Pai Apolinário. Seguindo a elogiosa peça do jornal, “Camus ficou particularmen-te impressionado com todo aquele espectá-culo tipicamente popular e disse que levava de tudo uma recordação inesquecível. Veio ao Brasil para isso mesmo. Não veio para ver avenidas nem arranha-céus, nem hotéis de luxo”, concluía o muito antigo e probo Diá-rio de Pernambuco.

O que o jornal se esqueceu de escrever foi que o muito popular e folclórico espectácu-lo oferecido no Recife em honra de Albert Camus tinha sido sugerido por essa figura maior em que nos habituámos a ler o fami-gerado luso-tropicalismo: Gilberto Freyre, o mais do que célebre autor de Casa-Grande & Senzala, obra editada em 1933, cumprem-se oitenta anos. Freyre telegrafou propositada-mente do Rio de Janeiro a um amigo pedindo que convocasse o pintor Lula Cardoso Aires, o poeta Ascenso Ferreira e o seu pupilo Ed-son Nery da Fonseca para acompanharem a gaulesa celebridade: “Preparem um bom maracatu, que Camus gosta disso, ele não é muito académico”.

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no recife: BumBA-meu-Boi s. sAlvAdor dA BAhiA: BArroco e cAndomBlé

Segue num sábado do Recife para S. Salvador da Bahia, escrevendo nas suas diárias páginas de viagem que na antiga cidade “não se vê senão

negros, parece-me uma imensa casbah, fervilhante, miserável, suja e bela”. Encanta-se depressa. Gosta mais da baía de Salvador, avistada do seu quarto de hotel, do que da de Guanabara, “muito espetacular para o meu gosto”. Explica sobre a baía que baptiza a primeira capital do Brasil colonial: “esta, pelo menos, tem uma medida e uma poesia”. Almoça no porto, onde “comemos pratos suficientemente apimentados para fazer paralíticos se moverem”. Visita as igrejas de Salvador, mas acha serem exactamente as mesmas que havia encontrado no Recife: “um barroco harmonioso que se repete muito”. Enfada-se, por isso, chegando a es-crever que a arte do barroco brasileiro é mesmo a única coisa a ser vista no Brasil, mas que se vê depressa. À noite, mais uma conferência em Universidade.

No domingo, 24 de Julho, visita Itapoã, encontrando um grupo de cineas-tas franceses a rodar um documentário. Pela noite dentro, assiste a um inevitável baiano candomblé, fascinando-se por uma negra enorme: “Ela

usa um chapéu azul de caçadora, de aba dobrada, com plumas de mosque-teiro, um vestido verde e tem na mão um arco verde e amarelo munido da sua flecha, na ponta da qual está cravado um pássaro multicor. O belo rosto adormecido reflecte uma melancolia parelha e inocente. Esta Diana negra é de uma graça infinita. E quando ela dança, esta graça extraordiná-ria não se desmente”. Apesar da admiração sincera pela Bahia, acaba por se interrogar no seu Diário: “Será que sinto vontade de passar alguns anos no Brasil?”. A resposta é tão clara como definitiva: “Não”.

Infelizmente, a gripe e a febre agravam-se durante a baiana visita. Ca-mus regressa ao Rio de Janeiro, registando perturbado no seu Diário viver um “sentimento insuportável de caminhar passo a passo rumo a uma catástrofe que destruirá tudo em torno a mim e em mim”. Mesmo assim, consegue reunir forças suficientes para assistir à encenação de um acto de Calígula representado por esse grupo de actores negros que tinha já conhecido. Veste-se abafadamente como se estivesse em dia do mais frio Inverno do norte da Europa. Assistido, medicado, vai-se recuperando, conseguindo cumprir a viagem prevista a São Paulo.

de são pAulo A iguApe

Albert Camus chega a 2 de Agosto de 1949 a São Paulo, por esta altura já o grande centro

económico e industrial do Brasil, mais fervente cidade de vários modernismos e vanguardas cul-turais. Descreve a enorme metrópole com brevi-dade: “cidade estranha, Oran desmedida”.

Muito mais curiosamente, o seu primeiro pau-lista dia é largamente ocupado com uma curio-sa visita à penitenciária estadual para conhecer e falar com o célebre Gino Amleto Meneghetti (1878-1976) que, nascido em Pisa, mas radicado no Brasil, ficaria conhecido como gato do telhado para ganhar fama de “maior ladrão da América do Sul”, lenda cantada em muitas exageradas proezas de folclórico arrombador, evasor célebre e gatuno quase romântico.

No dia seguinte, é heroicamente recebido por Oswald de Andrade com uma feijoada antropofá-gica e muita conversa sobre a antropofagia como visão do mundo, assim recordando o seu famoso Manifesto Antropófago, pubicado em 1928, com que o poeta da paulista Semana de Arte Moderna de 1922 tinha agitado os meios intelectuais brasi-leiros, excitando as hostes do nascente modernis-mo. Segue-se uma inevitável conferência, desta vez no Instituto de Educação Caetano Campos, aberta por Andrade com um discurso sobre “O Tempo dos Assassinos”. A oswaldiana apresen-tação não se distancia, porém, desses lugares--comuns que, entre absurdo e existencialismo, foram perseguindo a representação da obra com-plexa de Camus: “Sendo o mais vivo dos escrito-res, sois um amigo da morte. Sendo o mais claro dos filósofos, sois um técnico do absurdo. Não se trata pois de Flaubert interessando-se pelos car-tagineses, mas do africano que se apoderou como um mestre do espírito ocidental”.

A 7 de Agosto, o muito lido Estado de São Pau-lo publica um extenso artigo de Roland Corbi-sier sobre a passagem de Camus pela cidade. O texto cita Hegel, Aristóteles, Politzer e, muito mais abundantemente, Sartre. As referências à obra camusiana são esparsas. A comparação e paralelo com Sartre tornaram-se mesmo recor-rentes em encontros, conferências e nas per-guntas das entrevistas para os jornais brasilei-ros. Significativamente, na entrevista colectiva concedida à maior parte dos grandes jornais de São Paulo, logo na sua chegada à cidade, inter-rogado com insistência sobre o existencialismo, Camus responde com exemplar lacónico desin-

teresse: “Data de Santo Agostinho”.Apesar destas irritações, o escritor francês apre-

ciou o convívio com Oswald de Andrade. Aceita mesmo o seu original convite para se deslocar a Iguape, entre 5 e 7 de Agosto, para assistir às plu-risseculares festas do Bom Jesus. Forma-se uma comitiva que soma a Camus e Oswald de Andrade, o seu filho Rudá de Andrade e Paul Silvestre, o adido cultural da Embaixada de França. A viagem de cerca de 175 km faz-se de automóvel e de-mora mais de dez horas, um “verdadeiro progra-ma de índio”, regista no seu Diário. O motorista, designado ironicamente por Camus de Augusto Comte, não conhece nem o caminho nem muito menos sabe de “positivista” mecânica. O carro avaria, mas são salvos por um camião. Almoçam pela Piedade, uma “pequena aldeia sem graça”, demorando-se à volta de uma “refeição brasilei-ra, que não acaba mais, e que passa graças à pin-ga.” Consertado o automóvel, retomam a viagem, mas Augusto Comte engana-se nas direcções e ul-trapassam o destino em mais de 60 quilómetros, obrigando a mais três horas de viagem. Passam por Registro, anotando Camus no seu Diário que a cidade era uma “verdadeira capital japonesa no meio do Brasil, onde tive tempo de ver casas de decoração frágil, e até mesmo um quimono”.

Chegam, finalmente, a Iguape no começo da

madrugada, debaixo de chuva. Mesmo cansado da viagem, Camus sublinha no seu Diário a acolhedo-ra hospitalidade das autoridades locais: “Obser-vo, mais uma vez, a refinada polidez brasileira, talvez um pouco cerimoniosa, mas que, mesmo assim, é melhor que a grosseria europeia.” O es-critor francês nunca viria a saber que o Prefeito de Iguape tinha dado ordens precisas para que se mantivesse o fornecimento de energia eléctrica toda a noite quando, habitualmente, era desliga-do às 22 horas.

Camus e a sua comitiva são hospedados no hos-pital “Feliz Lembrança”, nos arredores, já que todos os hotéis e casas estavam mais do que es-gotados com os muitos romeiros que, nestes últi-mos anos, chegam a uns 200 mil, decuplicando a população da cidade balneária que é agora Igua-pe. Camus sente-se confortável no seu quarto de hospital, mas não deixa de protestar no seu Diário contra os roncos sonoros e os espirros de Augusto Comte que embaraçam o seu sono. Antes, ainda tivera tempo de escrever no livro de honra do ve-lho hospital, hoje em ruínas: “Ao Hospital Feliz Lembrança que traz tão bem o seu nome, com a homenagem calorosa a este Brasil que aboliu a pena de morte e a esta Iguape onde a gente compreende esse gesto.” Segue-se, pela manhã, a famosa romaria do Bom Jesus.

Ao lAdo de linA Bo BArdi, AlBert cAmus come feiJoAdA nA cAsA de oswAld de AndrAde, em 1949

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VI Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIASlusofonias

A romAriA do Bom Jesus de iguApe

Todos os anos, de 28 de Julho a 6 de Agosto, com regularidade plurissecular, a grande fes-

ta do Bom Jesus transforma a sossegada cidade balnear de Iguape, no litoral sul de São Paulo, em terra de centenas de milhares de romeiros e turistas, comércio abundante e agitação mui-ta. O popular festival, mesclando devidamente, como sempre convém, as manifestações mais devotas ao mais desgarrado profano, escora--se numa antiga legenda piedosa, difundida ao longo do século XVIII. Textos hagiográficos con-tando a milagrosa descoberta por dois índios, em 1647, na praia de Una, na Jureia, de uma imagem de Jesus perdida no alto mar por uma embarcação portuguesa aflita em meio de te-nebroso temporal. Ao transportarem a imagem, os dois perceberam rapidamente que se tornava mais leve quando se dirigiam para Iguape e mui-to mais pesada noutras direcções. Para Iguape seguiram. Nos arrabaldes da antiga vila, funda-da ainda em 1538, lavaram cuidadosamente o vulto na água de uma fonte que brotava de um rochedo. Limpa, a imagem seguiu para a igreja de Nossa Senhora das Neves, a padroeira da vila. Mobilizados pelo sacro evento, muitas pessoas passaram a frequentar a fonte e a retirarem pe-daços de pedra do seu rochedo, acreditando nos seus poderes milagrosos. Os pedaços foram sen-

do continuadamente retirados, mas a pedra con-tinuava do mesmo tamanho. A milagrosa imagem transformou-se em Bom Jesus e nova basílica a acolheu no centro de Iguape, solenemente inau-gurada em 1856.

O rochedo da fonte foi-se transformando em gruta, recebeu uma pequena capela abobadada, conhecida por Gruta do Senhor, convidando os fiéis a descer uma escadaria para chegarem à pedra milagrosa. Em torno da gruta construiu-se um parque arborizado, veio o lago com patos e parcas, mais um tanque agora transformado em conveniente piscina pública. A alameda que leva

peregrinos e turistas à gruta recebeu o nome de Albert Camus. O escritor não viu ainda, nes-se ano de 1949, os muitos moleques diligentes, munidos de um martelo, oferecendo aos muitos fiéis a sua ajuda para retirarem do fundo cada vez mais longínquo da gruta um pedaço da mi-lagrosa rocha. Em algumas horas, fazem umas centenas de reais que os ajudam depois ao lon-go de uma vida mais difícil à espera da romaria do ano seguinte.

Camus acompanhou fascinado durante três dias as festas do Bom Jesus de Iguape. Observou com atenção, escreveu apontamentos porme-norizados, tirou fotografias, falou com muitos populares, perdeu-se frequentemente na multi-dão, entre as muitas vendas e tendas improvisa-das por avenidas e ruelas. A experiência, regis-tada cuidadosamente no seu Diário de Viagem, estaria ainda na origem do último dos seis contos reunidos em O Exílio e o Reino, obra publicada em 1957 quando foi muito justamente agraciado com o Prémio Nobel da Literatura. Intitulado A Pedra que Cresce, o brasileiro conto haveria de aguardar oito anos para ser concluído. É que, passados os três dias de romaria no Bom Jesus de Iguape, Camus ainda tinha algumas outras canseiras finais para cumprir por terras brasilei-ras mais austrais.

(...)Camus acompanhoufascinado durantetrês dias as festas

do Bom Jesus de Iguape(...)

porto Alegre: cidAde feiA,erico veríssimo e A decAdênciA europeiA

Assim, passadas estas aventuras peregrinas de Iguape, segue-se

a 9 de Agosto mais uma viagem can-sativa, desta vez rumo a esse outro Brasil que se encontra nas grandes paragens do Sul em torno de Porto Alegre e muito mais além. A viagem de avião causa-lhe uma crise res-piratória e Camus sente-se sufocar. Escreve, por isso, muito a desgosto sobre a cidade: “A luz é linda. A cidade feia. Apesar dos seus cin-co rios. Tais ilhotas de civilização são geralmente horrorosas”. Visi-ta Porto Alegre quase contrariado e praticamente nada o encanta e interessa.

Segue-se, como seria de adivi-nhar, a inevitável conferência noc-turna. A muito longa saudação é feita em francês pelo gaúcho e já muito famoso romancista que era Erico Veríssimo, começando não sem vaidade por explicar ter sido escolhido para saudar e introduzir Camus por ter “as mãos sujas do sangue inocente de muitas línguas, pois, não contente de torturar a minha desde a época em que co-mecei a escrever romances, ainda assassinei a de Shakespeare duran-te dois anos, ao correr das diversas conferências que fiz nos Estados Unidos”.

Vaidades à parte, o escritor bra-sileiro disserta longamente sobre

esse livro tão genial como terrível que continua a ser A Peste, obra maior em que Albert Camus mergu-lha fundo nas contradições de uma cidade exilada nela própria devido à pestilência, depois dividindo-se entre pessoas cada vez mais iso-ladas, desesperadas, capazes de tudo. Qualquer coisa que nos lem-bra estes muitos desastres naturais em que, neste nosso tempo de me-diático voyeurismo e alterações cli-máticas, desfilam gentes perdidas sem nada que pilham, se afrontam, exploram a desgraça, rapidamente perdendo miseráveis as referências mais primárias da condição huma-na. Erico Veríssimo disserta com se-riedade sobre o camusiano título: “Nós também temos consciência de viver instantes trágicos numa cidade bloqueada por todos os la-dos, onde grassa a peste e onde os

homens de responsabilidade fazem causa comum com ela. As forças das trevas e da ignorância estão em liberdade. Exactamente como o vosso admirável Rieux, sabemos que cada um de nós traz consigo a peste, que deste mal ninguém está isento, e que nós devemos estar sempre vigilantes, a fim de que o sopro de nossa respiração no ros-to de outrem não o contamine; e que o resto — saúde, integridade, pureza — é um produto da vontade humana, de uma vigilância que não deve fraquejar; e que, finalmente, como existem na terra pestilências e vítimas, de modo algum devemos prestar ajuda às pestilências”.

Preparado com esses vários tex-tos que tinha escrito com anteriori-dade, Camus decide apresentar pa-lestra ainda mais demorada, quase de duas horas, em que fala drama-

ticamente sobre “A Europa e o Cri-me”. Segue-se uma muito militante acusação da decadência europeia e da pobreza das suas ideologias, um outro tema que parece significati-vamente carregado de actualidade.

No Instituto de Belas-Artes de Por-to Alegre, o grande escritor francês recordava que muitas pessoas dis-persas pelos diferentes continentes se voltavam preocupadamente para a Europa, interrogando-se sobre o seu futuro convencidas de que o desespero europeu seria o fim dos valores indispensáveis da dignida-de humana. Recusando qualquer profecia, Camus procura entender a enfermidade de uma Europa que “vivia em desgraça”, multiplicando a morte de uma forma inteiramen-te nova: “Caim assassinava Abel em nome da lógica e imediatamente pedia a Legião de Honra. Pior ain-da, em vários países europeus, os carrascos estavam instalados nas poltronas ministeriais, substituin-do simplesmente o machado pelo tinteiro”. A Europa estava enferma do crime e da abstracção. Uma en-fermidade terrível que só poderia ser debelada através de uma revol-ta sem a qual o mundo seria domi-nado por povos infantis que ririam sentados sobre as suas máquinas. Impunha-se uma revolta como re-cusa de dominação e tentativa de

dA esq. pArA A dtA.: mArques reBelo, cArlos reverBel, dAnte de lAytAno, guilhermino cesAr,AlBert cAmus e erico veríssimo, JeAn roche, moysés vellinho, mAnuelito de ornellAs e décio souzA

Page 8: Albert Camus no Brasil

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 VIIlusofonias

diminuir a dor dos homens. Ficcionalmente, contou depois a história de um adolescen-te francês que, sob a repressiva ameaça de um polícia alemão, repetia que nenhuma ideia merecia que alguém morresse por ela. O que imediatamente significava também reconhecer rigorosamente a existência de algumas ideias pelas quais era possível con-sentir dar a vida. Essas ideias eram muito superiores à existência de um indivíduo por-que absoluta e anteriormente necessárias à dignidade do homem: a liberdade, a justiça, a luta contra a inveja, contra a mentira e contra a violência. Camus concluiria a sua gaúcha conferência destacando que se, por infelicidade, o escritor fracassasse na sua generosa missão de espalhar essas ideias, seria melhor enganar-se sem matar ninguém do que ter razão no meio do silêncio e das tumbas.

No dia seguinte, Camus voltou a passear durante a manhã por Porto Alegre sem gran-de mobilização e cada vez mais doente. Às 14 horas, subiu para o avião que o levou a Montevideu, capital visitada tão rápida e desinteressadamente como Buenos Aires e Santiago do Chile. Regressaria cansado, muito mais doente, ao Rio de Janeiro, con-valescendo ao longo de dez sofridos dias en-tre médicos, consultas, medicação vária.

Escreve alguns apontamentos gerais sobre a terra e as gentes brasileiras. Alguns, bre-ves e quase triviais, irritam-se com o tráfi-co nas grandes metrópoles brasileiras: “Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar.” Noutros apontamentos, melhor pensados, reflecte-se a própria ideia de Brasil: “um país em que as estações se confundem umas com as outras; onde a vegetação inextrincá-vel torna-se disforme; onde os sangues mis-turam-se a tal ponto que a alma perdeu os seus limites.” Ainda noutros registos, muito mais graves, Camus procura perceber os pro-blemas e desafios brasileiros: “O Brasil com a sua delgada estrutura moderna plantada sobre este imenso continente formigante de forças naturais e primitivas faz-me pensar num edifício, roído cada vez mais por invi-síveis térmitas. Um dia o edifício desmoro-nará e um povo inteiro, formigante, negro, vermelho e amarelo se espalhará sobre a superfície do continente, mascarado e mu-nido de lanças para a dança da vitória”.

A 31 de Agosto deixa o Brasil. Continua doente e a sofrer terrivelmente. O último registo escrito no seu Diário parece quase fatal: “Doente. Bronquite, no mínimo. Tele-fonam para avisar que partimos esta tarde. Faz um dia radioso. Médico. Penicilina. A viagem termina num caixão metálico, entre um médico louco e um diplomata, em direc-ção a Paris.”

Felizmente, a policromia cultural que faz o Brasil ficou inscrita inspiradoramente em Camus quando, em 1957, publica finalmen-te a encerrar O Reino e o Exílio, esse conto quase brasileiro a que chamou La Pierre qui pousse. Esta Pedra que Cresce (alguns aca-démicos preferem traduzir mais exactamen-te como A Pedra que Brota..., não é que haja muita diferença) volta convenientemente a Iguape e à imensa festa do Bom Jesus que, assim, parece ter permitido ao escritor fran-cês vislumbrar alguns dos principais dialécti-cos paradigmas das identidades culturais do Brasil: festa e revolta, carnaval e fé, tradi-ção e modernidade entre crenças vetustas e alegrias explosivas, apesar da pobreza e da miséria muita que ainda marcava o grande país americano no final da década de 1940.

A pedrAque cresceEm grande parte das muitas biografias

e sumários da obra de Albert Camus, agora tão generosamente disponíveis em ano de centenário por muitos internéti-cos sítios, é quase normativo reduzir, não sem simplismo e muito desconhecimen-to, a sua fama literária a dois romances – O Estrangeiro e A Peste – a outros dois ensaios – O Mito de Sísifo e O Homem Re-voltado – e a uma sublime peça teatral – Calígula. Assim desaparecem outros títu-los fundamentais, dezenas de textos de opinião importantes, mais polémicas es-critas e pensadas com elevada inteligên-cia. Esquece-se o contista genial que foi também Camus e essa muito marginaliza-da arte do conto breve que, felizmente, neste nosso ano de 2013, consagrou com o Prémio Nobel da Literatura as muita ricas e esquecidas letras canadianas na pessoa da escritora Alice Munro, nascida em 1931 nesse Canadá que Camus tam-bém visitou em 1946. Os seis contos reu-nidos e editados em 1957 por Albert Ca-mus, o ano dessa sua Nobel consagração, no volume intitulado L’exil et le Royaume (O Exílio e o Reino) contam-se entre as melhores composições do século XX nes-te género difícil e exigente. Dedicados à sua mulher, Francine, os contos pensam o reino como a consciência e tratam o exí-lio como o indivíduo amordaçado ao seu destino e embaraçado pelos desafios do devir existencial. As intrigas espalham--se por cenários europeus, africanos e, o último conto, A Pedra que Cresce, já sabemos que regressa inspirado oito anos mais tarde ao Brasil.

O conto organiza-se rápido em cinco momentos consecutivos. A abrir, um engenhei-ro francês, D’Arrast, acompanhado pelo seu motorista Sócrates, dirige-se com dificuldade para Iguape onde tinha sido contratado para construir um dique. Chega tarde, noite dentro, no preciso dia em que se inauguram as festas do Bom Jesus. Num segundo momento narrati-vo, ao acordar cansado de manhã, o nosso en-genheiro observa detalhadamente o velho edi-fício em que está hospedado: um hospital com duas fileiras de camas, paredes recentemente caiadas de marrom e branco, com crostas ama-relas até ao tecto. É o cenário do Hospital da Boa Lembrança que havia recebido em 1949 Al-bert Camus. D’Arras é calorosamente acolhido pelas autoridades locais, mas sente a hostilida-de dos habitantes mais pobres quando visita os seus tegúrios próximo de um rio que inundava frequentemente as suas casas. O projectado dique destinava-se a resolver este problema. Num terceiro apartado textual, o engenheiro encontra-se com Sócrates que, no jardim da Fonte, lhe apresenta um negro pobre, nomea-do simplesmente “o cozinheiro”. Este solicita a ajuda de D’Arras para conseguir cumprir a sua promessa ao Bom Jesus, transportando à cabeça uma pedra pesada de 50 quilos, voto de agradecimento pela sua salvação durante um trágico naufrágio. Num quarto desenvolvimen-to, nas vésperas da grande procissão do Bom Jesus, o cozinheiro convida D’Arras a assistir aos preparativos festivos numa grande casa do quarteirão mais pobre da cidade, assistindo a celebrações em que Camus convoca os seus apontamentos vividos nas festas de candomblé

em Caxias e na Bahia. No último andamento narrativo, no dia seguinte, D’Arras participa na procissão ao lado do cozinheiro que, exte-nuado, deixa cair a pesada pedra da sua pro-messa. O engenheiro levanta-a e carrega-a às suas costas até à casa pobre do cozinheiro. É, finalmente, aceite e acarinhado sem reservas pela população local.

Com esta estrutura, o conto parece ofere-cer leitura evidente: o conflito estabelece-se entre o protagonista, o estrangeiro e a pobre população local, mesmo quando o objectivo da sua chegada era o de dirigir a construção de um dique capaz de salvar as casas das zo-nas baixas da cidade das recorrentes cheias fluviais; acaba, contudo, por se fazer aceitar ao ajudar o pobre cozinheiro negro a pagar a sua promessa de transportar a pesada pe-dra. Assim se concretiza para o protagonis-ta a passagem do exílio a um reino: o nosso estrangeiro engenheiro vivia perturbado uma sofrida solidão existencial, como Meursault nessa obra-prima que é O Estrangeiro, mas descobre a ajuda, a solidariedade e o amor entre os mais pobres, tema prefigurando o enredo do derradeiro e inacabado romance de Albert Camus, O Primeiro Homem, publi-cado pela sua filha apenas em 1994. O conto está mais do que pejado dos lugares da me-mória da camusiana visita em 1949 a Iguape e a outros espaços do Brasil, restando saber em que medida o destino de D’Arras reflecte os exílios interiores e o pensamento mais pro-fundo de Camus na sua singela feliz conclusi-va aceitação no reino dos pobres.

Page 9: Albert Camus no Brasil

VIII Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2013 • LUSOFONIASlusofonias

Em 1949, quarenta e oito dias depois de sua chegada ao Brasil, Albert Camus vol-

ta finalmente a Paris para se sentir defini-tivamente em casa. Chega, contudo, doen-te, novamente atacado pela tuberculose. É forçado a passar vários meses num sanató-rio em Cabris, perto de Grasses, e a seguir nos Vosges. A partir daqui, decide passar a recusar todos os convites para viagens ao estrangeiro, incluindo as muito generosas condições que lhe eram oferecidas para realizar um ciclo de conferências no Japão. Viria a abrir apenas duas excepções para vi-sitar dois países que amava especialmente: a Itália e a Grécia. De resto, repugnavam--lhe cada vez mais as conferências públicas, as recepções, homenagens e, sobretudo, mundanidades. Encerrou-se na sua escrita.

O seu Diário de Viagem, reunindo as im-pressões das viagens pelas duas Américas, do Norte e do Sul, espaçadas três anos, foi provavelmente arranjado, reescrito, con-cluído com delonga tanto como muitas ve-zes interrompido. Aparece publicado postu-mamente em França apenas em 1978 como Journaux de voyage compilados por Fran-cine Camus, a sua filha, e anotados Roger Quilliot. A sua brasileira editora, a Record, traduziu com esmerado cuidado e publicou este Diário de Viagem em 1997, agora ree-ditado em ano de centenário.

Ao lado de O Exílio e o Reino, também várias vezes reeditado pela grande edito-

ra do Brasil, seria uma pena que o público leitor em língua portuguesa não voltasse a ler ou a descobrir esse Albert Camus can-sado, doente, mesmo assim curioso, in-teligente e tantas vezes fascinado pelas terras e gentes brasileiras. O que ele es-creveu não são apenas memórias ou sim-ples apontamentos de viagens. É do nosso mundo de hoje que verdadeiramente se trata com quase desconcertante actuali-dade e realidade. Assim é no texto que se segue, muitas décadas antes da invenção dos BRICS, da cooperação Sul-Sul, dos paí-ses emergentes e dessas muitas outras eti-quetas com que continuamos a julgar viver num mundo novo. Desengano. Leia-se (não é mesmo mais um texto sobre a globali-zação…) esta prosa final do seu Diário de Viagens: “Mais rápido vai o avião e menos importância têm a França, a Espanha, a Itália. Elas eram nações, ei-las províncias, e amanhã, vilarejos do mundo. O futuro não está em nós e nós não podemos nada contra este movimento irresistível. A Ale-manha perdeu a guerra porque era uma nação e porque a guerra moderna exige os meios dos impérios. Amanhã, serão neces-sários os meios de continentes. E eis os dois grandes impérios lançados à conquis-ta do seu continente. Que fazer? A única esperança é que uma nova cultura nasça e que a América do Sul talvez ajude a equi-librar a estupidez mecânica”.

Epílogoem actualidade