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O andarilho

O andarilho

Em dez dias, 19 compromissos, duas palestras, quatro cidades, sete aeroportos, seis avies, dois continentes e dez mil quilmetros: a vida do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso longe do poder

porJoo Moreira Salles

Plim! Fernando Henrique Cardoso girou a cadeira e se aproximou do computador: "Vejamos se algo importante". No eraLFALuis Felipe AbreuA abertura d a tnica do inventrio de desimportncias que compem parte da ideia do trabalho. Iniciar a reportagem com a descrio de algo assumidamente intil constitui uma radicalidade na ideia de punctum narrativo.. Ao trmino de sua temporada anual na Universidade Brown, no minsculo estado de RhodeIsland, ao norte de Nova York, as mensagens que chegavam pelo correio eletrnico eram todas meio sem graa: questes administrativas, pedidos de alunos para agendamentos de ltima hora. O ex-presidente pelejava por mudar o horrio de seu vo para Little Rock, a capital do Arkansas, onde teria de estar dentro de dois dias. Fernando Henrique se via s voltas com o mundo bizantino dos e-tickets e suas infinitas alternativas. "Estou mal acostumado, as pessoas tomam conta de mimLFALuis Felipe AbreuTrao biografemtico, revelando uma outra faceta da persona conhecida de FHC. Junto frase de abertura, constitui o primeiro indcio de que a reportagem buscar entender o ex-presidente a partir de uma perspectiva no biogrfica.. No Brasil, so praticamente babs", resignava-se, arrastando sem muita desenvoltura o mouse.

Era um tedioso dia de inverno, com largos intervalos de inatividade. Ainda assim, sua agenda indicava quatro compromissos: entrevista a um jornal da Flrida, duas conversas com alunos e jantar com o embaixador chins nos Estados Unidos. FHC e os EUA no formam uma parceria ideal. A Amrica, para ele, como a madrinha excntrica, que prov - convive-se com ela mais por necessidade que por gosto. Naquele dia, o ex-presidente se queixava dos hbitos alimentares de seus anfitries: "Essa coisa de comer com as mos, eu no sei fazer isso. E eles gostam de conversar enquanto comem sanduche. Eu digo no: ou eu falo, ou eu comoLFALuis Felipe AbreuOpinies como essa apareceram ao longo da matria, reforando certo desprezo de FHC pelo americano mdio e reafirmando sua postura aristocrtica Prncipe dos socilogos".

s 11 em ponto, trs pessoas entraram na sala. No que soubesse do que se tratava. Seu modus operandi simples: as pessoas ligam, ele marca e seja o que Deus quiser. Atende a todos com inegvel pacincia. "Sou professor atlarge, o que significa que posso fazer o que eu quiser". Ele se levantou abotoando o palet azul-marinho. Havia trazido dois ternos para a temporada americana - o outro, de risca de giz -, comprados por 400 dlares cada na liquidao da loja de departamentos SacksFifthAvenue ("timo negcio", congratulou-se)LFALuis Felipe AbreuA sovinice do ex-presidente outro trao biografemtico, inesperado, que vez ou outra irrompe no texto.. " uma entrevista?", perguntou ao ver um gravador. A jornalista se apresentou: Jane Bussey, do Miami Herald. "Ela j ganhou um Pulitzer", acrescentou a moa que a acompanhava, meio a troco de nada. "Ah", FHC sorriu educadamente.

Durante a prxima meia hora, respondeu com entusiasmo a perguntas triviais, dando jornalista a impresso de que suas perguntas eram melhores do que pareciam. Comunica-se com facilidade, apesar dos esbarres no idioma. Ainda segue - e no abdicou de influenciar - a poltica no Brasil, mas longe do pas suas preocupaes so outras. Amrica Latina, poder do sistema financeiro internacional e destino da democracia esto entre elas. Quando a jornalista chegou ao tema Hugo Chvez, FHC reagiu: "Vocs perguntam sobre a democracia na Amrica Latina, mas a questo maior o que acontecer com a democracia americana. Marx e Tocqueville eram fascinados pela democracia de vocs, pela participao das pessoas na vida pblica. Hoje estranhariam muito. H uma grande mudana em curso. A fora do sistema financeiro to grande, que acaba por transformar a essncia do sistema. Como as corporaes se integraro a essa democracia?LFALuis Felipe AbreuO texto tambm aborda a recusa de FHC em aceitar o rtulo de neoliberal, registrado a negao deste s interpretaes de que o presidente leiloou o pas para o capital privado." Ele havia lido no Wall Street Journal daquele dia uma notcia que o impressionara: a tentativa de um grupo de investidores de tomar o controle acionrio do New York Times das mos da famlia Sulzberger, proprietria do jornal h mais de setenta anos. " um perigo", reclamou com a jornalista, que j guardava o gravador e agradecia.

Em tempos de rebulio poltico na Amrica Latina, pedem-lhe cada vez mais que opine sobre Chvez. Lula deixou de ter graa nas universidades americanas. "Ele perdeu pontos quando decidiu ser sensato. A sensatez no apaixona. Lula no quebra, Chvez quebra. Esse pessoal de esquerda gosta dos nietzschianos. Lula cartesiano - a seu modo, pelo menos. Est sempre do lado do senso comum."

Plim! "Vejamos", disse, virando-se de novo na cadeira. Era a confirmao de que o vo para Little Rock havia sido remarcado. Percebeu que teria de acordar s 5 e meia da manh, o que de imediato o fez voltar aos desencontros com os Estados Unidos. "Ainda bem que aqui eu durmo cedo", disse. "No clube em que fico hospedado, o jantar servido das 17 s 20 horas. Mas me disseram que, se for muito necessrio, podem fazer uma concesso." Permitem-lhe jantar depois das 8? "No", esclarece com desalento. "Antes das 5."

Ao meio-dia, um rapaz apareceu na porta. De esguelha, FHC deu uma espiada na agenda. Daniel Ferrante, paulista, 30 anos, desde 2 000 nos Estados Unidos, doutor em fsica por Brown e agora aluno do ps-doutorado. Tinha hora marcada. "Como posso te ajudar?", perguntou o ex-presidente, indicando-lhe a mesa redonda. Ferrante se ajeitou na cadeira e, em voz baixa, disse: "Presidente, eu quero voltar. Ento a minha pergunta : existe um projeto de nao no Brasil?"

Fernando Henrique est instalado na sala 218 da Rhodes Suite, no Thomas J. Watson Jr. Institute for InternationalStudies. uma sala confortvel e impessoal: bancada para o computador, mesa redonda para reunies, duas fileiras de estantes repletas de journals de estudos latino-americanos, dezenas de exemplares do mesmo nmero. FHC guarda seus livros, no mais de vinte, na prateleira sobre o computador, ao alcance da mo. LFALuis Felipe AbreuTrao biografemtico tambm recorrente: senso prtico, adquirido pelo alto volume de viagens e residncias.Uma grande janela d para a rua. Brown significa honorrios. "Quando deixei a presidncia, fiquei assustado e me perguntei: como vou sobreviver?"

Alguns meses antes de terminar o segundo mandato, Fernando Henrique convidou um grupo de empresrios para jantar no Alvorada, explicou-lhes que pensava criar uma fundao nos moldes das bibliotecas presidenciais americanas - conservaria ali toda a sua documentao presidencial e promoveria palestras e debates sobre o futuro do pas - e pediu contribuies. Do encontro nasceu o Instituto Fernando Henrique Cardoso, com dotao inicial de 7 milhes de reais, sua base de operaes no Brasil.

Fora do pas, o ex-presidente firmou um contrato de cinco anos com a Universidade Brown. "Eles me pagam um dinheiro, 70 mil dlares por ano, com a obrigao de eu passar no mnimo quatro semanas aqui. Tirando os impostos, d uns 5 mil por ms. Faz as contas, muito bom. Antes recebi um convite de Harvard, no aceitei. Brown me pagava o dobro. A Ruth ficou indignada: 'Mas Harvard!' Eu disse: 'Ruth, a essa altura do campeonato, eu no preciso de glrias. Preciso de dinheiro'. Nem sabia que dava pra ganhar esse dinheiro todo com uma palestra s. Fiquei cliente do Harry Walker, o mesmo agente do Clinton. Em mdia, me oferecem 40 mil dlares; ele fica com 20%. Minha vantagem que eu me viro em quatro lnguas, trs delas muito bem. Em Praga, uma vez, como ns ramos um grupo de palestrantes, no cheguei a falar nem vinte minutos - pagaram 60 mil dlares. O Clinton chega a ganhar 150 mil."

Fernando Henrique est vontade no mundo. Itamar Franco no se deu bem em Roma e voltou para Juiz de Fora. Jos Sarney foi at o Amap para poder retornar ao Senado. Collor passou anos em Miami, voltou a Macei e agora est de novo em Braslia. Com FHC, h sempre a suspeita de que suas afinidades eletivas estejam mais ligadas a Paris ou Madri que a So Paulo ou GoiniaUdWUsurio do WindowsEsprito cosmopolita ou desprezo pelo pas? A oposio se encontra por todo o texto, como trao biografemtico. Fora do pas, ele tem prestgio em crculos acadmicos e entre ex-governantes. No Brasil, tem influncia, mas no poder. Segundo ele, o poder se mede pela quantidade de votos futuros e, por essa conta, seu cacife nenhum. "Meu tempo passou. Queriam que eu concorresse ao governo de So Paulo. Eu disse: a eu ganho e no dia seguinte tem rebelio em presdio e prefeito querendo encontro. O Senado igual. Aquela convivncia muito desinteressante. Chega." Fala com convico, parece sincero: depois de trocar idias com Chirac e Clinton, deve ser meio desanimadora a perspectiva de puxar conversa com Epitcio Cafeteira.

Por que, ento, no se estabelecer no exterior? "Ainda me interesso pelo Brasil. uma espcie de disciplina intelectual. Vivo bem em qualquer lugar, mas essa coisa de ser brasileiro quase uma obrigao." A palavra forte. Significa, na lgica de FHC, comprometer-se com um pas que continuar a ser medocreUdWUsurio do WindowsMias um trao da relao amarga com o pas: "Que ningum se engane: o Brasil isso mesmo que est a. A sade melhorou, a educao tambm e aos poucos a infra-estrutura se acertar. Mas no vai haver espetculo do crescimento algum, nada que se compare ndia ou China. Continuaremos nessa falta de entusiasmo, nesse desnimo".

"Qual a tua rea?", pergunta a Daniel Ferrante. "Fsica terica, partculas elementares, altas energias..." "Mas isso est muito fora de moda!", interrompe-o o ex-presidente: "Houve um avano tremendo no campo da fsica de partculas, mas faz tempo". Imediatamente d meia-volta: "Eu entendo nada de fsica, mas fui vizinho do Mario Schenberg". Se a conversa fosse um jogo de xadrez, esse primeiro lance levaria o nome de abertura FHCUdWUsurio do WindowsO texto promove uma classificao das estratgias discursivas de FHC, o identificado como um orador inteligente, que busca dominar pela retrica: primeiro movimento, impressionar o interlocutor; segundo movimento, desarmar-se em seguida, quando a primeira impresso j est sedimentada. Ferrante sorriu: " verdade, no momento a minha a rea no a mais popular". O ex-presidente se acomodou na cadeira e passou a responder. Falou sem nenhuma pompa. (Ferrante descreveria o encontro como uma "conversa de cozinha" que lhe trouxe "a sensao de paz interior".)

"Um projeto de nao...", FHC comeou. "A pergunta pressupe que exista um centro decisrio, algum que planeja. No h mais. O Brasil um dos ltimos pases a ter Ministrio do Planejamento; na Amrica Latina, acabaram todos. um dos efeitos do neoliberalismo. Dito isso, acho que tem lugar para voc l. Agora, voc vai ganhar pouco..."

No o que inquieta Ferrante: "Emprego eu consigo", diz o rapaz. "O senhor me perdoa, mas existe o projeto da UniLula, em So Bernardo, eu podia ir pra l. E sei que vou ganhar pouco. Minha pergunta outra: existe curiosidade no Brasil? Existe desejo de cincia?" Ele hesita antes de completar: " que eu sinto essa obrigao de devolver. Minha idia criar um frum de discusso na internet, uma rede de divulgao cientfica para a comunidade lusfona. Quero tornar o conhecimento acessvel a mais gente. possvel, ou eu vou morrer na praia?"

"No precisa morrer na praia, no. Mas repito: falta centro." Fernando Henrique se aproxima de um dos temas que mais o tm ocupado, o da desintegrao nacionalUdWUsurio do WindowsA reportagem intercala descries de traos de personalidade prosaicos e resumo das principais ideias intelectuais de FHC, em um jogo entre traos biografemticos e a estrutura jornalstica/biogrfica instituda: "Quais so as instituies que do coeso a uma sociedade? Famlia, religio, partidos, escola. No Brasil, tudo isso fracassou. Na Amrica Latina, em certos lugares, 50% das crianas no tm pai, a famlia se dissolveu. A religio preponderante a catlica, que vive uma crise danada depois que decidiu se lanar na poltica. As igrejas pentecostais so a prpria expresso da fragmentao. Os partidos fracassaram. O ltimo deles foi o PT, que cumpria um papel importante como aglutinador de entusiasmo. No meu governo, universalizamos o acesso escola, mas pra qu? O que se ensina ali um desastre. A nica coisa que organiza o Brasil hoje o mercado, e isso dramtico. O neoliberalismo venceu. Ao contrrio do que pensam, contra a minha vontade".

Meses antes, o ex-presidente j abordara o tema: "Em que momento nos sentimos uma coisa s, uma nao? Talvez s no futebol. O Carnaval uma celebrao. A parada de 7 de Setembro uma palhaada. Quem se sente irmanado no Brasil? O Exrcito, e talvez s ele. Os americanos tm os seus foundingfathers. Pode ser uma bobagem, mas organiza a sociedade. A Frana tem os ideais da Revoluo. O Brasil no tem nada. Eu disse para os homens de imaginao, para o Nizan Guanaes: olha, a imaginao do povo igual estrutura do mito do Lvi-Strauss, ou seja, binria: existem o bem e o mal. Eu fui eleito presidente da Repblica porque fiz o bem - no caso, o real. O real j est a, eu disse. Chega uma hora em que a fora dele acaba. O que vamos oferecer no lugar? Ningum soube me dar essa resposta. Eu tambm no soube encontr-la". E, oscilando entre Lvi-Strauss e Nizan Guanaes, Fernando Henrique encerrou o assunto.

Daniel Ferrante agradeceu a conversa, embora tivesse sado da sala sem uma resposta clara. Meses depois, cumprindo seu plano original, estendeu a temporada nos Estados Unidos por mais um ano. Ainda no sabe quando volta para o Brasil e o que o espera aqui.

Providence, uma cidade pequena, ostenta como sua maior faanha gastronmica o recorde de lojas de donuts dos Estados Unidos. Fernando Henrique costuma almoar nas ruas adjacentes ao campus. Ao sair do Watson Institute, caminha dois quarteires e entra no restaurante Spice, tailands. O cardpio traz fotografias dos pratos, todos a menos de 10 dlares. "Aqui pelo menos eu como um arrozinho com frango que lembra um pouco a comida do BrasilUdWUsurio do WindowsSe a posio intelectual de contrariedade ao pas, outros traos descritos, como o apego ao arroz, mostram a complexidade destes exlios", disse ao pedir.

Fernando Collor fizera dias antes seu primeiro discurso no Senado. Durante mais de trs horas, comparara seu calvrio ao de D. Pedro I, D. Pedro II, Getlio Vargas e Joo Goulart, classificando de "grande farsa" o processo que o tirara da Presidncia. Os parlamentares, quase sem exceo, se solidarizaram com o senador, Tasso Jereissati entre eles. A reao impressionou Fernando Henrique. "Li que o Collor sequer pagou os impostos sobre as sobras de campanha. Embolsou e pronto. Como pode? O pessoal do meu partido diz que o que ele fez menos grave que os escndalos do PT. E isso l desculpa? O problema do Brasil no nem o esfacelamento do Estado. algo anterior: a falta de cultura cvica. De respeito lei. Sem isso, como fazer uma nao?", pergunta, acabrunhado.

FHC volta a p pelas alamedas do campus. Cruza com Richard Snyder, professor de sociologia. Snyder pergunta se no dia seguinte ele poderia conversar com seus alunos. "Qual o assunto?", quis saber o ex-presidente. "Liderana na Amrica Latina. A sua experincia", responde o professor. "Ah! Se pra falar de mim mesmo, ento fcil." E com um sorriso: " uma das coisas que mais gosto de fazer".UdWUsurio do WindowsAbordagem irnica do trao de arrogncia recorrente na matria

Uma aluna o aguardava na porta da sala 218. FHC, como de hbito, no sabia do que se tratava. A garota, estudante de relaes internacionais, havia marcado uma entrevista para o jornalzinho da faculdade e trazia um exemplar de The AccidentalPresidentofBrazil, as memrias de FHC, cheia de post-its espetados. O autor sorriu, garboso. As perguntas, quase colegiais - Por que o senhor publicou este livro? Qual foi a reao do pblico? O senhor escreve como ex-presidente ou como socilogo? -, novamente receberam respostas elaboradas. A cada uma delas, a garota exclamava "Oh, thankyou!" Ao explicar a recepo do pblico obra, FHC no resistiu: "Na Amazon, os leitores avaliam os livros por um sistema de estrelinhas. My book isfullof stars". "Oh, thankyou!"

Presidencial, de terno escuro e sobretudo azul-marinho pesado, s 2 da tarde do dia seguinte Fernando Henrique atravessa o campus ao lado do professor Snyder. Tem as mos enfiadas nos bolsos. "Odeio frioUdWUsurio do WindowsTrao de personalidade", murmura. Faz 4 graus. Logo antes de alcanarem o prdio, Snyder informa: "O curso se chama Desenvolvimento, mercados e estados". Lutando com os cabelos que uma rajada de vento tornara selvagensUdWUsurio do WindowsA referncia aos cabelos revoltados ocorre outras vezes, em tom de piada. Traos se encontram mais no registro do fait divers do que do biografema, por focarem no cmico e no inusitado, buscando um efeito de estranheza e anormalidade que curioso um presidente despenteado, FHC comenta: "Mercados e estados? um dilogo de surdos". Na sala de aula, apertada, h cerca de cem estudantes. Um deles veio cochichar no ouvido do professor: "A gente vai ter que sair mais cedo pra protestar contra a presena do embaixador chins". Snyder suspira. Leva o convidado at uma cadeira espremida entre a primeira fila e o quadro-negro, pede silncio e faz uma breve apresentao do palestrante, "um dos grandes tericos do desenvolvimento". FHC se levanta.

Abertura FHC II, a estratgia da auto-esculhambaoUdWUsurio do WindowsNova referncia ao dom da oratria: "Quero corrigir o professor de vocs. No verdade que estudo a questo do desenvolvimento h quarenta anos. Estudo h cinqenta". Funciona, em parte. Ouvem-se risadinhas. Toca um celular, algum boceja, uma menina abre o caderno e, de caneta em punho, se prepara para anotar.

FHC far uma recapitulao do conceito de desenvolvimento, da dcada de 60 at o presente. "Nosso trabalho era uma crtica ao capitalismo. Falvamos em dependncia, em subdesenvolvimento, nunca em pases 'em desenvolvimento', porque os pases centrais no desejavam o desenvolvimento dos perifricos." Didaticamente, explicita a pergunta que dominou sua carreira de socilogo: "Como se desenvolver nesse quadro?" UdWUsurio do WindowsNovamente a matria discute questes do pensamento de FHC, em chave de biografia intelectualOs modelos da poca vislumbravam uma s alternativa: ruptura e revoluo. Explica que sua contribuio foi "introduzir complexidade" na teoria. Pases de economia mais diversificada, como o Brasil, seriam capazes de se desenvolver com capitais externos. A posio terica de Fernando Henrique afastou-o da opo revolucionria. O livro que escreveu com o socilogo chileno Enzo Faletto, Dependncia e Desenvolvimento na Amrica Latina, at hoje sua obra mais importante, abriu caminho para uma reforma do sistema, dentro do sistema. Sessenta minutos depois, usar na concluso o que lhe restou do marxismo: " preciso ter conscincia de que todos os processos so histricos e, portanto, passveis de mudanas. Ao mesmo tempo, preciso saber que as estruturas so resistentes e limitam as alternativas. Quando mudei da academia para a poltica, sabia o que podia ou no fazer. No sei se isso bom. Conhecer de antemo as conseqncias e as limitaes pode ser frustrante". Certamente, no permite pensar o impensvel, ou, para usar um termo dele, no permite "quebrar". "A lucidez um estorvo", declarou.

O grupo de alunos que vai protestar deixa a sala. Os que ficam fazem perguntas. Uma menina levanta a mo: "Qual a diferena entre ser ministro da Fazenda e presidente?" Ele no hesita: "O Brasil no tem guerras, no tem inimigos. uma beleza ser chanceler. Nosso adversrio era a inflao, e foi onde me jogaram, na Fazenda: o pior emprego do mundo".

No final da aula, j fora do prdio, cinco alunos o rodeiam. Apesar do frio, um rapaz ruivo e sardento est de sandlia de dedo, camisa havaiana e uma toalha molhada em torno do pescoo. FHC, tentando domar os cabelos, se vira esquerda e direita para atender diminuta platia. No podia estar mais feliz. "Eles gostam muito dissoUdWUsurio do WindowsNecessidade de ateno", comenta minutos depois, a caminho da palestra do embaixador chins. Para entrar no auditrio, preciso atravessar um corredor polons de jovens que protestam. Entregam-lhe um panfleto que proclama: "Genocdio em Darfur - A China cmplice". Ele sorri: "Como eu ia dizendo, bom ser brasileiro: ningum d bola".

No pequeno e tumultuado aeroporto de Providence, a fila no balco da US Air se espichava em ziguezague at o meio do saguo. Passava um pouco das 7 da manh. De terno, carregando na mo uma pasta e o sobretudo, o ex-presidente ia empurrando uma mala espantosamente vermelha. "As malas tm de ser berrantes, seno levam a sua sem querer."LFALuis Felipe AbreuTrao biografemtico Seu bilhete para Little Rock, com escala em Chicago, estava marcado para as 8 horas e 24 minutos. Quinze minutos depois, a fila no avanara um passo. FHC decide assuntar.

Descobrindo que o vo seria operado pela Delta Airlines, cruzou o saguo at o balco da companhia. No havia filas. Entregou o passaporte e a passagem e ps a mala na balana: 28 quilos, oito a mais do que lhe dava direito a classe econmica. Vem a conta: 50 dlares. "Expensive, no?" Abre a carteira. Na esperana de um desconto, tenta passar uma conversa: "Estou aqui h um ms, sou professor, so meus livros..." LFALuis Felipe AbreuNova descrio de um senso de economia (pra no dizer po-dursmo)Nada. Paga resmungando e, a pedido da funcionria, arrasta a mala at a esteira dos raios X. Na fila da segurana, tira os sapatos, pe o casaco na bandeja, os sapatos, a pasta. "No, no tenho laptop", responde ao agente. Passou pelo detector de metais, recuperou os sapatos, sentou-se para cal-los. No h porte presidencial que resista.

"Eu podia pedir o acompanhamento do Secret Service" - privilgio pessoal, no necessariamente extensivo a todos os ex-chefes de Estado -, "o que evita essas filas, isso de tirar o sapato, mas a os americanos sabem que estou aqui e vira uma chatice. Sou obrigado a ir a recepo, a jantar. Prefiro sozinho. Alm do mais, no acho que minha honra ou a do Brasil caiam por terra abaixo quando tiro os sapatos..." Como no havia tido tempo de tomar caf e o painel avisava que o vo atrasaria, FHC entra numa lanchonete T.G.I Friday's. Corre os olhos pelo cardpio gorduroso e, desanimado, encomenda um misto quente. Entre goles de um caf hediondo, relembra alguns dos homens que conheceu no poder.

"Tenho horror ao Bush, horror pessoal." Tiveram o primeiro encontro na Casa Branca. "O Bush se gabou de que seria conhecido como o maior poluidor do planeta. 'Vou abrir o Alasca para o petrleo. Podem reclamar, mas o mundo precisa que os Estados Unidos sejam fortes.' O incrvel que ainda assim consegue ser um homem simptico, desses que do soquinho no ombro da gente. Mas no sabe nada. Uma hora, falei da nossa diversidade racial, os espanhis, portugueses, japoneses... Ele perguntou: 'And do youhaveblacks?' A Condoleezza deu um pulo: 'Senhor presidente, o Brasil tem a maior populao de negros fora da frica!' Ele no sabe nada", recorda com desapreo.

Bill Clinton, Nelson Mandela e Felipe Gonzlez so os trs lderes que FHC mais admira. "O Gonzlez e o Clinton so assim: quando entram na sala, todos se viram. So naturalmente maiores. Agora, o Mandela a fora moral. At o Clinton se sente humilde quando se aproxima dele." Com Chirac, se d muito bem. So ambos hedonistas, antipuritanos. Putin outra coisa, um obcecado pela fora: "Vai reconstruir a Rssia. um autocrata que foi subestimado no incio. Eu teria medo do Putin".O avio decola com uma hora de atraso. FHC tenta cochilar, mas est num assento de corredor e acordado duas vezes - a primeira, pelo passageiro da janela; a segunda, pelo do meio.

Com 76 milhes de passageiros por ano, o Aeroporto O'Hare, em Chicago, o mais movimentado dos Estados Unidos. Ao desembarcar no terminal A, Fernando Henrique informado de que a conexo para Little Rock partir do terminal C, dali a dezoito minutos. Para ir de um a outro, cruza-se por sales e corredores abarrotados. Tomam-se passagens subterrneas. Escadas rolantes. Esteiras. Alas de conexo. H gente por todo lado - dormindo, comendo, comprando, correndo, bocejando, gritando, espirrando, digitando. "Que venha a depresso", murmura Fernando Henrique, olhando o relgio e apertando o passo.

A placa indica que por ali. Depois, que por ali. Logo adiante, aparecem duas setas - em desacordo. Entra-se por um corredor, volta-se atrs. s 11 horas e 27 minutos, o ex-presidente alcana enfim o porto C-18. Aproxima-se num quase trote, brao esticado, passagem e passaporte mo. A funcionria balana a cabea. O vo das 11 horas e 25 minutos fora encerrado havia alguns minutos. Fernando Henrique olha pelo vidro. O avio est ali, vista, inatingvel. "E a minha mala, que foi etiquetada para esse vo?", pergunta serenamente. "Deve seguir no prximo avio para Little Rock", responde a funcionria, sem tirar os olhos dos cartes de embarque dos que no perderam o vo. "E quando sai o prximo?", continua o ex-presidente, imune ao desinteresse da moa. Com um suspiro eloqente, ela deixa os cartes de lado e analisa o monitor: "Dentro de trs horas. Mas preciso ver se no est lotado".

Na melhor das hipteses, ele chegar para a palestra com folga de apenas uma hora e meia. Saca um celular da pasta - a primeira e ltima vez que ser visto com o aparelho nas prximas duas semanas - e tenta falar com Brown, para que o ajudem a avisar seus anfitries sobre a conexo perdida. O telefone no funciona (ou ele no sabe oper-lo). Desiste, mas consegue remanejar a passagem. Como Ins morta, decide investigar o cardpio de um restaurante italiano que descobre entre dois portes. Escolhe, e come sem pestanejar, um duvidoso fettuccine Alfredo, acompanhado de Coca light.

Sero quase duas horas de Chicago a Little Rock. Apertado num avio regional fabricado por canadenses - "canadenses miudinhos", segundo a comissria de bordo -, Fernando Henrique retoma a narrativa de seu trajeto poltico e intelectual. Ele pertence a uma gerao que teve a ambio de mudar a histria. Ao chegar ao poder, constatou que as possibilidades de transformao eram limitadas; acertadamente ou no, julgou que inexistiam alternativas. Levou adiante seu projeto de governo com convico pragmtica, mas sem adeso ideolgicLFALuis Felipe AbreuTrao de ordem biogrfica, que coloca a questo da trajetria de vida e lida com grandes temas: as aspiraes poltica, a mudana de rumo ideolgico, etca - o que se infere. "Fiz o que fiz faute de mieux", afirma. "Lamento no ter podido contar com melhores instrumentos. Imagine, eu ser confundido com a idia de Estado mnimo..."

Esse seu drama. Quando est entre alunos e professores, gasta boa parte do tempo defendendo-se da tese de que sua agenda e seu legado pertencem ao iderio neoliberal. enfticoLFALuis Felipe AbreuA negao do neoliberalismo tambm um aspecto da personalidade de FHC constantemente reforado pela matria: "Acontece que nunca fui um idealista, no sentido de utpico. Sou um realista, sei at onde possvel ir. H um momento em que a realidade se impe. Sou um pragmtico, no sentido americano. Diante do Estado inepto e da prevalncia da burguesia estatal, privatizar era o jeito". Tenta explicar: "Batizaram de Consenso de Washington a constatao de que o Estado estava falido e de que no se pode gastar o que no se tem; se tivessem batizado de Consenso de La Paz, no teria havido problema".

Por trs da retrica do pragmatismo, detecta-se uma lassido. No 18 Brumrio - um dos trs livros que FHC recomenda ao leitor no prefcio das suas memrias -, Marx fala em "verdades sem paixes" e "histria sem acontecimento". O sentimento semelhante.LFALuis Felipe AbreuPrimeira (e nica) intruso reflexiva bastante demarcada do narrador. Aqui, o narrador faz um juzo e busca sintetizar o discurso poltico do personagem, o identificando como algum de carter/ideologia mornos

O avio estava prestes a aterrissar em Little Rock. FHC espiou pela janela "Parece o Mato Grosso...", disse, com um muxoxo. No desembarque, esperavam-no dois funcionrios da Biblioteca e a argelina Danielle Ardaillon, sua assistente por anos, uma mulher bonita, de rosto anguloso, que viera a Little Rock apenas para a ocasio. H um outro brasileiro na chegada. Tambm estava viajando h mais de dez horas. Reparava agora, aflito, que s 5 da manh, zonzo de sono, vestira palet e cala de ternos diferentes e que no daria tempo de passar no hotel para trocar de roupa. "Sem problema", tranqilizou-o Fernando Henrique, "do Brasil eles esperam tudo."

Com 200 mil habitantes, Little Rock seria desconhecida at dos americanos se no tivesse servido de trampolim para Bill Clinton, que est para a cidade como a torre Eiffel est para Paris. Na Clinton Avenue, pode-se entrar na Clinton Store e comprar bonecos Clinton que tocam sax, pequenos Clintons falantes (21 frases memorveis do ex-presidente), camisetas e gravatas com seu rosto, livros de culinria com suas receitas prediletas. Ainda que o Arkansas seja a sede da Wal-Mart, a maior rede de varejo do mundo, Clinton uma indstria de peso para o estado. O William J. Clinton Presidential Center domina a cidade. Inaugurado em 2004 a um custo de 165 milhes de dlares, rene a biblioteca presidencial, escritrios administrativos e a Clinton SchoolofPublic Service, que oferece o nico mestrado em servio pblico do pas.

A agenda de FHC lembra as excurses que fazem doze pases em sete dias. Cada hora minuciosamente ocupada. Das 16 horas e 30 minutos s 17 horas e 30 minutos, levam-no a uma recepo no amplo apartamento pessoal de Clinton, no ltimo andar da biblioteca, com vista infinita para a cidade, o rio e a plancie. Clinton no est presente. H polticos e empresrios locais, gente da sociedade. Umas cem pessoas se espalham pelos cmodos. Todas sorriem institucionalmente. Um pianista negro tocando Garota de Ipanema. Em estantes repletas de livros meticulosamente arrumados, nota-se um ecletismo incapaz de refletir os interesses de um s leitor: madre Teresa de Calcut ao lado de Naipaul, Edna O'Brien junto a tratados sobre protestantismo americano. A idia de vigor e juventude, to cara imagem rock'n'roll que Clinton fez questo de projetar, se traduz em quadros de inspirao expressionista cujo tema quase invarivel o ex-presidente e seu sax; certos traos, eltricos, parecem ter sido feitos por um gato que, sem sucesso, tentou se agarrar tela. Fernando Henrique levado ao quarto dos Clinton: visita o guarda-roupa deles, o banheiro. Com rigor prussiano, o apartamento se esvazia s 17 horas e 25 minutos.

Os prximos quinze minutos determinam uma visita biblioteca presidencial. O anfitrio Mack McLarty, um homem de 61 anos, baixo, impecavelmente educado e mos muito pequenas. Amigo de infncia de Clinton, foi chefe de sua Casa Civil. O roteiro compacto: rplica em tamanho natural do Salo Oval, arquivos com a documentao presidencial e, por fim, num golpe de coreografia perfeita, um grande painel intitulado Comunidade Global, com imensas fotografias dos doze lderes de que Bill Clinton se sentiu mais prximo. Entre eles, dois ex-presos polticos (o checo VaclavHavel e o sul-africano Nelson Mandela), um ditador (o chins Jian Zemin), um rei (Hussein, da Jordnia, que contribuiu para a construo da biblioteca) e Fernando Henrique, que sorri, envaidecido.LFALuis Felipe AbreuDescrio de certa egomania, novamente

Das 17 horas e 45 minutos s 18 horas, descanso. FHC levado a um quartinho com duas poltronas e um sof curto. Tira a almofada da poltrona, ajeita-a na cabeceira do sof, deita-se. Vira de lado e encolhe as pernas - a posio fetal a nica vivel. Pede que apaguem a luz.

s 18 horas e 10 minutos, McLarty apresenta "o mais bem-sucedido presidente da histria do Brasil". Da soleira do grande salo, o homenageado ouve as palavras que costumam acompanhar discursos sobre o pas: "Amaznia", "Garota de Ipanema" e, novidade recente, "etanol". Na platia, aguardam-no cerca de 300 pessoas, entre as quais o prefeito, o vice-governador, empresrios e senhoras da sociedade local, alm dos 21 alunos da Clinton School. O convidado est cansado, pede desculpas - gostaria de falar de improviso, mas estava viajando havia quase treze horas. Comea a ler sua palestra, "Desafio democracia na Amrica Latina". Falta ao Brasil "a convico profunda de que a lei conta", dir. Uma hora depois, encerra a conferncia com um floreio retrico: "Hoje, s o mercado produz coeso. Mas o mercado bom para produzir lucros, no valores".

aplaudido de p, e pelos vinte minutos seguintes autografar uma pilha de The AccidentalPresidentofBrazil, alm de posar para dezenas de fotos de celular. Sorri em todas, mas desiste de arrumar o cabelo, que a essa altura adquiriu vida prpriaLFALuis Felipe AbreuNovamente a descrio divertida sobre o cabelo.. Consulta a agenda numa brecha: das 19 horas e 30 minutos s 21 horas, jantar na casa de McLarty.

s 21 horas e 30 minutos, quinze horas depois de sair do seu quarto em Providence, FHC deixado na porta do hotel. Faz seu prprio check-in.

s 8 horas e 45 minutos, estava a postos para o vo Delta com destino a Atlanta, com conexo s 15 horas para Raleigh Durham, na Carolina do Norte. Desta vez, bilhete de executiva. O avio pousou s 11 horas em Atlanta, sem atrasos, o que significaria quatro horas de espera. Fernando Henrique buscou uma rea tranqila para rever seus papis e fazer emendas na conferncia programada para dali a dois dias, na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Sentou-se ao lado de uma senhora que folheava a revista People e chupava um picol. Meia hora depois atinou que, se era executiva, ento dava direito a sala VIP. "E eu sofrendo no meio do povo toa", deduz, recolhendo seus papis pasta.LFALuis Felipe AbreuPostura aristocrtica

s 13 horas e 30 minutos, sai em busca de um restaurante, sempre espantado com a quantidade de gente, com a obesidade generalizada, com o excesso de tudo. Ao avistar dois assentos vazios no balco de um bar, instala-se antes que sejam ocupados. Acima de sua cabea, h trs TVs ligadas em trs canais diferentes, um deles de rap. "Este um pas muito barulhento", constata, quase gritando para ser ouvido. Sua salada Caesar lhe chega direto da geladeira, envolta em celofane. Ele ajuda com Coca light.

Anima-se com o compromisso em Chapel Hill, onde estar em um de seus ambientes naturais. Suas reminiscncias se dividem entre a vida acadmica - que trata com seriedade - e a vida poltica - de que gosta, embora tente disfarar com doses de ironia.LFALuis Felipe AbreuTrao de ordem biogrfica"O melhor professor que tive no Brasil foi o Antonio Candido. LFALuis Felipe AbreuPargrafos de ordem biogrfica, tratando de amizades e dissabores de uma vida, questes mais tradicionais da escrita biogrficaAs aulas, impecveis, comeavam e terminavam no horrio, sem um minuto a mais ou a menos. Um raciocnio lmpido, extraordinrio. Candido meu amigo, a ligao dele com o PT jamais foi um entrave. Nunca tive problemas com pessoas que discordaram de mim politicamente. Roberto Schwarz meu amigo, esteve em casa outro dia mesmo. Agora, quando a divergncia escorrega para o terreno pessoal, a eu me desaponto. Quando dizem que fiz isso ou aquilo em busca de vantagem pessoal, acho imperdovel. Foi por isso que acabei me afastando de dois amigos - e s de dois: o Chico de Oliveira e a Maria da Conceio Tavares", disse, referindo-se ao socilogo que foi seu colega no Cebrap e economista filiada ao PT.

FHC sai em defesa de seu sucessor quando o tema so ataques pessoais. "No acredito que Lula tenha prticas de enriquecimento pessoal", diz. "O que h que ele um pouco leniente. O partido ajuda daqui, ajuda dali e ele vai deixando, acha que normal. No fundo, no h nada de muito grave nisso. Mas era melhor dizer: fulano me ajudou a comprar o apartamento, o partido me deu tal dinheiro. Lula no pensa em dinheiro. Ele gosta do poder, e gosta da vida boa." semelhante sua opinio sobre Jos Genoino e Jos Dirceu: "Genoino no desonesto, Dirceu tambm no. Dirceu outra coisa..." Sorri. Espera o raciocnio se completar: "Dirceu o Putin que fracassou".

Dentre amigos e colaboradores, imensa a admirao intelectual por Prsio Arida e Andr Lara Resende. Lamenta que tenham se retirado da vida pblica e deixado de produzir: "No deviam ter parado to cedo. que existe essa mania de ganhar dinheiro. Ganharam, e agora no sabem o que fazer. Eu digo: 'Andr, voc no pode ficar assim, volta a trabalhar'. Ele fica l com o aviozinho dele, pra cima e pra baixo. uma loucura", diz, enquanto fecha a conta. No guarda canhotos de carto de crdito. "Ruth guarda todos. Eu no, sou muito desorganizado", gesto de quem no liga para dinheiro ou privilgio de quem no precisa mais se preocupar com essas coisas.LFALuis Felipe AbreuMais sutil que a ltima, mas nova interveno direta do narrador

Se h um poltico brasileiro de quem Fernando Henrique no gosta Delfim Netto. Em seu cauteloso livro de memrias, A Arte da Poltica, trata praticamente todos os personagens com luvas de pelica. Delfim a exceo. "No gosto mesmo", reitera. "Ele atrapalhou muito o real, mas isso no o mais importante. Um brigadeiro me trouxe um documento, nem sei se isso mais tarde se tornou pblico. Era uma reunio do Conselho de Segurana Nacional, Costa e Silva presidente. A questo era cassar ou no o Covas. O ministro da Marinha, Rademaker, era um duro, defendia a cassao. Costa e Silva, que no fundo era um bonacho, contemporizava: 'Por que no cassamos sem tirar os direitos polticos?' Rademaker argumentava que no ia adiantar, ele se reelegeria. Havia um impasse. Foi quando se manifestou o ministro da Fazenda, o Delfim: 'Esse eu conheo, de Santos, um comunista'. A acabou: cassaram. Delfim mentiu. Covas nunca foi comunista, no era sequer ligado esquerda. Era um janista, um conservador. Tenho horror ao Delfim."

Delfim Netto nega a histria com veemncia. Afirma que no se faziam atas de processos de cassao e que chegou a ajudar Covas a arrumar emprego depois da cassao. "Que o Fernando aparea com a ata", desafia, "ou vai passar por mentiroso."

O presidente est hospedado numa residncia que pertence Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, a mais antiga instituio pblica de ensino superior dos Estados Unidos. As instalaes so estupendas. Cho de tbua corrida, solenes sofs de couro, poltronas de espaldar alto, mesas de jacarand, retratos a leo de personagens histricos, cenas de caa e uma mesa de bilhar de pano vermelho. O quarto de Fernando Henrique tem cama com baldaquino.

s 11 da manh ele aparece no salo, de jeans. Junto lareira, com uma equipe amadora de filmagem, espera-o o professor de sociologia Arturo Escobar. Ao se dar conta de que a entrevista ser gravada, FHC declara: "Estospantalones non sonpresidenciales". Vai at o quarto e volta de blazer e gravata. As perguntas, bem elaboradas, retomam concepes que desenvolveu h dcadas. Como de hbito, ele se v desafiado a defender a continuidade entre suas idias como socilogo e as que implementou como presidente. O neoliberalismo uma espcie de assombrao que ele se v forado a exorcizar a cada entrevista.

"O que houve no foi uma ruptura epistemolgica no meu trajeto intelectual, mas uma ruptura ontolgica no mundo", afirma. "No final da dcada de 80, no estvamos mais enfrentando teorias, mas realidade. Olhamos o que existia e estava tudo aos pedaos. Estvamos falidos. Fomos forados a privatizar, no havia outro jeito. Mesmo assim, no privatizei tudo - porque no era necessrio. Acredito no papel do Estado." Para Fernando Henrique, seu verdadeiro legado acadmico de ordem metodolgica e no ideolgica. Foi uma lio que aprendeu com Florestan Fernandes: "Colete todos os dados, compreenda todos os pontos de vista", ensinava Florestan. "Minha mente no tomista, estou sempre ligado realidade, nunca me orientei por abstraes."LFALuis Felipe AbreuTraos biogrficos, de descrio do pensamentoReage idia de que a Amrica Latina estaria se voltando para a esquerda: "No esquerda, populismo: o lder falando diretamente com as massas, sem o intermdio das instituies". Esse um ponto crucial. Se Chvez percebido como progressista, imediatamente FHC se torna um conservador, rtulo do qual tenta se livrar a todo custo. Repetir inmeras vezes que o populismo autoritrio e regressivo. "Esquerda clssica o Allende, esse sim queria romper com o sistema capitalista. Chvez opera no nvel ideolgico. Na prtica, ele vende para os americanos e a burguesia venezuelana est ganhando dinheiro", argumenta.

Antes de almoar, volta ao quarto para repassar a programao. Entre aulas, almoos, palestras, conversas com alunos e jantares, a agenda prev um compromisso a cada duas horas. Receber honorrios? "Acho que sim. Essas coisas eles no conversam comigo, mas vou perguntar l no Brasil, porque do jeito que esto me fazendo trabalhar, tomara que o dinheiro seja bom." Torce para que chegue a 10 mil dlares, no mnimo.

Depois de trs dias base de lanchonetes de aeroporto, Fernando Henrique senta-se feliz mesa de um restaurante de verdade. Como domingo, o que encontra um brunch. Desconfiado, investiga o contedo de salvas de prata e rescaldeiros. Pega um prato e se serve, no sem antes consultar o cartozinho diante de cada iguaria. Evita combinaes menos ortodoxas. Ao redor, pessoas misturam costeletas de carneiro com panquecas, salmo com rabanada. "A Ruth sempre diz que os Estados Unidos precisavam ler Lvi-Strauss. O cru e o cozido, o doce e o amargo, esses contrastes. Uma coisa uma coisa, outra coisa outra coisa. Eles misturam tudo", diz, apontando um prato vizinho com indcios de peixe e melancia.

Ele come lentamente. Fala das diferenas entre os dois grandes nomes de seu partido e, certo de que seu tempo ficou para trs, no precisa mais sopesar cada palavra. "Sou mesmo a nica oposio, mas estou me lixando para o que o Lula faz. O problema a continuidade do que foi feito. Serra quer ser presidente e ento vai quele encontro dos governadores em que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi posta em xeque. De concesso em concesso, a vaca vai pro brejo. Serra no disse nada porque vai se beneficiar com isso. Ele seria um bom presidente. Quebra lanas. Acio mais conservador, acomoda mais. Isso dito, politicamente Acio fortssimo. Pode ser menos preparado que o Serra, mas popularssimo. No precisa provar mais nada. Serra precisa. O governo dele em So Paulo que decidir, e o incio no foi brilhante. Agora, o Acio gosta demais da vida privada dele. Pode parecer banal, mas assim que as coisas funcionam. Com a presidncia, muda tudo. Como ele no poderia mais ter a liberdade de que goza hoje, prefere pensar que tem tempo pela frente."

Fernando Henrique atravessa o campus em direo ao clube, onde descansar at o prximo compromisso. Gosta de conversar enquanto caminha a passos lentos, as mos tranadas nas costasLFALuis Felipe AbreuTrao tipicamente biografemtico: "Sou cartesiano com um pouco de candombl. Porque, no Brasil, sendo s cartesiano no se vai longeLFALuis Felipe AbreuAuto-definio que curiosamente se contradiz com o sujeito que os traos biografemticos at ento do a ver. J o Lula o Macunama, o brasileiro sem carter, que se acomoda". A frase no soa pejorativa nem parece comportar um juzo moral. Para ele, Lula aquele que se amolda, que nunca bate p ou explicita suas posies. Um camaleo.

FHC capaz de elogiar adversrios histricos e criticar aliados. "Os militares fizeram coisas bem-feitas. De certa maneira, construram um Estado. Telecomunicaes coisa deles. Collor, este sim, seguiu uma receita neoliberal burra e destruiu o Estado. Mas, antes dele, quem realmente desmanchou a mquina do Estado fomos ns da oposio, o PMDB, no governo Sarney. Foi quando comeou o loteamento dos cargos, todo mundo querendo uma fatia, uma sede tremenda e o Sarney entregando. Tudo foi trocado contra favores, uma vergonha. O regime militar tinha ocupado as empresas estatais, militares reformados em diretorias, essas coisas. Com o PMDB, o que se loteou foi a mquina do Estado: ministrios, hospitais, todo tipo de rgo, at o mais insignificante, tudo. O Estado desapareceu, virou patrimnio dos polticos." O prprio Fernando Henrique, no entanto, ao chegar Presidncia, parece ter concludo que poltica no Brasil era assim mesmo. Protegeu os trs ministrios que considerava essenciais - Sade, Educao e Fazenda - e entregou o resto aos de sempre, sob o argumento de que era isso ou a paralisia. Acomodou-se, a seu modo. Renan Calheiros foi seu ministro da Justia.

Depois do almoo, novo encontro, agora com alunos escolhidos por mrito e excelncia. FHC chega s 16h em ponto e troca palavras com quem j est ali. Quando chega finalmente a professora, traz um exemplar de Dependncia e Desenvolvimento. Para espanto de todos, Fernando Henrique estica o brao e, fulminante, furta-lhe o livro. "Vejamos que edio esta", diz. " que eles nunca me informam qual a edio e no me pagam" - abertura FHC III, a do homem comumLFALuis Felipe Abreultima referncias s aberturas, que denotam o dom de FHC de se fazer querido atravs da retrica, de uma aproximao cotidiana que busca tirar certo rano oficialesco das interaes que possui com os outros (ainda o faa s de forma superficial, em tom de brincadeira). Os vinte e tanto alunos esto ganhos. Diante de seu realismo ctico, um rapaz quer saber: "Quem explica o mundo de hoje?" "O maior erro dos pensadores sociais clssicos foi o sonho de produzir um mundo homogneo. Isso jamais acontecer. Hoje, o que falta uma sntese, uma atualizao de Marx e os outros. Quem sabe voc no a faz?", devolve ao rapaz. "Se fizer, por favor me cite." E encerra com o velho sorriso do sedutor em tempo integral.

De banho tomado e terno repassado, FHC assumia na noite seguinte o pdio do auditrio de Chapel Hill. Era o seu quarto compromisso do dia, uma palestra para 500 pessoas. Numa sala adjacente, outra centena o acompanharia por um telo. Falou durante uma hora, lendo vinte pginas de texto. Estava cansado, as palavras em ingls se atropelavam. Para adiantar o expediente, foi comendo etapas do raciocnio, acrescentando andsoonandsoforth, "e assim por diante", s opinies sobre Hugo Chvez, Evo Morales, globalizao, fracasso da democracia. Aplaudiram-no de p, talvez mais como reconhecimento ao esforo evidente e simpatia que clareza das idias. Depois de uma longa sesso de fotografias - a inveno dos celulares que fotografam foi um mau momento para as celebridades, mesmo as acadmicas -, terminou a noite numa lanchonete de estudantes especializada em pizza em fatias. O jantar custou 6 dlares.

s 8 horas da manh, comia com gosto um prato de panquecas regadas a maplesyrup, seguidas de morangos com iogurte. Ia respondendo a perguntas: como comem os supremos mandatrios? Banquetes de Estado so suculentos? Como a comida em Buckingham, por exemplo? "Pssima!", garante. "Agora, de uma formalidade extraordinria. Primeiro, a rainha vem te receber em Victoria Station. A ns entramos numa carruagem para o trajeto at o palcio. Como estava frio, eles estenderam uma manta. Eu do lado da Elizabeth, a manta por cima da gente. Pensei: Ai, meu Deus, agora que minha perna encosta na da rainha." No palcio, foi apresentado a seus aposentos: "Ela mostra tudo: abre as gavetas, abre os armrios, mostra o banheiro, mostra o chuveiro, estranhssimo. Depois vem a troca de presentes. S que o Itamaraty nunca me dizia o que eu ia dar e eu peguei o primeiro que estava na minha frente. Ela ficou espantadssima: 'But it ismyhorse!' - era um leo do cavalo dela. Fiquei contente, ela havia gostado. S ento me dei conta do desastre: eu tinha acabado de presentear a rainha com o presente que ela ia me dar. O Rubens Barbosa, o embaixador, preparara durante meses o jantar de homenagem que ofereceramos na nossa embaixada. Os royals chegaram todos, e nos sentamos mesa. A Margareth, que meio diferente, s tantas gritou para a rainha, l do outro lado da mesa: 'Lilibeth, thiswineisverybad!' - aquele silncio. A rainha ficou vermelha, furiosa. E no que tinha razo? O vinho havia passado do ponto. Ela divertida. Durante a recepo, apontava a Elizabeth e repetia: 'The queenwants a drymartini'. E a rainha respondia, cada vez mais vermelhinha, bravssima: 'I do notwant a drymartini'.".

Fernando Henrique Cavaleiro da Ordem de Bath: "Minhas filhas podem se casar na catedral de Westminster, eu posso ser enterrado l e tenho direito a tomar banho com a rainha". No pretende exercer o terceiro privilgio e tentou em vo convencer a filha Bia a fazer uso do primeiro. Quanto ao segundo, "j disse Ruth: junto o meu dinheirinho e quando morrer vou pra l de avio, direto pra Westminster". Ele brinca, mas gosta das liturgias do Velho MundoLFALuis Felipe AbreuMais indcios de certo carter aristocrtico, afeito aos costumes europeus seculares. No Brasil, seria difcil manter qualquer sonho hiertico. "Parada militar no Brasil pobre pra burro", observa o homem que teve de presidir a oito festejos de 7 de Setembro. "Brasileiro no sabe marchar, eles sambam. Somos o povo menos marcial do planeta." Chateao sem tamanho: "A cada bandeira de regimento, a gente tinha de levantar, era um senta-levanta infindvel", lembra-se com um esgar de pavor. Sem falar dos cabelos: "Em setembro venta muito em Braslia, ento o cabelo fica ao contrrioLFALuis Felipe AbreuPreocupao com o cabelo e o penteado evidenciada novamente".

Fernando Henrique termina o caf e segue para o aeroporto. Seu destino Madri, com escala em Nova York, em classe executiva na travessia do Atlntico. Depois do jantar a bordo, alterna a leitura de A Marcha da Insensatez, da historiadora americana Barbara Tuchman (em traduo), com um thriller estrelado por Nicolas Cage. No Aeroporto de Barajas, de manh, pela primeira vez recebe tratamento de ex-chefe de Estado. Um carro e dois funcionrios do Itamaraty o aguardam na pista. levado a uma sala onde algum se encarrega dos trmites de imigrao e alfndega.

Dali a seis horas estaria sentado em torno de uma mesa em forma de U, numa sala confortvel no subsolo do hotel Grand Meli Fnix. Era a reunio do comit executivo do Clube de Madri, que j presidira. A organizao rene 66 ex-governantes. Clinton presidente honorrio, o gigante ausente sobre o qual todos falam. Esto ali, entre outros, dois ex-presidentes da Colmbia, Andrs Pastrana e Csar Gaviria, que no larga o celular; as ex-presidentes da Irlanda e da Islndia, a severa Mary Robinson e a silenciosa VigdisFinnbogadttir; o ex-presidente de Moambique Joaquim Chissano; os ex-primeiros-ministros da Bulgria e da Romnia Philip Dimitrov e Peter Roman (que passa parte da reunio folheando um jornal). direita de FHC, est o ex-primeiro-ministro da Noruega ("Esse novo, caiu h pouco tempo", explicar mais tarde). Ricardo Lagos, do Chile, o novo presidente do Clube.

uma reunio rida. Questes administrativas, financeiras e de agenda so tratadas ao longo de trs horas. O aperto fiscal parece premente. Csar Gaviria, dadas as dificuldades financeiras, chega a sugerir que o Clube v buscar recursos junto a empresas espanholas. "Podamos at pr o logotipo delas naqueles painis atrs de ns quando a gente fala em eventos..." A sugesto prontamente rechaada por Mary Robinson, com voz de chumbo: "No me agradaria ver o Clube associado a determinadas empresas".

Fernando Henrique sugere restringir um pouco a extensa agenda do ano: aquecimento global, Darfur, apoio reforma constitucional no Equador, liberdade de associao em pases muulmanos da frica, construo de uma sociedade democrtica no Kosovo. Passam a uma longussima discusso - quarenta minutos - sobre a situao kosovar. Est em causa a convenincia ou no de enviar um representante do Clube a um seminrio sobre a independncia da regio. Alguns membros fincam olhares perdidos nas paredes brancas, outros se distraem com rabisquinhos em papel timbrado do Clube.

noite, Fernando Henrique vai a um restaurante especializado em cabrito, sua primeira refeio europia. Para quem veio de uma temporada nos Estados Unidos, a alegria grande.

O ex-presidente dormiu bem aquela noite. To bem que, s 9 da manh, um nibus com todos os ex-governantes a bordo esperava por ele - em vo. O Clube de Madri co-patrocinava uma conferncia internacional sobre cidades globais e era imperativo que seus membros chegassem na hora, sob pena de fazer naufragar o evento. Ricardo Lagos abriria a conferncia. A responsvel pelo protocolo, uma moa eficientssima, decidiu que no esperava mais. O nibus partiu com quinze minutos de atraso, a reboque de batedores que lhe abriam caminho para o centro de conferncias. FHC surgiu no lobby do hotel a tempo apenas de ver o comboio se afastar. Esticou o brao e foi de txi.

A primeira mesa-redonda, "Protagonismo da grande cidade e o papel das polticas pblicas", dura quase duas horas. Na primeira fila, Csar Gaviria dorme larga, a cabea para trs. Fernando Henrique cochila discretamente, com o rosto apoiado na mo, como se refletisse. Na segunda mesa, "Instrumentos 'suaves' de poltica urbanstica", caber a ele sintetizar as idias expostas. Duas horas depois, assume o microfone: "No tenho muito a acrescentar porque minha nica experincia com cidades foi a eleio que perdi para prefeito de So Paulo", desdenha, numa tpica abertura FHC II. Passa ento a rechear sua fala com a "coeso mecnica" e a "coeso orgnica" de Durkheim (mais tarde, no txi: " o b--b da sociologia. Olhei em volta, vi que no tinha um socilogo, mandei ver"), e citaes ao socilogo alemo Tnnies, que explora os conceitos de sociedade e comunidade ou, no original, Gemeinschaft e Gesellschaft, como soltou Fernando Henrique em bom sotaque. Foi o quanto bastou para inspirar pasmo e aplausos de admirao. (No mesmo txi: "So as nicas palavras que sei em alemo".)

No dia seguinte, Ruth Cardoso e a neta Julia juntaram-se a Fernando Henrique. A menina acabara de completar 18 anos e passaria uma semana viajando pela Espanha com os avs. Por volta das 11 horas, foram ao Museu Thyssen-Bornemisza, ver uma exposio temporria de retratos. Fernando Henrique faz fila diante do caixa, paga e volta exultante: " a vitria do proletariado. S 10 euros, pra mim, Ruth e Julia! E a moa ainda me pediu a carteira de identidade, pra comprovar se eu tinha mesmo 75 anos".LFALuis Felipe AbreuTrao de sovinice, novamenteO presidente admira um Picasso neoclssico - Olga na Cadeira, de 1924, moda de Ingres -, o que lhe dar ocasio de praticar um de seus divertimentos prediletos: implicar com as idias progressistas de dona Ruth. "Mas isso absolutamente acadmico", ela se choca. "Ele s pintou porque ela estava cansada de ser retratada com dois olhos do mesmo lado. Deve ter pedido: 'Faz um retrato bonito, vai'. A, ele fez." FHC rebate: "No isso, no. que Picasso absolutamente genial. D cambalhota. Deus". Dona Ruth: "Gnio, mas no por isso. Pelo que pintou antes". Ele: " gnio, Ruth. Faz de tudo". E, antecipando o gostinho, encerra o sparring: "Alis, eu me identifico muito com Picasso". Dona Ruth se vira para a neta e aconselha: "No ouve isso, Julia".

noite, amigos convidam a famlia Cardoso para um show de flamenco. A mesa colada ao palco. A cada arranco do danarino, que bate furiosamente os ps no cho, o presidente recua na cadeira, assustado.

Para o ltimo jantar de FHC em Madri, no dia seguinte, ele, dona Ruth, Julia e um casal de amigos vo a um restaurante simplssimo, quase um botequim. Oito mesas, se tanto. O ex-presidente vai direto para a cozinha e volta feliz: "Ganhei quatro votos", anuncia. As paredes so cobertas de fotografias - toureiros, polticos, o prncipe das Astrias. "Vou ver as fotos", diz, e levanta de novo. Chegam croquetes, morcela, aspargos, queijo. Ele se farta. "A Ruth tinha essa educao comunista com os filhos, essa histria de dividir tudo, inclusive a comida boa que de vez em quando eu trazia pra casa. Depois de um tempo, passei a lamber o chocolate na frente deles, pra ningum meter a mo." "O camembert ele escondia no armrio", confirma Ruth Cardoso. De sobremesa, Fernando Henrique derruba um prato de arroz-doce e se encanta quando descobre que ali servem rabanada tambm. Come rabanada a valer. Ao saber quem o cliente, dono e funcionrios do restaurante pedem fotos. FHC volta minscula cozinha e, junto do forno, posa com quatro empregados, todos com cara de mexicano. "Pronto, agora consolidei o voto", comemora. Algum comenta: "Consolidou. No Mxico".

Ruth Cardoso registra tudo, sem dar muita ateno. Se h algum que no cai nos nmeros do marido, ela. Conta de uma viagem a Buenos Aires, quando passeavam pelo bairro da Recoleta e foram reconhecidos por um nibus de turistas brasileiros. Confuso instalada, desceram todos e comearam a bater fotos. O sorriso de FHC se abre feito uma cortina. "Olha s pra ele", alfineta Ruth Cardoso. "Deviam ser todos petistas, Fernando, e voc no passava de atrao turstica." Ele no se d por vencido: "Em restaurantes de Buenos Aires eu sou aplaudido quando entro. que eu tra os interesses da ptria, ento l eles me adoram". A neta Julia balana a cabea: "Como que ele diz essas barbaridades..."