calvino - institutas v4

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JOÃO CALVINO A S I NSTITUTAS Volume 4 Ediªo especial para estudo e pesquisa

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  • JOO CALVINO

    AS INSTITUTAS

    Volume 4

    Edio especial para estudo e pesquisa

  • Institution de la Religion Chrestienne As Institutas ou Instituio da Religio CristDa edio original francesa de 1541 Conforme publicao feita pela Socit les Belles Letres,

    Paris, 1936, com a colaborao da Socit du Muse historique de la Rformation.

    1 edio em portugus 2002 3.000 exemplares

    TRADUO e LEITURA DE PROVASOdayr Olivetti

    REVISO e NOTAS DE ESTUDO E PESQUISAHermisten Maia Pereira da Costa

    NOTAS TEOLGICAS e FILOSFICASAs notas teolgicas e filosficas do presente volume,

    assinaladas com a seqncia de letras (a, b, c...),foram preparadas por M. Max Dominic.

    FORMATAORissato

    CAPA

    Publicao autorizada pelo Conselho Editorial:Cludio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, Aproniano Wilson de Macedo, FernandoHamilton Costa, Mauro Meister, Ricardo Agreste e Sebastio Bueno Olinto

    Superintendente: Haveraldo Ferreira VargasEditor: Cludio A. Batista Marra

  • AS INSTITUTAS

    CAPTULO XII

    SOBRE A CEIA DO SENHORa

    1. Propsito da instituio da Ceia

    [1536] O outro sacramento institudo pelo Senhor e por Ele dado igreja crist o po santificado pelo corpo do Senhor Jesus Cristo e o vinho santificado peloSeu sangue, como os antigos costumavam falar. E ns lhe chamamos Ceia doSenhor, ou Eucaristia, porque por ele somos alimentados e fortalecidos espiritu-almente pela benignidade do Senhor, e, de nossa parte, Lhe rendemos graas porSua bno.

    a. Em vista da importncia dos debates sobre este assunto desde as origens da Reforma, uma introduo maisextensa necessria aqui.

    Lutero, em 1519, publicou um discurso (traduzido para o latim em 1524) sobre o santssimo sacramentodo corpo de Cristo: o sacramento no mais a missa, a doutrina da transubstanciao; a comunho das almascom Jesus Cristo em Seus sofrimentos e em Sua glria, um dom de Deus que reclama essencialmente a f porparte do comungante (idia central que encontramos no presente captulo). Em 1521, o papa promulgou a bulaDe cna Domini, e Lutero escreveu Sobre o Abuso da Missa; em 1529, ele tratou da Santa Ceia em seus doiscatecismos. Em 1530, a Confisso de Augsburgo dizia sobre a Ceia: O corpo e o sangue do Cristo estoverdadeiramente presentes nela e so realmente ministrados sob as espcies do po e do vinho.

    O pensamento dos telogos franceses se expressa diferentemente. Assim, Farel, em 1525, em suaDeclarao Sumria, captulo XIX, Sobre a Missa, dizia: Claro est que ela foi introduzida em lugar dasanta mesa do Senhor... A santa mesa deve ser entendida no sentido de que somos um e que, portanto, no sedeve impedir uns aos outros... Eles tomam e comem de um mesmo po e bebem de um mesmo clice,esperando a triunfal e maravilhosa vinda de Jesus Cristo tal como Ele subiu ao cu.

    Em 1529, a Suma Crist, de Fr. Lambert dAvignon, dedicando o captulo XLVIII Mesa do Senhor,dizia: Na santa mesa do Senhor celebram-se a memria e as aes de graas por Sua preciosa morte e portodas as bnos que por ela recebemos. E tambm a renovao do necessrio testamento da graa divina eda remisso dos nossos pecados, testamento confirmado por Sua morte.

    E cremos que nessa santa mesa recebemos Seu verdadeiro corpo e Seu verdadeiro sangue, se bemque no entendemos a Sua presena supersticiosamente e que no queremos ir mais longe na discussodisso, crendo simplesmente na veracidade da Sua digna Palavra.

  • 4 As Institutas Edio Especial

    Confessamos tambm que esta celebrao seja, do sacrifcio salvfico oferecido uma vez na cruz porns, o santo e digno memorial ordenado por nosso Salvador.

    Todavia, de maneira nenhuma nos dispomos a confessar que nesta bendita Ceia haja um novo sacri-fcio, porque isso no est de acordo com a Escritura Sagrada.

    E visto que o Senhor ordenou que os crentes comunguem desta mesa sob o po e o vinho, queremosobedecer a essa ordenana, reconhecendo que necessrio faz-lo.

    E no queremos conservar no armrio este sacramento, nem lev-lo pelas ruas, pois vemos que oSenhor no mandou fazer isso.

    Alm do que acima foi dito, quando recebemos este santo sacramento, com esta participaotestificamos que estamos em harmonia com os outros fiis membros de Jesus Cristo, participando de umesprito e por ele vivendo num corpo mstico. E que aquele que nessa f o recebe e o faz dignamente tem asua salvao; do contrrio, recebe juzo e condenao, como se v em 1 Corntios 10 e 11, Mateus 26,Marcos 14 e Lucas 22.

    O reformador Zwnglio apresentava a Santa Ceia como um simples repasto comemorativo. O col-quio129 de Marburgo, em 1529, foi da maior importncia sobre essa questo; Lutero, Melanchton, Bucer eZwnglio participaram dele. Um dos artigos finalmente redigidos dizia: Se bem que no chegamos a umacordo sobre a questo se o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue do Cristo esto corporalmente presentesno po e no vinho, devemos, contudo, pr em prtica uns para com os outros o amor cristo, quanto permitaa conscincia de cada um (outubro de 1529).

    Calvino, quando ainda estudava em Bourges, ficou sabendo do referido colquio pelo Pr. Wolmar,130que acabava de chegar; o eco das discusses l travadas o inquietou. Foi depois dessa data que ele comeoua escrever sobre temas teolgicos (Contra as calnias de Westflia, em seus Opsculos, 1566, p. 1503).

    Antoine Marcourt, em sua Declarao131 da Missa e em seu Livro dos Mercadores (1534) dedicamuitas pginas a crticas missa. Atualmente se diz que ele foi o autor dos letreiros afixados em Paris, at naporta da cmara do rei, em outubro de 1534. Seguiram-se a eles muitos suplcios que confirmaram emCalvino seu desejo de compor as Institutas e, mais tarde, de dedic-las ao rei Francisco I.

    Em dezembro de 1534, Farel publicou uma nova edio da Sumria e Breve Declarao, cujo captu-lo XIX foi dedicado missa ( mais criticada a cerimnia externa do que exposto o sentido dogmtico dosacramento nela presente).

    Para justificar as novas formas do culto pblico institudas em Estrasburgo, Bucer tinha publicado em1524 Grund und Ursach aus gtlicher Schrifft der newerungen an dem Nachtmal,132 etc. Calvino notinha podido ler essa obra por no saber alemo, mas Wolmar o tinha informado sobre aqueles fatos. Em1525, traduzindo a Postille133 de Lutero, Bucer tinha exposto sua prpria conceituao da Santa Ceia. Amissa foi abolida em Estrasburgo em 20 de fevereiro de 1529. Em 1530, em Augsburgo, Bucer redigiu aconfisso de f que viria a chamar-se Tetrapolitana: Cristo verdadeiramente d seu verdadeiro corpo esangue a comer e a beber para nutrio da alma, concepo adotada por Calvino, (contra o simbolismozwingliano e a consubstanciao luterana).

    Conforme as prescries publicadas em Estrasburgo em 1534, aps o primeiro snodo, de junho de1533, a Santa Ceia deveria ser celebrada ao menos uma vez por ms em cada igreja, com um rodzio paraassegurar a celebrao todo domingo ao menos numa igreja.

    Em Estrasburgo Calvino teve conhecimento, pelo prprio Bucer, das idias desenvolvidas por ele emsua Exposio do Evangelho Segundo Mateus, publicado em alemo em 1536, em francs em 1540. Apsa discusso dos novos erros, ele diz (p. 570): Sendo o po somente sinal sacramental pelo qual o Senhorcomunica o dom invisvel, recebido pela f. Retocando o que dissera em 1536, em 1540 Bucer se expres-sa nestes termos: O po e o vinho so os santos sinais. O corpo e o sangue do Senhor, com a nova aliana,so as substncias134 do sacramento e os verdadeiros dons. Na mesma ocasio, aps as conversas de ambos,Calvino deu ao captulo Sobre a Ceia a forma que tem no presente volume.

    129 Conferncia, conveno. NT

    130 O professor Melchior Wolmar ( 1561) era um luterano declarado. Ele, que foi tambm professor de Thodorede Beza (1519-1605) foi de fundamental importncia no ensino de grego a Calvino. Mais tarde, Calvino lhededicaria o seu comentrio de Segundo Corntios (01/08/1546), onde diz que Wolmar, era o mais distingui-do dos mestres [de grego]. (J. Calvino, Exposio de 2 Corntios, So Paulo, Paracletos, 1995, Dedicat-ria, p. 8). NE

    131 Deve-se entender declarao a mais no sentido de desmascaramento. NT

    132 Base e razes bblicas dos novos conceitos aplicados Ceia. NT

    133 Rplicas. NT

    134 Sua subsistncia real, seu fundamento vital. NT

  • 5Ele escreveu em 1535 ao rei que tinha empreendido a produo de uma defesa dos evanglicos acusa-dos de blasfmias, particularmente blasfmias contra a missa; ele exps nas Institutas de 1536, e depois naInstruo de 1537, a doutrina reformada da Santa Ceia. Completou-a nas Institutas de 1539.

    Esse captulo corresponde ltima parte do captulo IV das Institutas de 1536 e ao artigo Sobre a Ceiado Senhor, da Instruo de 1537.

    Em 1536, pouco depois da publicao das Institutas, Calvino comps na Itlia um tratado que apare-ceu em 1537 e que foi reimpresso em seus Opsculos: Como se deve evitar as supersties papais e delasfugir; e sobre a pura observncia crist. Ele reafirma sua posio contra a missa com uma pgina maisveemente que as das Institutas.

    No dia 5 de outubro de 1536, Calvino participou do debate geral organizado em Lausanne pelasautoridades de Berna; num longo discurso no qual cita fartamente as Escrituras Sagradas e os pais da igreja,ele define a Santa Ceia como uma comunicao espiritual pela qual, com poder e eficcia, somos feitosparticipantes de tudo o que pela graa podemos receber do Seu corpo e do Seu sangue... tudo espiritualmen-te, quer dizer, pelo vnculo do Seu Esprito (Opera, [Obras] IX, 877-886).

    Em 1540, em Estrasburgo, talvez mesmo desde 1537, em Genebra (conforme o testemunho de Beza,Op. Calv., XXI, 62), Calvino comps diretamente em francs um Pequeno tratado sobre a Santa Ceia doSenhor Jesus Cristo, no qual so demonstrados a sua verdadeira instituio, o seu proveito e a sua utilida-de. Demonstra-se igualmente a razo pela qual muitos modernos parecem ter escrito diferentemente. Esseopsculo foi impresso em Genebra em 1541, no mesmo ano em que foi publicada a nossa Institution france-sa. (Uma nova edio apareceu em Paris, nas edies Je Sers, em 1935).

    b. Esse pargrafo , quase textualmente, o primeiro do captulo Sobre a Ceia, na Instruo de 1537.c. Os anabatistas.a. quo se conseoletur, quo se confirmet...

    A promessab que a nos feita mostra claramente com que fim foi institu-do e a que visa, o que se pode expor nestes termos: O sacramento da Ceia nosassegura e confirma que o corpo do Senhor Jesus Cristo foi entregue uma vezpor ns de tal maneira que agora nosso, e o ser perpetuamente;e, igualmente,que o Seu sangue foi derramado uma vez por ns de tal maneira que ser nossopara sempre.

    2. Necessidade de contestar os que negam que osacramento exerccio da f

    por isso que novamente se refuta at persuaso o erro daquelesc que se atre-vem a negar que os sacramentos so uma forma de exerccio da f, dados paramant-la, elev-la, fortalec-la e aument-la. Porquanto estas so as palavras doSenhor a esse respeito: Este o clice da nova aliana no meu sangue;1 querdizer, um sinal e um testemunho de uma promessa. E onde h promessa, ali a ftem sobre o que se apoiar e com que se consolar e se fortalecer.a2

    1 Lc 22.20; 1Co 11.25.

    2 Estudando o Salmo 42, quando o salmista em meio s aflies, demonstra a sua f no livramento de Deus,

    Calvino comenta que esta certeza no uma expectativa imaginria produzida por uma mente fantasiosa;mas, confiando nas promessas de Deus, ele no s se anima a nutrir slida esperana, mas tambm seassegura de que receberia infalvel livramento. No podemos ser competentes testemunhas da graa de Deusperante nossos irmos quando, antes de tudo, no testificamos dela a nossos prprios coraes. [JooCalvino, O Livro dos Salmos, So Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 42.5), p. 264]. NE

  • 6 As Institutas Edio Especial

    3. Frutos da Ceia

    Nossa alma pode auferir deste sacramento frutos de grande dulor e consolao,porque nos apercebemos de que Jesus Cristo est de tal modo incorporado emns, e ns nele,b que tudo o que dele podemos dizer que nosso, e tudo o que nosso, podemos declarar que dele.3 Por isso ousamos afirmar com seguranaque a vida eterna nossa e que o reino dos cus no nos pode ser retiradoc, nosmesmos termos em que o prprio Senhor Jesus Cristo no pode ser privado dele.Por outro lado, podemos asseverar que no podemos ser condenados por nossospecados, no mais que Cristo, porque no so mais nossos, mas dele. No queseja possvel atribuir-lhe alguma culpa, mas sim que Ele se constituiu devedorem nosso lugar, e bom pagador. Esta a permuta que, em Sua bondade infinita,Ele quis fazer conosco: Recebeu nossa pobreza, e nos transferiu Suas riquezas;levou sobre Si a nossa fraqueza, e nos fortaleceu com o Seu poder; assumiu anossa mortalidade, e fez nossa a Sua imortalidade; desceu terra, e abriu o cami-nho para o cu; fez-se Filho do homem, e nos fez filhos de Deus.d

    Essas coisas nos so prometidas to completamente por Deus neste sacra-mento que devemos estar certos e seguros de que nele so demonstradas to ver-dadeiramente que como se Jesus Cristo mesmo estivesse ali presente pessoal-mente, visivelmente, e que o vssemos com os nossos prprios olhos, e topalpavelmente que como se O tocssemos com as nossas prprias mosa. Por-que esta Sua palavra no pode falhar nem mentir: Tomai, comei; isto o meucorpo... Bebei dele todos; porque isto o meu sangue, o sangue da nova aliana,derramado em favor de muitos, para remisso de pecados.4 Ordenando que otomemos, Ele quer dizer que nosso. Ordenando que o comamos e o bebamos,demonstra que Ele feito uma substncia5 conosco. Quando Ele diz, Isto omeu corpo oferecido por vs; este o meu sangue derramado por vs, declara eensina que so mais nossos que dele, porque Ele os assumiu e os deixou, no paraSe favorecer, mas por amor de ns e para nosso proveito.

    3 Grande fruto, porm, de confiana e satisfao podem deste sacramento coligir as almas pias, porque tm

    nele o testemunho de havermo-nos unido com Cristo em um s corpo, de tal sorte que tudo quanto dElenosso seja lcito chamar. (J. Calvino, As Institutas, IV.17.2). Por meio da f, Cristo nos comunicado,atravs de quem chegamos a Deus, e atravs de quem usufrumos os benefcios da adoo. [Joo Calvino,Efsios, (Ef 1.8), p. 30]. Aos olhos de Deus s somos verdadeiramente gerados quando somos enxertadosem Cristo, fora de quem nada encontrado seno morte. [Joo Calvino, Exposio de 1 Corntios, (1Co4.15), p. 143]. NE

    4 Mt 26.26-28; Mc 14.22-24; Lc 22.19,20; 1Co 11.23-25.

    5 Termo empregado por Calvino vrias vezes neste captulo. No, porm, no sentido filosfico ou teolgico,

    mas como sinnimo de presena vivificante. NT.b. sic Christum nobis, sic nos illi vicissim insertos.c. excidere.d. Filius hominis nobiscum factus, nos secum Dei filios fecerit.a. Instruo de 1537: Cristo, com todas as suas riquezas, nos apresentado nela no menos como se se

    pusesse na presena dos nossos olhos e fosse tocado por nossas mos.

  • 74. Expresses decisivas, quanto ao proveitoque temos da Ceia

    Devemos observar diligentemente que a fora e excelncia principal e quase ni-ca do sacramento est nestas palavras: Oferecido por vs, derramado por vs.Porque, de outro modo, pouco nos serviria que o corpo e o sangue de Jesus Cristonos fossem distribudos agora, se outrora no tivessem sido entregues para nossaredeno e salvao. Assim, eles so representados para ns sob o po e o vinhopara nos mostrar e ensinar que eles no somente so nossos, mas tambm que sovida e alimento. Isso corresponde ao que acima dissemos,b que pelas coisas cor-porais a ns propostas nos sacramentos devemos ser conduzidos, em certa pro-poro e semelhana, s realidades espirituais. Porque quando vemos o po quenos apresentado como sinal do sacramento do corpo de Jesus Cristo, devemosimediatamente tomar essa figura ou semelhanac no sentido de que, assim comoo po nutre, sustenta e mantm a vida do nosso corpo, assim tambm o corpo deJesus Cristo o alimento, a nutrio e a preservaod da nossa vida espiritual. Equando vemos o vinho que nos oferecido como sinal do sangue de Jesus Cristo,somos levados a pensara no efeito e no proveitoso benefcio do vinho para ocorpo humano, fazendo-nos apreciar o que o sangue de Jesus Cristo efetua emns e o proveito que nos d espiritualmente. Ele nos fortalece, nos consola, nosd refrigrio e nos alegra. Porque, se avaliarmos bem a bno que para ns ofato de que o corpo sacratssimo de Jesus foi entregue e Seu sangue foi derrama-do por ns, veremos claramente que muito prprio o que se atribui ao po e aovinho, nos termos desta analogia e smile.6

    5. Finalidade principal da Ceia do Senhor

    Portanto, a finalidade principal do sacramento no simplesmente apresentarb ocorpo de Jesus Cristo, mas, sim, simbolizar, significar e confirmar a promessa naqual Jesus Cristo nos diz que Sua carne verdadeira comida e Seu sangue verdadeira bebida, pelos quais somos sustentados para a vida eterna. E Ele noscertifica que Ele o po da vida e garante que quem comer este po vivereternamente.7 Para realizar esse feito, isto , para simbolizar e selar a promessa

    b. Captulo X.c. 1541, por engano, coloca aqui um ponto; a Instruo de 1537 diz: Deve-se logo em seguida conceber esta

    comparao, como o po nutre, sustenta e mantm, etc.d. 1537: proteo.a. 1537: considerar que tais frutos, etc.b. exhibere.

    6 Calvino faz uma analogia entre o alimento fsico e o espiritual, mostrando que aquele que fundamental paraa manuteno de nosso corpo, Deus, como Pai providente, nos tem dado como testemunho de Sua bondadepaternal; Porm continua , assim como espiritual a vida em que nos h regenerado, preciso quetambm o seja o alimento que deve nutrir-nos e confirmar-nos nela. NE

    [J. Calvino, Breve Tratado Sobre La Santa Cena: In: Tratados Breves, p. 8]. Cf. As Institutas, IV.17.1,3.7 Jo 6. 55,58.

  • 8 As Institutas Edio Especial

    acima referida, o sacramento nos envia cruz de Jesus Cristo, onde essa promes-sa foi concretizada plenamente e cumprida inteiramente. Porque o fato de JesusCristo ser chamado po da vida no em funo do sacramento (como muitos otm interpretado erroneamente), mas sim porque como tal Ele nos foi dado peloPai. Isso foi demonstrado: Quando, tendo Ele sido feito participante da nossamortalidade humana, fez-nos participantes da Sua imortalidade divina; quando,oferecendo-se em sacrifcio, levou sobre Si a maldio que pesava sobre ns,para nos encher de Sua bno; quando em Sua morte Ele devorou e tragou amorte; quando em Sua ressurreio Ele ressuscitou em glria e incorrupo anossa carne corruptvel, da qual se havia revestido.

    6. Pelo Evangelho e pela Ceia recebemos Cristo,o po da vida

    [1539] O que acima foi declarado recebe clara comprovao das seguintes pala-vras ditas por Ele e que lemos no Evangelho Segundo Joo: O po que eu dareipela vida do mundo a minha carne.8 No h dvida nenhuma de que com essaspalavras Ele demonstrou que o Seu corpo seria poa para a vida espiritual danossa alma, razo pela qual Ele o haveria de expor morte, para a nossa salvao.Porque Ele fez dele po, uma vez, quando o entregou para ser crucificado para aredeno do mundo. E o faz diariamente, quando pela Palavra do Seu EvangelhoEle o oferece, a fim de que dele participemos, considerando que Ele foi crucifica-do em nosso favor.

    [1536] Portanto, no o sacramento que faz de Jesus Cristo o po da vida,pelo qual vivemos e somos constantemente refeitos; mas ele nos d um certogosto e sabor desse po. Em suma, temos nele a promessa e a garantia de que tudoo que Jesus Cristo fez e sofreu, Ele fez e sofreu para a nossa vivificao. E queessa vivificao eterna, pela qual sempre e para sempre somos alimentados,sustentados substancialmente e mantidos com vida. Porque, se Jesus Cristo notivesse sido o po da vida, no tivesse nascido e morrido por ns, e no tivesseressuscitado por ns, tambm agora Ele no o seria, e o fruto e eficcia do Seunascimento, da Sua morte e da Sua ressurreio no seria eterno e imortal.

    7. O estudo e o conhecimento da eficcia do sacramentoteriam evitado muitos erros

    Se essa virtude e poder do sacramento fosse bem estudado e considerado, comodevia, teramos nele grande satisfao, e no teriam sido suscitadas as horrveiscontendasb que tm atormentado a igreja, tanto no passadoc como tambm ainda8 Jo 6.51

    a. pro pane.b. dissensiones.c. O primeiro cnone do Conclio de Latro (1215) foi concebido assim: Corpus et sanguis in sacramento altaris, sub

    especibus panis et vini veraciter continentur, transubstantiatis pane in corpus et vino in sanguinem potestate divina.

  • 9agora, como se v em nosso tratado,d quando homens curiosos querem definircomo o corpo de Jesus Cristo est presente no po.a Como se valesse a penadebater isso com to grande contenda de palavras e de esprito! Certamente assim que a questo considerada comumente. Mas os que o fazem no se aper-cebem de que primeiro necessrio procurar saber que o corpo de Jesus Cristofoi feito nosso, uma vez que foi entregue em nosso favor; e que Seu sangue foifeito nosso, uma vez que foi derramado em nosso favor. Porque, saber e reconhe-cer que o Seu corpo e o Seu sangue foram feitos nossos dessa maneira possuirplenamente Jesus Cristo crucificado e participar de todas as Suas riquezas. Ago-ra, deixar de lado estas coisas, ou negligenci-las, menosprez-las, e pouco me-nos que deix-las soterradas, sendo elas como so de grande peso e levando agraves conseqncias em face disso, esta, sim, a nica questo espinhosab quese deve debater: como o corpo devorado e tragado por ns.c

    Todavia, a fim de que numa to grande diversidade de opinies a nica esegura verdade de Deus permanea conosco, pensemos primeiramente que deuma realidade espiritual que trata o sacramento, pelo qual o Senhor no pretendesaciar nosso ventre, mas sim nossa alma. E nele buscamos Jesus Cristo, no para onosso corpo, nem tambm para que seja captado e compreendido pelos nossossentidos corporais, mas de tal maneira que a alma sinta que verdadeiramente Elelhe oferecido e doado. Em suma, sintamo-nos satisfeitos em t-lo espiritualmente.Assim O teremos para vida, o que receber todo o fruto que se pode receber dosacramento. Qualquer pessoa que pensar nisto e consider-lo bem em sua menteentender facilmente que o corpo de Jesus Cristo nos oferecido no sacramento.

    [1539] Mas, para que nos desprendamos de todos os escrpulos, com os quaisas mentes simples facilmente se vem envolvidas e confusas em tanta diversidadede opinies, vamos explicar primeiro em que sentido o po chamado corpo deCristo, e o vinho, Seu sangue. Depois daremos informaes sobre que comunhodo Seu corpo e do Seu sangue o Senhor d, na Ceiaa, queles que nele crem.

    8. O descomunal erro chamado transubstanciao

    Antes de tudo mais, temos que rejeitar a opinio que resultou dos sonhos dossofistas no tocante transubstanciao (assim chamada por eles)b como umad. Ver a introduo deste captulo, nota a, primeira pgina destas notas.a. Os catlicos [romanos] e Lutero. 1536 acrescentou aqui: Alii, quo se argutos probarent, addiderunt ad

    scriptur simplicitatem, adesse realiter ac substantialiter; alii ultra etiam progressi sunt; iisdem essedimensionibus, quibus in cruce pendebat; alii prodigiosam transubstantiationem excogitarunt; alii panemipsum esse corpus (Cf. Lutero, De captivitate babylonica (1520); concio de sacramento135 (1524), etc.); aliisub pane esse (Erasmo); alii signum tantum et figuram corporis proponi (Zwnglio). Em 1539 Calvinosuprimiu essas linhas polmicas.

    b. spinosa.c. a nobis voretur.a. communionem nobis Christus exhibeat.b. Acrscimo feito em 1541.

    135 Lutero, Sobre o Cativeiro Babilnico [dos papas] (1520); discurso Sobre o Sacramento. NT

  • 10 As Institutas Edio Especial

    coisa prodigiosa.c Qualquer pessoa que tiver alguma reverncia pelas palavras deCristo, se fixar a ateno no que dito, que o po que dado na mo o corpo quefoi entregue por ns, a fantasiad daqueles tais longe est da propriedade das cita-das palavras, porque eles as explicam dizendo que houve transubstanciao, acres-centando que no significa que houve converso de uma substncia em outra,mas que o corpo toma o lugar do po, o qual eles imaginam que se desvanece.

    Certamente o Senhor testifica que o Seu corpo que Ele parte e d na modos Seus apstolos. Quem no entende que com isso Ele d uma explicao dopo? Por isso eles no podem alegar que, pelo respeito que tm pelas palavras deJesus Cristo, so constrangidos a explicar o termo fazendo uso de uma glosaestranha e contrria letra,e ao ponto de lhe fazer violncia. Porque jamais seouviu em nenhuma lngua do mundo que este verbo, chamado substancial ouessencial, qual seja, o verbo ser, tenha sido tomado nesse sentido.

    Alm desse, h muitos outros argumentos, fceis de refutar. Porque o con-ceito que estamos combatendo elimina o mistrio que visa representar o Senhorem Sua Ceia. Pois, que a Ceia, seno um atestado visvel e manifesto da pro-messa que consta no captulo seis de Joo? Ali Jesus Cristo declara que Ele opo da vida que desceu do cu. Logo, necessrio que o po visvel seja um sinalou smbolo no qual nos seja retratado o po espiritual, se que no queremosdestruir totalmente o fruto do sacramento e a consolao que, para suprir a nossafraqueza, o Senhor nos d nessa passagem. Porque, como a purificao interiorda alma certificada mais fortemente no corao dos crentes quando assinaladano Batismo pelo lavamento exterior da gua, assim o po no de pequena im-portncia na Ceia, visando atestar o alimento espiritual que temos na carne deCristo. E, de fato, com que propsito o apstolo Paulo9 inferiu que somos ummesmo po e um mesmo corpo, porque participamos de um mesmo po, se eletivesse tido ali apenas uma falsa visob do po, sendo eliminada a realidade natu-ral? Deixo de citar muitas passagens que h na Escritura, nas quais o po e ovinho so apresentados como sinais do corpo e do sangue, e, no obstante, mantido o nome deles.

    9. Astcia viperina na defesa da transubstanciaoFazem uso de uma cavilao frvola quando dizem que a vara de Moiss chama-da pelo nome de vara10 depois de convertida em serpente. Porque ainda que eufinjac e diga que havia bom motivo para que fosse chamada assim, pois logo ia

    c. portentosa.d. istorum commentum.e. violenter contortam.b. spectrum.c. taceam.

    9 1Co 11a

    a. 1539 tinha, por erro: 10. 1541 corrigiu: 11.10

    x 7.12 e contexto.

  • 11

    voltar ao seu natural,d h porm um motivo mais perceptvel. que o texto dizque as varas dos magos foram devoradas pelas de Moiss. Para falar com propri-edade era necessrio empregar um mesmo nome nos dois casos.e Agora, chamarde serpentes as varas dos magos seria faltar com a verdade profticaf, porquedaria a impresso de que elas se haviam transformado verdadeiramente em ser-pentes, quando no passavam de iluses.g11

    [1541] Portanto, foi necessrio dizer que a vara de Moiss devorou todas asoutrasa. H semelhana nisso com as locues que se seguem: O po que parti-mos... Todas as vezes que comerdes... E perseveravam... na comunho, no partir dopo.12 Alm disso, a antigidade, que eles costumam contrapor Palavra de Deusevidente, no os ajuda em nada a provar esse artigob. Porque essa doutrina falsa foiinventada h pouco tempo; ao menos antigamente era desconhecida, no tempoc emque a doutrina do Evangelho ainda tinha alguma pureza. O certo que no h um sdos antigos pais que no confesse explicitamente que os sinais da Ceia so verda-deiro po e verdadeiro vinho, embora s vezes lhes acrescentem diversos eptetosou qualificativos com o objetivo de honrar a excelnciad do mistrio.

    10. O cego literalismo cega os transubstancialistaspara argumentos de peso

    A opinio daqueles que teimam em ater-se s palavras [ipsis litteris], at ltimaslaba, sem se disporem a admitir nenhuma figura,e no tem possibilidade decomprovao. Qualquer absurdo que citemos das suas afirmaes, eles no li-gam. E querem dar por resolvida a sua afirmao de que o po verdadeiramenteo corpo, contentando-se com este nico argumento: que Cristo mostrou o poquando disse: Isto o meu corpo. Ora, por mais que declarem que o respeitoque eles tm pelas palavras de Cristo os impede de aceitar toda e qualquerinterpretaof de uma sentena to clara, isso no serve de pretextog para rejeita-rem todos os argumentos contrrios que lhes so apresentados. Se bem que euno acho que seja necessrio ter grande quantidade de argumentos para combat-11

    Iluses, produto do ilusionismo dos magos (mgicos). NT.12

    1Co 10.16; 11.26; At 2.42. Nesta ltima citao o texto francs diz: Eles comunicavam no partir do po.Note-se de passo que comunicar mais expressivo que comungar. NT.

    d. pristinam formam.e. Em lugar dessa frase, 1539 diz: potius quam colubro.f. dicere noluit propheta.g. 1539: ne videretur veram indicare conversionem, cum prstigiatores illi nihil aliud quam tenebras spectantium

    oculis, falsis artibus, offudissent.a. Frase acrescentada em 1541.b. confirmando isto dogmate.c. melioribus illis seculis.d. 1539 diz: convertendam, erro, por: commendandam.e. tropum.f. figurate intelligere.g. prtextus.

  • 12 As Institutas Edio Especial

    los, visto que eles no saberiam abrir a boca sem manifestar o absurdo existenteem sua doutrina.h

    O que eles dizem, que o corpo est de tal modo mesclado com o po queambos se tornam substancialmente uma s coisa, no somente causa repulsa aojuzo comum dos homens em geral, mas tambm contrrio f. No lcito,porm, dizem eles, glosar ou explicar dbia e temerariamente as coisas que estoclaramente expressas na Escritura. Quem que nega isso? Mas, depois que tiver-mos dado a explicao fiela mais adiante, ver-se- claramente que o argumentoque eles tm sempre na boca impertinente e inoportuno, sendo impropriamenteaplicado presente matria.

    Portanto, no de mau alvitre que alguns, vendo a afinidade e proximidadedas realidades representadas com os seus smbolos,b tenham concludo que onome da realidade propriamente dita aqui atribudo aos seus sinais. verdadeque uma locuo imprpria, mas no deixa de ser uma boa analogia.c Certo que o sinal, quanto essncia, difere da realidade figurada, visto que esta espi-ritual e celeste, e aquela corporal e visvel. Entretanto, uma vez que o sinal nosimboliza apenas como uma imagem vd a realidade que ele representa, mas amanifestae verdadeiramente, por que negar-lhe a denominao? Porque, se ossmbolos humanos, que so mais figuras de coisas ausentes do que sinais e mar-cas das presentes, e com mais freqncia nos enganam com aquilo que indicam se, apesar disso, eles tomam o nome destas, com maior razo os smbolos e sinaisque Deus instituiu podem tomar emprestado o ttulo das realidades que eles re-presentam, cuja significao eles contm seguramente e sem falsidade, e cujaverdade eles tm sempre junto a si.

    11. Aplicao ao crente

    Portanto, toda vez que voc encontrar essas maneiras de falar, que o po ocorpo, que o partir do po a comunicao ou a comunho do corpo, e outrassemelhantes, lembre-se de que necessrio reconhecer que o nome da realidadesuperior e mais excelente transferida para a realidade inferior, conforme o usocomum da Escritura.

    Deixo de lado as alegorias e as parbolas, para que ningum diga que estousaindo fora dos limites, buscando evasivas, sendo que esta figura principalmen-te utilizada no que diz respeito aos sacramentos. Porque, do contrrio, no sepoderia aceitar o fato de que a Circunciso chamada aliana; o Cordeiro, passa-gem; os sacrifcios mosaicos, purificaes dos pecados; e de que a pedra da qual

    h. dogmatis.a. germanus sensus.b. symbolis.c. figurat id quidem et xataxrhsiw=j; sed non sine aptissima analogia.d. nuda et inanis tessera.e. exhibet.

  • 13

    jorrou gua no deserto chamada Cristo a no ser que entendamos essa formade falar como um tipo de transferncia. Tal a semelhana e proximidade exis-tente entre o sinal e a realidade significada que a deduo ou passagem de um aooutro deles fcil. E, como os sacramentos tm ambos grande semelhana, prin-cipalmente a eles convm esta transferncia do nome. Claro est, pois, que, assimcomo o apstolo ensina que a pedra que para os israelitas foi uma fonte espiritualda qual beberam Cristo,13 no sentido de que um smbolo sob o qual a bebidaespiritual foi recebida (no visvel aos olhos, mas real), assim tambm o po hoje chamado corpo de Cristo, no sentido de que um smbolo sob o qual oSenhor nos oferece a verdadeira manducao14 do Seu corpo.

    12. Logomaquia! A cegueira literalista quanto presenade Cristo na Ceia produz briga de palavras

    [1536] Se algum indivduo amolante e importunoa se agarrar obstinadamente spalavras da expresso, Isto o meu corpo, fechando os olhos para todas asoutras razes, temos at nessa palavra de Cristo matria para vencer tal obstina-o. Porque o Senhor no diz noutro sentido que o po Seu corpo como quandodeclara que o vinho Seu sangue. Ora, onde Mateus e Marcos narram que oSenhor descreveu o clice como o Seu sangue, o sangue da nova alianab, Pauloe Lucas dizem que ele a nova aliana em Seu sanguea.15 J eu, por outro lado,sustento que a aliana no corpo e no sangue. Quem quiser insistir em seu pontoobstinadamente, grite quanto quiser que o po corpo e o vinho sangue! Eusustentarei, ao contrrio, que se trata da aliana no corpo e no sangue.

    [1539] E ento? Que dir ele? Pretender ser mais correto ou fiel expositorque Paulo ou Lucas, que entendem pelo sangue que a nova aliana confirmadano sangue?

    Pois bem, agora necessrio esclarecer em que consiste essa aliana nocorpo e no sangue de Jesus Cristo. Porque, quando negamos que o po, que secome na Ceia, o corpo de Cristo, no o fazemos no sentido de diminuir em nadaa comunicao do corpo nela oferecida aos crentes. Unicamente queremos ensi-nar que preciso distinguir a realidade representada do seu sinal, o que sabemosmuito bem que da maior conseqnciab, nada desejvel, e para nosso grandeprejuzo. Porque h to grande inclinao no corao dos homens para cair nasuperstio que, num instante, abandonando a verdade, eles se distraem total-mente com o sinal, a no ser que sejam repelidos alto e bom som. Pelo que se v13

    1Co 10.414

    Ato de comer. Francs: manducation. NT.15

    Mt 26.28; Mc 14.24; Lc 22.20; 1Co 11.25. NTa. si quis morosulus.b. vocare poculum suum sanguinem novi testamenti.a. Instruo de 1537: O Senhor nos propicia a verdadeira comunicao do Seu corpo.b. plurimi referre.

  • 14 As Institutas Edio Especial

    quanto cuidado devemos ter com dois erros. Um que, extraindo coisas demaisdos sinais, separemo-los dos mistrios aos quais de alguma forma esto unidos, e,em conseqncia, se rebaixa a sua eficcia. O outro que, engrandecendo-osexageradamente, obscureamos o seu poder interior.16

    13. Entenda-se bem o sentido da relao entre os sinaise a presena de Cristo na Ceia

    No h ningum, a no ser algum que viva totalmente sem religio, que noconfesse que Cristo o po da vida, com o qual os crentes so alimentados parasalvao eterna. Mas uma coisa no est resolvida entre todos: Como se deveparticipar. H quem defina com uma palavra que comer a carne de Cristo e beberSeu sangue no outra coisa seno crer nele. Mas me parece que Cristo mesmoquis expressar algo mais altoa nessa notvel pregao,17 na qual nos recomenda amanducao do Seu corpo. que somos vivificados pela verdadeira participaoque Ele nos d em Si, o que nos dado a entender pelas palavras beber e comer,para que ningum pensasse que o que Ele disse consiste to-somente em simplesconhecimento. Assim como alimentar-se do po, no apenas olhar para ele, dnutrio ao corpo, assim tambm necessrio que a alma seja feita verdadeira-mente participante de Cristo, para ter sustento para a vida eterna. Entretanto,confessamos que essa manducao se faz unicamente pela f, no se podendoimaginar nenhumb outro meio.

    Mas a nossa divergncia com os que fazem a exposio que eu impugno que comer crer, e nada mais; eu digo que crendo comemos a carne de Cristo, eque esta manducao fruto da f. Ou, se se quer maior clareza, para os quecrem a manducao a prpria f; digo melhor, ela provm da f. A diferenanas palavras pequena, mas a verdade grande. Pois, embora o apstolo ensineque Jesus Cristo habita em nosso corao pela f, ningum vai interpretar queessa habitao a prpria f. Todos sabemos que ele quis exprimir e nos comuni-car um singular benefcio da f, visto que por ela os crentes recebem a certeza deque Cristo habita neles.

    Dessa maneira, o Senhor, descrevendo-se como o po da vida, no somentequis mostrar que a nossa salvao se firma na confiana em Sua morte e ressur-reio, mas tambm que, pela verdadeira comunicao ou comunho que temoscom Ele, Sua vida se transfere para ns e feita nossa; do mesmo modo que opo, quando comido para alimentar-nos, d vigor ao corpo.16

    O poder e o uso dos sacramentos so corretamente subentendidos quando conectamos o sinal com aquiloque est implcito nele, de tal forma que o sinal no algo vazio e ineficaz, e quando, querendo enaltecer osinal, no despojamos o Esprito Santo do que lhe pertence. (...) Se porventura no fizermos nem quisermosfazer do santo batismo um ato nulo e vazio, devemos provar sua eficcia atravs da novidade de vida.[J. Calvino, As Pastorais, So Paulo, Paracletos, 1998, (Tt 3.5), p. 350]. NE

    17 Jo 6, versculos 22 em diante. NT

    a. expressius ac sublimius.b. 1541 tem, por erro: nul. 1539: nulla.

  • 15

    14. Sobre a relao entre comer o po e a f, de advogadoAgostinho vira promotor

    Agostinho, que os nossos oponentes trazem como seu advogado, no escreveunoutro sentido que comemos o corpo de Cristo crendo nele seno para demons-trar que esta manducao vem da f. Coisa que no nego, mas acrescento querecebemos Cristo, no como se mostrando de longe, mas se doando e se comuni-cando a ns.

    Tambm no satisfatrio o que dizem aqueles que, depois de confessaremque temos alguma comunicao com o corpo de Cristo, quando a querem de-monstrar fazem-nos participantes somente do Seu Esprito, deixando para trstoda a lembrana da carne e do sangue. Como se fossem nulas estas coisas ditasna Escritura: que a carne de Cristo comida e Seu sangue bebida; que se nocomerdes a carne do Filho do homem e no beberdes o seu sangue, no tendesvida em vs mesmos;18 e outras sentenas semelhantes.

    15. Calvino exprime embevecida exaltao do mistrio subjacente comunho na Ceia, antes da apresentao do resumo

    do seu ensino respeito

    Portanto, sendo notrio que a comunicao, que constitui o ponto em questo,vai alm do que eles dizem, tratemos de resolver isso com poucas palavras, atonde v o alcance destas. Se que, todavia, lcito abranger com palavras um togrande mistrio, mistrio que eu percebo muito bem que no consigo compreen-der com o meu esprito. Isso confesso de boa vontade, a fim de que ningummea a grandeza do mistrio por minhas palavras, as quais so to fracas quesucumbem, totalmente vencidas. Mas, por outro lado, admoesto os leitores a queno se mantenham entre marcos e limites to estreitos, mas que subama a pontosmais altos, alm daqueles aos quais eu os possa conduzir. Porque eu mesmo,sempre que trato dessa matria, depois de esforar-me para dizer tudo que posso,vejo quanto me falta para alcanar a excelncia. E por maior que seja o entendi-mento, por mais capacidade que se tenha de pensar e de avaliar, e por melhor quea lngua se exprima, no obstante, tudo isso sobrepujado e humilhado por talgrandiosidade. Assim, no me resta outra coisa se no prostrar-me em admiraoante esse mistrio; mistrio tal que, para pensar nele adequadamente o entendi-mento no suficiente, como tambm a lngua incapaz de o explicar.19 Todavia,

    18 Jo 6.53. NT

    19 ... mistrio que, na verdade, no vejo possa eu suficientemente compreender com a mente, e de bom gradopor isso o confesso, para que no lhe mea algum a sublimidade pela medidazinha de minha pobreza deexpresso. (...) Portanto, nada resta, afinal, seno que prorrompa eu em admirao desse mistrio ao qualnem pode estar em condies de pens-lo claramente o intelecto, nem de explic-lo a lngua. (J. Calvino,As Institutas, IV.17.7). NE

    a. 1541 tem, por erro: montrer. 1539: assurgere.

  • 16 As Institutas Edio Especial

    vou apresentar um resumo da minha doutrina, a qual no tenho dvida de que verdadeira, e tambm espero que seja aprovada por todos os coraes sinceros etementes a Deus.

    16. Resumo do ensino de Calvino sobre a comunhodo corpo e do sangue na Ceia

    Em primeiro lugar,a a Escritura nos ensina que Cristo , desde o princpio, aPalavra vivificante de Deus, a fonte e origem da vida, de quem todas as coisasrecebem poder para subsistir. Por isso o apstolo Joo s vezes Lhe chama Pala-vra da vida e s vezes declara que a vida sempre esteve nele,20 querendo dizerque Ele constantemente derrama Sua energia sobre todas as criaturas para comu-nicar-lhes vida e vigor. Contudo, ele acrescenta, logo aps a primeira passagemacima citada, que a vida se manifestou quando o Filho, tendo assumido a nossacarne, deixou-se ver e ser tocado. Porque, apesar de anteriormente haver derra-mado seus poderes sobre as criaturas, visto que o homem, alienado de Deus pelopecado, perdeu o contato e a comunicao da vida e por todos os lados se vassediado pela morte, tem ele necessidade de ser novamente recebido comu-nho desta Palavra, para recuperar alguma esperana da imortalidade. Pois, comohaver algo que esperar, se no entendermos que a Palavra de Deus contm em sia plenitude da vida e ficarmos distanciados dela, no vendo ao nosso redor nadamais que a morte? Mas, desde que esta fonte de vida21 comeou a habitar emnossa carne, j no se mantm oculta e longe de ns, mas jorra nossa presena,e dela podemos alegres desfrutar.

    Eis como Jesus Cristo aproximou de ns a bno da vida, da qual Ele afonte. Alm disso, a carne que Ele por ns vestiu e assumiu, tornou-a vivificante,a fim de que, pela participao dela, sejamos alimentados para a imortalidade.aDisse Ele: Eu sou o po vivo22 que desceu do cu.23 E logo a seguir: O po queeu darei pela vida do mundo a minha carne. Nessas palavras Ele demonstraque Ele a vida, no sentido de que Ele a Palavra de Deus eterna, que desceu docu at ns. Mas tambm que, descendo, Ele derramou Seu poder na carne de quese revestiu, a fim de que a comunicao chegasse a ns. Seguem-se da estasdeclaraes: Que a Sua carne verdadeira comida e o Seu sangue verdadeira20

    1Jo 1.1 [NVI]; Jo 1.4 [traduo direta].21

    Pv 13.14; Ap 21.622

    No original francs: po da vida. NT23

    Jo 6.51a. Calvino vai desenvolver uma frmula de 1536 cuja traduo no se encontra em nenhum texto de 1541:

    Dicimus vere et efficaciter [corpus] exhiberi, non autem naturaliter. Quo scilicet significamus non substantiamipsam corporis, seu verum et naturale corpus illic dari, sed omnia qu in suo corpore nobis beneficia Christusprstitit.136

    136 Dizemos que [o corpo] oferecido verdadeira e eficazmente, no porm naturalmente. evidente que comisso no queremos dizer que dada a substncia do corpo propriamente dita, o seu verdadeiro corpo natural,mas sim todos os benefcios que em Seu corpo Cristo nos fez. NT

    a. Instruo de 1537: Nos torna seguros da imortalidade da nossa carne.

  • 17

    bebida, e que ambos constituem a substncia necessria para nutrir os crentescom a vida eterna. Temos, pois, nessa verdade a singular consolao de encontrara vida em nossa prpria carne. Porque dessa maneira no somente ns chegamosa ela, mas ela mesma se adianta e vem apresentar-se a ns. Basta que abramos onosso corao para receb-la, e a obteremos.

    Agora, conquanto a carne de Cristo no tenha tanto poder de si mesma quenos possa vivificar, visto que em sua primeira condio ela foi sujeita mortalidadeb e, sendo feitac imortal, recebe fora de outrem, todavia, com razose declara que ela vivificante, porque est cheia de perfeio de vida para trans-ferir para ns a comunho. E nesse sentido se deve entender o que diz o Senhor,que, assim como o Pai tem vida em si mesmo, tambm concedeu ao Filho tervida em si mesmo24. Porque nessa passagem Ele no fala das propriedades queEle possui eternamente em Sua divindade, mas das que Lhe foram dadas na car-ne, na qual se nos manifestou. Pelo que Ele demonstra que de fato a plenitude davida habita em Sua humanidade, de tal modo que aquele que participar da Suacarne e do Seu sangue desfrutar da Sua vida.

    Podemos explicar melhor este ponto fazendo uso de um exemplo familiar. como a gua de um bom reservatrio, que fornece gua suficiente para beber,para irrigar e para outros fins, e, contudo, tal abundncia no se deve ao reserva-trio mas fonte da qual jorra permanentemente a gua que o enche e no o deixasecar-se. Assim tambm a carne de Cristo como um reservatrio, no sentido deque ela recebe a vida que jorra da natureza divina de Cristo e no-la transfere.

    Quem no v, ento, que a comunho do corpo e do sangue de Cristo necessria a todos os que aspiram vida celestial? A isso visam todas estas decla-raes do apstolo: Que a igreja o seu corpo [de Cristo], a [sua] plenitude;que Ele a cabea,25 de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado peloauxlio de toda junta, segundo a justa cooperao de cada parte, efetua o seuprprio aumento para a edificao de si mesmo em amor26, coisas que s serealizam graas Sua unio conosco, como Seu corpo, e pelo Esprito. O apsto-lo, mediante grandioso testemunho, esclarece ainda mais em que consiste estaassociao, pela qual somos unidos Sua carne. Diz ele que somos membros doseu corpo,27 parte dos Seus ossos e da Sua carne.28 E, finalmente, para assinalar

    b. 1541 tem, por erro: IMortalit. 1539: mortalitati.c. nunc immortalitate prdita.

    24 Jo 5.26

    25 Quando cabea se refere chefia, que Cristo exerce sobre todas as coisas, a igreja inclusive, diga-se oCabea; quando se refere unio orgnica e vital com a igreja, diga-se a Cabea. Em 1991, durante ostrabalhos de traduo da NVI, propus Comisso de Traduo que fosse seguido esse critrio, o que foifeito. Um exemplo Efsios 4.15, que em vrias tiragens da primeira edio da ARA vinha o Cabea,corrigindo-se a partir de 1993. NT

    26 Ef 1.22,23 e 4.15,16

    27 Ef 5.30

    28 A Verso Autorizada inglesa traduz assim o citado versculo 30: Pois ns somos membros do seu corpo, dasua carne e dos seus ossos. NT

  • 18 As Institutas Edio Especial

    que essa realidade sobrepuja todas as palavras, logo a seguir ele conclui a expo-sio deste seu propsito exclamando: Grande este mistrio! Seria, pois, ex-trema loucura no reconhecer nenhuma comunho na carne e no sangue do Se-nhor, fato que o apstolo Paulo declara que to grandioso que ele prefere admi-rar a explicar com palavras.

    17. Presena real, sim; corprea e palpvel, no. Nada de imitaros mestres sobornistas e outros!

    Todavia, no devemos imaginar essa realidade nos termos sonhados pelos sofistas,acomo se o corpo de Cristo baixasse Mesa e ali se expusesse em presena local,29para ser tocado com as mos, mastigado com os dentes e engolido pela goela.Porque, assim como no duvidamos que Ele no limitado pelas medidas prpri-as da natureza humana e que o cu, que O recebeu, O retm at quando Ele voltarpara o Juzo, assim tambm consideramos coisa ilcita faz-lo baixar para estarentre as coisas corruptveis, ou imaginar que Ele est plenamente presenteb [car-ne e ossos inclusive]. E de fato isso j no necessrio para que tenhamos aparticipao, visto que o Senhor Jesus nos estende esta bno por Seu Esprito,fazendo-nos um com Ele em corpo, Esprito e alma. Portanto, o lao desta juno o Esprito Santo, pelo qual somos rejuntados e unidos; como um canal ouconduto pelo qual tudo o que Cristo e possui desce at ns.30 Ora, se vemos comos nossos prprios olhos que o Sol, brilhando sobre a Terra, de alguma formaenvia por seus raios a sua substncia para gerar, nutrir e produzir os frutos dela,por que o fulgor e a irradiao do Esprito de Jesus Cristo seriam menos capazesde nos fazer chegar a comunicao da Sua carne e do Seu sangue? Por isso aEscritura, falando da participao que temos de Cristo, reduz toda a virtude epoder dessa participao ao Seu Esprito. E s basta citar uma passagem, querepresenta bem todas as demais. Em Romanos, captulo 8, versculos 10 e 11, oapstolo Paulo declara que Cristo habita em ns por Seu Esprito, e de nenhumoutro modo. Todavia, ao dizer isso ele no destri esta comunho do Seu corpo edo Seu sangue, que constitui o ponto em questo agora, mas demonstra que oEsprito o nico meio pelo qual temos Cristo e O temos habitando em ns. Talcomunho do Seu corpo e do Seu sangue testifica o Senhor na Ceia. E deveras Ooferece e d a todos os que recebem esta refeio espiritual.a Entretanto, tenha-seem conta que s os que nele crem que realmente participam, sendo que por

    29 Isto , ocupando lugar, preenchendo espao. NT

    30 Crysost. Sermon De spiritu sancto.

    a. in scholis crassiores sophist (os sorbonistass e outros).b. Cf. Occam, Centilogium theol., 25, 28: Corpus Christi potest137 esse ubique, sicut Deus est ubique, Lutero

    falava assim da ubiqidade do corpo de Cristo. Calvino j em 1536 escrevia: Hc est perpetua corporisveritas, ut loco contineatur, ut suis dimensionibus constet.

    a. spirituale epulum.137

    No postest, como est no texto original das notas. NT

  • 19

    uma f verdadeira eles se tornam dignos de ter o gozo de tal bno. Por essarazo diz o apstolo: O po que partimos a comunho do corpo de Cristo, e oclice que santificamos pelas palavras do Evangelho e pelas oraes a comu-nho do seu sangue.31

    18. Objeo de que se trata de metonmia, e respostaNo h necessidade de que algum objete que a declarao apostlica citada locuo figurada, na qual o nome da coisa representada atribudo ao smbolo.Digo isso porque, se alegarem que coisa notria que a poro do po no passade um sinal exterior da substncia espiritual, embora lhes concedamos que expli-quem dessa forma as palavras de Paulo, todavia, do fato de que o sinal nos dadopoderemos inferir que a substncia significada tambm nos entregue real everdadeiramente. Porquanto, quem no quiser chamar Deus de mentiroso no seatrever a dizer que Ele nos oferece um sinal vo e vazio da Sua verdade. Assim,o Senhor nos apresenta a real participao do Seu corpo representada pelo partirdo po; e no h nenhuma dvida de que ele no-lo d ao mesmo tempo. E de fatoos crentes devem ater-se inteiramente a esta norma: Toda vez que vejam os sinaisordenados por Deus, concebam igualmente como certo e veraz que a realidaderepresentada ali est junto deles, e tenham disso plena convico. Porquanto,com que propsito o Senhor daria na moa o sinal ou o smbolo do Seu corpo,seno para tornar certa e segura a real convico dessa verdade? Ora, se certoque o sinal visvel nos dado para selar em ns a ddiva da realidade invisvel,devemos confiar sem nenhuma dvida que, tomando o sinal do corpo, recebemosigualmente o corpo.

    Como, porm, muitos so os que, no se restringindo a admitir alguma par-ticipao do corpo e do sangue de Jesus Cristo, antes insistem que essa participa-o consiste na presena local do corpo e do sangue no sentido fsico e concretoe inventam tolos devaneios em defesa dessa idia, devemos desmascarar esseerro, sem necessidade de estender-nos muito.

    19. Argumentos adicionais sobre a presena do corpoe do sangue de Cristo na Eucaristia

    19.1 O corpo ressurreto continua sendo corpo real[1536] Assim como Jesus Cristo se revestiu de nossa verdadeira carne e a assu-miu quando nasceu da virgem Maria,32 e assim como Ele sofreu em nossa verda-deira carne, assim tambm, quando ressuscitou, recebeu e reassumiu a verdadei-ra carne e, em Sua ascenso, transportou-a para o cu. Porque esta a nossaesperana, que ressuscitaremos e iremos para o cu, visto que Jesus Cristo res-31

    1Co 10.16 [traduo direta].32

    1Co 15a. in manum tibi.

  • 20 As Institutas Edio Especial

    suscitou e para l subiu. Pois, veja-se bem, quo insegura e frgil seria esta espe-rana, se a nossa verdadeira carne no tivesse de fato ressuscitado em Jesus Cris-to e no tivesse entrado no reino dos cus! E esta a perfeita verdade sobre umcorpo: Limita-se a um lugar, ficando dentro de certo espao; tem determinadasmedidas; e tem forma visvel.

    Bem sei o que cavilam alguns cabeudos,b querendo defender obstinada-mente o erro no qual uma vez caram. Dizem eles que a medida do corpo deCristo nunca foi outra que no a medida da extenso ampla e total do cu e daterra. E acrescentam que o fato de que Ele nasceu como beb, cresceu,a foi pen-durado numa cruz, foi encerrado num sepulcro, tudo isso se fez por uma certadispensao, para que Ele pudesse nascer, morrer e desincumbir-se de todas asdemais obras humanas. E quanto aos seguintes fatos: que, aps a Sua ressurrei-o, Ele apareceu em Sua costumeira forma corprea; foi recebido no cu visi-velmente; e, finalmente, aps a Sua ascenso, foi visto por Estvo e pelo apsto-lo Paulo33 tudo isso tambm se fez pela mesma dispensao, a fim de que ficas-se claro para todos os homens que Ele foi constitudo Rei e como Rei foi estabe-lecido no cu.

    19.2 Os oponentes trazem Marcion de voltaQue isso, seno trazer Marcionb de volta do inferno? Quem iria duvidar que ocorpo de Cristo era fantasmagrico, se fosse dessa condio? Eles alegam queisso foi dito pelo prprio Senhor Jesus Cristo, quando declarou:34 Ningum su-biu ao cu, seno aquele que de l desceu, a saber, o Filho do homem, que est nocu. Mas, ser que eles so to rudes e tapados de entendimento que no perce-bem que tais palavras foram ditas para expressar uma comunicao depropriedades?!c como o que vemos dito pelo apstolo Paulo35 que o Senhorda glria foi crucificado, no que tenha padecido segundo a Sua divindade, masque, sendo humilhado e desprezado, sofreu na cruz, e, no obstante, tambm Deus, o Senhor da glria. De igual modo, o Filho do homem est no cu porqueEle, sendo o mesmo Cristo que segundo a carne filho do homem na terra, tambm Deus no cu. Por essa razo, na mesma passagem se afirma que Eledesceu do cu segundo a Sua divindade, no no sentido de que a divindade dei-xasse o cu para vir ocultar-se na priso do corpo, mas no sentido de que, apesar

    33 At 7.55,56; 9.3-5; 1Co 15.8

    34 Jo 3.13

    35 1Co 2.8

    b. cervicosi.a. creverit.b. Marcion. Heresiarca do sculo II, gnstico.

    Provavelmente Calvino conheceu sua doutrina por meio dos cinco livros que contra ele escreveuTertuliano. (Uma edio dessas obras tinha sido publicada em Basilia em 1521.)

    c. idiomatum.

  • 21

    de encher todas as coisas, ela habita na humanidade de Cristo corporalmente, isto, natural e verdadeiramente,a36 e de maneira incompreensvel.37

    Outros fazem uso de uma evasiva um pouco mais sutil e dizem que o corpoque est presente no sacramento glorioso e imortal. E, portanto, no impr-prio que esteja em muitos lugares e que esteja contido no sacramento sem ocuparlugar ou espao e sem ter nenhuma forma.b

    Mas eu lhes pergunto: Que foi que o Senhor deu aos Seus discpulos no diaanterior ao da Sua paixo e morte? Suas palavras no significam que foi o corpomortal que logo depois seria entregue? Mas eles dizem: Antes disso Ele j haviamanifestado a Sua glria aos trs discpulos no Monte Tabor.38 verdade. Contu-do, por aquela claridade luminosa Cristo lhes concedeu por breves momentosque gozassem um pouco da Sua imortalidade. Mas, quando, em Sua ltima Ceia,Ele lhes repartiu Seu corpo, bem prxima estava a hora na qual Ele seria ferido deDeus,39 humilhado, abatido e desfigurado como se fosse um ladro;c bom seriaque Ele se dispusesse a mostrar a Sua glria! E que enorme janela se abriria aquipara Marcion, se o corpo de Jesus num lugar fosse visto como mortal e despreza-36

    Cl 2.9.37

    No Catecismo de Heidelberg (1563), temos as questes: 35. Que Significa Foi concebido por obra do Esprito Santo, nasceu da Virgem Maria?Que o eterno Filho de Deus, que e permanece verdadeiro e eterno Deus, tomou sobre si a nossa

    verdadeira humanidade, da carne e do sangue da virgem Maria, pela operao do Esprito santo, de modoque fosse tambm a verdadeira semente de Davi, em tudo igual a seus semelhantes, exceto no pecado.

    48. No ficam assim, as duas naturezas de Cristo separadas uma da outra, se a humanidade no seencontra onde est a divindade?.

    De modo nenhum; pois, se a divindade incompreensvel e est presente em toda parte. Segue-seque ela est, na verdade, alm dos limites da humanidade que ela assumiu, e, contudo, sempre se encontratambm naquela humanidade, e permanece pessoalmente unida a ela.

    Aqui tambm, podemos ver a questo do extra calvinisticum; expresso criada pelos telogosluteranos no sculo XVII, para se referirem insistncia dos Reformados em afirmar que a Segunda Pessoada Trindade no esteve limitada natureza humana do Cristo encarnado. Sobre este ponto mesmo semdesenvolver o assunto , Calvino havia dito: .... Se bem que a infinita essncia do Verbo se uniu com anatureza de um homem em uma pessoa nica, no entanto, nenhum confinamento imaginamos. Ora, demodo maravilhoso, do cu desceu o Filho de Deus, assim que, entretanto, no deixasse o cu; de modomaravilhoso, quis sofrer a gestao no tero da Virgem, andar pela terra e pender na cruz, para que, sempreenchesse o mundo, assim como de incio. (As Institutas, II.13.4). Os luteranos que divergiam deste pensa-mento, expresso no Catecismo de Heidelberg, criaram as expresses: totum intra carnem e numquamextra carnem (Totalmente na carne e nunca fora da carne). Todavia, nem entre os luteranos houveunidade de pensamento. NE

    38 Mt 17.1-8

    39 Is 53.4

    a. 1539 tem somente: naturaliter, et ineffabili quodam modo.b. Opinio professada notadamente por Gasp. Schwenckfeld, cujo primeiro escrito sobre a Santa Ceia data de

    1525; em luta com Lutero; banido da Silsia em 1528; refugiado em Estrasburgo. Capito o acolheu, masBucer se ops a ele. Depois do snodo de 1533, Schwenckfeld deixou Estrasburgo, voltou para l, e partiudefinitivamente em 1535. A lembrana dele era ainda recente, quando da chegada de Calvino. Em 1534 eletinha publicado (mas em alemo) uma nova edio do seu livro sobre o sacramento. Calvino, em 1556, naSecunda defensio fidei de sacramentis contra Westphalum,138 trata da doutrina de Schwenckfeld chaman-do-a de insnia, e acrescenta: Sedulo incubuimus ad oppugnandos Suinckfeldii errores.

    138 Segunda Defesa da F quanto ao Sacramento, contra [o encontro de] Westflia. NT

    c. 1541 tem, por erro: lardre. 1536: leprosus sine decore jaceret.

  • 22 As Institutas Edio Especial

    do, e noutro posasse como imortal e glorioso! Mas eu passo por altod esse tremen-do absurdo.

    Com relao ao corpo glorioso, que s me respondam: Ser que todavia um corpo? Sim, dizem eles; e acrescentam: mas sem lugar restrito, estandoem muitos lugares, sem forma e sem medida.e Ora, isso cham-lo de esprito,no por palavra mas por um circunlquio.f Ou negamos totalmente a ressurreioda carne, ou confessamos que, quando ela tiver ressuscitado, continuar sendocarne. E esta difere do esprito nisto: que limitada pelo espao; que visvel; eque se pode tocar.

    19.3 Nosso corpo ressurreto ser como o corpo glorioso do Senhor[1539] Porque, a quem eles iro persuadir, rogo aos leitores que me digam, deque o nosso corpo haver de ser infinito, depois de recebido na glria e na imor-talidade celestial? Ora, o apstolo testifica que o nosso corpo ser transformadoe ser semelhante ao corpo glorioso do Senhor.40 E os tais opositores no atribu-em ao corpo glorioso de Cristo qualidades segundo as quais ele est em muitoslugares e no limitado por nenhum espao, visto que no querem atribuir essasqualidades ao nosso corpo glorioso o que seria um erro que, penso eu, ningumaceitaria. [1536] E de nada lhes serve a objeo que s vezes fazem citando o fatode que Jesus Cristo entrou onde estavam os Seus discpulos, estando trancadas asportas.41 A verdade que Ele o fez milagrosamente, porque no arrombou asportas, nem esperou que algum as abrisse, mas, por Seu poder, contra todo equalquer obstculo, Ele se fez presente no recinto. Para completar, tendo entrado,provou para os Seus discpulos a realidade fsica do Seu corpo, mostrando quepodia ser visto e tocado. Cortem isso dele, e no ser mais corpo.

    19.4 No negamos o poder de Deus; exaltamos Sua vontade soberanaAqui, para fazer com que sejamos odiosos, eles nos censuram dizendo que fala-mos pobremente do poder de Deus, o Todo-poderoso. Mas, ou eles foram tola-mente as coisas, ou mentem por m f. Porque, neste caso, no questo do queDeus pode, mas do que Ele quer. E cremos e declaramos tudo o que Lhe aprouvefazer. Ora, a Ele aprouve que Jesus Cristo fosse feito semelhante a Seus irmosem todas as coisas, menos no pecado. E o nosso corpo, que ? No de tal sorteque tem suas medidas certas, ocupa um lugar e por este limitado, palpvel epode ser visto? E por que, replicam eles, Deus no faria que um mesmo corpo

    40 Fp 3.21. Assim como Ele ressuscitou no mesmo corpo no qual tinha padecido e o qual, todavia, teve depoisoutra glria, diferente da de antes, assim tambm ns ressuscitaremos com o mesmo corpo que agora temos,e, contudo, seremos diferentes depois da ressurreio. [Joo Calvino, As Institutas, (1541), II.4]. NE

    41 Jo 20.19,20.

    d. conniveo.e. 1536 e 1539: a;topon, polu,topon, a,schmaa,tiston, a;metron.f. periphrasi.

  • 23

    ocupasse vrios lugares diferentes, no fosse limitado por nenhum lugar ou espa-o definido, e que fosse sem forma alguma e sem medida alguma? Ah insensato!V42 o que ests querendo do poder de Deus: que faa com que um corpo seja aomesmo tempo corpo e no corpo! Como se pedisses que faa com que a luz sejaao mesmo tempo luz e trevas. Mas, Deus, em Seu poder, quer que a luz seja luz;as trevas, trevas; um corpo, corpo. Mas quando pedes que a luz e as trevas nosejam diferentes, que queres tu, seno perverter a ordem estabelecida pela sabe-doria de Deus? , pois, necessrio que o corpo seja corpo e o esprito, esprito,cada qual segundo a lei e a condio criadas por Deus. E a condio do corpo que ele subsiste num determinado lugar, com suas prprias e determinadas medi-das, e em sua forma.

    19.5 Sobre a ascensoNessa condio Jesus Cristo assumiu corpo, no qual certamente infundiuincorrupo e glria, sem contudo eliminar a sua natureza e a sua realidade pr-pria de corpo. Porque o testemunho da Escritura claro e evidente, como quandodeclara: Esse Jesus que dentre vs foi assunto ao cu vir do modo como ovistes subir.43 Pois no que aqueles oponentes obstinados recuam, mas paradizer que, embora Ele venha em forma visvel, entretanto permanece conoscoinvisivelmente. Mas o Senhor testificou que possua carne e ossos que podiamser tocados e vistos. E quanto a mover-se e subir, no mera figura, mas significaa realizao verdadeira daquilo que as palavras dizem.a

    [1539] Mas algum perguntar se devemos atribuir a Cristo alguma regiodo cu. A isso respondo com Agostinho,44 dizendo que essa pergunta muitosuprflua e reflete pura curiosidade. Se cremos que Ele est no cu, o bastante.

    19.6 H distino entre o corpo e o sangue e a respectiva comunicaode bnoAgora, se algum quiser ligar ao po e ao vinho o corpo e o sangue do Senhor,digo que necessrio separar um do outro. Porque, assim como o po distribu-do separadamente do clice, assim tambm necessrio que o corpo, estandounido ao po, seja separado do sangue, que estar encerrado no clice. Como,pois, eles afirmam que o corpo est no po e que o sangue est no clice, e sendoque o po e o vinho so separados um do outro, os tais, por mais que queiramenganar-nos com suas tergiversaes, no podero escapar do fato de que o san-gue, na separao determinada pelas palavras do Senhor, distintob do corpo. Oque eles costumam afirmar, que o sangue est no corpo e que, igualmente, o42

    Para nfase, mantenho aqui o tratamento da segunda pessoa do singular, como no original francs. NT43

    At 1.1144

    Lib. De fide et symbolo, cap. VI.a. sonant.b. secernendum.

  • 24 As Institutas Edio Especial

    corpo est dentro do sangue, alegao frvola e v, visto que os sinais que osencerram foram distinguidos pelo Senhor. De resto, se dirigirmos nossos olhos enossa reflexo ao cu e nos deixarmos levar para, no sacramento, buscar Cristona glria do Seu reino,45 seremos separadamente refeitos e renovados pela carne,sob o sinal do po, e nutridos e fortalecidos por Seu sangue, sob o sinal do vinho,para termos pleno gozo dele.

    [1536] Porque, conquanto Ele tenha levado de ns Sua carne e Seu sangue,subindo ao cu, todavia Ele est assentado destra do Pai. Quer dizer que Elereina com o poder, a majestade e a glria do Pai.46 Este reino no limitado pornenhum espao ou lugar, e no determinado por quaisquer medidas; que JesusCristo mostra o Seu poder onde quer que Lhe agrade faz-lo, no cu e na terra;que Ele se manifesta presente por Seu poder; e que Ele d constante assistnciaaos Seus, vive neles, sustenta-os, confirma-os, d-lhes vigor, e no os atendemenos do que se estivesse corporalmente presente. Em sumaa, Ele nos nutre comSeu prprio corpo, cuja participao Ele propicia aos Seus mediante o poder doSeu Esprito.

    [1536] Essab a presena requerida pelo sacramento, presena que dize-mos que existe e que se manifesta com to grande poder e eficcia que, nosomente inspira nossa alma uma indubitvel confiana na vida eterna,47 mastambm nos torna seguros da imortalidade da nossa carne, a qual j vem a servivificada pela carne de Jesus Cristo imortal, e de algum modo compartilha Suaimortalidade.d Os que vo alm disto no fazem outra coisa seno obscurecer averdade plena e simples.

    [1539] Se algum ainda estiver descontente, venha considerar um pouco jun-to comigo o que aqui estamos sustentando a propsito do sacramento, do qual tudodeve ser reportado f.e Ora, com esta participao do corpo, a que aludimos, noalimentamos a f menos que aqueles que pensam em tirar Jesus Cristo do cu.

    45 Cl 3.1-3.

    46 Por sua ascenso ao cu, Cristo tomou posse do domnio que lhe fora dado pelo Pai, para que ordenasse egovernasse todas as coisas pelo exerccio de seu poder. [Joo Calvino, Efsios, So Paulo, Paracletos,1988, (Ef 4.10), p. 118]. Por sua ascenso ao cu, a glria de sua divindade foi ainda mais ilustrativamenteexibida, e ainda que no mais esteja presente conosco na carne, nossas almas recebem nutrio espiritual deseu corpo e sangue, e descobrimos, no obstante a distncia de lugar, que sua carne real comida, e seusangue, verdadeira bebida. [Joo Calvino, O Livro dos Salmos, So Paulo, Paracletos, 1999, Vol. II, (Sl68.18), p. 661-662]. NE

    47 Irenus, lib. IV, c. XXXIVc.

    c. Essa citao de 1539 no se encontra em 1536, e no mais se acha na margem de 1541.a. Essa frase substitui um desenvolvimento de 1536 (secundum hanc rationem etc.), que precede outros par-

    grafos, os quais, em 1539, so transferidos mais para cima.b. 1536: Ea est etc. 1539: Ea, inquam, est.d. Essas ltimas linhas encontram-se quase textualmente na Instruo de 1537.e. Uma frase que segue em 1536 o texto acima traduzido (si quis morosulus etc.), acima j se acha traduzida

    um pouco diferentemente (p. , n. a).

  • 25

    19.7 Aplicao da norma da f[1536] Notem tambm que a norma da f, pela qual o apstolo48 manda pautartoda interpretao da Escritura,f nos beneficia extraordinariamente neste ponto,sem nenhuma dvida. Ao contrrio, os que contradizem uma verdade to mani-festa, vejam bem a que regra ou prumoa pretendem ater-se. Porquanto quem noconfessa que Jesus Cristo veio em carne no de Deus.49 E esse tipo de gente,embora o disfarce, despoja Cristo da realidade da Sua carne.c

    19.8 O correto entendimento deste assunto afasta-nos da adorao carnaldos elementosA maneira de entender o assunto por ns proposta tambm facilmente nos afasta-r da adorao carnal que alguns, com perversa temeridade, impuseram aosacramento.d Fizeram-no por sua prpria conta, e dizem: Se o corpo est ali,tambm, por conseguinte, a alma e a divindade ali esto com o corpo; porque nopodem ser separados nem divididos. Portanto, Jesus Cristo deve ser adorado ali.Eis a os belos frutos que o nosso entendimento produz quando tomamos a liber-dade de abstrair-nos e desviar-nos da Palavra de Deus, seguindo os sonhos edevaneios do nosso crebro! Mas se os forjadores desses argumentos tivessemhumildemente mantido subordinadas Palavra de Deus todas as reflexes da suamente e do seu sentir, certamente teriam dado ouvidos ao que ela diz: Tomai,comei, bebei, e teriam obedecido ao mandamento pelo qual Deus ordena que osacramento seja tomado, no adorado. Por isso, aqueles que o tomam sem ador-lo, como foi ordenado pelo Senhor, so certificados de que no se desviam domandamento de Deus. Tal certeza a melhor consolao que nos poderia advir aoempreendermos ou comearmos qualquer coisa. Eles contam com o exemplo dosapstolos, sobre os quais no lemos que tenham adorado genuflexos o sacramen-to; o que lemos que tomaram e comeram estando assentados.e Eles contamtambm com o uso e costume da igreja apostlica, a cujo respeito a narrativa doevangelista Lucas informa que a participao dela na comunho no era em ado-rao, mas no partir do po.50 Eles contam igualmente com a doutrina apostlicacom a qual o apstolo Paulo instruiu a igreja dos corntios, aps haver declaradoque tinha recebido do Senhor o que lhes ensinou.51

    48 Rm 12.3.

    49 1Jo 4.2,3b [traduo direta].

    f. 1536: scriptur interpretationem ad fidei analogiam exigere jubet Paulus. 1539: analogiam ad quam omnemscriptur interpretationem exigere jubet Paulus.

    a. amussim.c. 1536: Tu, licet dissimules, eum carnis su veritate spolias. 1539: Isti, licet dissimulent, eum, etc., spoliant.d. A bula do papa Urbano IV (1264): Transiturus de hoc, prescreve a adorao da hstia.

    Farel, no captulo XIX da sua Declarao Sumria, no insiste; e s constata: O po elevado eadorado como Deus.

    e. discumbentes.

    b. 1536: I Joan. 4. 1539: Nenhuma citao. 1541 (por erro): I Jean 3.

  • 26 As Institutas Edio Especial

    19.9 Adorao fundada em conjeturas, no na Palavra de DeusMas os que adoram o sacramento fundam-se sobre suas prprias conjeturas esabe-se l quais argumentos inventados por eles mesmos, e no podem citar a seufavor nem uma s slaba da Palavra de Deus. Porque, quem que tenha mentesbria e sadia ir persuadir-se do que eles querem nos impingir com as palavrascorpo e sangue, a saber, que o corpo de Cristo Cristo? Por certo lhes parece queo que apregoam so dedues dos seus silogismos, que julgam vlidos. Mas, sesuceder que a conscincia deles for agitada por forte tentao ou prova, numinstante os seus silogismos os deixaro espantados, perdidos e confusos, ao severem destitudos da Palavra de Deus, firme e segura, unicamente pela qual anossa alma subsiste quando chamada a prestar contas razo, e sem a qual a todomomento a alma tropea e cai arruinada. Isso tudo suceder com esses mestres,quando virem que a doutrina e os exemplos dos apstolos os contradizem, e quandose derem conta de que so eles prprios os autores das suas fantasias.a Junto comesses ataques movidos contra eles, sobreviro muitos outros aguilhes e remor-sos de conscincia.

    E ento? Ser coisa sem nenhuma conseqncia adorar a Deus dessa forma,sendo que no ordenada por Deus? Havemos de apressar-nos a fazer algo afavor do que no pode citar nenhuma palavra, quando se trata do servio e daglria que se deve prestar a Deus? Ademais, note-se que a Escritura nos explicadiligentemente a ascenso de Jesus Cristo, pela qual Ele retirou da nossa vista apresena do Seu corpo, para nos vetar todo pensamento carnal sobre Ele.52 Note-se mais que toda vez que a Escritura faz meno de Jesus Cristo, ela nos admoes-ta a que elevemos o nosso esprito e O busquemos no cu, onde Ele est assenta-do destra do Pai.53 Por tudo isso devemos ador-lo espiritualmente na glria doscus, em vez de inventar essa perigosa forma de adorao que nos enche de idiastorpes e carnais a respeito de Deus e de Jesus Cristo. Por essa razo, os queinventaram a adorao do sacramento imaginaram isso fora e acima da Escritura,na qual no se pode mostrar nem uma s palavra a seu favor, a qual, caso existis-se, no haveria como esquecer, se isso fosse agradvel a Deus.

    Portanto, eles menosprezaram a Palavra de Deus, que tanto probe acres-centar algo Sua Escritura como eliminar alguma coisa dela;54 e, fabricando umdeus a seu bel-prazer e segundo a sua vontade, abandonaram o Deus vivo, porqueadoram os dons, e no ao Doador. Nisso erraram duplamente, pois arrebataram

    50 At 2.42

    51 1Co 11.23

    52 Ao termos em mente a ascenso, no devemos confinar nossa viso ao corpo de Cristo, mas nossa ateno direcionada para o resultado e fruto dela, ao sujeitar ele cu e terra ao seu governo. [Joo Calvino, OLivro dos Salmos, So Paulo, Paracletos, 1999, Vol. II, (Sl 68.18), p. 660-661]. NE

    53 Cl 3.1-4.

    54 Dt 12.32.

    a. solos sibi autores.

  • 27

    de Deus a honra para transferi-la criatura. E Deus foi desonrado tambm nosentido de que corromperam e profanaram o Seu dom com o seu benefcio quan-do do Seu santo sacramento fizeram um dolo execrvel. Ns, ao contrrio, parano cairmos na mesma cova, fixamosa inteiramente o ouvido, os olhos, o corao,o pensamento e a lngua na sacratssima doutrina de Deus, porque ela a escolado Esprito Santo, timo Mestre. A tal ponto se tem proveito em Sua escola queno h necessidade de acrescentar nada que venha de outros, e se deve ignorartudo o que no ensinado nela.55

    19.10 Em memria da morte do Senhor, at que Ele venhaAt aqui vimos como o sacramento que estamos analisando serve nossa f pe-rante Deus. Ora, visto que o Senhor no sacramento nos traz memria grandeamplitude da Sua bondade, como acima declaramos, e nos exorta a reconhec-la,igualmente nos admoesta a que no sejamos ingratos a to ampla e franca benig-nidade, mas sim que a engrandeamos com louvores que Lhe sejam aceitveis e arememoremos e a celebremos com ao de graas.a Por isso, quando o Senhorcomunicou aos Seus apstolos a instituio deste sacramento, ordenou-lhes quefosse celebrado em Sua memria. Isso o apstolo interpreta em termos de anun-ciar a morte do Senhor.56 Noutras palavras, confessarmos todos juntos e a umas voz que toda a nossa confiana para a vida e a salvao est na morte doSenhor, a fim de que, com a nossa confisso, O glorifiquemos, e, com o nossoexemplo, exortemos os demais a Lhe darem a mesma glria. Aqui vemos maisuma vez qual o objetivo do sacramento, qual seja, celebr-lo em memria damorte de Jesus Cristo. Porque, o fato de que nos ordenado que anunciemos amorte do Senhor at que Ele venha para juzo no outra coisa seno que decla-

    a. figamus.a. Cf. Instruo de 1537: No sejamos ingratos a uma to manifesta benignidade, mas, antes, exaltemo-la com

    louvores prprios e com aes de graas.

    55 A funo peculiar do Esprito Santo consiste em gravar a Lei de Deus em nossos coraes. [Joo Calvino,O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.8), p. 228.] o Esprito Quem nos ensina atravs das Escrituras[J. Calvino, As Institutas, I.9.3]; esta a escola do Esprito Santo [J. Calvino, As Institutas, III.21.3], que a escola de Cristo [Joo Calvino, Efsios, (Ef 4.17), p. 133], escola do Senhor [Joo Calvino, Expo-sio de 1 Corntios, (1Co 1.17), p. 55; (1Co 3.3), p. 100]; e, o Esprito o Mestre [Joo Calvino,Exposio de Romanos, (Rm 1.16), p. 58]; o melhor mestre [Joo Calvino, As Institutas, IV.17.36.]; oMestre interior [Joo Calvino, As Institutas, III.1.4; III.2.34; IV.14.9]. O Esprito de Deus, de quememana o ensino do evangelho, o nico genuno intrprete para no-lo tornar acessvel. [Joo Calvino,Exposio de 1 Corntios, (1Co 2.14), p. 93]. .... Ele que nos ilumina com a Sua luz para nos fazerentender as grandezas da bondade de Deus, que em Jesus Cristo possumos. To importante o Seu minis-trio que com justia podemos dizer que Ele a chave com a qual so abertos para ns os tesouros do reinocelestial, e que a Sua iluminao so os olhos do nosso entendimento, que nos habilitam a contemplar osmencionados tesouros. Por essa causa Ele agora chamado Penhor e Selo, visto que sela em nosso coraoa certeza das promessas. Como tambm agora Ele chamado mestre da verdade, autor da luz, fonte desabedoria, conhecimento e discernimento. [Joo Calvino, As Institutas, (1541), II.4] Portanto, Se porventuradesejamos lograr algum progresso na escola do Senhor, devemos antes renunciar nosso prprio entendimen-to e nossa prpria vontade. [Joo Calvino, Exposio de 1 Corntios, (1Co 3.3), p. 100]. NE

    56 1Co 11.26. Traduo direta.

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    remos, mediante confisso feita por nossos lbios, o que a nossa f reconhece nosacramento: que a morte de Jesus Cristo a nossa vida. Temos a o segundo usodeste sacramento no que se refere confisso exterior.

    19.11 A Ceia nos exorta ao amor, paz e unioEm terceiro lugar, da vontade do Senhor que o sacramento da Ceia nos sirva deexortao em tal medida que supere tudo mais no sentido de incitar-nos e infla-mar-nos com maior veemncia ao amor, paz e unio.b Porque por ele o Senhornos comunica o Seu corpo, e, assim, Ele se faz inteiramente um conosco, e nosfaz um com Ele. Pois bem, visto como s se trata de um corpo e no mais, do qualEle a todos nos faz participantes, deve suceder necessariamente que, por essaparticipao sejamos feitos, todos ns juntos, um s corpo, sendo que essa unida-de nos representada pelo po que nos oferecido como sacramento. Pois, assimcomo o po feito de muitos gros de trigoa e estes so de tal maneira misturadose fundidos que no se pode distinguir gro de grob nem separar uns dos outros,de igual modo devemos tambm estar juntos e unidos de bom grado e de talmaneira que no haja entre ns nenhuma disputac e nenhuma diviso. Essa verda-de prefiro explicar com estas palavras do apstolo Paulo: O clice da bnoque abenoamos a comunho do sangue de Cristo. E o po que partimos acomunho do corpo de Cristo.57 Somos, ento, um mesmo corpo, todos ns queparticipamos de um mesmo po.

    19.12 Haver proveito real da Ceia, se houver unio e comunho com Cristo,de corao e na prticaTeremos muito bom proveito deste sacramento, se o seguinte conhecimento forgravado e impresso em nosso corao: que nenhum dos nossos irmos pode serdifamado, escarnecido ou ofendido de algum modo, para que no ocorra que,com o nosso irmo, firamos, difamemos, tratemos com escrnio, menosprezemosou ofendamos Jesus Cristo; que no podemos ter discrdia nem separao entrenossos irmos sem discordar e ser separados de Jesus Cristo; que no podemosamar Jesus Cristo se no amamos os nossos irmos; que a mesma solicitude e omesmo desvelo que temos no trato do nosso corpo tenhamos com os nossos ir-mos, que so membros do nosso corpo; que, assim como nenhuma parte donosso corpo pode sofrer alguma dor sem que essa dor seja sentida em todas asoutras partes, assim tambm no devemos permitir que o nosso irmo seja afligi-

    57 1Co 10.16. Traduo direta.

    b. J no incio do captulo XIX da sua Declarao Sumria, Farel escrevia: A santa mesa visa levar-nos aentender que somos um; a Instruo de 1537 diz: Que nos enlacemos mutuamente por uma unidade talque seja como a que faz que os membros do corpo, ligados entre si, formem um todo estreitamente unido.

    a. b. Essa imagem encontra-se na Didaqu dos doze apstolos, IX, 4.c. dissidii.

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    do por algum mal de que no participemos igualmente pela compaixo58. No ,pois, sem razo que muitas vezes Agostinho chamou este sacramento de lao deamor.59 Porquanto, que aguilho poderia ser mais spero e mais provocante paranos incitar a termos mtuo amor entre ns do que o fato de que Jesus Cristo, dando-se a ns, no somente nos convida a pratic-lo e nos mostra por Seu exemplo quenos demos e nos sujeitemosa uns aos outros, mas tambm que, uma vez que Ele sefez comum a todos, tambm faz que realmente sejamos todos um nele?b

    Mas, assim como vemos que este sacro po da Ceia do Senhor uma viandaespiritual suave e saborosa para aqueles aos quais ele d reconhecerem que JesusCristo sua vida e para os quais ele uma exortao ao amor mtuo entre osirmos, assim tambm, por outro lado, veneno mortal para aqueles dos quais naparticipao do sacramento no demonstrada f e os quais no so incitados aolouvor e ao amor.

    [1539] Porque, como acontece com uma vianda fsica ou material quandoesta encontra o estmago ocupado por humores ou lquidos nocivos, que ela secorrompe e faz mais mal que bem, da mesma forma esta vianda espiritual, seacaso cair numa alma poluda pela malcia e pela maldade, ir precipitar-se amaior runa. No por defeito do alimento espiritual, mas porque no h purezanaqueles que esto maculados pela infidelidade, no sendo santificadosc pelabno de Deus.

    [1536] Assim porque, como diz o apstolo Paulo, aquele que comer opo ou beber o clice do Senhor indignamente, ser ru do corpo e do sangue doSenhor... pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juzo parasi.60 Observe-se que nessa passagem no discernir o corpo e o sangue do Senhore tom-losa indignamente a mesma coisa. Pois esse tipo de gente, na qual no hnenhuma centelha de f, gente vazia de qualquer sentimento de amor, e que seintrometeb grosseiramente61 para participar da Ceia do Senhor, no discernec ocorpo do Senhor. Porquanto, uma vez que tais pessoas no crem que o corpo sua vida, desonram-no, e, quanto lhes possvel, despojam-no totalmente da suadignidade. Assim, tomando-o nessas condies, o profanam e o maculam. E, vis-

    58 Ter compaixo, etimologicamente, sofrer com, sentir com. Refere-se empatia que deve ser real entre osirmos em Cristo. NT

    59 In Joh. Tractat. 26, 13 (Migne 35, 1615), etc.

    60 1Co 11.27,29

    61 Literalmente: como porcos. NT

    a. devoreamus ac tradamus.b. Instruo de 1537: Nenhum aguilho poderia ser mais spero nem mais ferino para nos comover e para incitar

    entre ns o amor mtuo, do que quando Cristo, dando-se a ns, no nos convida s por Seu exemplo a que nosdemos e nos sujeitemos uns aos outros, mas muito mais pelo fato de que, assim como Ele se fez comum a ns[um s conosco], assim tambm nos faz todos um nele (texto mais prximo do latim de 1536).

    c. 1539: sanctificatum. 1541 tem, por erro, sanctifiez.a. accipere.b. proripiunt.c. discernit. 1541 tem, por erro: discernans.

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    to que discordam dos seus irmos e a eles no se unemd, atrevem-se a misturar osagrado smbolo e sinal do corpo de Jesus Cristo com as suas divergncias ediscrdias, e pouco lhes importa que o corpo de Jesus Cristo seja dividido edespedaado membro a membro. Portanto, no sem razo que eles so rus docorpo e do sangue do Senhor, que com horrvel impiedade eles corrompem demaneira to vil. Assim, por essa manducao indigna, eles recebem a merecidacondenao. Porque, visto que eles no tm f eme Jesus Cristo, todavia, pelorecebimento da Ceia declaramf que no tm salvao em nenhum outro seno emJesus Cristo, e que renunciam a toda e qualquer confiana que no seja nele. Comisso eles se acusam a si mesmos, do testemunho contra si mesmos e assinam asua prpria sentena de condenao. Acrescente-se a tudo isso o fato de que,estando por dio ou malevolncia separados e distanciados dos seus irmos, querdizer, dos membros de Jesus Cristo, contudo testificam que a nica salvao estem ter comunicao ou comunho com Jesus Cristo e estar unido a Ele.62

    Note-se de passo que a passagem em apreo muitas vezes inutilmentecitada como contrria, alegando-se que ela prova a presena local ou fsica docorpo no sacramento. Reconheo e declaro que nela o apstolo Paulo fala docorpo real e verdadeiro de Jesus Cristo; mas bem se pode ver em que sentido odiz. Da, no h necessidade de distrair-nos respondendo a essa objeo.

    Pela razo dita acima, o apstolo Paulo ordena que o homem se examine asi mesmo antes de comer do po e beber do clice. Porque, como eu o interpreto,ele quer que cada um pense em si e consigo mesmo para verificar: se, com confi-ana de corao ele aceita Jesus Cristo como o seu Salvador e a viva voz declaraque O reconhece como tal; se, a exemplo de Jesus Cristo, est pronto a dar-se aseus irmos e a viver em comum com aqueles com os quais ele v que Jesus temcomunho; se, assim como reconhece Jesus Cristo, tem igualmente todos os seusirmos como membros do Seu corpo; e se deseja e est disposto a consol-los,cuidar deles e ajud-los como seus prprios membros.

    No significa que pretendemos que estes deveres de f e amor podem serperfeitos em ns no tempo presente; significa, porm, que devemos esforar-nos,e demonstrar empenhadamente nosso desejo e nossos votos, no sentido de que a62

    Portanto comer indignamente desonrar o uso puro e legtimo pelo nosso prprio abuso. Esta a razo porque h vrios graus de indignidade, por assim dizer; e alguns pecam muito mais gravemente, enquanto queoutros o fazem s levemente. Nenhum fornicador, perjuro, brio ou impostor, sem indcio de penitncia,pode forar o caminho. Visto que indiferena deste nvel produz a caracterizao de um cruel insulto aCristo, no h dvida de que algum que recebe a Ceia assim, recebe sua prpria destruio. Outros sechegam, e no se acham sob o domnio de algum erro bvio e perceptvel, no entanto no esto preparadosem seu corao como o deveriam. Visto que esta displicncia ou indiferena sinal de irreverncia, tambmmerece a punio de Deus. Por isso, visto que h vrios graus de comer indignamente, o Senhor infligepunies mais leves em alguns, e mais severas em outros. [Joo Calvino, Exposio de 1 Corntios, (1Co11.27), p. 361]. NE

    d. alienati ac dissidentes.e. repositam.f. profitentur.

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    nossa f incipiente seja cada vez mais aumentada e fortalecida cada dia, e de queo nosso dbil amor e a nosso fraco sentimento de caridade ganhem fora e vigor.

    19.13 No h por que atormentar os crentes sobre a questo da participaodigna ou indignaAlguns, querendo preparar os homens para a digna participao do sacramento,tm afligido e atormentado cruelmente as pobres conscincias, sem todavia lhesensinarem nada do que necessrio ensinar. Dizem eles que para comer digna-mente a Ceia preciso estar em estado de graa. E interpretam que estar emestado de graa estar purificado de todo pecado.

    Por esse ensino, todos os homens que estiveram e esto na terra seriamexcludos do uso deste sacramento. Porque, se questo de considerarmos a nos-sa dignidade em ns, significa que esta feita por ns! Isso s nos pode causarruna e confuso. Ainda que nos empenhemos com todas as nossas foras, nadaconseguiremos, seno que acabaremos sendo mais indignos ainda, isso quando aduras penas lograrmos encontrar alguma dignidade em ns.

    Para tentar curar esse mal, inventaram um meio de adquirir dignidade. oseguinte: Havendo ns examinado devidamente a nossa conscincia, expurga-mos a nossa indignidade pela contrio, pela confisso e pela satisfao.a63 Disse-mos acima,b no lugar mais apropriado para tratamento deste assunto, de que ma-neira se d esse expurgo ou purificao. No que se refere ao presente propsito,digo que esses remdios e consolos so por demais pobres e frvolos para asconscincias perturbadas, abatidas, aflitas e aterradas pelo horror do seu pecado.Porque, se o Senhor, para Sua defesa, no admite participao da Sua Ceia ningumcque no seja justo e inocente, necessria no pequena segurana para tornar al-gum certo de que possui a justia que ouviu dizer que Deus exige. E como sepoder confirmar a segurana de que aqueles que se julgam em dia com Deusfizeram o que est em seu poder fazer? E ainda quando isso fosse possvel, quandoser que algum se atrever a garantir que fez tudo o que pde? Dessa maneira,sendo que no nos oferecida nenhuma segurana certa e clara da nossa dignidade,continuar para sempre fechada e trancada a porta de entrada para o recebimentodo sacramento por aquela proibio horrvel que importa em que comem e bebemjuzo para si aqueles que comem e bebem indignamente do sacramento.64

    63 Ao pela qual se repara uma ofensa ou um pecado. Satisfao sacramental, preces ou prticas impostaspelo confessor ao penitente. NT

    64 Chegamos, porm, seguinte pergunta: Quando Paulo nos intima a um auto-exame, qual seria a naturezadisto? A concluso dos papistas que isto consiste em confisso auricular. Ordenam a todos os que estopara receber a Ceia a examinarem suas vidas cuidadosa e minuciosamente, a fim de que aliviem-se de todosos seus pecados aos ouvidos de um sacerdote. Eis o seu mtodo de preparao! Mas, quanto a mim, defendo

    a. Em sua Declarao Sumria reeditada em 1534, Farel tambm fala em confisso, contrio (cap. XXIX) esatisfao (XXXI).

    b. Cap. V (t. II, p. 171 da presente edio.139 1536 tinha, porm: posthac.139

    Na presente traduo brasileira, Vol. II, Captulo V, logo na primeira pgina. NTc. neminem.

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    19.14 Demonstrao dessa doutrina infeliz e indicao do seu autorAgora fica fcil julgard que doutrina essa, e qual o seu autor essa doutrinaque despoja os pobres pecadores de toda a consolao deste sacramento, no qualnos so oferecidos todos os dulores do Evangelho. Certamente o Diabo, para sero mais breve possvel, no conhece melhor meio de pr a perder os homens doque engan-los e bestific-losa dessa forma, para que no sintam o gosto e o sabordo alimento com o qual o bondoso Pai celestial os quer saciar. Portanto, para notropearmos nessa confuso e no cairmos nesse abismo, saibamos que estassantas viandas so remdio para as nossas molstias, consolo e fortaleza para ospecadores e digna esmola para os pobres; e que de nada serviriam para os sos,bpara os justos e para os ricos, se que se pode encontrar alguns destes. Porque,visto que nelas Jesus Cristo nos dado como alimento, entendemos m