joão calvino - institutas 2 - tradução do latim.by.edwards

562
As Instituta s o u Tratado da Religião Cristã vol. 2

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Estudo biblico

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Joao Calvino - Institutas Volume 2

As Institutas

ouTratado da Religio Crist vol. 2

Edio clssica (latim)Joo Calvino

N D I C EEM TERMOS DOS TTULOS DOS CAPTULOS

E CABEALHOS S SEES DE CADA CAPTULO

CAPTULO 1

PELA QUEDA E DEFECO DE ADO TODO O GNERO HUMANO FICOU SUJEITO MALDIO E DECAIU DA CONDIO DE ORIGEM:

ONDE SE TRATA DO PECADO ORIGINAL

1. Natureza e propsito do conhecimento de ns mesmos ............................................................... 00

2. O conhecimento prprio embotado pela autoglorificao ............................................................ 00

3. As duas facetas do real conhecimento de ns mesmos ................................................................. 00

4. Desobedincia, o fator da queda no den .................................................................................... 00

5. O pecado original de Ado afeta toda sua posteridade ................................................................. 00

6. A depravao admica propagada a todos os seus descendentes .................................................. 00

7. A transmisso da depravao admica a toda a posteridade ......................................................... 00

8. A real natureza do pecado original ............................................................................................... 00

9. O pecado infesta e domina a todo o ser humano .......................................................................... 00

10. O pecado procede do homem, no de Deus ............................................................................... 00

11. A depravao est na prpria natureza, entretanto no pertence natureza como tal

CAPTULO II

O HOMEM EST AGORA PRIVADO DE LIBERDADE DA VONTADE

E REDUZIDO A MSERA SERVIDO

1. Perigos a serem evitados .............................................................................................................. 00

2. As pressupostas faculdades da alma e sua funo ........................................................................ 00

3. A vontade humana, na opinio dos filsofos, livre e soberana .................................................. 00

4. Os patrsticos, ainda que um tanto ambiguamente, esposam o livre-arbtrio ................................ 00

5. Acepes de vontade e de liberdade nos patrsticos ..................................................................... 00

6. Graa operante e graa cooperante e o livre-arbtrio .................................................................... 00

7. Inconvenincia da expresso livre-arbtrio .................................................................................. 00

8. A concepo agostiniana da liberdade da vontade ....................................................................... 00

9. Outros patrsticos ao lado de Agostinho ...................................................................................... 00

10. O senso de nossa dependncia para com Deus o caminho da vitria ...................................... 00

11. Verdadeira humildade: a nica atitude que nos convm ............................................................. 00

12. Desfeitos os dons sobrenaturais, corrompidos os naturais, contudo o homem ainda possui a razo

13. A compreenso humana na esfera das coisas terrenas e da sociedade organizada ....................... 00

14. A compreenso humana na rea das artes .................................................................................. 00

15. A compreenso humana a esplender na variada esfera do saber e do conhecimento secular ...... 00

16. As capacidades humanas so dons do Esprito, ainda que agora estejam corrompidas .............. 00

17. Sntese: as capacidades humanas so dons da divina graa ........................................................ 00

18. Incapacidade da razo humana em penetrar a verdade de Deus ................................................. 00

19. O testemunho da Bblia quanto cegueira espiritual das criaturas humanas .............................. 00

20. Somente pela iluminao do Esprito Santo se pode conhecer a Deus, e as coisas de Deus ....... 00

21. S de Deus advm o remdio para a cegueira humana ............................................................... 00

22. A prpria lei natural atesta a culpabilidade humana ................................................................... 00

23. A incoerncia do arbtrio natural no homem ............................................................................... 00

24. A insuficincia humana ante o cumprimento da lei ..................................................................... 00

25. A iluminao do Esprito a condio do bom entendimento da verdade de Deus .................... 00

26. No s o entendimento que deficiente, mas tambm a vontade ............................................. 00

27. A vontade s pode querer o genuno bem atravs do Esprito ..................................................... 00

CAPTULO III

DA NATUREZA CORROMPIDA DO HOMEM NADA PROCEDE SENO O CONDENVEL

1. A natureza humana totalmente depravada ................................................................................. 00

2. A depravao humana confirmada pelo que diz Paulo em Romanos 3 ...................................... 00

3. A graa divina restringe a operao da depravao humana .......................................................... 00

4. graa especial de Deus se devem at mesmo as aes dignas que o homem natural pratica ...... 00

5. Sendo corrompida a natureza humana, a vontade se torna escrava do pecado .............................. 00

6. Somente pela obra da graa em nossa regenerao somos capacitados a fazer o bem que Deus

requer ........................................................................................................................................... 00

7. A revitalizao da vontade obra da graa, no do sinergismo ................................................... 00

8. A Bblia ensina que s de Deus procede o bem que h em ns ..................................................... 00

9. Tambm das preces e splicas da Bblia se v que tudo que de bom podemos fazer provm de

Deus ............................................................................................................................................. 00

10. De ns no procede sequer um mnimo intento de fazer o que Deus requer; isso provm

somente da graa de Deus ........................................................................................................... 00

11. Perseverana: obra exclusiva de Deus, no produto do mrito humano .................................... 00

12. Nada fazemos em colaborao com a graa, seno mediante a operao da graa ........................ 00

13. Agostinho sustenta que a vontade humana totalmente acionada pela graa .............................. 00

14. Agostinho no cancela a vontade humana, mas diz ser ela totalmente dependente da graa ....... 00

CAPTULO IV

COMO DEUS OPERA NO CORAO DOS HOMENS

1. A vontade humana cativa do pecado, escravizada ao Diabo ....................................................... 00

2. A trplice operao de Deus, do homem e de Satans nas aes ms ........................................... 00

3. A ao de Deus em tal caso no simples prescincia, nem mera permisso .............................. 00

4. A ao de Deus nos mpios e atravs deles .................................................................................. 00

5. Satans tambm instrumento do poder de Deus ........................................................................ 00

6. A operao divina nas prprias aes ordinrias do homem ........................................................ 00

7. A prpria experincia evidencia a operao divina em todos os fatos da vida humana ................. 00

8. O livre-arbtrio, no uma questo de levar a bom termo o que do querer, mas do livre querer como tal ........................................................................................................................................ 00

CAPTULO V

REFUTAO DAS OBJEES QUE SE COSTUMAM INTERPOR EM DEFESA DO LIVRE-ARBTRIO

1. Primeira objeo: o pecado necessrio no culpvel; o pecado livre evitvel ........................ 00

2. Segunda objeo: galardo e castigo deixam de ser procedentes ................................................. 00

3. Terceira objeo: improcedente a distino entre o bom e o mau .............................................. 00

4. Quarta objeo: so descabidas as admoestaes e imposies ticas .......................................... 00

5. Funo e eficcia das exortaes ao rprobo e ao justo ................................................................ 00

6. Os preceitos da lei no so a medida de nosso livre-arbtrio ........................................................ 00

7. A lei consiste de preceitos e promessas; estas inculcam a operao da graa ............................... 00

8. A evidncia quanto operao da graa patenteada nas trs categorias de passagens retro

referidas ........................................................................................................................................ 00

9. A converso no um produto conjunto de Deus e do homem ................................................... 00

10. Tampouco o livre-arbtrio reabilita as promessas da Escritura ..................................................... 00

11. Tampouco as reprimendas da Escritura respaldam o livre-arbtrio ............................................... 00

12. Tampouco o livre-arbtrio respaldado por Deuteronmio 30.11-14 .......................................... 00

13. Nem mais favorveis ao livre-arbtrio so as referncias bblicas ao alienar-se Deus s aes humanas ..................................................................................................................................... 00

14. Nem devem nossos atos bons ser atribudos natureza em si, produto real de livre-arbtrio ..... 00

15. A graa nos renova a vontade, donde as aes louvveis serem fruto da graa que nos rege a vontade ....................................................................................................................................... 00

16. Gnesis 4.7 no respalda o livre-arbtrio ................................................................................... 00

17. Tampouco Romanos 9.16 e 1 Corntios 3.9 ............................................................................... 00

18. Nem Eclesistico 15.14-17 ........................................................................................................ 00

19. Muito menos Lucas 10.30 ......................................................................................................... 00

CAPTULO VI

IMPE-SE AO HOMEM PERDIDO BUSCAR EM CRISTO A REDENO

1. S em Cristo, o nico Mediador, h aceitao do pecador diante de Deus ................................... 00

2. Mesmo no Antigo Testamento a f salvfica se polariza em Cristo, o Mediador ........................... 00

3. Em Cristo, o Mediador, se acham polarizadas as promessas de livramento da Antiga .................. 00

Dispensao ................................................................................................................................. 00

4. O homem no pode chegar-se a Deus seno em Cristo, o Mediador ............................................ 00

CAPTULO VII

A LEI FOI DADA NO PARA QUE EM SI RETIVESSE O POVO ANTIGO, MAS, AO CONTRRIO, PARA QUE FOMENTASSE A ESPERANA

DA SALVAO EM CRISTO AT SUA VINDA

1. A religio mosaica, firmada no pacto da graa, se polariza em Cristo .......................................... 000

2. Cristo, o real cumprimento da lei, que a ele conduz .................................................................. 000

3. A lei nos mostra uma perfeio que jamais atingimos, pela qual nos leva, necessariamente, condenao ................................................................................................................................ 0004. As promessas da lei, contudo, nem so fteis, nem irrelevantes ................................................ 000

5. Homem nenhum jamais pde cumprir a lei integralmente .......................................................... 000

6. A lei evidencia nossa deplorvel condio de pecado ................................................................. 000

7. A lei evidencia nossa iniludvel condio de culpa .................................................................... 000

8. A lei nos leva a recorrer graa ................................................................................................. 000

9. O respaldo desta funo recursiva da lei em relao graa, em Agostinho .............................. 000

10. A funo inibidora da lei a restringir a prtica do mal ............................................................. 000

11. A funo inibidora da lei quando ativa no ainda no-regenerado ............................................... 000

12. A funo iluminadora da lei na vida dos prprios regenerados ................................................ 000

13. A funo teleolgica da lei para o crente ................................................................................... 000

14. A lei est cancelada no tocante maldio, no a seu magistrio ............................................ 000

15. Cristo nos livra da maldio da lei ........................................................................................... 000

16. Abolida a lei cerimonial no que tange a seu uso ....................................................................... 000

17. Cancelado o ttulo de dvida representado pela lei cerimonial .............................................. 000

CAPTULO VIII EXPOSIO DA LEI MORAL

1. O Declogo, a divina formulao da Lei Moral ......................................................................... 000

2. Teor e contedo da Lei Moral .................................................................................................... 000

3. A lei conduz inexoravelmente condenao e ao desespero, de que s a misericrdia de Deus

pode livrar .................................................................................................................................. 000

4. O alvo real das promessas e ameaas abundantes na lei ............................................................... 000

5. A lei ministra a perfeita justia a que reclama obedincia integral ............................................. 000

6. A lei no apenas formal e exterior, mas espiritual e interior. Da reclamar ela pureza de

esprito, no mera observncia externa .......................................................................................... 000

7. Cristo revela o real sentido da lei ............................................................................................... 000

8. A correta interpretao dos mandamentos ..................................................................................... 000

9. O alcance do mandamento luz de seu propsito ...................................................................... 000

10. O mandamento, ao expressar a violao mais grave, acentua o quanto Deus abomina a cada

e a qualquer pecado correlato ..................................................................................................... 000

11. As duas tbuas da lei e sua referncia ....................................................................................... 000

12. Os Mandamentos so dez: sua diviso conveniente ................................................................... 000

13. O prefcio ................................................................................................................ ................ 000

14. A relao especial de Deus com seu povo contida na afirmao: Eu sou o Senhor teu Deus 000

15. A relao especial do povo com seu Deus implcita nas palavras:

Que te tirei da terra do Egito, da casa da servido .................................................................. 000

16. O primeiro mandamento: No ters outros deuses diante de mim ............................................ 000

17. O segundo mandamento preceitua o culto espiritual de Deus .................................................. 000

18. O segundo mandamento proclama a inexorvel reao de Deus contra os transgressores

deste preceito .............................................................................................................................. 000

19. Teor e sentido da clusula: que visita a iniqidade dos pais nos filhos... .............................. 000

20. Visitar Deus a iniqidade dos pais nos filhos no equivale a violao de sua justia .................. 000

21. Teor e sentido da promessa contida na clusula: e usa de misericrdia para com milhares .. 000

22. Teor e aplicao do terceiro mandamento ................................................................................ 000

23. Carter sagrado do juramento pelo nome de Deus ................................................................... 000

24. O falso juramento uma profanao do nome de Deus ............................................................ 000

25. O juramento leviano, suprfluo ou temerrio .......................................................................... 000

26. Cristo, em Mateus 5.34-37, no probe todo e qualquer juramento ........................................... 000

27. O juramento permitido: necessrio, reverente, condigno ......................................................... 000

28. Teor e aplicao do quarto mandamento ................................................................................. 000

29. A importncia do sbado e seu sentido espiritual .................................................................... 000

30. O sentido tipolgico do dia stimo .......................................................................................... 000

31. Cristo, o pleno cumprimento do sbado .................................................................................... 000

32. Ainda que cancelado, h no sbado aspectos vigentes ............................................................... 000

33. O esprito e funo da observncia do domingo ...................................................................... 000

34. O genuno sentido do domingo ................................................................................................ 000

35. Teor e aplicao do quinto mandamento ................................................................................... 000

36. O princpio geral, ilustrado na reverncia para com os pais ....................................................... 000

37. A promessa anexa ao quinto mandamento ............................................................................... 000

38. A maldio implcita na desobedincia ao quinto mandamento e qualificao da obedincia requerida ................................................................................................................................... 000

39. Teor e aplicao do sexto mandamento ................................................................................... 000

40. A dupla razo que embasa ao sexto mandamento .................................................................... 000

41. Teor e aplicao do stimo mandamento .................................................................................. 000

42. A condio da opo celibatria ............................................................................................... 000

43. A necessidade da bno do matrimnio .................................................................................... 000

44. A vida conjugal bem como todo nosso ser deve pautar-se pelo decoro e pelo recato .................. 000

45. Teor e aplicao do oitavo mandamento .................................................................................. 000

46. A real observncia deste oitavo mandamento ........................................................................... 000

47. Teor e aplicao do nono mandamento ..................................................................................... 000

48. A maledicncia e a mordacidade so violaes do nono mandamento ....................................... 000

49. Teor e aplicao do dcimo mandamento ................................................................................. 000

50. O esprito e a relevncia do dcimo mandamento ..................................................................... 000

51. A lei espelha a verdadeira piedade, no meramente seus rudimentos ......................................... 000

52. A lei referida na Escritura, mais amide em termos da segunda tbua, expressa mais

explicitamente a retido de vida que se requer do homem ....................................................... 000

53. A essncia da lei f para com Deus e amor para com o prximo .............................................. 000

54. Amor ao prximo a norma do viver ....................................................................................... 000

55. O prximo toda e qualquer criatura humana .......................................................................... 000

56. O absurdo escolstico da reduo deste preceito a mero conselho evanglico ......................... 000

57. Amar o prximo reconhecidamente um mandamento, no um conselho evanglico aleatrio 000

58. Improcedncia da noo de pecados veniais ............................................................................ 000

59. Todo pecado, na realidade, um pecado mortal ........................................................................ 000

CAPTULO IX

EMBORA FOSSE CONHECIDO AOS JUDEUS SOB A LEI, CRISTO, CONTUDO, SE EXIBIU PLENAMENTE NO EVANGELHO

1. A superioridade revelacional da dispensao do evangelho ....................................................... 000

2. O evangelho a clara manifestao do mistrio de Cristo ......................................................... 000

3. A falcia de Serveto de que o evangelho aboliu todas as promessas da lei ................................ 000

4. O evangelho no se contrape lei, nem a exclui ..................................................................... 000

5. A posio singular de Joo Batista entre a lei e o evangelho ..................................................... 000

CAPTULO X

DA SIMILARIDADE DE ANTIGO E NOVO TESTAMENTOS

1. Razo e perspectiva da abordagem desta matria ....................................................................... 000

2. A unidade dos dois Testamentos ou Pactos ................................................................................. 000

3. A unidade dos Testamentos em termos das promessas da vida futura ........................................ 000

4. A unidade dos Testamentos em termos da salvao em Cristo e sua mediao .......................... 000

5. A unidade dos Testamentos em relao aos sinais do pacto, especialmente os sacramentos ......... 000

6. Refutao da objeo calcada em Joo 6.49, 54 .......................................................................... 000

7. A unidade dos Testamentos em relao Palavra e vida eterna de que usufruram tambm

os patriarcas ............................................................................................................................... 000

8. Mesmo no Antigo Testamento a unio de Deus com seu povo era espiritual e outorgava a vida

eterna ........................................................................................................................................... 000

9. Nem pela morte se rompem os laos da unio de Deus com seu povo ........................................ 000

10. A anelada bem-aventurana de seu povo no terrena, como se v de Ado e No .................... 000

11. A vida terrena de Abrao uma seqncia de duras provaes .................................................. 000

12. A carreira terrena de Isaque e de Jac no menos um contnuo de tribulaes ....................... 000

13. A bem-aventurada dos patriarcas posta na vida eterna ............................................................. 000

14. O anseio dos patriarcas pela vida futura luz de palavras de Jac, Balao e Davi ...................... 000

15. A vida futura nos arroubos de Davi e no vaticnio de Isaas ..................................................... 000

16. Mais exclamaes de Davi quanto bem-aventurana dos justos, no possvel na misria

desta vida .................................................................................................................................. 000

17. S na vida futura sero atendidos os anseios dos justos e cumpridas as promessas de que so

alvo ............................................................................................................................................. 000

18. A bem-aventurana futura do justo em contraste com a misria do mpio ................................ 000

19. A esperana da vida futura na palavra de J ............................................................................. 000

20. A esperana da vida futura no ensino dos profetas ................................................................... 000

21. A esperana da vida futura na viso de Ezequiel 37 e Isaas 26 ................................................. 000

22. A esperana da vida futura em outras duas passagens: uma de Isaas e outra de Daniel .............. 000

23. A concluso incontestvel: o Antigo Testamento e o pacto nele contido polarizados nas

promessa da vida futura ........................................................................................................... 000

CAPTULO XI

DA DIFERENA DOS TESTAMENTOS ENTRE SI

1. A primeira de cinco diferenas que podem ser salientadas entre os dois Testamentos, diferenas

que, porm, no lhes afetam a unidade ........................................................................................ 000

2. As bnos materiais do Antigo Testamento eram sombras da bno espiritual da dispensao

do evangelho ................................................................................................................................ 000

3. A bem-aventurana futura no era apenas tipificada nas bnos materiais; mas tambm a

perdio eterna se espelhava nos castigos terrenos ....................................................................... 000

4. A segunda diferena: no Antigo Testamento jazem as sombras; no Novo, a realidade .................. 000

5. A dispensao veterotestamentria como que estgio de infncia .............................................. 000

6. Nem mesmo os grandes luminares da Antiga Dispensao transcenderam esse estgio de

infncia ........................................................................................................................................ 000

7. A terceira diferena: a lei literal mortificante e transitria; o evangelho espiritual, vivificante

e eterno ......................................................................................................................................... 000

8. Exposio mais pormenorizada desta diferena ........................................................................ 000

9. A quarta diferena: a lei regime de servido; o evangelho, regime de liberdade ....................... 000

10. A dispensao da lei meramente promissiva; a dispensao do evangelho consumativa ....... 000

11. A quinta diferena: o Antigo Testamento voltado para um povo; o Novo polarizado para

todos os povos ........................................................................................................................... 000

12. Diferena entre Antigo e Novo Testamentos em relao vocao dos gentios ....................... 000

13. Essas diferenas dos Testamentos longe esto de implicar inconstncia ou mutabilidade em

Deus .......................................................................................................................................... 000

14. A soberana liberdade de Deus de a tudo dispor segundo seus propsitos ................................ 000

CAPTULO XII

PARA QUE DESEMPENHASSE A FUNO DE MEDIADOR, NECESSRIO FOI QUE CRISTO SE FIZESSE HOMEM

1. A insuficincia mediatorial do homem e a natureza teantrpica do verdadeiro Mediador ............ 000

2. Cristo, o Mediador celestial, assume, na encarnao, a natureza humana com o fim de nos

redimir ........................................................................................................................................ 000

PAGE 3. Cristo, o Mediador celestial, na encarnao assume a natureza humana para prestar, em nosso

lugar, a obedincia e expiao que devamos prestar .................................................................. 000

4. A encarnao de Cristo no teve outro propsito, seno nossa redeno ................................... 000

5. Improcedncia da tese de que a encarnao de Cristo poderia ocorrer parte da redeno

humana .......................................................................................................................................... 000

6. A noo que Osiandro tinha da imagem de Deus e sua improcedncia ......................................... 000

7. A doutrina ilusria de Osiandro discutida e refutada pormenorizadamente ................................ 000

CAPTULO XIII

CRISTO SE REVESTIU DA VERDADEIRA SUBSTNCIA DA CARNE HUMANA

1. Realidade da natureza humana de Cristo ................................................................................... 000

2. O absurdo da tese de marcionitas e maniqueus em sua negao da real humanidade de Cristo ... 000

3. Consideraes adicionais em refutao da tese maniquo-marcionita contra a humanidade real

de Cristo ..................................................................................................................................... 000

4. Cristo, homem real, contudo sem pecado, unidas a divindade e a humanidade ........................... 000

CAPTULO XIV

COMO AS DUAS NATUREZAS DO MEDIADOR FORMAM UMA PESSOA NICA

1. Duas pessoas em Cristo, porm uma s pessoa ......................................................................... 000

2. Atributos prprios de cada natureza e sua inter-relao na pessoa de Cristo .............................. 000

3. A unidade da pessoa do Mediador .............................................................................................. 000

4. Em Cristo as duas naturezas no se fundem, nem se separam; ao contrrio, so unidas,

porm distintas ............................................................................................................................ 000

5. Cristo, o Filho de Deus desde a eternidade, improcedncia da tese de Serveto .......................... 000

6. Cristo, Filho de Deus e Filho do Homem ................................................................................... 000

7. Reiterada a refutao das teses de Serveto ................................................................................. 000

8. Consideraes finais na refutao das teses de Serveto .............................................................. 000

CAPTULO XV

PARA QUE SAIBAMOS A QUE PROPSITO CRISTO FOI ENVIADO PELO PAI, E QUE ELE NOS FOI CONFERIDO, TRS COISAS SE DEVEM NELE TER EM CONSIDERAO ACIMA DE TUDO: O OFCIO PROFTICO, A REALEZA E O SACERDCIO

1. O ofcio proftico de Cristo ........................................................................................................ 000

2. Cristo, profeta e culminncia das profecias ................................................................................ 000

3. O ofcio real de Cristo: um reino espiritual e eterno .................................................................. 000

4. O sentido da realeza de Cristo em relao a ns ........................................................................ 000

5. Natureza e extenso do ofcio real de Cristo .............................................................................. 000

6. O ofcio sacerdotal de Cristo: expiao, reconciliao, intercesso ........................................... 000

CAPTULO XVI

COMO CRISTO CUMPRIU AS FUNOES DE REDENTOR PARA QUE NOS ADQUIRISSE A SALVAO, ONDE SE TRATA DE SUA MORTE E RESSURREIO, BEM COMO DE SUA ASCENSO AO CU

1. Cristo, o Redentor e Salvador ...................................................................................................... 000

2. A ira de Deus superada pela misericrdia polarizada em Cristo ................................................. 000

3. parte de Cristo o pecador est sob a ira de Deus; em Cristo desfruta de seu amor ..................... 000

PAGE 4. A despeito de nosso pecado e rebeldia, que lhe excitariam a ira, Deus jamais deixou de nos

amar ............................................................................................................................................ 000

5. Cristo consumou-nos a redeno mediante sua obedincia e morte vicria ............................... 000

6. A morte de Cristo na cruz, amaldioada, porm bendita ............................................................ 000

7. Cristo se sujeita por ns morte e sepultura para aplicar-nos redeno e mortificao .............. 000

8. Procedncia e legitimidade da insero e especificidade do artigo desceu ao Hades no Credo 000

9. Improcedncia da interpretao de que Cristo desceu ao Hades para libertar os justos ali

aprisionados .................................................................................................................................. 000

10. A descida ao Hades expresso dos tormentos espirituais que Cristo sofreu em nosso lugar ... 000

11. A descida ao Hades luz de textos da Escritura em que se prova seu teor espiritual e vicrio .. 000

12. Refutao das objees suscitadas contra a posio de Calvino quanto ao realismo dos

sofrimentos de Cristo ................................................................................................................ 000

13. O significado soteriolgico da ressurreio de Cristo .............................................................. 000

14. A relevncia da ascenso de Cristo no plano de sua obra redentora ......................................... 000

15. O sentido de Cristo, em sua ascenso, assentar-se soberanamente destra de Deus ................... 000

16. Benefcios que nossa f deriva da ascenso de Cristo .............................................................. 000

17. O Cristo que subiu voltar no dia final para julgar a humanidade ............................................. 000

18. Cristo supremo Juiz, mas, acima de tudo, ele nosso benigno Redentor. Autoridade e

relevncia do Credo Apostlico ................................................................................................. 000

19. Cristo, o centro absoluto do Credo, o objeto nico de nossa f e o tesouro exclusivo das

riquezas de nossa salvao .......................................................................................................... 000

CAPTULO XVII

CORRETA E APROPRIADAMENTE SE DIZ HAVER CRISTO MERECIDO POR NS A GRAA DE DEUS E A SALVAO

1. Os mritos de Cristo e a graa de Deus no se excluem, nem se conflitam ................................. 000

2. Na Escritura, o mrito de Cristo e a graa de Deus se acoplam em mutualidade de ao .............. 000

3. Por sua obedincia, Cristo adquiriu e mereceu por ns a graa divina ......................................... 000

4. A morte vicria de Cristo propicia plena satisfao justia de Deus em nosso favor .................. 000

5. A morte de Cristo o preo de nossa redeno, donde auferimos perdo, justificao e vida .... 000

6. Cristo adquiriu mrito no para si, que no lhe era necessrio, mas para ns, porquem morreu

na cruz ........................................................................................................................................ 000

L I V R O S E G U N D OO CONHECIMENTO DE DEUS O REDENTOR EM CRISTO, CONHECIMEN- TO QUE FOI REVELADO PRIMEIRAMENTE AOS PAIS SOB A LEI, E DEPOIS TAMBM A NS NO EVANGELHO

C A P T U L O IPELA QUEDA E DEFECO DE ADO TODO O GNERO HUMANO FICOU SUJEITO MALDICO E DECAIU DA CONDIO DE ORIGEM: ONDE SE TRATA DO PECADO ORIGINAL

1. NATUREZA E PROPSITO DO CONHECIMENTO DE NS MESMOSNo foi sem causa que o provrbio antigo sempre e tanto recomendou ao homem o conhecimento de si mesmo. Ora, se por ser vergonhoso se h de ignorar quaisquer coisas que dizem respeito ao trato da vida humana, muito mais aviltante, na verdade,

a ignorncia de ns mesmos, da qual resulta que, em tomando deciso acerca de qualquer coisa necessria, nos enganemos lamentavelmente e at cegos nos faa- mos. Quanto, porm, mais til o preceito, tanto mais diligentemente nos importa ver que no o usemos de forma oposta, o que vemos ter acontecido a certos filso- fos. Pois esses, enquanto exortam o homem a que conhea a si mesmo, propem- lhe, ao mesmo tempo, como fim que no ignore a dignidade e excelncia pessoais, e querem que no contemple em si mais do que possa suscitar nele a v confiana e ench-lo de arrogncia .

Mas, o conhecimento de ns mesmos situa-se, em primeiro lugar, nisto: que, atentando para o que nos foi outorgado na criao, e quo benignamente Deus con- tinua sua graa para conosco, saibamos quo grande seria a excelncia de nossa natureza, se porventura permanecera ntegra, contudo ao mesmo tempo reflitamos que em ns nada subsiste de prprio. Ao contrrio, de pura graciosidade possumos tudo quanto Deus nos tem conferido, de sorte que estejamos sempre a dele depen- der. Em segundo lugar, que encaremos bem a miservel condio em que nos acha- mos aps a queda de Ado, por cujo reconhecimento, posta por terra toda jactncia

e confiana prpria, esmagados de vergonha, verdadeiramente nos humilhemos.1Ora, assim como inicialmente Deus nos formou sua imagem, para que a mente nos alasse tanto ao zelo da virtude, quanto meditao da vida eterna, assim tam- bm, para que no seja aniquilada por nossa obtusidade to grande nobreza de nossa espcie, a qual nos distingue dos seres irracionais, relevante reconhecermos que fomos dotados de razo e inteligncia, para que, cultivando uma vida santa e reta, avancemos rumo ao alvo proposto de uma imortalidade bem-aventurada.

1. Primeira edio: que se nos antolhe a miseranda condio em que nos achamos aps a queda de Ado,

o reconhecimento de que, posta por terra toda jactncia e confiana prpria, [a ns], esmagados de vertonha, verdadeiramente nos humilhe.

Alm disso, aquela dignidade original no pode vir mente sem que logo se oferea em contraposio que, na pessoa do primeiro homem, decamos da condi- o original, sendo este um triste espetculo de nossa sordidez e ignomnia. Do qu no s procede desagrado e descontentamento de ns mesmos, e verdadeira humil- dade, mas ainda se acende um novo empenho de buscar a Deus, em quem cada um possa recobrar estes valores de que somos apanhados de todo faltos e carentes.

2. O CONHECIMENTO PRPRIO EMBOTADO PELA AUTOGLORIFICAOA verdade de Deus, indubitavelmente, prescreve que devemos examinar-nos a ns mesmos, isto , ela requer conhecimento de tal molde que no s nos afaste para longe de toda confiana de capacidade pessoal, mas ainda, destitudos de toda razo

de gloriar-nos, nos conduza submisso. Esta regra convm manter, caso queira- mos atingir justa meta, seja do saber, seja do agir.

Nem me oculto o quanto se deve aplaudir esse parecer, seja que nos convida antes a considerar o que haja de bom em ns, ou a atentar para nossa deplorvel misria, juntamente com nossa indignidade, a qual nos deve esmagar de vergonha. Com efeito, nada h que a natureza humana mais cobice que ser afagada por lison- jas. E por isso onde ouve que seus predicados se revestem de grande realce, para esse rumo propende com extrema credulidade. Portanto, no de admirar que, neste ponto, se haja transviado, de maneira profundamente danosa, a maioria esmagadora dos homens. Ora, uma vez que ingnito a todos os mortais que sintam um cego amor por si mesmos, de muito bom grado se persuadem de que nada neles existe que, com justia, deva ser abominado. Dessa forma, mesmo sem influncia de fora, por toda parte obtm crdito esta opinio totalmente ftil: que o homem a si am- plamente suficiente para viver bem e venturosamente. Porque, se alguns h que se revelam possuidores de mais modstia, a tal ponto que concedam algo a Deus para no parecer que atribuem tudo a si mesmos, de tal maneira repartem entre Deus e eles, que a principal parte da glria, e toda a presuno, sempre fica para eles.2Ora, se uma palavra ocorre que, com seus afagos, lisonjeie o orgulho que faz espontneo comicho nas entranhas do homem, nada h que mais o deleite. Da, ao ser acolhido com grande aplauso de quase todos os sculos, cada um, com seu enc- mio, sente que foi exaltada mui favoravelmente a excelncia da natureza humana. Mas, na verdade, qualquer que seja tal enaltecimento da excelncia humana que ensine o homem a estar satisfeito em seu ntimo, com nenhuma outra coisa mais se encanta do que com essa afabilidade prpria; e de fato tanto o engana, que todos quantos concordam com isso, na mais deplorvel runa os perde. Pois, a que leva,

2. Primeira edio: Pois, que, se alguns [h que] se revelam de um sentir mais modesto, a tal ponto que

concedam algo a Deus, nem paream arrogar tudo para si [prprios], contudo, assim [o] partilham, que em

si [mesmos] sempre resida mui poderosa razo no apenas de jactncia, como de confiana prpria.

estribados em toda ftil confiana pessoal, deliberar, planejar, tentar, empreender

aquilo que julgamos pertinente condio, e j em nossos primeiros esforos de fato nos quedamos deficientes e carentes, seja de so entendimento, seja da verda- deira virtude, contudo prosseguirmos, obstinadamente, at que nos precipitemos runa? E, no entanto, aos que confiam poder fazer algo de sua prpria capacidade no pode suceder de outra maneira.

Portanto, se algum d ouvidos a tais mestres que nos incitam a to-somente mirarmos nossas boas qualidades, no avanar no conhecimento de si prprio; ao contrrio, se precipitar na mais ruinosa ignorncia.

3. AS DUAS FACETAS DO REAL CONHECIMENTO DE NS MESMOSDa, embora a verdade de Deus nisto concorde com o consenso geral de todos os mortais, a saber, que o segundo aspecto da sabedoria reside no conhecimento de ns mesmos, entretanto grande a divergncia na prpria maneira de alcanar esse conhecimento. Ora, segundo o mtodo da carne em seu julgar, o homem parece ter aprofundado conhecimento de si at que, arrimado tanto em seu entendimento, quanto em sua integridade, se deixa dominar pela ousadia e se incita aos reclamos da virtu- de, e declarada guerra aos vcios tenta aplicar-se com todo empenho quilo que nobre e honroso.

Quem, no entanto, se mira e examina segundo a norma do juzo divino, nada encontra que eleve seu nimo genuna confiana pessoal. E quanto mais penetran- temente a si perscruta, tanto mais se deprime, at que, havendo abdicado inteira- mente a toda confiana pessoal, nada deixa a si mesmo para regular a vida retamen-

te. Contudo, tampouco quer Deus que nos esqueamos de nossa nobreza primeva, nobreza que conferira a nosso pai Ado, nobreza que por certo deve, com razo, despertar nosso zelo pela justia e pela bondade. Pois no podemos sequer pensar, seja em nossa prpria condio original, seja para qu fomos criados, que no seja- mos acicatados a meditar na imortalidade e a anelar pelo reino de Deus. To longe est, porm, este reconhecimento de fomentar-nos a presuno, ao contrrio, subju- gada esta, humildade nos prostra.

Ora, que condio original essa? Evidentemente, aquela da qual decamos. Qual o propsito de nossa criao? Aquele do qual estamos de todo alienados. Por isso, enfastiados de nossa msera situao, gemamos; e, gemendo, suspiremos por aquela dignidade perdida. Quando, porm, dizemos que ao homem importa nada ver em si prprio que o torne presunoso, queremos dizer que nada existe nele cujo arrimo se deva tomar como motivo de orgulho.

Portanto, se assim se prefere, dividamos o conhecimento de si prprio que o homem deve ter, de tal modo que, em primeiro lugar, considere para que fim foi criado e provido de dotes que no se deve desprezar, merc de cuja reflexo se

desperte meditao do culto divino e da vida futura; em segundo lugar, pondere suas capacidades; ou, de fato, sua carncia de capacidades, a qual, uma vez percebi- da, se prostre em extrema confuso, como que reduzido a nada. A primeira conside- rao tende a isto: que o homem reconhea qual seja seu dever; a segunda, de que recursos dispe para desempenh-lo. A um e outro desses dois aspectos haveremos

de discutir, segundo o exigir a seqncia da exposio.

4. DESOBEDINCIA, O FATOR DA QUEDA NO DENUma vez que no um delito leve, mas um crime abominvel, aquele que Deus puniu com tanta severidade, somos levados a considerar a prpria natureza do peca-

do na queda de Ado, a qual transmitiu a todo o gnero humano horrvel punio de

Deus.3 pueril o que tem sido vulgarmente admitido quanto intemperana da gula. Como se de fato, na abstinncia de apenas uma nica espcie de fruta, tenha residi-

do a suma e essncia de todas as virtudes, quando por toda parte sobejavam todas e quantas delcias apetecveis, e naquela abenoada fecundidade da terra lhe estava mo a fartar, no apenas abundncia, como tambm variedade! Deve-se, portanto, mirar mais alto, visto que a proibio da rvore do conhecimento do bem e do mal foi um teste de obedincia; de modo que, ao obedecer, Ado podia provar que se sujeitava autoridade de Deus, de livre e deliberada vontade. Com efeito, o prprio nome da rvore evidencia que o propsito do preceito no era outro seno que, contente com sua sorte, o homem no se alasse mais alto, movido de mpia cobia. Mas a promessa mediante a qual ele poderia fazer jus vida eterna por todo tempo em que comesse da rvore da vida, bem como, em contrrio, o horrendo anncio de morte, assim que provasse da rvore do conhecimento do bem e do mal, visava a testar-lhe e a exercitar-lhe a f. Daqui, no difcil concluir de que maneiras Ado provocou a ira de Deus contra si.

Na verdade, no de forma improcedente, pronuncia-se Agostinho,4 quando diz que o orgulho foi o princpio de todos os males, porque, no houvesse a ambio impelido o homem acima do que era prprio e justo, poderia ele permanecer em sua condio original. Contudo, da prpria natureza da tentao que Moiss descreve deve buscar-se definio mais completa. Ora, uma vez que, por sua falta de fidelida- de, a mulher afastada da Palavra de Deus pela sutileza da serpente, j se comprova que o princpio da queda foi a desobedincia. o que tambm Paulo confirma, ensinando que, pela desobedincia de um s homem, todos se tornaram perdidos

[Rm 5.19].

3. Primeira edio: Uma vez que no leve delito, mas crime abominvel, deve ter sido, na verdade, [o] que Deus puniu to severamente, impe-se-nos considerar a natureza do pecado na queda de Ado, a qual acendeu para com todo o gnero humano horrvel punio de Deus.

4. Agostinho, no Salmo 18.2.

Entretanto, ao mesmo tempo preciso notar que o primeiro homem se alijou da

soberania de Deus, porque no s se fez presa aos engodos de Satans, mas ainda, desprezando a verdade, se desviou para a mentira. E de fato, desprezada a palavra

de Deus, quebrantada lhe toda reverncia, pois no se preserva de outra maneira sua majestade entre ns, nem seu culto mantido ntegro, a no ser enquanto aten- ciosamente ouvirmos sua voz. Conseqentemente, a raiz da queda foi a falta de fidelidade.

Mas, daqui emergiram ambio e orgulho, aos quais foi adicionada ingratido, porquanto, ao desejar mais do que lhe fora concedido, ignobilmente Ado desde- nhou a to grande liberalidade de Deus pela qual havia sido enriquecido. Na verda- de, esta foi uma impiedade monstruosa, a saber, a um filho da terra parecer pouco que fosse criado semelhana de Deus, se tambm no lhe fosse acrescentada a igualdade.

Se a apostasia, pela qual o homem se subtrai ao mando de seu Criador, uma vil

e execrvel ofensa, ou, melhor dizendo, insolentemente lana de si o jugo, debalde tentar atenuar o pecado de Ado.5 Se bem que no foi simples apostasia; ao contr- rio, apostasia associada com vis improprios contra Deus, j que Ado e Eva subs- crevem s caluniosas insinuaes de Satans, com que acusa falsamente a Deus de mentira, de inveja e de maldade.

Por fim, a falta de fidelidade abriu a porta ambio; a ambio, porm, foi a me da obstinao, de sorte que os homens, alijando o temor de Deus, se arrojaram aonde quer que os levava a cupidez. E assim corretamente ensina Bernardo,6 que a porta da salvao nos est aberta quando, hoje, recebemos pelos ouvidos o evange- lho, exatamente como, quando se escancararam a Satans, foi por essas janelas introduzida a morte. Ora, jamais teria Ado ousado repudiar o imperativo de Deus,

a no ser que no lhe desse crdito palavra. Era este, de fato, o melhor freio para adequadamente regular-lhe todas as inclinaes: que nada melhor do que, merc

de estrita obedincia aos preceitos de Deus, amar a justia; em seguida, que a meta final da vida feliz ser por ele amado. Portanto, arrebatado pelas blasfmias do Diabo, Ado aniquilou, quanto estava a seu alcance, toda a glria de Deus.

5. O PECADO ORIGINAL DE ADO AFETA TODA SUA POSTERIDADEComo a vida espiritual de Ado era permanecer ele unido e ligado a seu Criador, assim tambm, ao alienar-se dele veio-lhe a morte da alma. Portanto, no surpreen-

de se, por sua defeco, afundou na runa sua posteridade aquele que perverteu, no cu e na terra, toda a ordem da prpria natureza. Gemem todas as criaturas, diz

5. Primeira edio: Se vil e execrvel ofensa a apostasia, pela qual o homem se subtrai ao mando de Seu

Criador, mais, alija-lhe insolentemente o jugo, debalde se atenua o pecado de Ado.

6. Bernardo Claraval, em Cantares, sermo 28.

Paulo, no por sua prpria vontade, sujeitas corrupo [Rm 8.20, 22]. Caso se busque a causa disso, no h dvida de que esto a sofrer parte daquele castigo que

o homem mereceu, para cujo proveito elas foram criadas. Portanto, quando, de alto

a baixo, por sua culpa atraiu a maldio que grassa por todos os recantos do mundo, nada h de ilgico se ela foi propagada a toda sua descendncia. Logo, depois que a imagem celeste foi nele obliterada, no sofreu sozinho esta punio que, em lugar

de sabedoria, poder, santidade, verdade, justia, ornamentos de que fora ataviado, lhe sobreviessem as mais abominveis pragas: cegueira, fraqueza, impureza, fatui- dade, iniqidade, mas ainda nas mesmas misrias enredilhou e submergiu sua pro- gnie.

Esta a corrupo hereditria que os antigos designaram de pecado original, entendendo pelo termo pecado a depravao de uma natureza antes disso boa e pura, matria a respeito da qual muita lhes foi a conteno, uma vez que nada seja mais remoto do consenso geral que pela culpa de um s todos se faam culpados e, assim, o pecado se torne comum a todos. Esta parece ter sido a razo por que os doutores mais antigos da Igreja abordaram este assunto de forma to obscura, pelo menos por que o explanaram menos lucidamente do que se fazia necessrio.

Contudo, esta relutncia no pde impedir que Pelgio entrasse em cena, cuja profana inveno foi haver Ado pecado to-somente para seu prprio dano, mas que aos descendentes nada afetou. Naturalmente, com esta artimanha de encobrir a enfermidade, Satans tentou torn-la incurvel. Como, porm, pelo claro testemu- nho da Escritura se mostrasse que o pecado foi transmitido do primeiro homem a toda a posteridade [Rm 5.12], sofismavam haver-se transmitido por imitao, no por gerao. Portanto, bons homens, e acima dos demais Agostinho, nisto labora- ram afincadamente para mostrar que no somos corrompidos mediante impiedade adquirida; ao contrrio, trazemos depravao ingnita desde o ventre materno. O no reconhecimento desse fato foi o supremo descaramento. Mas ningum se sur- preender da temeridade dos pelagianos e dos celestianos quem, pela leitura dos escritos daquele santo varo, Agostinho, tenha percebido que monstros de perversa catadura foram eles em todos os demais pontos.

Por certo que no ambguo o que Davi confessa, a saber, ter sido gerado em iniqidades e de sua me concebido em pecado [Sl 51.5]. No est ele a a censurar

as faltas do pai ou da me; antes, para que melhor enaltea a bondade de Deus para consigo, faz remontar a confisso de sua iniqidade prpria concepo. Uma vez ser evidente no ter sido isso peculiar a Davi, segue-se que sob seu exemplo se denota a sorte comum do gnero humano.

Portanto, todos que descendemos de uma semente impura, nascemos infeccio- nados pelo contgio do pecado. Na verdade, antes que contemplemos esta luz da vida, vista de Deus j estamos manchados e poludos. Pois, quem do imundo tirar o puro? Certamente, como est no livro de J [14.4], ningum!

6. A DEPRAVAO ADMICA PROPAGADA A TODOS OS SEUS DESCENDENTESOuvimos que a depravao dos pais de tal modo se transmite aos filhos, que todos, sem qualquer exceo, se fazem poludos em sua concepo. No se achar, porm, o ponto de partida desta poluio, se, como fonte, no remontarmos ao primeiro genitor de todos. Desse modo deve-se, por certo, sustentar que Ado no foi apenas o progenitor, mas ainda como que a raiz da natureza humana, e da, na corrupo daquele, foi com razo corrompido todo o gnero humano.

Isto o Apstolo faz claro pela comparao daquele com Cristo. Diz ele: Assim como atravs de um s homem entrou o pecado no mundo inteiro, e atravs do pecado a morte, que foi propagada a todos os homens, uma vez que todos pecaram, assim tambm, pela graa de Cristo, nos foram restitudas a justia e a vida [Rm5.12, 17].

O que os pelagianos grasnaro aqui? O pecado de Ado propagado por imita- o? Logo, outra coisa no usufrumos da justia de Cristo, seno que ela nos um exemplo proposto para imitao? Quem suportaria to grande sacrilgio? Porque,

se est fora de controvrsia que, mediante comunicao, a justia de Cristo nossa,

e desta a decorrer a vida, segue-se, ao mesmo tempo, que em Ado foram ambas assim perdidas, como em Cristo ambas so recuperadas. De igual modo, assim se infiltraram o pecado e a morte atravs de Ado como so abolidos por meio de Cristo. Estas no so palavras obscuras: que muitos so justificados pela obedin- cia de Cristo, da mesma forma que haviam sido constitudos pecadores pela desobe- dincia de Ado [Rm 5.19]. E por isso, entre estes dois [Cristo e Ado], a relao esta: que este, a ns envolvendo em sua runa, consigo nos perdeu; Aquele, por sua graa, nos restituiu salvao. Em luz to meridiana da verdade, sou de parecer que no se faz necessria nenhuma comprovao mais extensa ou mais laboriosa.

Assim, na Primeira Epstola aos Corntios, como visa a firmar os piedosos na confiana da ressurreio, o Apstolo mostra que em Cristo recuperada a vida que fora perdida em Ado [1Co 15.22]. Quem declara que todos ns morremos em Ado,j, ao mesmo tempo, tambm atesta abertamente estarmos enredilhados no estigma

de seu pecado. Pois a condenao no alcanaria queles que no foram tocados pela culpa de iniqidade. Mas, ao que Paulo visa, no se pode entender mais clara- mente que luz da relao do outro membro da clusula, onde ensina ser em Cristo restaurada a esperana de vida. Sabe-se sobejamente, porm, que isso no se pode dar de outra maneira seno onde, merc dessa admirvel comunicao, Cristo trans- mite a ns o poder de sua justia, tal como est escrito em outro lugar: O Esprito nos vida em razo de sua justia [Rm 8.10].

Portanto, nem defensvel interpretar-se de outra forma o que se diz: que em Ado todos ns morremos; seno que ele, em pecando, no apenas acarretou a si prprio a misria e a runa, como tambm precipitou nossa natureza em semelhante

derrocada. Isso no se deu somente por sua corrupo pessoal, a qual no nos diz respeito; ao contrrio, porque infeccionou a toda sua descendncia com essa depra- vao em que cara. Tampouco se manteria, de outra maneira, tambm a declaraode Paulo de que todos so por natureza filhos da ira [Ef 2.3], a no ser que, j no

prprio ventre, estivessem sob a maldio da culposidade. Depreende-se facilmente que por certo aqui no se deve entender natureza como foi criada por Deus; antes, como foi corrompida em Ado, pois que estaria muito longe de ser procedente que Deus se fizesse o autor da morte. Portanto, de tal forma se corrompeu Ado que o contgio se transmitiu dele a toda a descendncia.

Alm disso, onde ensina que todo o que gerado da carne carne [Jo 3.6], o prprio Juiz celestial, Cristo, proclama com sobeja clareza que todos nascem mpi-

os e depravados, e por isso a todos est fechada a porta da vida, at que sejam gerados de novo [Jo 3.6].

7. A TRANSMISSO DA DEPRAVAO ADMICA A TODA A POSTERIDADENem necessria, para a compreenso desta matria, a angustiante discusso que tanto atormentou aos antigos: se, uma vez que nela reside capitalmente o cont- gio, a alma do filho procede da alma paterna por derivao. A ns nos convm estar contentes com isto: haver o Senhor depositado em Ado aqueles dotes que quis conferir natureza humana. Portanto, quando perdeu os dotes recebidos, aquele os perdeu, no apenas por si s, mas tambm por todos ns.

Quem haver de estar preocupado acerca da derivao da alma, ao ouvir que esses adereos que veio a perder, Ado os recebera no menos para ns que para si prprio; que eles foram conferidos no a apenas um homem, ao contrrio, foram atribudos a toda a natureza do homem? Portanto, nada h de absurdo se, despoja-do este, a natureza deixada desnuda e carente; se aquele, manchado pelo pecado,o contgio serpeia na natureza. Da, da raiz putrefata brotaram ramos ptridos, que transmitiram sua podrido aos outros rebentos que nasceriam deles. Ora, os filhos foram de tal modo corrompidos no genitor que vieram a ser transmissoresda corrupo aos netos, isto , de tal molde foi o princpio da corrupo em Ado que dos ancestrais se transmite aos psteros em uma corrente perptua. Pois o contgio no tem sua causa na substncia da carne ou da alma. Pelo contrrio, porque fora assim por Deus ordenado, que os dons que concedera ao primeiro homem, ele, a um tempo, os possusse e os perdesse, tanto para si, quanto para os seus.Refuta-se, porm, facilmente o que os pelagianos sofismam, a saber, no ve- rossmil que de pais piedosos os filhos derivem corrupo, quando, antes, devem ser santificados pela pureza deles. Ora, no descendem da regenerao espiritual, mas da gerao carnal. Da, como diz Agostinho: Quer um infiel culposo, quer um

fiel inculpvel, um e outro no gera inculpveis, mas culposos, porque os gera de

natureza corrupta.7Com efeito, o que, de certo modo, lhes comunicam santidade bno especi-

al do povo de Deus, bno que, no entanto, no faz com que no prevalea aquela primeira e original maldio da raa humana. Pois, a culposidade provm da pr- pria natureza; a santificao, contudo, procede da graa supernatural.

8. A NATUREZA REAL DO PECADO ORIGINALE, para que as coisas ditas acerca desta matria no sejam incertas e obscuras, definamos pecado original. Entretanto, nem tenho a inteno de perscrutar, uma a uma, as definies que tm sido propostas pelos escritores. Ao contrrio, oferecerei apenas uma, definio esta que a mim me parece perfeitamente consistente com a verdade. O pecado original representa, portanto, a depravao e corrupo heredit- rias de nossa natureza, difundidas por todas as partes da alma, que, em primeiro lugar, nos fazem condenveis ira de Deus; em segundo lugar, tambm produzem em ns aquelas obras que a Escritura chama de obras da carne [Gl 5.19]. E propriamente isto o que por Paulo, com bastante freqncia, designa apenas de pecado. As obras que de fato da resultam, quais so: adultrios, fornicaes, furtos, dios, homicdios, glutonarias, Paulo chama, segundo esta maneira de ver, frutos

do pecado [Gl. 5.19-21], ainda que, como a cada passo nas Escrituras, sejam tam-

bm por ele referidas simplesmente pelo termo pecados.

Portanto, estas duas coisas devem ser consideradas distintamente. Isto , em primeiro lugar, que estamos a tal ponto corrompidos e depravados em todas as partes de nossa natureza, que j por causa de apenas tal corrupo, somos, mereci- damente, tidos como condenados e incriminados diante de Deus, a quem nada aceito seno a justia, a inocncia, a pureza. Nem esta a imputao de um delito alheio. Ora, o que se diz de nos tornarmos passveis ao juzo de Deus atravs do pecado de Ado, no se deve assim tomar como se portssemos a culpa de seu delito, sendo ns prprios inculpveis e imerecedores. Pelo contrrio, visto que, por sua transgresso, fomos todos engolfados na maldio, lemos que aquele nos fez culposos. Todavia, sobre ns no caiu somente o castigo, mas, dele instilado, uma contaminao reside em ns, qual, de direito, se deve punio. Razo por que Agostinho, embora para mostrar mais claramente que ele nos transmitido por pro- pagao, freqentes vezes o chame pecado alheio, ao mesmo tempo, contudo, tam- bm afirma ser ele inerente a cada um. E mui eloqentemente o atesta o prprio Apstolo que, por isso, a morte se propagou a todos, porque todos pecaram; isto , esto enredilhados no pecado original e tisnados de sua ndoa [Rm 5.12].

7. Da Graa de Cristo e do Pecado Original, livro II, captulo xi, 45.

E por isso tambm as prprias crianas, enquanto trazem consigo sua condena- o desde o ventre materno, so tidas como culposas no por falta alheia, mas pela falta de si prprias. Ora, embora ainda no tenham trazido tona os frutos de sua iniqidade, no entanto tm encerrada dentro de si a semente. Com efeito, sua natu- reza toda uma como que sementeira de pecado. Por isso, no pode ela deixar de ser odiosa e abominvel a Deus. Do qu se segue que, com propriedade, esse estado considerado como pecado diante de Deus, pois no haveria incriminao sem a

culpabilidade.

Acode, em segundo lugar, esta outra considerao: que esta depravao jamais cessa em ns; pelo contrrio, produz continuamente novos frutos, a saber, essas obras da carne que referimos antes, exatamente como uma fornalha acesa expele chama e centelhas, ou uma fonte mana gua sem parar. Por essa razo, aqueles que definiram o pecado original como a falta de retido original que devia subsistir em ns, ainda que incluam nessa definio a plena acepo do conceito, no expressa- ram, contudo, bastante significativamente sua fora e energia. Ora, nossa natureza no apenas carente e vazia do bem; ao contrrio, a tal ponto frtil e fecunda em todas as coisas ruins, que no pode nunca deixar de estar produzindo o que mau.

Aqueles que o declaram ser concupiscncia, no fazem uso de termo de todo imprprio se meramente se adicionasse, o que da maioria de modo algum se admite, que tudo quanto h no homem, desde o intelecto at a vontade, desde a alma at a carne, foi poludo e saturado por essa concupiscncia. Ou, para expressar-se mais sucintamente, o homem todo, de si mesmo, outra coisa no seno concupiscncia.

9. O PECADO INFESTA E DOMINA A TODO O SER HUMANOPor essa razo eu disse que, desde que Ado se apartou da fonte da justia, todas

as partes da alma vieram a ser possudas pelo pecado. Pois no s o seduziu um desejo inferior; ao contrrio, a nefanda impiedade ocupou a prpria cidadela da mente, e o orgulho penetrou ao mais recndito do corao, de sorte que improce- dente e estulto restringir a corrupo que da emanou apenas ao que chamam impul- sos sensuais, ou chamar foco de fogo que atrai, excita e arrasta o pecado somente

a parte que compreende a sensualidade.Nisto Pedro Lombardo ps mostra crassa ignorncia, ou, seja, buscando e investigando a sede do pecado, afirma que ela est na carne, o que, a seu ver, Paulo atesta, ainda que no de forma estrita, mas porque o pecado se faz ainda patente na carne. Alis, como se Paulo tivesse em mira apenas uma parcela da alma e no a natureza toda, a qual se ope graa supernatural! E Paulo remove toda dvida, ensinando que a corrupo no reside apenas em uma parte; ao contrrio, que nada

h incontaminado ou inafetado por sua mortfera peonha. Ora, discorrendo a res-

peito da natureza corrupta, Paulo no s condena os desordenados impulsos dos

CAPTULO I PAGE apetites, que se fazem explcitos, mas sobretudo insiste em que a mente est entre-

gue cegueira e o corao, depravao [Ef 4.17, 18]. E esse terceiro captulo daEpstola aos Romanos outra coisa no seno uma descrio do pecado original.

Isto se mostra mais claramente luz da renovao regeneracional. Ora, o termoesprito, que se contrape a velho homem e carne, no denota simplesmente a gra-

a pela qual retificada a parte inferior ou sensria da alma; pelo contrrio, abrange

a plena reforma de todas as partes. E por isso Paulo prescreve no apenas que se reduzam a nada os apetites vis, mas ainda que sejamos renovados no esprito de nosso entendimento [Ef 4.23], assim como tambm, em outra passagem [Rm 12.2], insta a que sejamos transformados em novidade da mente. Do qu se segue que aquela parte em que refulge sobremaneira a excelncia e nobreza da alma foi no s ferida, mas at corrompida, a tal ponto que tem necessidade no apenas de ser cura- da, mas tambm de revestir-se de natureza quase que nova.

At onde o pecado domina, no s mente, mas ainda ao corao, veremos de imediato. Aqui tive o propsito de apenas sumariamente abordar o fato de que o homem inteiro, da cabea aos ps, foi, como por um dilvio, de tal modo assolado, que nenhuma parte ficou isenta de pecado, e em conseqncia tudo quanto dele procede deve ser imputado ao pecado. Como Paulo diz [Rm 8.6, 7]: todos os afetos

ou cogitaes da carne so inimizades contra Deus; e por isso, morte.

10. O PECADO PROCEDE DO HOMEM, NO DE DEUSVejam-se agora aqueles que ousam inculcar suas faltas a Deus, porquanto afir- mamos que os homens so corruptos de natureza. Buscam, erroneamente, em sua depravao a obra de Deus que deveriam procurar naquela natureza de Ado at esse momento ntegra e incorrupta. Da culposidade de nossa carne, portanto, no de Deus, procede nossa perdio, uma vez que, no por outra razo, temos perecido, mas porque fomos degenerados de nossa primeira condio.

Que aqui ningum vocifere dizendo que Deus poderia ter acudido melhor nossa salvao, se houvesse impedido a queda de Ado, visto que essa objeo, em vista da curiosidade em extremo ousada que envolve, no s deve ser abominada pelas mentes piedosas, como tambm pertence ao mistrio da predestinao, que se haver de tratar mais adiante em seu devido lugar. Portanto, lembremo-nos de que nossa runa deve ser imputada depravao de nossa natureza, no natureza emsi, em sua condio original, para que no lancemos a acusao contra o prprio

Deus, como sendo o autor dessa natureza.

certamente verdadeiro que essa ferida mortal nos inerente natureza, mas em muito avulta se porventura tenha provindo de outra parte, ou se nela esteja em- postada desde a origem. Salta, porm, vista que foi ela infligida atravs do pecado. Portanto no h por que nos queixarmos, a no ser de ns mesmos, o que a Escritura

PAGE LIVRO IIdiligentemente tem assinalado, pois diz o Eclesiastes: Isto sei, que Deus fez o homem reto, mas eles prprios buscaram para si muitas invenes [Ec 7.29].

bvio que somente ao homem se deve imputar a prpria runa, uma vez que, pela benignidade de Deus, havendo obtido a retido, por seu desvario ele caiu na fatuidade.

11. A DEPRAVAO EST NA PRPRIA NATUREZA, ENTRETANTO NO PERTENCE NATUREZA COMO TALPortanto, afirmamos que o homem est corrompido por depravao natural, contudo ela no se originou da prpria natureza. Negamos que essa depravao tenha se originado da prpria natureza como tal, para que deixemos claro que ela antes uma qualidade adventcia que sobreveio ao homem, e no uma propriedade substancial que tenha sido congnita desde o princpio. Contudo a chamamo natu- ral, para que algum no pense que ela por todos e cada um contrada merc de um exemplo depravado, quando a todos mantenha aprisionados por vnculo hereditrio. Nem o fazemos sem um patrono, porque, pela mesma causa, o Apstolo ensina que somos todos por natureza filhos da ira [Ef 2.3].

Como poderia Deus, a quem uma a uma comprazem suas mnimas obras, ser inimigo da mais nobre de todas as criaturas? Deus, porm, antes inimigo da cor- rupo de sua obra, e no da prpria obra. Portanto, se, em vista da depravada natu- reza humana, no se diz absurdamente que o homem , por natureza, abominvel a Deus, tambm no se dir ineptamente que ele , por natureza, depravado e corrup-

to, da mesma forma que Agostinho no se arreceia de chamar, em razo da natureza corrupta, de naturais os pecados que, necessariamente, reinam em nossa carne, quando lhe est ausente a graa de Deus.

Assim dissipa-se a tola baboseira dos maniqueus que, como no homem imagi- nassem malignidade intrnseca, ousaram anexar-lhe um outro criador, para que no parecessem atribuir ao Deus justo a causa e o princpio do mal.

C A P I T U L O IIO HOMEM EST AGORA PRIVADO DE LIBERDADE DA VONTADE

E REDUZIDO A MSERA SERVIDO

1. PERIGOS A SEREM EVITADOSDepois que se apercebeu que o domnio do pecado, desde o momento em que pri- meiro teve o homem atrelado a si, no s grassa em toda a espcie, mas ainda de todo se assenhoreia de cada alma, resta agora, uma vez que fomos reduzidos a esta servido, examinar mais de perto se porventura fomos despojados de toda liberda-

de, e se em qualquer parcela ainda vigora at o presente, at que ponto se estende sua fora.

Contudo, para que mais facilmente nos atinja a verdade desta questo, prefixa- rei, preliminarmente, o propsito a que visar a matria toda. Mas o melhor meio de guardar-se do erro ser levando em conta os perigos que ameaam de uma e outra parte. Com efeito, quando se declara que o homem est destitudo de toda retido, disto ele deriva prontamente motivo de acomodao, e porque se diz que ele nada pode por si mesmo em relao ao cultivo da justia, a tudo isso tem por inconse- qente, como se ele j no tivesse nada a ver com isso. Por outro lado, no se pode arrogar-lhe coisa alguma, por nfima que seja, sem que no s se prive a Deus de sua honra, mas tambm o prprio homem seja corrompido de temerria confiana.

Logo, para que no nos atiremos de encontro a estes obstculos, impor-se- conservar este curso: que o homem, cabalmente instrudo de que em seu poder nada lhe foi deixado de bom e de que de todos os lados est cercado da mais miservel necessidade, no entanto seja ensinado a aspirar ao bem, de que carente; e liber- dade, de que foi privado; e assim seja mais incisivamente despertado da inao, do que se imaginasse ser dotado de suprema virtude. Quo necessrio seja este segun-

do aspecto, impossvel que algum no o veja. Quanto ao primeiro, vejo muitos sendo objeto de dvida, mais do que se devia.

Ora, isto posto, alm de controvrsia, que ao homem nada se deve detrair do que lhe prprio, deve tambm ficar claramente evidente quo importante despojar-se ele de toda falsa exaltao pessoal. Pois se na verdade no foi concedido ao homem gloriar-se em si mesmo nem ainda quando, pela beneficncia de Deus, fora distin- guido com os mais elevados dons, quanto lhe convm agora humilhar-se, quando, em conseqncia de sua ingratido, foi da glria excelsa prostrado a extrema igno- mnia?

Afirmo que por todo esse tempo em que fora elevado ao sumo fastgio da honra, outra coisa no lhe atribuiu a Escritura seno que foi criado imagem de Deus [Gn

1.27], fato esse com o qual acentua que o homem fora opulento no em funo de seus prprios dotes, mas no fato da participao em Deus. Portanto, despido e des- pojado de toda glria, que lhe resta agora seno que reconhea a Deus, a cuja bene- ficncia no pde ser grato quando refestelava nas riquezas de sua graa, e agora, ao menos pela confisso da prpria pobreza, glorifique quele a quem no glorificou mediante o reconhecimento de seus benefcios?

Tambm no nos de menos proveito que se nos anule todo louvor de sabedoria

e virtude, que so pertinentes glria de Deus. De sorte que nossa misria consorcia com o sacrilgio aqueles que nos prodigalizam algo alm do legtimo. Pois, que outra coisa acontece, quando somos ensinados a lutar por nossos prprios recursos, seno que somos levantados na ponta de um canio, para, dentro em pouco, quebra-

do ele, cairmos por terra? Se bem que as foras nos lisonjeiam at demais, quando

mesmo a um canio so comparadas! Ora, fumaa tudo quanto homens fteis tm inventado e alardeiam acerca dessas coisas. Por isso, no sem causa, tantas vezes Agostinho repete esta ponderao to expressiva: que os defensores do livre-arb- trio so mais abalados que firmados por ele.

Foi necessrio dizer estas coisas guisa de prefcio por causa de alguns que, enquanto ouvem que o poder humano est desmoronado desde os fundamentos, para que se edifique no homem o poder de Deus, abominam odientamente a toda esta considerao como perigosa, no apenas suprflua, considerao, a qual, no entanto, se mostra ser necessria no s em religio, mas tambm utilssima a ns prprios.

2. AS PRESSUPOSTAS FACULDADES DA ALMA E SUA FUNOVisto que j dissemos pouco antes que as faculdades da alma esto sediadas na mente e no corao, consideremos agora de que poder se reveste uma e outra dessas partes do ser. Na verdade os filsofos imaginam com avultado consenso que na mente que se radica a Razo, a qual, semelhana de uma lmpada, ilumina a todas

as decises, e maneira de uma rainha governa a vontade. Pois, a tal ponto supem

ter sido a mesma banhada da luz divina para que possa decidir com muito acerto, e nesse poder exceler a tal ponto que possa reger com muita eficincia. Em contrapo- sio, imaginam que a sensibilidade est to embotada e to eivada de obtusidade

de viso, que sempre rasteje ao solo e se revolva nos mais vis objetos, nem jamais se

alce ao verdadeiro discernimento; o apetite, se porventura consegue obedecer razo, nem se deixa sujeitar sensibilidade, levado ao cultivo das virtudes, a reta via conserva e em vontade se conforma; se entretanto se entrega servido da sen- sibilidade, por ela a tal ponto corrompido e depravado, que degenera em concu- piscncia.

E como, segundo a opinio deles, dentro em ns subsistem plenamente essas

faculdades da alma que acima referi intelecto, sensibilidade e apetite ou vontade, sendo esta ltima designao j agora recebida em uso mais vulgarizado, postu- lam esses filsofos que o intelecto dotado da razo, a mais sublimada gestora para

se viver bem e afortunadamente, contanto que o prprio intelecto se sustenha em sua excelncia e d vazo fora de natureza a si conferida. Seu impulso inferior, porm, que se denomina sensibilidade, merc da qual o homem arrastado ao erro

e ao engano, tal que pode ser domado e aos poucos quebrantado pela palmatria

da razo. Alm disso, a meio caminho entre a razo e a sensibilidade colocam a vontade, naturalmente senhora de seu direito e de sua liberdade, seja que lhe apraza obedecer razo, seja prostituir-se sensibilidade, para ser dela violentada.

3. A VONTADE HUMANA, NA OPINIO DOS FILSOFOS, LIVRE E SOBERANACom efeito, convencidos pela prpria experincia, verdade que os filsofos de vez em quando no negam com quo grande dificuldade o homem firma em si o reinado razo, enquanto ora afagado pelos engodos dos prazeres, ora iludido pela aparncia de coisas boas, ora violentamente combatido por impulsos imode- rados e, como o diz Plato, como que por cordas ou correias puxado em direes diversas.8 Pela mesma razo, tambm diz Ccero que aquelas fagulhas dadas pela natureza so, dentro em pouco, extintas pelas opinies corruptas e pelos maus cos- tumes.9 Quando, realmente, enfermidades desta natureza uma vez se assenhorearam das mentes dos homens, confessam grassarem elas mais virulentamente do que seja possvel facilmente debel-las; nem hesitam em compar-las a cavalos bravios que, alijada a razo, qual um cocheiro atirado fora da carruagem, se entregam, desenfre- ada e desmedidamente, licenciosidade.

Isto, contudo, determinam alm de controvrsia: as virtudes e os vcios esto em nosso poder. Ora, dizem eles, se de nossa escolha fazer isto ou aquilo, logo tam- bm o no faz-lo. Por outro lado, se de nossa escolha o no faz-lo, logo tam- bm faz-lo. Mas parecemos fazer de livre escolha as coisas que fazemos e abster- nos daquelas das quais nos abstemos.10 Portanto, se algo de bom fazemos quando nos apraza, podemos igualmente deixar de faz-lo; se algo de mau perpetramos, podemos tambm evit-lo. E alguns deles se tm arrojado at ao ponto de desbraga- mento: se jactam de que certamente obra dos deuses que vivemos; nossa, entretan-

to, que vivemos bem e santamente. Donde tambm essa observao de Ccero, na pessoa de Cotta, de que, porquanto cada um adquire a virtude para si, ningum dentre os sbios jamais rendeu graas a Deus a respeito dela. Pois somos louvados em razo de nossa virtude, diz ele, e em nossa virtude nos gloriamos, o que no

8. Das Leis, livro I.9. Tusculanas, livro III.

10. Aristteles, tica, livro III, captulo V.

aconteceria, se ela fosse ddiva de Deus, e no procedesse de ns mesmos.11 E, pouco depois: Este o parecer de todos os mortais: que a Deus se deve pedir sorte,

e que sabedoria se deve obter de si prprio.

Portanto, esta a suma da opinio de todos os filsofos: que para a reta direo

do ser basta a razo do intelecto humano; que a vontade a ela subjacente , com efeito, pela sensibilidade solicitada s coisas ms. Entretanto, visto que tem livre escolha, de modo algum pode ser impedida de por tudo seguir a razo como guia.

4. OS PATRSTICOS, AINDA QUE UM TANTO AMBIGUAMENTE, ESPOSAM O LIVRE-ARBTRIOEntre os escritores eclesisticos do passado, embora no existisse ningum que no tenha reconhecido no s ter sido a sanidade da razo no homem gravemente ferida atravs do pecado, como tambm extremamente enredilhada vontade em desejos corruptos, muitos deles, no entanto, tm se aproximado dos filsofos muito mais do que justo. Dentre os quais, os mais antigos a mim me parecem ter assim exaltado os poderes humanos com este intento: em primeiro lugar, para que no provocassem a galhofa dos prprios filsofos com quem estavam ento a contender,

se viessem a confessar francamente a carncia humana de capacidade; em segundo lugar, para que no oferecessem nova ocasio de inrcia carne, j de sua prpria vontade demasiado embotada para o bem. Portanto, para que no ensinassem algo absurdo ao comum sentir dos homens, esforaram-se por, a meio termo, conciliar a doutrina da Escritura com os dogmas da filosofia. Contudo, evidente de suas pr- prias palavras que eles atentaram primordialmente para este segundo ponto: no dar lugar inrcia.

Diz Crisstomo, em algum lugar: Porquanto Deus ps em nosso poder o bem e

o mal, deu-nos o livre-arbtrio da escolha, e quando no queremos no nos fora;

quando, porm, queremos, nos abraa.12 Igualmente: No raro, aquele que mau,

se for desejado, muda-se em bom; e aquele que bom, por inrcia, cai e se torna mau, porquanto o Senhor nos fez com uma natureza dotada do livre-arbtrio. Nem impe ele necessidade. Pelo contrrio, providos os remdios apropriados, tudo dei-

xa ficar ao arbtrio do enfermo.13 De novo: Assim como nada jamais podemos fazer retamente, a no ser se ajudados pela graa de Deus, assim tambm, a menos que tenhamos de acrescentar o que nosso, no poderemos alcanar o favor super- no. Ele, porm, dissera antes: Para que no seja tudo do auxlio divino, importa ao mesmo tempo que algo tragamos ns.14 E por isso a cada passo -lhe corriqueira

11. Da Natureza dos Deuses, livro III.

12. Homlias da Traio de Judas, I, 3.13. Sobre o Gnesis, hom. XIX, 1.

14. Sobre So Mateus, hom. LXXXII, 4.

esta palavra: Tragamos o que nosso; o restante Deus suprir.15 Consistente com

isso o que Jernimo diz: Nosso o comear, de Deus, porm, o terminar; nosso, oferecer o que podemos, dele prover o que no podemos.

Destas afirmaes vs, sem dvida, que, mais do que era justo, esses patrsticos prodigalizaram ao homem o zelo para com a virtude, pois pensavam no poderem despertar de outra maneira o torpor a ns ingnito, a no ser que nos acusassem de pecar s em funo dele. Com quo grande habilidade, porm, veremos em seguida

o que foi feito por eles. Com efeito, dentro em pouco ficar patente que essas postu- laes s quais nos reportamos so de todo falsas.

Ademais, embora os gregos, mais que outros, e entre eles singularmente Criss- tomo, excederam o limite em exaltar a capacidade da vontade humana, contudo todos os antigos, excetuado Agostinho, nesta matria a tal ponto ou divergem, ou vacilam, ou falam confusamente, que de seus escritos quase nada de certo se pode referir. E assim no nos deteremos a enumerar mais precisamente as opinies de um

a um, mas apenas respigaremos de passagem, de cada um, o quanto o teor do argu- mento parecer exigir.

Os que seguiram aps, enquanto cada um procura captar em favor de si prprioo louvor da argcia na defesa da natureza humana, decaram, pouco a pouco, uns aps os outros, em um contnuo cada vez pior, at que se chegou a isto: que o homem, corrompido apenas na parte sensria, se viesse generalizadamente a repu-

tar ter inteiramente inclume a razo e tambm, em sua maior parte, a vontade. Enquanto isso, volitou na boca de todos este postulado: que os dotes naturais do homem se corromperam; detrados, porm, os supernaturais. Qual, entretanto, o alcance disso, mal um em cem sequer de leve o degustou. Na verdade, se eu quisesse com clareza ensinar qual a corrupo da natureza, ter-me-ia de facilmente conten-

tar com estas palavras. No entanto, sobremodo interessa ponderar atentamente de que capacidade ainda dispe o homem, no apenas corrompido em todas as partes

de sua natureza, mas tambm destitudo dos dons supernaturais.

Portanto, em referncia a esta matria, falaram demasiado filosoficamente aqueles que se vangloriavam de ser discpulos de Cristo. Ora, sempre subsistiram entre os latinos a expresso livre-arbtrio, como se o homem permanecesse ntegro at o presente. Os gregos, porm, no se acanharam em fazer uso de vocbulo muito mais presunoso, por isso se diziam auvtexou,sion [aut$xosi(n possudo de poder pr- prio], como se por si s o poder residisse no homem.

Logo, uma vez que todos, at mesmo o povo comum, esto imbudos deste prin- cpio, que o homem dotado de livre-arbtrio, no obstante o fato que mesmo alguns deles, que desejam parecer sofisticados, desconhecem at onde ele se esten- de. Ns, antes, perscrutemos o alcance do termo; ento, da singeleza da Escritura,

15. Sobre o Gnesis, hom. XXV, 7.

determinemos o que, para o bem ou para o mal, por sua prpria natureza pode o homem.O que fosse o livre-arbtrio, poucos o tm definido, ainda que nos escritos de todos essa expresso ocorra repetidamente. Orgenes,16 contudo, parece ter propos-

to isto, acerca de que entre eles, indistintamente, havia consenso, quando disse: O livre-arbtrio a faculdade da razo para discernir o bem ou o mal, a faculdade da vontade para escolher um ou outro desses dois. Agostinho no discorda dele quan-

do ensina que o livre-arbtrio a faculdade da razo e da vontade pela qual, assistin-

do-as a graa, se escolhe o bem, deixando ela de assisti-las, escolhe-se o mal. J que prefere falar de maneira sofisticada, Bernardo se expressa de modo mais obscuro dizendo que o livre-arbtrio o acordo que resulta da indirimvel liberdade da von- tade e do indeclinvel julgamento da razo.17 A definio de Anselmo no bastante explcita, o qual ensina que o livre-arbtrio o poder de conservar a retido em funo de si prpria.18Dessa forma, Pedro Lombardo e os escolsticos favoreceram a definio de Agos- tinho, porquanto no s era mais inteligvel, como tambm no exclua a graa de Deus, sem a qual viam que a vontade, de si mesma, no bastava.19 Contudo, tambm eles prprios acrescentam suas noes que, ou julgavam ser melhores, ou que pen- savam contriburem para explicao mais completa. Esto de acordo, em primeiro lugar, em que o substantivo arbtrio se deve referir antes razo, qual cabe discer- nir entre o bom e o mau, enquanto o adjetivo livre pertence propriamente vontade, que se pode vergar para uma ou outra dessas duas alternativas. Portanto, como a liberdade cabe propriamente vontade, Toms de Aquino pensa que uma excelente definio : o livre-arbtrio o poder de escolha que, na verdade, mixto de intelign- cia e apetite, contudo mais se inclina para o apetite.20J temos em quais elementos ensinam estar situado o poder do livre-arbtrio, isto , na razo e na vontade. Resta agora ver, sucintamente, quanto atribuem a uma

e a outra dessas duas partes.

5. ACEPES DE VONTADE E DE LIBERDADE NOS PATRSTICOSGeralmente esses vultos eclesisticos costumam atribuir ao livre desgnio do homem as coisas intermdias, que evidentemente nada tm a ver com o reino de Deus, mas atribuir a verdadeira justia graa especial de Deus e regenerao espiritual. No af de tornar isto evidente, o autor da obra A Vocao dos Gentios16. De principiis, lib. III.

17. Da Graa e do Livre-arbtrio, cap. II, 4.

18. Dilogo sobre o Livre-arbtrio, cap. III.

19. Pedro Lombardo, Livro das Sentenas, livro II, 24.

20. Suma Teolgica, Parte I, pergunta 83, art. 3.

enumera uma trplice vontade: a primeira, sensria; a segunda, animal; a terceira,

espiritual, das quais as duas primeiras ensinam que o homem as tem livres, sendo a ltima obra do Esprito Santo no homem. Se porventura isto procedente, ser analisado em seu devido lugar, pois agora o propsito apenas mencionar sucinta- mente as opinies dos outros, no refut-las.

Daqui resulta que esses escritores, quando tratam do livre-arbtrio, cogitam aci- ma de tudo no de que papel exera ele em relao s aes civis ou externas; ao contrrio, de que poder se reveste no que se reporta obedincia da lei divina. Reco- nheo ser esta ltima questo a principal, contudo em moldes tais que julgo no dever negligenciar-se completamente a primeira. Espero poder apresentar uma ra- zo bem satisfatria deste meu ponto de vista.

Veio, porm, a prevalecer entre as escolas a distino que enumera uma trplice liberdade: a primeira, da necessidade; a segunda, do pecado; a terceira, da misria, das quais a primeira por natureza de tal forma inerente ao homem que de nenhum modo pode ser alijada; as outras duas foram perdidas mediante o pecado. De bom grado acolho esta distino, exceto que aqui se confunde, indevidamente, necessi- dade com coao. Quanto de diferena haja entre elas e quo necessrio se deva considerar isto, evidenciar-se- em outro lugar.

6. GRAA OPERANTE E GRAA COOPERANTE E O LIVRE-ARBTRIOCaso se admita isto, estar fora de questo que o livre-arbtrio no bastante ao homem para as boas obras, a no ser que seja ajudado pela graa, e na verdade pela graa especial, graa esta de que os eleitos s so dotados mediante a regenerao. Logo, deixo de levar em conta os fanticos que bradam que a graa distribuda a todos de modo igual e de forma indistinta. Isto, entretanto, ainda no est claro: se porventura o homem esteja de todo privado da capacidade de fazer o bem, ou tenha para isso alguma capacidade, ainda que diminuta e precria, que certamente nada possa de si, todavia, em auxiliando-a a graa, desempenhe tambm ela mesma sua funo. Tendo em mira decidir isto, o Mestre das Sentenas ensina que nos neces- sria dupla graa para que nos tornemos capazes para uma boa obra. A uma ele chama de graa operante, merc da qual resulta que queiramos o bem eficazmente; cooperante, a outra, que acompanha a boa vontade, coadjuvando-a.21 Nesta diviso desagrada-me isto: que, enquanto atribui graa de Deus o eficaz desejo do bem, d

a entender que, j de sua prpria natureza, de certo modo, ainda que ineficazmente,

o homem des