joão calvino institutas 1 tradução do latim

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5/20/2018 JooCalvinoInstitutas1TraduoDoLatim-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/joao-calvino-institutas-1-traducao-do-latim 1/228  As Institutas ou Tratado da Religião Cristã  vol. 1  Edição clássica (latim) João Calvino

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  • As Institutas

    ou Tratado da Religio Crist

    vol. 1

    Edio clssica (latim)

    Joo Calvino

  • 11CARTA AO REI

    N D I C EPrefcio 1 edio ................................................................................................................... 17Prefcio 2 edio ................................................................................................................... 21Carta ao Rei Francisco I ............................................................................................................ 23Prefcio edio de 1559 ......................................................................................................... 43Prefcio edio francesa de 1541 e subseqentes, nessa lngua ............................................ 45

    CAPTULO IO CONHECIMENTO DE DEUS E O CONHECIMENTO DE NS MESMOS SO

    COISAS CORRELATAS E SE INTER-RELACIONAM1. O conhecimento de ns mesmos nos conduz ao conhecimento de Deus ........................................ 472. O conhecimento de Deus nos leva ao conhecimento de ns mesmos ............................................. 483. O homem ante a majestade divina ................................................................................................ 49

    CAPTULO IIEM QUE CONSISTE CONHECER A DEUS E A QUE FIM LHE TENDE O CONHECIMENTO

    1. Piedade o requisito para se conhecer a Deus ............................................................................... 502. Confiana e reverncia so fatores do conhecimento de Deus ....................................................... 51

    CAPTULO IIIO CONHECIMENTO DE DEUS FOI POR NATUREZA INSTILADO NA MENTE HUMANA

    1. Universalidade do sentimento religioso ........................................................................................ 532. Religio no invencionice gratuita ............................................................................................. 543. Impossibilidade de atesmo real .................................................................................................... 55

    CAPTULO IVESTE MESMO CONHECIMENTO SUFOCADO OU CORROMPIDO,EM PARTE PELA IGNORNCIA, E EM PARTE PELA DEPRAVAO

    1. Superstio ..................................................................................................................................... 572. Apostasia ........................................................................................................................................ 583. Idolatria .......................................................................................................................................... 594. Hipocrisia ....................................................................................................................................... 59

    CAPTULO VO CONHECIMENTO DE DEUS FULGE NA OBRA DA CRIAO DO MUNDO

    E EM SEU CONTNUO GOVERNO1. Inescusabilidade do homem ........................................................................................................... 612. Visibilidade da sabedoria divina ................................................................................................... 623. O ser humano evidncia mxima da sabedoria divina ................................................................. 634. A ingratido humana em relao a Deus ....................................................................................... 63

  • 12 LIVRO I

    5. Confuso de criatura e Criador ..................................................................................................... 646. A soberania de Deus sobre a criao ............................................................................................. 667. O governo e o juzo de Deus ........................................................................................................ 678. O soberano domnio de Deus sobre a vida humana ..................................................................... 689. Deus melhor visualizado em suas obras do que em especulaes da razo .................................. 6910. Propsito deste conhecimento ................................................................................................... 7011. Cegueira humana ante a evidncia de Deus na criao ............................................................... 7112. A superstio humana e o engano dos filsofos constituem obstculos manifestao divina ... 7213. Ao Esprito Santo abominvel toda e qualquer religio de procedncia humana ..................... 7414. Insuficincia da manifestao de Deus na ordem natural ........................................................... 7515. Inescusabilidade final do homem .............................................................................................. 76

    CAPTULO VIPARA QUE ALGUM CHEGUE A DEUS O CRIADOR NECESSRIO

    QUE A ESCRITURA SEJA SEU GUIA E MESTRA1. O verdadeiro conhecimento de Deus na Bblia ............................................................................ 772. A Bblia, a Palavra de Deus escrita .............................................................................................. 783. A Bblia o nico escudo a proteger do erro ............................................................................... 794. A superioridade revelacional da Bblia sobre a criao ................................................................ 80

    CAPTULO VIIPOR QUE NECESSRIO QUE SE ESTABELEA O TESTEMUNHO EM PROL DA

    ESCRITURA PARA QUE SUA AUTORIDADE SEJA INDUBITVEL: EVIDENTEMENTE,DO ESPRITO. DA SER MPIA FALSIDADE SUSTENTAR QUE SUA CREDIBILIDADE

    DEPENDE DO ARBTRIO DA IGREJA1. A autoridade da Bblia provm de Deus, no da Igreja ................................................................. 812. A Igreja est fundamentada na Bblia ........................................................................................... 823. Agostinho no contraria esta tese ................................................................................................. 834. O testemunho interior do Esprito superior a toda prova ........................................................... 845. A Bblia autenticada pelo Esprito ............................................................................................. 85

    CAPTULO VIIIAT ONDE LEVA A RAZO HUMANA, H PROVAS SUFICIENTEMENTE SLIDAS

    PARA ESTABELECER A CREDIBILIDADE DA ESCRITURA1. Superioridade da Bblia em relao a toda a sabedoria humana ................................................... 882. Beleza estilstica de certas pores da Bblia ............................................................................... 893. A antigidade da Bblia ............................................................................................................... 904. A fidedignidade de Moiss ........................................................................................................... 905. Os milagres reforam a autoridade de Moiss, o mensageiro divino ............................................ 916. Incontestabilidade dos milagres mosaicos ................................................................................... 927. Cumprimento das profecias mosaicas .......................................................................................... 928. Cumprimento de predies de outros profetas ............................................................................. 939. Preservao e transmisso da lei .................................................................................................. 9410. A Bblia foi maravilhosamente preservada por Deus .................................................................. 9511. Simplicidade e autoridade do Novo Testamento ........................................................................ 9612. Perenidade da Bblia .................................................................................................................. 9713. Testemunho dos mrtires ............................................................................................................ 98

  • 13CARTA AO REI

    CAPTULO IXOS FANTICOS QUE, POSTA DE PARTE A ESCRITURA, ULTRAPASSAMA REVELAO E SUBVERTEM A TODOS OS PRINCPIOS DA PIEDADE

    1. Apelo fantico ao Esprito em detrimento da Escritura ................................................................ 992. A Bblia o rbitro do Esprito .................................................................................................... 1003. A Bblia e o Esprito Santo no se dissociam .............................................................................. 101

    CAPTULO XPARA CORRIGIR TODA SUPERSTIO, A ESCRITURA CONTRAPE TODOS

    OS DEUSES DOS PAGOS EXCLUSIVAMENTE O DEUS VERDADEIRO1. A doutrina bblica de Deus como Criador .................................................................................. 1032. Os atributos divinos atestados, de igual modo, na Bblia e na criao ....................................... 1033. Os idlatras so inescusveis ante a noo generalizada da unicidade de Deus ......................... 105

    CAPTULO XI UMA ABOMINAO ATRIBUIR FORMA VISVEL A DEUS, E GERALMENTE

    SE APARTAM DO DEUS VERDADEIRO QUANTOS ESTABELECEM DOLOS PARA SI1. Representar a Deus atravs de imagens corromper-lhe a glria ............................................... 1062. Representar a Deus por meio de imagens contradizer-lhe o ser .............................................. 1073. Manifestaes e sinais que patenteavam a presena divina no servem de base para as imagens 1084. A Bblia condena imagens e representaes de Deus ................................................................. 1095. A Bblia no justifica a representao iconoclstica ................................................................... 1116. O parecer contra as imagens de certos vultos da patrstica ........................................................ 1117. Inaceitabilidade das imagens do romanismo .............................................................................. 1128. A feitura de imagens procede do desejo de tocar a Deus ............................................................ 1139. O uso das imagens conduz idolatria ........................................................................................ 11410. O culto de imagens ento reinante ........................................................................................... 11611. O sofisma do culto de latria e dulia .......................................................................................... 11612. Funo e limitao litrgica da arte .......................................................................................... 11713. A introduo de imagens na histria da Igreja .......................................................................... 11814. Argumentos enganosos que embasam a deciso iconlatra do Conclio de Nicia de 787 ....... 11915. O absurdo da hermenutica bblica dos paladinos da iconolatria ............................................. 12016. Pronunciamentos e prticas blasfemas e absurdas em relao iconolatria ............................. 121

    CAPTULO XIIIMPORTA QUE DEUS SEJA DISTINGIDO DOS DOLOS,

    PARA QUE SE CULTUE INTEGRALMENTE SOMENTE ELE1. A verdadeira religio proclama o Deus nico e absoluto ............................................................. 1232. A ilusria distino de latria e dulia ........................................................................................... 1243. Improcedncia do culto de dulia luz das Escrituras ................................................................. 125

    CAPTULO XIIINAS ESCRITURAS, DESDE A PRPRIA CRIAO,

    SE ENSINA UMA ESSNCIA NICA DE DEUS, QUE EM SI CONTM TRS PESSOAS1. Infinitude e incorporeidade de Deus ............................................................................................ 1272. A questo de trs pessoas e a unidade substancial de Deus ........................................................ 128

    NDICE

  • 14 LIVRO I

    3. Adequao dos termos Trindade e Pessoa interpretao do conceito bblico ........................... 1294. Utilidade dos termos Trindade e Pessoa em relao a conceitos herticos ................................ 1305. Sentido e distino de termos fundamentais, a saber, substncia, consubstancial, essncia,

    hipstase, pessoa e trindade ...................................................................................................... 1316. Pessoa, essncia e subsistncia .................................................................................................. 1337. Deidade do Verbo ...................................................................................................................... 1348. Eternidade do Verbo .................................................................................................................. 1359. Evidncias veterotestamentrias quanto divindade de Cristo .................................................. 13610. O Anjo das teofanias era Cristo ................................................................................................ 13711. Os apstolos aplicam a Cristo o que fora dito do Deus eterno .................................................. 13912. As obras de Cristo atestam sua divindade ................................................................................. 14013. Os milagres de Cristo e as prerrogativas divinas que lhe so outorgadas atestam sua divindade 14114. A obra do Esprito Santo atesta sua divindade ......................................................................... 14215. O Esprito identificado com a Deidade .................................................................................... 14316. A unidade de Deus luz do batismo ........................................................................................ 14417. Trs pessoas: distino, no diviso ......................................................................................... 14518. Funes distintivas das pessoas da Trindade ........................................................................... 14619. O relacionamento hiposttico e a unidade consubstancial ........................................................ 14720. O conceito bsico do Deus Trino ........................................................................................... 14821. A atitude prpria em relao a esta doutrina e s heresias que se lhe opem ........................... 14922. A obstinao dos antitrinitrios, principalmente Serveto .......................................................... 15023. H no Filho a mesma divindade do Pai .................................................................................... 15224. O termo Deus no se aplica exclusivamente ao Pai; ele igualmente extensivo Palavra ....... 15425. A essncia nica de Deus comum s trs pessoas .................................................................. 15626. A subordinao do Filho no lhe implica divindade de categoria inferior ................................ 15727. Irineu est longe de legitimar a tese dos que negam a Deidade de Cristo ................................ 15928. Nem mais favorvel lhes Tertuliano ....................................................................................... 16029. O testemunho patrstico em geral confirma a doutrina da Trindade ......................................... 160

    CAPTULO XIVAT MESMO NA PRPRIA CRIAO DO MUNDO E DE TODAS AS COISAS,

    COM INCONFUNDVEIS MARCAS A ESCRITURA DISTINGUE ODEUS VERDADEIRO DOS FALSOS DEUSES

    1. O conhecimento de Deus base da criao e o despautrio da especulatividade ........................ 1632. A bondosa providncia de Deus para com o homem se acha espelhada na obra dos seis dias da

    criao ........................................................................................................................................ 1653. Os anjos so criaturas de Deus, que de tudo o Senhor ............................................................ 1654. Em matria de angelologia, deve-se buscar somente o testemunho da Escritura ......................... 1675. Funes e designativos dos anjos ............................................................................................... 1686. O ministrio dos anjos a velarem de contnuo pela proteo dos crentes ................................... 1697. Precria a base para afirmar-se a realidade de anjo da guarda individual ................................ 1708. Hierarquia, nmero e forma dos anjos ....................................................................................... 1709. A realidade pessoal dos anjos ..................................................................................................... 17110. Improcedncia da angelolatria .................................................................................................. 17211. O ministrio dos anjos motivado pela necessidade humana ...................................................... 17312. Nossos olhos no devem desviar-se de Deus para os anjos ...................................................... 17413. A luta contra o Diabo e suas hostes .......................................................................................... 17514. O batalho demonaco vasto ................................................................................................... 175

  • 15CARTA AO REI

    15. A malignidade do Diabo ........................................................................................................... 17616. A degenerescncia dos seres diablicos .................................................................................... 17717. O poder do Diabo est sujeito autoridade de Deus ................................................................ 17718. Limitao do poder satnico sobre os crentes e domnio sobre os incrdulos .......................... 17819. A realidade pessoal dos seres diablicos .................................................................................. 18020. O que a criao nos ensina concernente a Deus ....................................................................... 18121. A que nos deve conduzir a contemplao das obras de Deus ................................................... 18222. Deus criou todas as coisas para o bem do homem, da a gratido que lhe devemos .................. 183

    CAPTULO XVCOMO O HOMEM FOI CRIADO: ONDE SE TRATA DAS FACULDADES DE SUA ALMA,

    DA IMAGEM DE DEUS, DO LIVRE-ARBTRIO E DA INTEGRIDADEORIGINAL DE SUA NATUREZA

    1. O homem foi criado sem mcula: Deus no culpado do pecado humano ................................. 1852. Espiritualidade e imortalidade da alma, contudo distinta do corpo ............................................. 1863. O homem imagem e semelhana de Deus ................................................................................ 1884. A verdadeira natureza da imagem de Deus s determinvel luz da concepo bblica da

    regenerao em Cristo ................................................................................................................. 1905. O emanacionismo dos maniqueus quanto origem da alma ....................................................... 1916. Definio e propriedade da alma ................................................................................................ 1927. Entendimento e vontade: os centros das faculdades da alma ...................................................... 1958. Livre-arbtrio e responsabilidade de Ado .................................................................................. 195

    CAPTULO XVIDEUS, POR SEU PODER, SUSTENTA E PRESERVA O MUNDO POR ELE CRIADO,

    E POR SUA PROVIDNCIA ELE REGE CADA UMA DE SUAS PARTES1. A providncia, corolrio lgico da criao, razo por que no se separam .................................. 1982. O que rege o mundo a providncia, no o acaso ou a sorte ...................................................... 1993. Deus, causa primeira, tambm a tudo rege em sua providncia .................................................. 2004. Natureza da providncia: no envolve prescincia; atual e eficaz, universal e particular ........ 2025. A providncia especial de Deus no mbito da prpria natureza .................................................. 2046. A providncia especial de Deus no mbito da vida humana ........................................................ 2057. A providncia de Deus no mbito dos fatos naturais .................................................................. 2068. A doutrina da providncia no mera crena no destino ou fado, na sorte ou acaso .................. 2079. A imprevisibilidade e ignorncia humanas no discernem a causao divina dos eventos ........... 208

    CAPTULO XVIIAT ONDE E A QUE PROPSITO SE DEVE APLICAR ESTA DOUTRINA,

    PARA QUE SEU PROVEITO SE NOS EVIDENCIE1. Sentido e alcance da providncia ................................................................................................ 2112. A reverncia devida providencial sabedoria e governo de Deus ............................................... 2123. A providncia no anula a responsabilidade humana .................................................................. 2144. A providncia divina longe est de dispensar todos os meios de proteo e socorro .................. 2155. A providncia divina no nos justifica a iniqidade ................................................................... 2166. O conforto que aos crentes propicia a doutrina da providncia de Deus .................................... 2187. A atitude do crente tocado pela viso da providncia benigna de Deus ...................................... 2198. A serenidade que a certeza da providncia divina faculta ante as adversidades ........................... 220

    NDICE

  • 16 LIVRO I

    9. Relevncia das causas intermdias ............................................................................................. 22110. A certeza da providncia divina nos sustenta ante os perigos mltiplos que nos ameaam ....... 22211. A certeza da providncia divina nos propicia jubilosa confiana em Deus e sua operao ........ 22312. Sentido das passagens que falam de arrependimento por parte de Deus ................................... 22513. Arrependimento em Deus, antropomorfismo pedaggico ......................................................... 22614. A condicionalidade dos fatos na perspectiva da soberana providncia de Deus ........................ 227

    CAPTULO XVIIIDEUS DE TAL MODO USA AS OBRAS DOS MPIOS E A DISPOSIO LHES VERGA A

    EXECUTAR SEUS JUZOS, QUE ELE PRPRIO PERMANECE LIMPO DE TODA MCULA1. Eficincia, no permissividade, a relao de Deus para com a ao dos mpios ....................... 2292. A eficincia da providncia divina na mente e corao de todos ................................................. 2313. A vontade de Deus una e soberana ........................................................................................... 2334. No procedente incriminar a Deus pelo fato de fazer uso dos mpios para seus propsitos

    magnos ........................................................................................................................................ 235

  • 17CARTA AO REI

    P R E F C I O 1 E D I O

    Indiscutivelmente, Joo Calvino o pensador mximo da Reforma e sua famosaobra, as chamadas Institutas, o magnum opus no apenas de seus escritos, mas detoda a literatura produzida pelos Reformadores. Verdadeira aberrao histrica, deum lado, deplorvel lacuna teolgica, de outro, mais at, pasmosa expresso daincria ou displicncia da liderana eclesistica, esta obra monumental ainda noexiste em portugus decorridos quatro sculos de existncia da f reformada! Opresbiterianismo brasileiro, entretanto, de longa data vem clamando pela traduodas Institutas. Iniciativa tomada neste sentido, passados j duas dcadas e mais deum lustro, ainda no parece haver vindo ao encontro desse desideratum. Em1970,se me no trai a memria, o Congresso de Homens Presbiterianos reunido no Recifedirigiu direo da Igreja Presbiteriana do Brasil pedido formal a que providencias-se essa desejada, mas retardada traduo. Presente ao conclave, fui instado peloento Presidente do Supremo Conclio a assumir essa tarefa, fazendo a traduodiretamente do latim, ao invs de o ser da verso francesa. Foi s em 1973, entretan-to, que, gozando de um estgio nos Estados Unidos, merc da deferncia da Chris-tian Reformed Church, pude tentar atender incumbncia. De fato, nesse perodotraduzi todo o livro I. Escrevi, porm, ao Presidente do Supremo Conclio que atraduo exigiria muito mais tempo e se faria de mister reduzir-se-me-ia o trabalhode docente no Seminrio, que eu ento exercia. Retornando ao Brasil, absorvidopelas obrigaes do magistrio e voltado redao de meu Manual de Grego, des-continuei a traduo at 1979, quando, j agora professor da Universidade Estadualde Campinas (UNICAMP), consegui que a traduo fosse aceita como correspon-dendo ao trabalho de pesquisa exigida dos professores dessa egrgia instituio deensino. Revi a traduo j feita do livro Igreja e prossegui por um tero do livro II,quando, discutindo a matria com o professor Franz Leonard Schalkwijk, do Semi-nrio Presbiteriano do Recife, conclu que a obra assumira carter excessivamenteacadmico, seja na linguagem demasiado erudita, seja nas notas inclusas, dada aforma do original latino para cada frase e clusula. Resolvi, pois, no s refazer aredao, mas tambm reduzir ao mnimo necessrio as referncias e notas explica-tivas. esta traduo revista que, com muitas graas ao Senhor, carinhosamenteofereo agora aos estudiosos, no desejo sincero de enriquecer-lhes a vida espirituale legar Igreja um tesouro precioso para a obra de doutrinao e aprofundamentoteolgico. Praza a Deus abenoa-la, para que alcance esse alvo, motivo de minhasoraes e recompensa mxima de meus esforos.

  • 18 LIVRO I

    Uma palavra de explicao se impe. Ante um documento histrico dessa im-portncia e de teor to distanciado da forma verncula, um dilema se interpunha: ouapegar-me ao texto, buscando-lhe a mxima fidelidade, ou, com vistas clareza datraduo, afastar-me sensivelmente do original. Optei pela primeira alternativa, dei-xando a futuros expositores a incumbncia de interpretar e afeioar a expresso deCalvino a moldes mais comunicativos e a forma de fato mais verncula, mais livre eatualizada, parafraseada at. Logo, em ser literal, busquei reter, tanto quanto exe-qvel, o exato sentido do original latino, qui a prpria terminologia, se no afraseologia, pois estou que a primeira e principal qualidade de uma boa traduo amxima fidelidade ao que diz o autor. Se, por vezes, a linguagem parece algo obscu-ra e especiosa, isso se deve prpria natureza do latim e ao estilo de Calvino, queno parece azado modificar. Todavia, inserem-se, em colchetes, palavras e expres-ses que, no parte do original, visam a tornar mais clara a traduo. Ademais,aduzem-se explicaes e variantes ou alternativas forma adoptada, facilitada, as-sim, a compreenso do texto. Entretanto, uma obra que tem de ser lida de formapausada, refletida, cuidadosa, sem sofreguido nem aodamento, a ateno voltadapara com o contexto e a tnica da matria enfocada.

    Afigurou-se proveitoso cotejar a traduo presente com outras de fcil acesso.Destarte, fiz uso da Edio Francesa, texto atualizado de Pierre Marcel e Jean Cadi-er, de 1955 (abreviatura: EF), da valiosa traduo para o ingls de Ford Lewis Bat-tles, edio de 1961 (abreviatura: B), da tradicional traduo de John Allen, 7a.edio americana, de 1936 (abreviatura: A), da verso alem de Karl Muller, ediode 1928 (abreviatura: KM) e da espanhola de Cipriano de Valera, na forma da revi-so de 1967 (abreviatura: CR). At onde possvel, verifiquei as referncias feitasaos acervos da Patrologia Latina de Magne (PLM) e sua congnere, a PatrologiaGrega (PGM), bem como Loeb Classical Library (LCL) e ao Corpus ScriptorumEcclesiasticorum Latinorum (CSEL), de outra sorte citados conforme se mencio-nam nas verses cotejadas.

    Ponto que merece esclarecimento o referente s citaes de textos bblicos.Mantive a forma adoptada pelo prprio Calvino. No o texto da Vulgata, pelomenos na Verso Clementina, dela divergindo, por vezes, sensivelmente. matriapara interessante considerao da Crtica Textual. Ademais, parece Calvino modifi-ca-los, alter-los, adapta-los, fundindo passagens ou fracionando-as, conforme o aque visava, proceder longe de estranhvel em uma poca em que a moderna divisocapitular e versicular ainda no era generalizada, muito menos estereotipada, nemos cnones critico-textuais fixados e reconhecidos como hoje. Este , portanto, umaspecto em que se h de atualizar ou revisar o texto ao aplica-lo em moldes corren-tes. A fidelidade histrica, entretanto, no permitiria referi-los em termos das tradu-es modernas ou do texto agora vigente.

  • 19CARTA AO REI

    Muito e a muitos teria de registrar meu profundo agradecimento para que pu-desse levar a cabo esta para mim venturosa empreitada. Primeiramente, a Deus, PaiAmantssimo, que me conservou com vida e conferiu a capacidade para esta delica-da e morosa tarefa; Christian Reformed Church o propiciar-me perodo de estudosque me facultaram o contacto primeiro com o esforo de traduo, bem como ointeresse na presente edio, objetivando em valioso subsdio financeiro; ao Dr.Peter de Klerk, bibliotecrio do Calvin College, Grand Rapids, Michigan, a valiosacolaborao prestada no uso de obras de seu acervo e informaes fornecidas poste-riormente; assim, ao Rev. Jlio Andrade Ferreira que, generosamente, tanto me as-sistiu com livros de que tive necessidade ao longo de todo o demorado labor datraduo; Unicamp o slido apoio iniciativa, expresso na aceitao deste traba-lho como parte dos encargos exigidos dos docentes; ao professor Rodolfo Ilari,colega de docncia, a inestimvel ajuda na consecuo desse apoio; ao Rev. Celsinoda Cunha Gama, Diretor Executivo de Luz Para o Caminho, o empenho em fazercom que a obra viesse a lume, assumindo de comeo a dura tarefa de publicao; aopresbtero Glaycon Andrade Ferreira, que se desdobrou na reviso primeira da com-posio; ao presbtero Dr. Paulo Breda Filho, Presidente do Supremo Conclio daIgreja Presbiteriana do Brasil, ao presbtero Antonio Ribeiro Soares, Diretor Supe-rintendente da Casa Editora Presbiteriana, e ao Rev. Sabatini Lalli, o interesse emter a obra publicada sob o patrocnio da Igreja Presbiteriana do Brasil, como sempredesejamos. Ao Rev. Sabatini, ademais, o penoso trabalho de reviso final e as opor-tunas sugestes feitas na parte redacional. minha nobre esposa, Amlia StephanLuz, a dedicao e ajuda prestadas de mil e uma formas, sem o que no teria eu tidocondies de levar a cabo a rdua empreitada. Aos estudantes do Seminrio Presbi-teriano de Campinas e a muitos colegas o generoso estmulo, demonstrado vezestantas e de tantas maneiras. De reconhecimento especial, finalmente, credora aComisso Calvino, constituda de ilustres irmos do Norte, centralizados no Recife,que me respaldaram o esforo com sugestes preciosas, certa ajuda financeira atque assumi a docncia com tempo integral na Universidade, leal incentivo e muitaorao.

    Que lhes recompense a todos a nobreza de alma o grande Senhor Nosso. E queseja este esforo, fruto de intenso labor e especial carinho, ricamente abenoado porDeus de sorte que dele possam muitos auferir grande proveito espiritual e muitoestmulo para testemunhar eficazmente de Cristo e seu Evangelho.

    Campinas, junho de 1984Waldyr Carvalho Luz

    PREFCIO 1 EDIO

  • 20 LIVRO I

  • 21CARTA AO REI

    P R E F C I O 2 E D I O

    fato assaz auspicioso que a primeira edio das Institutas em nossa lngua portu-guesa haja sido toda vendida em pouco mais de uma dcada de sua publicao. Porum lado, demonstra que nosso meio cultural, apesar de tantas limitaes e carncias,se esmera em cultivar e aprofundar seus conhecimentos teolgicos, no desdenhandouma obra que, embora produzida no sculo 16, de imensa atualidade, no somenteporque representa a magnum opus da Reforma Protestante, documento histrico dereal grandeza, mas tambm porque uma sistematizao da doutrina bblica de invul-gar profundidade e acuracidade hermenutica irretorquvel, fundamento essencial dopensamento protestante clssico. Por outro lado, revela uma viso compreensiva eampla do mundo teolgico, o mais das vezes afeito a vultos e obras ditas modernas,modismos efmeros e superficiais, de pouca durao e mesmo razes.

    A presente edio difere da anterior em que no mais se aduzem as repetidas notasde rodap que registravam variantes comparativas de traduo verificadas em duasverses do ingls, da alem, da espanhola e, mesmo, da francesa. Tambm, a critriodos editores, retiram-se os colchetes que assinalavam termos e formas que, no en-contradas no texto latino original, o tradutor inseriu para efeitos de clareza e expres-so, como o caso dos artigos definido e indefinido e do pronome da terceira pessoa,ausentes na lngua latina, que ns, falantes luso-brasileiros adaptamos do demonstra-tivo ille, ill, illud, em sua forma acusativa. Tais adues bem que poderiam aparecerem itlico ou negrito. Tratando-se de documento de tal vulto, ao traduzirmo-lo, procu-ramos, sem sermos literais, ater-nos ao estilo e terminologia de Calvino o mais poss-vel, pelo que nem sempre a traduo clara e fluente como seria de desejar-se. Oseditores, para tornar o texto mais lcido e acessvel, tomaram a liberdade de fazercertos ajustes e alteraes, registrando, porm, em nota de rodap a forma integral datraduo de nossa lavra na primeira edio. preciso que o leitor tenha em mosexatamente o que o telogo de Genebra escreveu, sem deturpaes ou falseamento doteor, exatido necessria em documento desse jaez e importncia.

    Congratulamo-nos com a Editora Cultura Crist pela arrojada, mas oportuna,iniciativa de reeditar as Institutas e alegramo-nos em poder continuar facultando aoestudioso Calvino falado em nosso idioma.

    Abenoe o Senhor este nobre empreendimento.Campinas, setembro de 2003

    Waldyr Carvalho Luz

  • 22 LIVRO I

  • 23CARTA AO REI

    C A R T A A O R E I F R A N C I S C O I

    Ao Mui Poderoso e Ilustre Monarca,FRANCISCO,

    Cristianssimo Rei dos Franceses,seu Prncipe,

    JOO CALVINORoga Paz e Salvao em Cristo

    1. CIRCUNSTNCIAS EM QUE A OBRA FOI INICIALMENTE ESCRITAQuando, de incio, tomei da pena para redigir esta obra, de nada menos cogitava, mui preclaro Rei, que escrever algo que, depois, houvesse de ser apresentado peran-te tua majestade. O intento era apenas ensinar certos rudimentos, merc dos quaisfossem instrudos em relao verdadeira piedade quantos so tangidos de algumzelo de religio. E este labor eu o empreendia principalmente por amor a nossoscompatrcios franceses, dos quais a muitssimos percebia famintos e sedentos deCristo, pouqussimos, porm, via que fossem devidamente imbudos pelo menos demodesto conhecimento. Que esta me foi a inteno proposta, no-lo diz o prpriolivro, composto que em uma forma de ensinar simples e, por assim dizer, superficial.

    Como, porm, me apercebesse de at que ponto tem prevalecido em teu reino afria de certos degenerados, de sorte que no h neles lugar nenhum s doutrina,dei-me conta da importncia da obra que estaria para fazer, se, mediante um mesmotratado, no s lhes desse um compndio de instruo, mas ainda pusesse diante deti uma confisso de f, merc da qual possas aprender de que natureza a doutrinaque, com fria to desmedida, se inflamam esses tresloucados que, a ferro e fogo,conturbam hoje teu reino. Pois nem me envergonharei de confessar que compendieiaqui quase que toda a smula dessa mesma doutrina que aqueles vociferam deveriaser punida com o crcere, o exlio, o confisco, a fogueira, que deveria ser extermina-da por terra e mar.

    2. DEFESA DOS FIIS PERSEGUIDOSSei perfeitamente de quo atrozes denncias teriam eles enchido teus ouvidos e

    mente, no af de tornar nossa causa diante de ti a mais odiosa possvel. Mas, emfuno de tua clemncia, isto deve ser-te cuidadosamente ponderado, se suficiente

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    haver acusado, que nenhuma inocncia haver de subsistir, nem nas palavras, nemnas aes.

    Se no interesse de suscitar dio, porventura algum alegue que esta doutrina, daqual estou tentando dar-te a razo, j por muitos tem sido condenada pelo veredictode todos os Estados, solapada por muitas sentenas peremptivas dos tribunais, outracoisa no estar a dizer seno que, em parte, ela tem sido violentamente pisoteadapela facciosidade e prepotncia dos adversrios; em parte, insidiosa e fraudulenta-mente oprimida por suas falsidades, invencionices e calnias.

    Constitui arbitrariedade o fato de que, no facultada oportunidade de defesa auma causa, contra ela se passem sanguinrias sentenas; dolo que, parte dequalquer delito, ela seja acusada de fomentar sedies e promover malefcios.

    Para que no pense algum que estamos a queixar-nos dessas coisas injusta-mente, tu mesmo, Rei nobilssimo, podes ser-nos testemunha de com que mentiro-sas calnias ela diariamente trazida diante de ti, como se a outro fim no disponhaseno arrebatar das mos dos reis os cetros, pr por terra todos os tribunais e normasjudicirias, subverter a todas as instituies e estruturas poltico-administrativas,perturbar a paz e a tranqilidade pblicas, anular todas as leis, desmantelar domni-os e posses, enfim, promover total runa de tudo. E, no entanto, o que ouves ape-nas uma parcela mnima. Pois que certas coisas horrendas se espalham entre o povo,coisas que, se fossem verdadeiras, deveria o mundo inteiro, com merecida razo,julg-la digna, juntamente com seus autores, de mil fogueiras e cruzes.

    Quem a esta altura haveria de surpreender-se de que, onde se d crdito a essascivilizaes profundamente inquas, contra ela se tem inflamado o dio pblico?

    Eis por que todas as suas classes, de comum acordo, concordam e cooperam emnossa condenao, bem como de nossa doutrina, arrebatados por esta paixo, quan-tos se assentam nos tribunais para exercer o juzo, em lugar de sentenas reais,pronunciam os preconceitos que trouxeram de casa. E julgam haver-se criteriosa-mente desincumbido de suas funes, se a ningum ordenam que seja levado aosuplcio, a no ser que seja incriminado por confisso direta ou por slidos teste-munhos.

    Mas, de que crime? Dessa doutrina condenada, dizem-no. Mas, em bases de quedireito foi ela condenada? Ora, isto deveria ser a essncia da defesa, a saber, norepudiar a prpria doutrina, ao contrrio, hav-la por verdadeira. Aqui, no entanto,nos vedado at mesmo o direito de falar em surdina!

    3. APELO EM FAVOR DOS FIIS OPRIMIDOSE assim, no sem justa razo, Rei invictssimo, rogo-te que empreendas cabal

    investigao desta causa, causa que at agora tem sido tratada desordenadamente,

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    quando no de todo tumultuada, e sem nenhuma sistemtica de direito, e mais sob aagitao do impulso de seriedade condigna do judicirio.

    Nem julgues que estou aqui arquitetando minha defesa pessoal, merc da qualme resulte seguro regresso ptria, da qual, embora a ame tanto quanto prprio dosentimento humano, no p em que esto as coisas atualmente no deploro profunda-mente estar dela distanciado. Antes, estou a abraar a causa comum de todos ospiedosos, que outra no seno a prpria causa de Cristo que, de todos os modos,jaz hoje em teu reino lacerada e espezinhada, dir-se-ia reduzida a desesperada con-dio, isto, por certo, mais em decorrncia da tirania de certos fariseus do que de teuquerer.

    Aqui, porm, a nada leva denunciar como isso acontece. O certo que estacausa est sofrendo dura opresso. Isto, pois, os mpios tm conseguido: que averdade de Cristo, se no aniquilada como que em debandada e destroo, por certoque ser ostentada como que enxovalhada e vilipendiada. E a pobrezinha da Igrejaest ou devastada por cruis morticnios, ou arruinada por banimentos, ou raladapor ameaas e terrores, que nem sequer ousa alar a voz. E, ainda agora, com acostumeira insnia e ferocidade, investem desabusados contra a muralha que j esta desmoronar-se, e prontos a levar a plena consumao a devastao a que se acos-tumaram. Entrementes, ningum vem frente para opor-se, em sua proteo, a taisexploses de violncia. E se alguns h que desejam ser tidos como a favorecerespecialmente a verdade, so eles de parecer que se devam ignorar o erro e a impru-dncia de homens incultos. Assim, pois, falam homens comedidos, chamando deerro e imprudncia o que sabem ser a plena verdade de Deus; e chamando de ho-mens incultos, aqueles cuja inteligncia vem no ter sido, de modo algum, despre-zvel a Cristo, uma vez que ele os teve por dignos dos mistrios de sua celestialsabedoria! A tal ponto, todos se envergonham do evangelho!

    Cumprir-te-, portanto, Rei serenssimo, no apartares os ouvidos, nem a mentede to justa defesa, mormente quando est em jogo questo de to alta importncia,a saber: como se far patente na terra o carter intocvel da glria de Deus, comosua dignidade retenha a verdade de Deus, como entre ns o reino de Cristo perma-necer ntegro e inabalvel. Matria essa digna de tua ateno, digna de teu conhe-cimento, digna de teu juzo!

    Com efeito, certamente esta considerao faz o verdadeiro rei: reconhecer-seum ministro de Deus na gesto do reino. Aquele que assim no reina para o servioda glria de Deus no exerce o reino; ao contrrio, exerce a usurpao. Ademais,muito se engana quem espera a prosperidade diria do reino que no regido pelocetro de Deus, isto , por sua santa Palavra, quando no pode falhar o orculo celes-te em que se proclamou, a saber, onde haja faltado a profecia, haver de espalhar-seo povo [Pv 29.18].

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    Tampouco deve privar-te desse esforo o menosprezo de nossa humildade. Dequo insignificantes somos, e abjetos homnculos, na verdade disso estamos hones-tamente cnscios. Sim, diante de Deus, mseros pecadores; vista dos homens,absolutamente desprezveis, escria e lixo do mundo; se o queres, ou qualquer outracoisa que de mais vil se possa, porventura, referir. De sorte que nada resta de quenos possamos gloriar diante de Deus, seno to-somente de sua misericrdia [2Co10.17, 18], merc da qual, parte de qualquer mrito nosso [Tt 3.5], fomos admiti-dos esperana da eterna salvao, nem mesmo diante dos homens nos sobra senonossa impotncia [2Co 11.30; 12.5, 9], o que, a mera admisso, sequer com umaceno, entre eles suprema ignomnia.

    Nossa doutrina, porm, sublime acima de toda glria do mundo, invicta acimade todo poder, importa que seja enaltecida, pois no nossa, mas do Deus vivo e deseu Cristo, a quem o Pai constituiu Rei, para que domine de mar a mar e desde osrios at os confins do orbe das terras [Sl 72.8]. E de tal forma, em verdade, deve eleimperar, que, percutida s pela vara de sua boca, a terra toda, com seu poder de ferroe bronze, com seu resplendor de ouro e prata, ele a despedaar como se outra coisano fosse seno diminutos vasos de oleiro, na exata medida em que os profetasvaticinam acerca da magnificncia de seu reino [Dn 2.34; Is 11.4; Sl 2.9].

    Nossos adversrios, verdade, vociferam em contrrio que nos servimos alei-vosamente da Palavra de Deus, da qual, a seu ver, seramos os mais depravadoscorruptores. Esta, na verdade, no s uma calnia por demais maldosa, mas ainda um deslavado despudoramento; tu prprio, ao leres esta nossa confisso, em virtu-de da prudncia que te assiste, o poders julgar. Aqui tambm ser bom dizer algu-ma coisa, a qual te provoque ou desejo e ateno, ou pelo menos te abra algumcaminho para l-la.1

    Quando Paulo quis que toda profecia fosse conformada analogia da f (Rm12.6), estabeleceu uma regra extremamente segura, pela qual deva ser testada ainterpretao da Escritura. Portanto, se a doutrina nos esquadrinhada base destaregra de f, nas mos nos est a vitria. Pois, que melhor se coaduna com a f e maisconvenientemente do que reconhecer que somos despidos de toda virtude, para quesejamos vestidos por Deus; vazios de todo bem, para que sejamos por ele plenifica-dos; escravos do pecado, para que sejamos por ele libertados; cegos, para que seja-mos por ele iluminados; coxos, para que sejamos por ele restaurados; fracos, paraque sejamos por ele sustentados; despojando-nos de todo motivo de glria pessoal,para que somente ele seja glorioso e ns nele nos gloriemos? [1Co 1.31; 2Co 10.17].

    Quando dizemos estas e outras coisas desta espcie, interrompem-nos eles e

    1. Primeira edio: Contudo, algo se impe ainda aqui dizer que prpria leitura ou te desperte o desejoe a ateno, ou, certamente, o caminho [para isso te] aplane.

  • 27CARTA AO REI

    protestam com veemncia, dizendo que, desse modo, se subvertem no sei que cegaluz da natureza, pretensas preparaes, alm do livre-arbtrio e das obras meritriasda salvao eterna, com suas supererrogaes. que no podem suportar que emDeus residam o pleno louvor e a glria de todo bem, virtude, justia e sabedoria.

    Com efeito, no lemos que fossem repreendidos os que da fonte da gua viva(Jo 4.14) tenham bebido sobejamente. Ao contrrio, sofrem pesadas censuras osque cavaram para si cisternas rotas e que no conseguem reter gua (Jr 2.13). Poroutro lado, que mais se coaduna com a f do que assegurar-se que Deus nos seja Paipropcio onde a Cristo reconhecido como irmo e propiciador; do que esperartodas as coisas alegres e prsperas confiadamente da parte desse Deus cujo inenar-rvel amor para conosco a tal ponto chegou que no poupou ao prprio Filho, entre-gando-o por ns [Rm 8.32]; que aquiescer a segura expectao da salvao e da vidaeterna, quando se tem em conta que Cristo nos foi dado pelo Pai, em quem todos ostesouros esto escondidos?

    A esta altura, agarram-nos e bradam que no falta a essa certeza da f arrognciae presuno. Como, porm, nada devemos presumir de ns prprios, assim de Deusse deve presumir tudo. Nem por outra razo nos despojamos de vanglria, senopara que aprendamos a gloriar-nos no Senhor [2Co 10.17; 1Co 1.31; Jr 9.23, 24].

    Que mais direi?Passa em rpida revista, mui poderoso Rei, todos os elementos de nossa causa

    e considera-nos mais execrvel que qualquer espcie de homens celerados, se noverificares, com cristalina clareza, que nisto nos afadigamos e sofremos aprbrios,porque depositamos nossa esperana no Deus vivo [1Tm 4.10], porque cremos seresta a vida eterna: conhecer ao nico Deus verdadeiro e quele a quem ele enviou,Jesus Cristo [Jo 17.3]. Em razo desta esperana, alguns dentre ns so confinadosem grilhes, outros fustigados com varas, outros levados de um lado para outrocomo objeto de ridculo e zombaria; uns forados ao exlio, outros torturados comextrema crueldade; outros, alijados pela fuga. Todos nos vemos oprimidos pela an-gstia da situao, apostrofados com terrveis execraes, lacerados de infmias,tratados de maneiras as mais afrontosas.

    Atenta, agora, para nossos adversrios (falo da classe dos sacerdotes, a cujoarbtrio e talante os demais exercitam hostilidades para conosco, e por um momentopondera comigo de que so levados pelo zelo).

    4. ESCRITURA E TRADIOPermitem, com pronta facilidade, tanto a si mesmos como aos outros, ignorar,

    negligenciar, desprezar a verdadeira religio, que foi transmitida pelas Escrituras eque deveria ser mantida constante entre todos. E pensam pouco importar que al-

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    gum creia ou deixe de crer acerca de Deus e de Cristo, desde que, pelo que cha-mam f implcita, submeta o entendimento ao arbtrio da Igreja. Nem se preocupammuito se ocorre que se conspurque a glria de Deus com vociferantes blasfmias,contanto que ningum levante um dedo contra o primado da s apostlica e a auto-ridade da Santa Madre Igreja.

    Por que, afinal, lutam com to acirrada virulncia e ferocidade em favor damissa, do purgatria, das peregrinaes e baboseiras tais, a ponto de negarem quetem de haver s piedade, sem, por assim dizer, f mais explcita nestas coisas, quan-do, entretanto, nada dessas coisas provam eles ser da Palavra de Deus?

    Por qu, seno porque Deus seu ventre [Fp 3.19], a religio a cozinha, priva-dos dos quais no s crem que no sero cristos, mas, realmente, nem ainda sereshumanos? Ora, embora uns se empanturrem regaladamente, outros roam frgeismigalhas, todos, entretanto, vivem do mesmo caldeiro que, sem esses subsdios,no se esfriaria, no se congelaria de todo. Por isso, j que pelo prprio ventre cadaum desses est extremamente solcito, assim cada qual se mostra acrrimo batalha-dor por sua f. Enfim, todos uma a isto se votam: ou preservar inclume o poder,ou abarrotar o ventre. Ningum, contudo, d sequer a mnima demonstrao de zelosincero.

    5. LIBELO ADVERSRIONem ainda assim cessam de investir contra nossa doutrina e de invectiv-la e

    infam-la com quantas alcunhas possam, no empenho de torn-la ou odiosa ou sus-peita. Dizem ser ela doutrina nova e originada no h muito. Ridicularizam-na deser duvidosa e incerta. Indagam de que milagres tenha sido confirmada. Perguntamse porventura procedente que ela prevalea contra o consenso de tantos santospais e contra o uso mui antigo. Insistem dizendo que confessamos ser ela cismtica,uma vez que move guerra contra a Igreja, ou que declaramos que a Igreja estevesemimorta por muitos sculos, durante os quais nada parecido se fez ouvir.

    Finalmente, ponderam que no se faz necessrio farta cpia de argumentos, poiso que ela se pode julgar pelos prprios frutos, visto que tem engendrado to avul-tado acervo de seitas, cifra to elevada de tumultos sediciosos, to desbragada li-cenciosidade.

    Certamente que lhes muito fcil vituperar uma causa desassistida perante amultido crdula e ignara. Entretanto, se a ns tambm fossem facultadas mtuasoportunidades de arrazoar, digo que de pronto lhes seria estancada a fervura destaacrimnia com que, nesse tom, de boca cheia, e to viciosa quanto impunemente,espumejam contra ns.

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    6. DE FATO DOUTRINA RECENTE OU NOVA?Em primeiro lugar, que a tacham de nova, fazem srio agravo a Deus, cuja

    Sagrada Palavra no merecia ser rotulada de novidade. Por certo que estou bemlonge de duvidar que seja nova queles a quem Cristo tanto novo quanto novo oevangelho. Quantos, porm, sabem ser antiga essa proclamao de Paulo, a saber,que Jesus Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificao[Rm 4.25], entre ns no encontraro nada novo. Que ela, por to longo tempo,ficou desconhecida e confinada, que esteve obscurecida, culpa da impiedade hu-mana. Agora, quando pela bondade de Deus, ela nos restaurada, se deveria reco-nhecer a antigidade, ao menos por direito ps-liminar.

    Da mesma fonte de ignorncia a tm por duvidosa e incerta. precisamenteisso o de que se queixa o Senhor por meio de seu Profeta: Que o boi conhece seupossuidor e o jumento, o estbulo de seus donos; ele, porm, no conhecido de seupovo [Is 1.3]. Em verdade, por mais que motejem da incerteza de nossa doutrina, setivessem de selar sua doutrina com o prprio sangue e s expensas da prpria vida,seria oportuno ver de quanto valor ela haja de ser estimada! Muito outra nossaconfiana, a qual no teme nem os terrores da morte, nem mesmo o prprio tribunalde Deus.

    7. FUNES DOS MILAGRESO fato de exigirem de ns milagres, agem de m f. Ora, no estamos a forjar

    algum evangelho novo; ao contrrio, retemos aquele mesmo confirmao de cujaverdade servem todos os milagres que outrora operaram assim Cristo como os aps-tolos. Acima de ns, eles tm isto de singular, que podem confirmar sua f medianteconstantes milagres at o presente dia! Contudo, o fato que esto antes a invocarmilagres que se prestam a perturbar o esprito doutra sorte inteiramente sereno, a talponto so eles ou frvolos e ridculos, ou fteis e falsos! Todavia, nem mesmo seesses alegados milagres fossem mui prodigiosos, certamente que no seriam contraa verdade de Deus, quando importa que o nome de Deus por toda parte e a todotempo seja santificado, quer atravs de portentos, quer mediante a ordem naturaldas coisas.

    Talvez mais deslumbrante poderia ser esse aparente matiz, no fora que a Escri-tura nos adverte quanto ao legtimo propsito e uso dos milagres. Ora, os sinais queacompanharam a pregao dos apstolos, no-lo ensina Marcos [16.20], foram ope-rados para sua confirmao. De igual modo, tambm Lucas narra que o Senhor deutestemunho da palavra de sua graa, quando foram operados sinais e portentos pelasmos dos apstolos [At 14.13]. Ao que se torna muito semelhante esta palavra doApstolo: Anunciado o evangelho, a salvao foi confirmada, testemunhando jun-

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    tamente com eles o Senhor, mediante sinais, portentos e muitos atos de poder [Hb2.4; Rm 15.18, 19].

    Quando, pois, ouvimos que eles constituem marcas do evangelho, porventura osconverteremos em destruio da autoridade do evangelho? Quando ouvimos queforam destinados simplesmente autenticao da verdade, porventura os acomoda-remos confirmao de mentiras? Portanto, conveniente examinar e investigar,em primeiro lugar, a doutrina, a qual o evangelista diz ter precedncia sobre osmilagres; doutrina que, se for aprovada, s ento deve, por fim, de direito, recebera confirmao dos milagres.

    Entretanto, a marca distintiva da boa doutrina, da qual o autor Cristo, esta:ela no se inclina a buscar a glria dos homens, mas a de Deus [Jo 7.18; 8.50].Quando Cristo declara que esta a comprovao da doutrina, os milagres so visu-alizados em falsa luz, os quais so levados a outro propsito que no o de glorifi-car o nome do Deus nico. E convm que tenhamos sempre em mente que Satanstem seus milagres, os quais, embora sejam falazes prestidigitaes, antes que genu-nos prodgios, entretanto so de tal natureza, que podem seduzir os desavisados esimplrios [2Ts 2.9, 10]. Mgicos e encantadores sempre se destacaram por seusmilagres. A idolatria sempre foi nutrida por milagres de causar pasmo. Contudo,eles no legitimam nossa superstio, nem dos magos, nem dos idlatras.

    E com este arete, os donatistas, outrora, abusavam da simplicidade da popu-lao, de que eram poderosos em milagres. Portanto, agora respondemos a nossosadversrios, o mesmo que Agostinho respondeu ento aos donatistas: o Senhornos acautelou contra esses milagreiros quando predisse que haveriam de vir fal-sos profetas, os quais, em virtude de sinais mentirosos e prodgios vrios, induziri-am os eleitos ao erro, se isso pudesse acontecer [Mt 24.24]. E Paulo advertiu que oreino do Anticristo haver de vir com todo poder, e sinais, e prodgios enganosos[2Ts 2.9].

    Mas, insistem eles, esses milagres no so operados por dolos, nem por mistifi-cadores, nem por falsos profetas, mas pelos santos. Como se na verdade no soubs-semos que esta a artimanha de Satans: transformar-se em anjo de luz [2Co 11.14].Em tempos idos, os egpcios cultuaram a Jeremias, sepultado em seu meio, comsacrifcios e outras honras divinas. Porventura no estavam abusando do santo pro-feta de Deus para os fins de sua idolatria? E no entanto com tal venerao de seusepulcro chegavam ao ponto de pensar que, como justa recompensa disso, eramcurados da picada de serpentes! Que diremos, seno que sempre foi esta, e haverde sempre ser, a mui justa punio de Deus: enviar a eficcia do erro queles queno tm recebido o amor da verdade, para que creiam na mentira [2Ts 2.11]?

    Portanto, de modo nenhum nos faltam milagres, e esses no so passveis dedvida, nem suscetveis a zombarias. Aqueles, porm, aos quais eles apelam em seu

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    abono, so meros embustes de Satans, uma vez que desviam o povo do verdadeiroculto de seu Deus para o engano.

    8. O TESTEMUNHO DOS PATRSTICOSAlm disso, os patrsticos se nos opem cavilosamente (refiro-me aos escritores

    antigos e, alm disso, de uma era melhor), como se os tivessem por sufragadores desua impiedade, por cuja autoridade a contenda pudesse ser dirimida e se nos inclina-ria, para falar at com extremada modstia, a melhor parte da vitria.

    De fato, ainda que muitas coisas tenham sido escritas por esses patrsticos, comadmirvel descortino e reconhecida excelncia, em certos casos, contudo tem-lhesacontecido o que s costuma acontecer aos homens, isto , estes filhos piedosos,com a agudeza de esprito, de discernimento e de compreenso, com que so dota-dos, deles s cultuam os lapsos e erros. Aquilo, entretanto, que com acerto disse-ram, ou no o observam, ou o dissimulam, ou o deturpam, de sorte de possas dizerque sua nica preocupao tem sido catar esterco em meio ao ouro.

    Ento, contra ns investem com mpios brados como sendo ns desprezadores einimigos dos patrsticos. Ns, porm, to longe estamos de desprez-los que, sefosse esse nosso presente propsito, de nenhuma dificuldade me seria possvel com-provar-lhes com as prprias opinies a maior parte daquilo que estamos hoje afir-mando. Contudo, em tais moldes lhes versamos os escritos que temos de ter sempreisto em mente [1Co 3.21-23]: tudo nosso para servir-nos, no para dominar sobrens, e ns somos de um, Cristo, a quem se deve, sem exceo, em tudo obedecer.Quem no observa esta distino, na f nada ter de slido, uma vez que muita coisaignoraram estes santos vares, no raro discreparam entre si, por vezes at a simesmos se contradisseram.

    No sem razo, frisam eles que somos admoestados por Salomo [Pv 22.28] ano ultrapassarmos os marcos antigos que nossos pais estabeleceram. Mas, a normano a mesma em se tratando de limites de glebas e em questo de obedincia daf. Mais apropriada esta que se estabelece nestes termos: esquea seu povo e acasa de seu pai [Sl 45.10]. Se, porm, com tanto ardor se regozijam em avllhgorei/n[^ll@G(r#'n alegorizar], por que no adotem os apstolos como pais, antes que aqualquer outro, cujos termos prescritos no lcito remover? Ora, assim interpretouJernimo, cujas palavras eles inseriram em seus cnones. E se querem que sejamfixos os limites destes a quem entendem por pais, por que eles prprios to impie-dosamente os ultrapassam, quantas vezes lhes apraz?

    Do elenco dos patrsticos eram aqueles dos quais um disse que nosso Deus nocome, nem bebe, e assim no tem necessidade de clices, nem de pratos; outro, queos ritos sagrados no requerem ouro, nem com ouro se fazem aceitveis as coisas

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    que com ouro no se compram. Ultrapassam, portanto, esse limite, quando em seuscerimoniais to efusivamente se deleitam com o ouro, a prata, o marfim, o mrmore,as pedras preciosas, as sedas, nem pensam que Deus s devidamente adorado se ofor atravs de tudo o que derive em requintado esplendor, ou, melhor, em extrava-gante pompa.

    Patrstico era aquele que sentenciou que, por isso, sem reservas, fazia uso decarne no dia em que os demais dela se abstinham: que era cristo. Desse modo, elesultrapassam os limites, quando com terrveis exprobraes execram a alma quetenha provado carne durante a quaresma.

    Patrsticos eram esses dos quais um declarou que o monge que no trabalhassecom as prprias mos fosse julgado igual ao assaltante, ou, se o preferes, ao ladro;o outro, que no era prprio aos monges viverem do alheio, mesmo se fossem ass-duos nas contemplaes, nas oraes, nos estudos. Tambm este limite eles tmviolado, quando encerraram em prostbulos e bordis os ociosos e bojudos ventresdos monges, para que se cevassem dos bens alheios.

    Patrstico era quem afirmou ser horrenda abominao ver-se pintada em tem-plos de cristos a imagem, seja de Cristo, seja de qualquer santo. Tampouco foi istopronunciado pela voz de um nico homem, mas at decretado por um conclio ecle-sistico: que no se pinte em paredes o que se adora. Muito longe est de que secontenham dentro destes limites, quando no deixam sequer um canto vazio deimagens.

    Aconselhou outro patrstico que, aps havermos cumprido o dever de humani-dade para com os mortos, em sepultando-os, os deixssemos descansar. Eles rom-pem totalmente estes limites quando incutem a perptua solicitude dos mortos.

    Do elenco dos patrsticos era aquele que testifica que a substncia do po e dovinho permanecem assim na Santa Ceia, e no cessam, como em Cristo, o Senhor, asubstncia e natureza humana subsistem unidas divina. Desse modo, ultrapassamo limite quantos imaginam que, recitadas as palavras do Senhor, cessa a substnciado po e do vinho, para que se transubstancie em corpo e sangue.

    Patrsticos eram os que, como exibiam a toda a Igreja uma s Eucaristia, e como,ademais, excluam dela os dissolutos e os criminosos, assim drasticamente conde-navam a todos aqueles que, presentes, dela no participassem. Eles removeram es-ses limites para bem longe, quando no apenas os templos, mas at as casas particu-lares, enchem com suas missas, a cuja participao a todo mundo admitem, pormais vis e degenerados que sejam, e a cada um com tanto maior prazer quanto maior a gorjeta? A ningum convidam f em Cristo e genuna comunho dos sacra-mentos, antes, mercadejam sua prpria obra como sendo a graa e o mrito deCristo!

  • 33CARTA AO REI

    Patrsticos eram os dois dos quais um decretou que fossem de todo excludos daparticipao da Santa Ceia de Cristo quantos, satisfeitos em tomarem um dos ele-mentos, do outro se abstinham; o outro contende acirradamente que no se devenegar ao povo cristo o sangue de seu Senhor, a cuja confisso seu prprio sangueordena que seja derramado. Eles subverteram tambm estes limites, quando, emvirtude de lei inviolvel, determinaram exatamente o mesmo que aquele punia comexcomunho, e este com vlida razo condenava.

    Patrstico era o que, se tratando de matria obscura, asseverou ser temeridadedecidir por uma ou outra das partes sem testemunhos claros e evidentes da Escritu-ra. Eles se esqueceram deste limite quando, parte de qualquer palavra de Deus,promulgam tantas constituies, tantos cnones, tantas determinaes magisteriais.

    Patrstico era aquele que, entre outras heresias, reprovou a Montano por ter sidoo primeiro a impor leis acerca de jejuns. Tambm a este limite o excederam emmuito quando, mediante leis extremamente estritas, sancionaram os jejuns.

    Patrstico era aquele que sustentou que no se deve proibir o matrimnio aosministros da Igreja, e declarou ser castidade a coabitao com a prpria esposa. EPatrsticos eram aqueles que anuram sua opinio. Destes limites se distanciarameles quando, com extremo rigor, impuseram a seus sacerdotes o celibato.

    Patrstico era aquele que sentenciou que se deve ouvir a um s, Cristo, de quemfoi dito: A ele ouvi [Mt 17.5]; nem se deve atentar para o que, antes de ns, outrosou disseram, ou fizeram, mas para o que Cristo preceituou, que de todos o primei-ro. Este limite eles prprios nem eles mesmos prescrevem, nem permitem que ou-tros o prescrevam, quando, antes, constituem por mestres a quem quer que sejam, eno a Cristo, tanto para si prprios quanto para os demais.

    Patrstico era aquele que contende que no se deve antepor a Igreja a Cristo,visto que ele sempre julga segundo a verdade dos fatos, mas que os juzes eclesis-ticos, como os demais homens, se equivocam na maior parte das vezes. Rompidototalmente tambm este limite, no hesitam em afirmar que toda a autoridade daEscritura depende do arbtrio da Igreja.

    Os patrsticos todos, em unnime consenso, abominaram e a uma voz apostrofa-ram o contaminar-se a santa Palavra de Deus com as sutilezas dos sofistas e o enre-dilhar-se nas disputas dos dialticos. Porventura eles se contm dentro destes limi-tes, quando, em toda a vida, no engendram outra coisa seno toldar e prejudicar asimplicidade da Escritura com infindas discusses e querelas mais do que sofsti-cas, de tal sorte que, se os patrsticos voltassem agora vida, e ouvissem esse gne-ro de debate a que esses chamam de teologia especulativa, nada haveriam menos decrer que se tratar de troca de opinies acerca de Deus?

    Na verdade esta nossa orao teria de ser derramada para alm de seus justos

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    limites, se eu quisesse passar em revista quo petulantemente estes sacodem desobre si o jugo dos patrsticos, de quem desejam parecer filhos obedientes. No meseriam suficientes meses, realmente anos at.

    E, no obstante, eles so de to desabusada e deplorvel impudncia, que ou-sam invectivar-nos de que no hesitamos em transgredir os limites antigos!

    9. O VALOR DO COSTUMEOra, se nos evocam o costume, certamente que nada conseguem, pois se agiria

    mui injustamente conosco se tivssemos que ceder ao costume. Sem dvida que, seos juzes dos homens fossem retos, se fazia necessrio buscar o costume dos bons.Contudo, no poucas vezes costuma acontecer mui diferentemente, pois o que se vpraticado por muitos logo adquire o foro de costume. Alm disso, dificilmente emalgum tempo as coisas humanas estejam to bem que o melhor agrade maioria.Portanto, o erro pblico quase sempre resultou dos vcios particulares de muitos,ou, melhor, o consenso comum dos vcios, que agora estes bons vares querem queseja tido por lei.

    Que aqueles que tm olhos vejam que no apenas um oceano de males teminundado o orbe, que numerosas pestes ameaadoras o tm invadido, que tudo seprecipita runa, de tal sorte que, ou haver de desesperar-se inteiramente quanto situao humana, ou fazer frente a to grandes males que s vezes preciso aplicara fora. E o remdio rejeitado no por outra razo, mas porque j de muito nosacostumamos aos males.

    Todavia, ainda que o erro pblico tenha lugar na sociedade dos homens, noreino de Deus, contudo, o que se ouve e se observa s sua eterna verdade, qualno se pode impor a injuno de alguma extenso de tempo, de algum costume, dealguma conjurao. Assim, outrora ensinava Isaas aos eleitos de Deus que nodissessem: Conspirao, em referncia a tudo aquilo em que o povo dizia: Conspi-rao [Is 8.12]. Isto , que eles prprios no conspirassem compartilhando do senti-mento mpio do povo, nem temessem deles o que temiam, nem se espantassem,mas, ao contrrio, se santificassem ao Senhor dos Exrcitos e este fosse para eles otemor e espanto.

    Agora, pois, que lancem eles exemplos diante de ns, como queiram, no ape-nas os sculos sucessivos, mas ainda os tempos atuais. Se santificarmos o Senhordos Exrcitos, no seremos grandemente espantados. Ora, ainda que muitos sculostenham anudo mesma impiedade, poderoso aquele que exerce vingana at aterceira e quarta gerao [Ex 20.5; Nm 14.18; Dt 5.9]; ainda que, a um s tempo, oorbe inteiro conspire na mesma maldade perversa, pela experincia ele nos ensinaramqual seja o fim daqueles que transgridem com a multido, quando a todo o gnero

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    humano destruiu pelo dilvio, preservando apenas No com sua reduzida famlia, oqual, por sua f, e esta de um s, condenasse ao mundo todo [Hb 11.7; Gn 7.1].

    Afinal, o mau costume outra coisa no seno uma como que peste pblica, emque no menos sucumbem quantos tombam na multido. Ademais, conviria queponderasse o que em certo lugar diz Cipriano: Aqueles que pecam por ignorncia,embora no podem ser eximidos de toda culpa, contudo podem parecer de certomodo escusveis. Aqueles, porm, que obstinadamente rejeitam a verdade oferecidapela benevolncia de Deus nada tm que possam pretextar.

    10. CONCEPES ERRNEAS QUANTO NATUREZA DA IGREJACom seu dilema, no to prementemente nos arrocham que nos forcem a con-

    fessar, ou que a Igreja esteve por algum tempo semimorta, ou que agora estejamosns em conflito com a Igreja. A Igreja de Cristo certamente tem estado viva, e vivacontinuar por quanto tempo Cristo reinar destra do Pai, por cuja mo ela sus-tentada, por cuja proteo guardada, por cujo poder ela retm sua intangibilidade.Pois ele cumprir, indubitavelmente, o que uma vez prometera, a saber, que haverde estar com os seus at a consumao do mundo [Mt 28.20]. No momento nosustentamos contra ela nenhuma luta, uma vez que, em pleno consenso com todo ocorpo dos fiis, cultuamos e adoramos ao Deus nico e a Cristo, o Senhor [1Co 8.6],nos moldes em que tem sido sempre adorado por todos os piedosos. Entretanto, elesno se desviam pouco da verdade, quando no reconhecem nenhuma Igreja senoaquela que descortinam pela viso natural e a tentam circunscrever aos limites aque, de modo algum, foi ela confinada.

    A controvrsia gira nestes gonzos: primeiro, que eles contendem dizendo que aforma da Igreja sempre concreta e visvel; segundo, que identificam a prpriaforma com a s da igreja romana e a ordem de seus prelados. Ns afirmamos, emcontrrio, no s que a Igreja pode subsistir sem nenhuma expresso visvel, nemque ela contm a forma nesse esplendor externo que estultamente admiram, mas,em marca bem diferente, a saber, na pregao pura da Palavra de Deus e na legtimaadministrao dos sacramentos.

    Eles se exasperam quando nem sempre podem apontar a Igreja com o dedo.Quo freqentemente, porm, aconteceu de ela deformar-se ante o povo judeu a talponto que no podia ser distinguida por nenhuma aparncia? Que forma pensamoshaver ela refulgido, quando Elias deplorava por ter ficado sozinho? [1Rs 19.14].Quanto tempo, desde a vinda de Cristo, ela ficou obscura e sem forma? Quantasvezes, desde essa poca, ela foi de tal modo oprimida por guerras, por revoltas, porheresias, que em parte alguma fosse contemplada com esplendor? Se porventurativessem vivido nesse tempo, teriam crido existir ento alguma Igreja? Elias, po-

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    rm, ouviu que foram conservados sete mil homens que no tinham dobrado osjoelhos diante de Baal [1Rs 19.18]. Tampouco nos deve pairar alguma dvida deque Cristo sempre reinou na terra, desde que subiu ao cu. Com efeito, se ento ospiedosos houvessem requerido alguma forma perceptvel aos olhos, porventura noteriam prontamente cedido ao desnimo?

    Alis, j em seu sculo, Hilrio havia considerado ser um mal superlativo que,tomados de estulta admirao pela dignidade episcopal, no se apercebiam que seocultava por debaixo dessa mscara mortfera e sinistra, porque assim fala contraAuxncio: De uma coisa vos advirto: Guardai-vos do Anticristo! Pois mal que devs se haja apoderado o amor s paredes, mal que venerais a Igreja de Deus em tetose edifcios, mal que sob essas coisas introduzis o nome de paz. Porventura pass-vel de dvida que nestes o Anticristo haver de assentar-se? A mim mais seguros soas montanhas, as florestas, os lagos, os crceres e as furnas. Pois nestes, profetiza oProfeta, ou habitam, ou so lanados.

    Entretanto, o que hoje o mundo venera em seus bispos cornudos, seno quepresume serem santos prelados da religio aqueles a quem v presidirem s cidadesde maior renome?

    Fora, portanto, com to estulta admirao! Antes, pelo contrrio, uma vez ques ele sabe quem so os seus [2Tm 2.19], permitamos ao Senhor isto: s vezes eleat mesmo priva a viso dos homens da percepo exterior de sua Igreja. Confessoque isso o que merece a impiedade dos homens; por que porfiamos ns em opor-nos justa vingana de Deus? Em moldes como esses, o Senhor puniu em temposidos a ingratido dos homens. Ora, visto que no quiseram obedecer-lhe verdade,e sua luz extinguiram, quis ele que, tornando-se cegos em seu entendimento, no sfossem enganados por falsidades absurdas, mas ainda imersos em trevas profundas,de tal sorte que no se evidenciasse nenhuma expresso exterior da verdadeira Igre-ja. Contudo, em todo o tempo em que ela foi extinta, ele preservou os seus, aindaque no s dispersos, mas at mesmo submersos em meio aos erros e s trevas. Nem de admirar, pois, que soube preserv-los tanto na prpria confuso de Babilnia,quanto na chama da fornalha ardente.

    Entretanto, o fato de quererem julgar a forma da Igreja em funo de no sei quev pompa, o quanto isso perigoso, e para que a exposio no se prolongue desme-didamente, o indicarei em poucas palavras, em vez de tecer-lhe longa considerao.

    O pontfice, insistem, que ocupa a s apostlica, e quantos foram por ele ungi-dos e consagrados sacerdotes, uma vez que sejam assinalados por suas mitras ebculos, representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja. Por isso eles nopodem errar. Por qu? Porque so pastores da Igreja e consagrados ao Senhor.

    E porventura Aro e os demais guias de Israel no eram pastores? Contudo Aroe seus filhos, j investidos sacerdotes, no entanto erraram quando forjaram o bezer-

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    ro [Ex 32.4]. Segundo este raciocnio, por que no teriam representado a Igrejaaqueles quatrocentos profetas que mentiam a Acabe? [1Rs 22.11, 12]. A Igreja, po-rm, estava do lado de Micaas, por certo um homem sozinho e desprezvel, de cujaboca, entretanto, procedia a verdade.

    Porventura os profetas no levavam diante de si no s o nome, como tambm aforma da Igreja, quando uma se insurgiram contra Jeremias e, ameaadores, sejactavam de que no era possvel que a lei perecesse ao sacerdote, o conselho aosbio, a palavra ao profeta? [Jr 18.18]. Jeremias enviado sozinho contra toda essahorda de profetas, para que da parte do Senhor denunciasse que acontecer que a leiperecer ao sacerdote, o conselho ao sbio, a palavra ao profeta! [Jr 4.9].

    Por acaso no refulgia tal esplendor naquela assemblia que os sacerdotes, osescribas e os fariseus reuniram a fim de captar pareceres acerca de como tirariam avida a Cristo? [Mt 26.3, 4; Jo 11.47-53; 12.10]. Que se vo agora e se apeguem mscara exterior, e assim se faam cismticos a Cristo e a todos os profetas deDeus; por outro lado, que faam dos ministros de Satans rgos do Esprito Santo!

    Ora, se esto falando a srio, respondam-me em boa f: entre que agentes elugares pensam que a Igreja residia depois que, por decreto do Conclio de Basilia,Eugnio foi deposto e alijado do pontificado e Amadeu investido em seu lugar?Ainda que se arrebentem, no podem negar que, no que tange exterioridade, esseConclio foi legtimo, alm de tudo convocado no apenas por um pontfice, maspor dois. Eugnio foi ali condenado de cisma, rebelio e contumcia, juntamentecom todo o bando de cardeais e bispos que haviam com ele maquinado a dissoluodo Conclio. Entretanto, mais tarde apoiado no favor dos prncipes, recuperou inte-gralmente o pontificado. Em fumaa se desfez essa eleio de Amadeu, solenemen-te consumada que fora pela autoridade de um snodo geral e sacrossanto, exceto queo supracitado Amadeu foi aplacado em virtude de um chapu cardinalcio, como umco a ladrar se cala quando lhe tirado naco de carne. Do grmio desses heregesrebeldes e contumazes procedeu tudo quanto em seguida tem havido de papas, car-deais, bispos, abades, padres.

    Neste ponto, impe-se agarr-los e imobiliza-los. Pois, a qual das duas facesconferiro o nome de Igreja? Porventura negaro que foi esse um Conclio Geral, denada carecendo quanto majestade exterior, j que, em verdade, foi solenementeconvocado por duas bulas, consagrado mediante o legado da s romana a presidi-lo,em todas as coisas devidamente conformado s normas regulamentares, a conser-var-se sempre na mesma dignidade at o fim? Declararo Eugnio cismticos comtoda sua coorte, pela qual foram todos consagrados?

    Portanto, ou definam a forma da Igreja em outros termos, ou, por mais numero-sos que sejam, sero por ns tidos como cismticos quantos, cnscia e deliberada-mente, foram ordenados por hereges.

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    E se nunca antes se fizesse evidente que a Igreja no se prende a pompas exter-nas, eles prprios podem dizer-nos que disso constitui prova abundante, visto que,sob esse pomposo nome de Igreja, por tanto tempo orgulhosamente se apregoaramao mundo, quando, entretanto, no passavam de pestes mortferas Igreja. Noestou me referindo a seus costumes e queles atos hediondos de que empanturra oviver de todos, quando, como os fariseus, dizem que devem ser ouvidos, no imita-dos [Mt 23.3].

    Se devotares um pouco de teu lazer a ler estas nossas ponderaes, sem sombrade dvida reconhecers que a prpria, sim, a prpria doutrina, base da qual arg-em que devem ser tidos como sendo a Igreja, no passa de mortfero matadouro dealmas, tocha incendiria, runa e destruio da Igreja.

    11. ALEGAM QUE OS TUMULTOS RESULTAM DA PREGAO REFORMADAFinalmente, agem no com pouca malcia quando, com despeitada virulncia,

    rememoram quo vultosas perturbaes da ordem, tumultos e contendas tem a pre-gao de nossa doutrina trazido consigo e que frutos ora est produzindo em muitos.Ora, injustamente deriva-se contra ela a culpa desses males, culpa que se deverialanar perfdia de Satans. Esta como que uma admissvel propriedade da divinaPalavra: que ela jamais vem tona sem que Satans se desperte e se assanhe. Eisaqui a mais segura marca, e particularmente fiel, em virtude da qual se distingue dasfalsas doutrinas, que se divulgam com facilidade, enquanto recebem de todos ouvi-dos atenciosos e so ouvidas por um mundo que as aplaude.

    Desse modo, por alguns sculos, durante os quais todas as coisas estiveramsubmersas em profundas trevas, quase todos os mortais dedicavam seu passatempoe divertimento a esse senhor do mundo, em coisa alguma diferindo de algum Sarda-npalo, repousava e se deliciava em completa tranqilidade. Afinal de contas, queoutra coisa havia a fazer, seno folgar e divertir-se, na serena e imperturbada possede seu reino? Quando, porm, refulgindo das alturas, sua luz dissipou bastante astrevas, quando o reino daquele valente [Lc 11.22] foi perturbado e abalado, ento,na verdade, ele comeou a sacudir seu costumeiro torpor e a correr s armas.

    Alis, primeiramente incitou o poder dos homens, por cuja instrumentalidade,de forma violenta, oprimisse a verdade que aclarava. Como nada lograsse por essemeio, voltou-se para as ciladas. Excitou, atravs de seus catabatistas e outros por-tentos de embusteiros, dissdios e contentas doutrinrias, com os quais a obscure-cesse e, por fim, a extinguisse. E agora teima em assedi-la com ambos esses enge-nhos de guerra. Com efeito, no apenas tenta, pela fora e pela mo dos homens,arrancar essa semente genuna, mas ainda, quanto possa, se esfora por sufoc-lacom suas ciznias, para que no medre e frutifique. Entretanto, tudo isso lhe ser

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    baldado, se dermos ouvidos ao Senhor como nosso monitor, o qual, h muito, no snos ps a descoberto suas artimanhas, para que no nos viesse a apanhar despreve-nidos, mas ainda nos armou com defesas bastante slidas contra todas as suas m-quinas de guerra.

    Alm disso, quo desmedida a perversidade de assacar o dio contra a prpriaPalavra de Deus, seja das sedies que contra ela atiam os rprobos e rebeldes,seja das seitas que engendram os impostores! Todavia, isso no novidade! Interro-gado foi Elias, se porventura no era ele aquele que perturbava a Israel [1Rs 18.17].Para os judeus, Cristo era um sedicioso [Lc 23.5; Jo 19.7]. Aos apstolos impingi-ram o crime de sublevao do povo [At 24.5-9]. Que outra coisa esto a fazer aque-les que hoje nos imputam todos os distrbios, tumultos e contendas que contra nsefervescem? Ora, Elias nos ensinou a resposta que se deva dar a tais acusadores[1Rs 18.17, 18]: no somos ns que semeamos os erros ou incitamos os tumultos;ao contrrio, so os mesmos que lutam contra o poder de Deus!

    Alis, uma vez que baste esta resposta para conter-lhes a temeridade, assim, poroutro lado, ser suficiente para ir ao encontro da obtusidade de outros, que no raroacontece que se deixem abalar com tais escndalos e assim fiquem perturbados,cedendo vacilao. Portanto, para que com esta confuso no percam eles o ni-mo, e no sejam alijados do pedestal em que se firmam, saibam esses que as mesmascoisas que hoje nos sobrevm, os apstolos as experimentaram em seu prprio tem-po. Havia indoutos e inconstantes que, para sua prpria perdio, como no-lo dizPedro [2Pe 3.16], corrompiam o que fora divinamente escrito por Paulo. Havia des-prezadores de Deus que, em ouvindo haver proliferado o pecado para que a graasuperabundasse, de imediato postulavam: Permaneamos no pecado para que agraa se enriquea [Rm 6.1]; em ouvindo que os fiis no esto debaixo da lei, depronto vociferavam: Pequemos, porquanto no estamos debaixo da lei, mas sob agraa [Rm 6.15]. Havia aqueles que o acusavam de instigador do mal. Infiltravam-se muitos falsos apstolos para destruir as igrejas que ele edificara [1Co 1.10-13;2Co 11.3, 4; 12, 13; Gl 1.6, 7]. Alguns pregavam o evangelho por inveja e porfia,no em sinceridade [Fp 1.15]; at mesmo por esprito de contenda, pensando agra-var-lhe a presso dos grilhes [Fp 1.17]. Em outras partes, no era muito o progres-so do evangelho. Todos buscavam o prprio proveito, no o de Jesus Cristo [Fp2.21]. Outros voltavam atrs como ces a seu vmito e porcos a seu espojadouro delama [2Pe 2.22]. Muitos pervertiam a liberdade do Esprito em licena da carne[2Pe 2.18, 19]. Falsos irmos se insinuavam, dos quais, mais tarde, ameaavam ospiedosos com perigos [2Co 11.3, 4]. Entre os prprios irmos suscitavam-se varia-dos desencontros.

    Nessas circunstncias, que haveriam os apstolos de fazer? Porventura no de-veriam ter dissimulado por um tempo, ou, antes, posto de parte e renegado esse

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    evangelho que viam ser a sementeira de tantos litgios, motivo de tantos perigos,ocasio de tantos escndalos? Mas, em meio a tribulaes dessa ordem, vinha-lhes lembrana que Cristo era uma pedra de tropeo e rocha de escndalo [Rm 9.33;1Pe 28; Is 8.14], posto para a queda e soerguimento de muitos e por sinal de contra-dio a outros [Lc 2.34]. Armados desta certeza, avanavam ousadamente por entretodos os riscos de tumultos e agravos.

    Com o mesmo pensamento convm tambm que nos fortaleamos, uma vez quePaulo testifica ser este o perptuo gnio do evangelho: que seja aroma de morte paramorte aos que perecem [2Co 2.16], embora ele nos tenha sido destinado antes a estepropsito: que fosse o aroma de vida para a vida e o poder de Deus para a salvaodos fiis [Rm 1.16]. Isso mesmo o que tambm certamente experimentaramos, seno corrompssemos com nossa ingratido este benefcio de Deus to singular, epara nossa runa pervertssemos o que nos deveria ser nossa nica garantia de sal-vao.

    12. CONCLUSOMas, volvo-me a ti, Rei. Em nada te movam essas vs cavilaes com que

    nossos adversrios porfiam por infundir-te pavor, a saber, que, merc deste novelevangelho, pois assim o chamam, no se procura nem se busca outra coisa, senoocasio para tumultos e impunidade para todos os desmandos. Pois, tampouco nos-so Deus autor de diviso, mas de paz [1Co 14.33]; nem o Filho de Deus, que veiopara destruir as obras do diabo [1Jo 3.8], ministro do pecado [Gl 2.17].

    E ns estamos sendo imerecidamente acusados de tais intenes, das quais, cer-tamente, jamais temos dado sequer a mnima razo de suspeita. Se tais fssemosns, como dizem, que premeditamos a subverso de reinos, ns de quem nenhumapalavra facciosa jamais se ouviu, e cuja vida, a todo tempo que vivamos sob teucetro, foi sempre conhecida como pacata e singela, e que ainda agora, escorraadosde nossos lares, contudo no cessaramos de suplicar em orao toda prosperidade ati e a teu reino. Ns que afoitos buscamos desenfreada liberdade para toda sorte dedesregramentos; ns de quem, ainda que nos costumes muitas coisas possam sercensuradas, entretanto nada h digno de to veemente censura. Nem to insatisfat-rio progresso temos, pela graa de Deus, experimentando no evangelho, que a essesdetratores no possa nossa vida ser exemplo de castidade, de generosidade, de mise-ricrdia, de moderao, de pacincia, de sobriedade e de toda e qualquer virtude.

    Que de fato tememos e adoramos a Deus com sinceridade coisa de si mesmaperfeitamente evidente, uma vez que buscamos que seu nome lhe seja santificado,quer atravs de nossa vida, quer atravs de nossa morte [Fp 1.20]. E da inocncia eda integridade cvica, o prprio dio tem sido obrigado a dar testemunho em favor

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    de alguns de ns, em quem se punia de morte exatamente o que se deveria revestirde singular louvor.

    Ora, se h quem, sob pretexto do evangelho, promove distrbio, at aqui no severificou que esses existem em teu reino; se h quem acoberta a permissividade deseus desregramentos com a liberdade da graa de Deus, muitssimos dos quais co-nheo, h leis e penalidades legais com que devam ser severamente reprimidos,conforme o que merecem. Entrementes, de modo algum o evangelho de Deus notenha mau nome por causa da maldade de homens degenerados.

    Tens, Rei, sobejamente exposta, em farta cpia de exemplos, a virulenta ini-qidade de nossos caluniadores, para que a suas cavilaes no te inclines comouvido desmedidamente crdulo. Arreceio-me at de haver-me estendido excessi-vamente, uma vez que este prefcio j se avizinha da escala de quase completaapologia, com que, no entanto, no diligenciei por tecer uma defesa, mas simples-mente predispor-te o esprito, a que ds ouvidos prpria apresentao de nossacausa, esprito, na verdade, ora de ns averso e alienado, acrescento-o, at inflama-do, cuja graa, no obstante, confiamos poder reaver, se esta nossa confisso, quedesejamos seja diante de tua majestade nossa defesa, sereno e desapaixonado, umavez a leres.

    Se deveras, ao contrrio, a tal ponto os sussurros dos malvolos te ocupam osouvidos, que aos acusados nenhuma ocasio sucede, alm de tudo, de falarem emseu prprio favor, merc de tua conivncia estejam sempre essas frias intratveis aexercer sua sanha pertinaz, mediante encarceramentos, flagelaes, torturas, muti-laes, fogueiras, ento nos veremos reduzidos ao extremo mximo. Todavia, assimser que em nossa pacincia possuamos nossas almas [Lc 21.19] e na forte mo deDeus esperemos, mo que, fora de dvida, a seu tempo se manifestar, e armada seestender, tanto para livrar aos pobres de sua aflio, quanto ainda para punir osdesprezadores que, com to segura confiana, esto agora a exultar.

    O Senhor, Rei dos reis, te firme o trono na justia [Pv 25.5] e o solidifique naeqidade, mui ilustre Rei.

    Em Basilia, 1o de Agosto do ano de 1536

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    P R E F C I O E D I O D E 1 5 5 9

    JOO CALVINO AO ELEITOR

    Na primeira edio desta nossa obra, porquanto mui longe estava eu de esperar essexito que, por sua imensa bondade, lhe propiciou o Senhor, eu me houvera, comocostuma acontecer em obras de pequeno porte, o mais das vezes de forma sucinta.Como, porm, percebesse que a mesma fora recebida com esse favor por quasetodos os piedosos, que eu jamais teria ousado desejar, muito menos esperar, sentiade alma que muito mais me fora conferido do que eu havia merecido. E assim con-clu que eu seria muitssimo ingrato se no tentasse, pelo menos at onde meusparcos recursos me permitissem, ir ao encontro dos anseios to generosamente amim dispensados, e que forte diligncia estava a me desafiar.

    No o tentei apenas na segunda edio. Pelo contrrio, quantas vezes, posterior-mente, tem sido a obra reimpressa, enriquecida tem sido de algum acrscimo. Se,porm, no deplorava o labor ento despendido, contudo jamais me satisfiz at queela veio a ser arranjada nesta ordem que ora se prope. Confio haver agora providoo que porventura aprove o julgamento de todos vs.

    Com quo grande esforo, na verdade, me apliquei ao af de prestar Igreja deDeus este servio, luminoso testemunho me possvel apresentar, visto que, noinverno passado, enquanto pensava que atravs da febre quart a morte se me dese-nhava, quanto mais pressionava a enfermidade, tanto menos me poupei, at quedeixasse um livro a sobreviver-me que recompensasse, em certa medida, to benig-na acolhida dos piedosos.

    Por certo que teria preferido hav-lo feito bem antes. Todavia, bem cedo se fazaquilo que se faz bem. Mas, hav-lo-ei de julgar como que tendo aparecido em oca-sio oportuna, ento, quando venha a sentir que ter trazido Igreja de Deus frutoainda mais copioso doravante do que at agora. este meu nico desejo. E bastantemal andariam as coisas comigo, a no ser que, satisfeito com a aprovao de Deusunicamente, desprezasse quer os pareceres tolos e pervertidos de homens insipientes,quer as opinies inquas e malignas dos rprobos. Ora, ainda que de todo Deus metenha movido o esprito ao zelo no s de propagar-lhe o reino, mas tambm de servirao bem pblico, e ademais, honestamente cnscio estou, e tenha os anjos por minhastestemunhas de que, desde quando assumi o ofcio docente na Igreja, nada me propusseno ser til Igreja, ministrando o sincero ensino da piedade, contudo penso queningum h que de mais calnias seja atacado, mordido, lacerado.

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    Quando esta nota j estava no prelo de Augsburgo, onde se reunia a Dieta Impe-rial, recebi notcias confirmadas de que se havia espalhado o boato de meu retornos hostes papais, e de que nos paos dos prncipes fora esse boato recebido combem maior favor do que devera. Esta , em verdade, a recompensa que me outorgamaqueles a quem, por certo, no so desconhecidas as mltiplas evidncias de minhaconstncia, evidncias que, assim como repelem calnia to vil, dela tambm deve-riam me ter defendido diante de todos os juzes probos e humanos. Engana-se, po-rm, o Diabo com toda sua caterva se pensa que, com investir contra mim comptridas mentiras, haver-me-ei de tornar, por causa dessa vilania, mais quebrantadoou mais moroso, porquanto confio que Deus, em sua imensa bondade, haver-me-de conceder que persevere no curso de sua santa vocao com pacincia constante,de que nova mostra exijo aos leitores piedosos na presente edio.

    Ademais, neste labor, este tem sido meu propsito: preparar e instruir de talmodo os candidatos sagrada teologia, para a leitura da divina Palavra, que no slhe tenham fcil acesso, mas ainda possam nesta escalada avanar sem tropeos.Ora, estou ciente que a tal ponto abrangi, em todas as suas partes, a suma da reli-gio, e tambm em tal ordem a dispus, que, se algum a haja aprendido de formacorreta, no ser difcil ajuiz-lo no s o que especialmente bus