elementos basicos de filosofia por nigel warburton

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Page 1: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton
Page 2: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

Uma introdução aos argumentos, teorias

e problemas principais de algumas das

áreas centrais da filosofia:

- Filosofia da religião: a existênci

de Deus; o mal e os milagres

- Ética: teorias cristãs, kantianas, con-

sequencialistas, utilitaristas e a ética

das virtudes; ética aplicada (o problema

da eutanásia); metaética

- Filosofia política: igualdade e dis-

criminação, democracia e liberdade;

a justificação do castigo penal

- Epistemologia e metafísica: a exis-

tência do mundo exterior; realismo,

cepticismo, idealismo e fenomenismo

- Filosofia da ciência: método cientí-

fico, indução e falsificacionismo

- Filosofia da mente: o problema da

mente/corpo; dualismo, fisicalismo e

teorias da identidade; behaviourismo e

funcionalismo

- Filosofia da arte: a definição da

arte; parecença familiar e forma signifi-

cante; idealismo e teoria institucional;

a crítica de arte

No final de cada capítulo, uma biblio-

grafia comentada orienta o leitor através

das obras mais relevantes sobre cada

um dos tópicos discutidos.

Page 3: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

1. QUE QUER DIZER TUDO ISTO? UMA INICIAÇÃO À FILOSOFIA Thomas Nagel

2. A ARTE DE ARGUMENTAR Anthony Weston

3. MENTE, HOMEM E MÁQUINA Paul Sagal

4. DICIONÁRIO DE FILOSOFIA Simon Blackburn

5. ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA Nigel Warburton

A publicar:

6. SERÁ QUE DEUS EXISTE? Richard Swinburne

Page 4: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

NIGEL WARBURTON

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

TRADUÇÃO

DESIDÉRIO MURCHO

SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA

REVISÃO CIENTÍFICA

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

gradiva

Page 5: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

Título original: Philosophy: The Basics (Routledge, Londres, 1995) © 1992, 1995, Nigel Warburton

Tradução: Desidério Murcho Revisão científica: António Franco Alexandre

Revisão do texto: Manuel Joaquim Vieira Capa: Armando Lopes

Fotocomposição: Gradiva Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu Direitos reservados a: Gradiva — Publicações, L.da

Rua de Almeida e Sousa, 21, r / c , esq. — Telefs. 397 40 6 7 / 8 1350 Lisboa

1." edição: Janeiro de 1998 Depósito legal n.° 118 9 6 1 / 9 7

Colecção coordenada por DESIDÉRIO M U R C H O e GUILHERME VALENTE,

com o apoio científico da SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA

Page 6: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

Para minha mãe

Page 7: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

índice

Prefácio In t rodução

A filosofia e a sua história Porquê estudar filosofia? ..

A vida examinada Aprender a pensar Prazer

A filosofia é difícil? 25 Os limites do que a filosofia pode fazer 27 Como usar este livro 27 Leitura complementar 29

1 Deus 31 O argumento do desígnio 32 Críticas ao argumento do desígnio 34

Fraca analogia 34 Evolução 35 Limites da conclusão 35

O argumento da causa primeira 38 Críticas ao argumento da causa primeira 38

Autocontradição 38 Não é uma demonstração 39 Limites da conclusão 39

Page 8: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

E L E M E N T O S BÁSICOS DE FILOSOFIA

O argumento ontológico 40 Críticas ao argumento ontológico 41

Consequências absurdas 41 A existência não é uma propriedade 42 O mal 43

Conhecimento, demonstração e existência de Deus 43 O problema do mal 45 Tentativas de solução do problema do mal 46

Santidade Analogia artística

A defesa do livre arbítrio 48 Críticas à defesa do livre arbítrio 49

Admite dois pressupostos básicos 49 Livre arbítrio sem mal 50 Deus poderia intervir 50 Não explica o mal natural 51 Leis benéficas da natureza 51

O argumento dos milagres 52 Hume e os milagres 54

Os milagres são sempre improváveis 55 Factores psicológicos 55 As religiões neutralizam-se mutuamente 56

O argumento do apostador: a aposta de Pascal 57 Críticas ao argumento do apostador 59

Não podemos decidir acreditar 59 Argumento inapropriado 60

Não realismo acerca de Deus 61 Críticas ao não realismo acerca de Deus 62

Ateísmo disfarçado 62 Implicações para a doutrina religiosa 62

Pé 63

Os perigos da fé 64

Conclusão 65 Leitura complementar 66

Page 9: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ÍNDICE

2 Bem e mal 67

Teorias baseadas no dever 68 A ética cristã 69 Críticas à ética cristã 70

Qual é a vontade de Deus? O dilema de Êutifron 70 Pressupõe a existência de Deus 72

A ética kantiana / 2 Motivação 72 Máximas 7-1 O imperativo categórico 74 Universalizabilidade 75 Meios e fins ~7

Críticas à ética kantiana 77 É vazia 77 Actos imorais universalizáveis 78 Aspectos implausíveis 78

Consequencialismo 80 Utilitarismo 8 0

Críticas ao utilitarismo 81 Dificuldades de cálculo 81 Casos problemáticos 83

Utilitarismo negativo 8 5

Crítica ao utilitarismo negativo 86 Destruição de toda a vida 86

Utilitarismo das regras 86 Teoria da virtude 87

Prosperar 88 As virtudes 88

Críticas à teoria da virtude 90 Que virtudes devemos adoptar? 90 Natureza humana

Ética aplicada 91 Eutanásia 91 Ética e metaética 95 Naturalismo 95

Page 10: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

E L E M E N T O S BÁSICOS DE FILOSOFIA

Críticas ao naturalismo 96 Distinção facto/valor 96 O argumento da questão em aberto 97 Não existe natureza humana 98

Relativismo 98 Críticas ao relativismo moral 100

Serão os relativistas inconsistentes? 100 O que conta como sociedade? 101 Não há crítica moral dos valores de uma sociedade 101

Emotivismo '01 Críticas ao emotivismo 102

A discussão moral é impossível 102 Consequências perigosas 103

Conclusão 104 Leitura complementar 105

3 Polí t ica 106

Igualdade 107 Distribuição igualitária do dinheiro 108 Críticas à distribuição igualitária do dinheiro 109

Impraticável e de curta duração 109 Pessoas diferentes merecem quantitativos diferentes 110 Pessoas diferentes têm diferentes carências 111 Ninguém tem o direito de redistribuir 111

Igualdade de oportunidades no emprego 112 Discriminação positiva 114 Críticas à discriminação positiva 115

Anti-igualitária 115 Pode conduzir ao ressentimento 116

Igualdade política: democracia 117 Democracia directa " 8 Democracia representativa 118 Críticas à democracia 119

Uma ilusão 119 Os eleitores não são especialistas 120 O paradoxo da democracia 121

Liberdade 121

Page 11: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ÍNDICE

Liberdade negativa 122 Críticas à liberdade negativa 123

O que conta como prejuízo? 123 Liberdade positiva 123

Subtrair a liberdade: o castigo 125 O castigo como retribuição 125 Críticas ao retributivismo 126

Faz apelo a sentimentos baixos 126 Ignora os efeitos 127

Dissuasão 127 Críticas à dissuasão 128

O castigo dos inocentes 128 Não funciona 128

Protecção da sociedade 129 Críticas à protecção da sociedade 129

Só é relevante para alguns crimes 129 Não funciona 130

Reabilitação 130 Críticas à reabilitação 131

Só é relevante para alguns criminosos 131 Não funciona 131

Desobediência civil 132 Críticas à desobediência civil 135

Não é democrática 135 Derrapagem para a anarquia 136

Conclusão 137 Leitura complementar 137

4 O m u n d o exterior 139

Realismo de senso comum 140 Cepticismo acerca dos dados dos sentidos 141 O argumento da ilusão 141 Críticas ao argumento da ilusão 142

Graus de certeza 142

Page 12: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

E L E M E N T O S BÁSICOS DE FILOSOFIA

Poderei estar a sonhar? 143 Não posso estar sempre a sonhar 143 Os sonhos são diferentes 143 Não posso perguntar «Estarei a sonhar?» 144

Alucinação 145 Cérebro numa cuba? 146

Memória e lógica 147 Penso, logo existo 149 Crítica ao cogito 149 Realismo representativo 150

Qualidades primárias e secundárias 151

Críticas ao realismo representativo 153 Observador na cabeça O mundo real é incognoscível 153

Idealismo 154 Críticas ao idealismo 156

Alucinações e sonhos 156 Conduz ao solipsismo A explicação mais simples 158

Fenomenismo I(l<)

Críticas ao fenomenismo 161 Dificuldade em descrever objectos 161 O solipsismo e o argumento da linguagem privada 161

Realismo causal 162 Críticas ao realismo causal ' 64

A experiência da visão 164 Pressupõe o mundo real 164

Conclusão '65 Leitura complementar 165

5 Ciência 166 A perspectiva simples do método científico 167 Críticas à perspectiva simples 168

Observação 168 Enunciados observacionais 170 Selecção 172

Page 13: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ÍNDICE

O problema da indução 172

Outro aspecto do problema da indução 174

Tentativas de solução d o problema da indução 176

Parece funcionar 176 Evolução 17/ Probabilidade 178

Fals i f icacionismo: conjectura e refutação 179

Falsificabilidade 180

Crí t icas ao falsi f icacionismo 182

O papel da confirmação 182 Erro humano 183 Historicamente incorrecto 184

C o n c l u s ã o 185 Lei tura c o m p l e m e n t a r 185

6 Mente 187 Filosofia da mente e psicologia 187 O problema da mente/corpo 188 D u a l i s m o 189 Crít icas ao dua l i smo 190

Não pode ser cientificamente investigado 190 Evolução 191 Interacção 192 Contradiz um princípio científico básico 193

D u a l i s m o s e m interacção 193

Paralelismo mente/corpo 193 Ocasionalismo 194 Epifenomenismo 195

F i s i ca l i smo 195 Teoria da identidade-t ipo 196 Crí t icas à teoria da ident idade-t ipo 198

Não há conhecimento dos processos cerebrais 198 As propriedades dos pensamentos e dos estados do cérebro.. 199 Todos os pensamentos são acerca de algo 199 Qualia 200 Diferenças individuais 200

Page 14: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Teoria da ident idade-espécime 202 Crít icas à teoria da ident idade-espécime 203

Alguns estados do cérebro podem ser pensamentos diferentes 203

B e h a v i o u r i s m o 204 Crít icas ao behaviour i smo 205

Fingimento 205 Qualia 206

Como adquiro conhecimento das minhas próprias crenças? ... 206 A dor dos paralíticos 207 As crenças podem causar o comportamento 208

F u n c i o n a l i s m o 209 Crít icas ao funcional ismo 210

Qualia: computadores c pessoas 210

Mentes alheias 212

Não é um problema para o behaviourismo 213

O a r g u m e n t o por analogia 213 Crít icas ao a r g u m e n t o por analogia 2 1 4

Não 6 uma demonstração 214 Inverificável 2 ' 5

C o n c l u s ã o 216 Leitura c o m p l e m e n t a r 216

7 Arte 218

Pode a arte ser def inida? 219 O conceito de parecença familiar 219 Crít icas à perspectiva da parecença familiar 2 2 0 A teoria da forma signif icante 221 Crít icas à teoria da forma signif icante 2 2 2

Circularidade 2 2 2

Irrefutabilidade 2 2 ^

A teoria idealista 223 Crít icas à teoria idealista da arte 225

Estranheza 2 2 : 1

Excessivamente restritiva 2 2 : '

Page 15: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ÍNDICE

A teoria institucional 2 2 6 Crí t icas à teoria institucional 227

Não distingue a boa da má arte 227 Circularidade 228 Que critérios usa o mundo da arte? 229

Crít ica de arte 2 3 0 Ant i - in tenc iona l i smo 2 3 0 Crít icas ao ant i - intencional ismo 231

Uma ideia errada da intenção 231 Ironia 232 Uma perspectiva muito restritiva da crítica de arte 233

Apresentação , interpretação, autent ic idade 233 Autent i c idade histórica na interpretação musical 2 3 4 Crí t icas à autent ic idade histórica na interpretação 235

Viagem fantasiosa no tempo 235 Visão simplista da interpretação musical 235 As interpretações históricas podem falsear o espírito 236

Imitações e valor artístico 236 Preço, snobismo, relíquias 237 Imitações perfeitas 239 Obras de arte versus artistas 239 O argumento moral 241

C o n c l u s ã o 241 Lei tura c o m p l e m e n t a r 241

índice analítico 243 Glossário inglês-português 253

Page 16: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

Prefácio

Acrescentei pequenas secções em vários capítulos desta segunda edição e corrigi todos os erros óbvios que surgiram na primeira. A adição mais digna de nota é o novo capítulo sobre política. Actualizei também as listas de leituras aconselhadas.

Gostaria de agradecer a todas as pessoas que fizeram comentários aos rascunhos dos vários capítulos. Estou particularmente grato a Alexandra Alexandri, Gunnar Arnason, Inga Burrows, Eric Butcher, Michael Camille, Simon Christmas, Lesley Cohen, Emma Cotter, Tim Crane, Sue Derry-Penz, Adrian Driscoll, Jonathan Hourigan, Rosalind Hursthouse, Paul Jefferis, John Kimbell, Robin Le Poivedin, Georgia Mason, Hugh Mellor, Alex Miller, Anna Motz, Penny Nettle, Alex Orenstein, Andrew Pile, Abigail Reed, Anita Roy, Ron Santoni, Helen Simms, Jennifer Trusted, Phillip Vasili, Stephanie Warburton, Tessa Watt, Jonathan Wolff, Kira Zurawska e aos consultores anónimos da casa editora.

N I G E L W A R B U R T O N

Oxford, 1994

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Page 17: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

Introdução

O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de responder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de outros filósofos famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil se o leitor está a começar agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá provavelmente lido nada desses autores. Mas, mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode, ainda assim, ser difícil dizer o que têm em comum, se é que existe realmente uma característica relevante partilhada por todos. Outra forma de abordar a questão é indicar que a palavra «filosofia» deriva da palavra grega que significa «amor da sabedoria». Con-tudo, isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a filosofia é aquilo que os filóso-fos fazem. Precisamos por isso de alguns comentários gerais sobre o que é a filosofia.

A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característica mais

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Page 18: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inven-tam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra «filosofia» é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da vida ou algumas formas de misticismo. Não irei usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivo é lançar alguma luz sobre algumas das áreas centrais de discussão da tra-dição que começou com os Gregos antigos e tem pros-perado no século xx, sobretudo na Europa e na Amé-rica.

Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradi-ção? Muitas vezes examinam crenças que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões relacionadas com o que pode-mos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afi-nal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são ques-tões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algu-mas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa aquilo em que acre-ditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para argumentar de forma coerente sobre

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Page 19: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

INTRODUÇÃO

um vasto leque de temas — uma capacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas.

A filosofia e a sua história

Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no primeiro pa-rágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema historicamente, analisando as contri-buições desses grandes filósofos por ordem cronoló-gica. Mas não é isso que farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem centrada em torno de questões filosóficas particulares, e não na história. A história da filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante e importante; muitos dos textos filo-sóficos clássicos são também grandes obras de litera-tura: os diálogos socráticos de Platão, as Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume, e Assim Falava Zaratustra, de Nietz-sche, para citar só alguns exemplos, são todas magní-ficos exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar de o estudo da história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste livro é oferecer ao leitor instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses temas não interessam apenas aos filósofos: emergem natural-mente das circunstâncias humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam esponta-neamente nesses temas.

Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e temáticos, uma

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Page 20: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

vez que, se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos anteriores, não podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da filoso-fia. Sem algum conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam: continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que já tinham sido feitos. E muitos filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao ve-rem o que está errado no trabalho dos filósofos anterio-res. Contudo, num pequeno livro como este, é impos-sível fazer justiça às complexidades da obra de filóso-fos individuais. As leituras complementares, sugeridas no fim de cada capítulo, ajudam a colocar num con-texto histórico mais vasto os assuntos aqui discutidos.

Porquê estudar filosofia?

Defende-se por vezes que não vale a pena estudar filosofia uma vez que tudo o que os filósofos fazem é discutir sofisticamente o significado das palavras; nunca parecem atingir conclusões de qualquer impor-tância e a sua contribuição para a sociedade <5 virtual-mente nula. Continuam a discutir acerca dos mesmos problemas que cativaram a atenção dos Gregos. Parece que a filosofia não muda nada; a filosofia deixa tudo tal e qual.

Qual é, afinal, a importância de estudar filosofia? Começar a questionar as bases fundamentais da nossa vida pode até ser perigoso: podemos acabar por nos sentir incapazes de fazer o que quer que seja, paralisa-dos por pormos demasiadas perguntas. Na verdade, a caricatura do filósofo é geralmente a de alguém que é brilhante a lidar com pensamentos altamente abstractos no conforto de um sofá, numa sala de Oxford ou

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Page 21: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

INTRODUÇÃO

Cambridge, mas incapaz de lidar com as coisas práticas da vida: alguém que consegue explicar as mais compli-cadas passagens da filosofia de Hegel, mas que não consegue cozer um ovo.

A vida examinada

Uma razão importante para estudar filosofia é o facto de esta lidar com questões fundamentais acerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pes-soas, num ou noutro momento da sua vida, já se inter-rogou a respeito de questões filosóficas. Por que razão estamos aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm algum propósito? O que faz que certas acções sejam moralmente boas ou más? Poderemos alguma vez ter justificação para violar a lei? Poderá a nossa vida ser apenas um sonho? E a mente diferente do corpo, ou seremos apenas seres físicos? Como progride a ciência? O que é a arte? E assim por diante.

A maior parte das pessoas que estuda filosofia acha importante que cada um de nós examine estas questões. Algumas até defendem que não vale a pena viver a vida sem a examinar. Persistir numa exis-tência rotineira sem jamais examinar os princípios na qual esta se baseia pode ser como conduzir um automóvel que nunca foi à revisão. Podemos jus-tificadamente confiar nos travões, na direcção e no motor, uma vez que sempre funcionaram suficien-temente bem até agora; mas esta confiança pode ser completamente injustificada: os travões podem ter uma deficiência e falharem precisamente quando mais precisarmos deles. Analogamente, os princípios nos quais a nossa vida se baseia podem ser inteiramente

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Page 22: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

sólidos; mas, até os termos examinado, não podemos ter a certeza disso.

Contudo, mesmo que não duvidemos seriamente da solidez dos princípios em que baseamos a nossa vida, podemos estar a empobrecê-la ao recusarmo-nos a usar a nossa capacidade de pensar. Muitas pessoas acham que dá demasiado trabalho ou que é excessivamente inquietante colocar este tipo de questões fundamentais: podem sentir-se satisfeitas e confortáveis com os seus preconceitos. Mas há outras pessoas que têm um forte desejo de encontrar respostas a questões filosóficas que representem um desafio.

Aprender a pensar

Outra razão para estudar filosofia é o facto de isso nos proporcionar uma boa maneira de aprender a pensar mais claramente sobre um vasto leque de assuntos. Os métodos do pensamento filosófico podem ser úteis em variadíssimas situações, uma vez que, ao analisar os ar-gumentos a favor e contra qualquer posição, adquirimos aptidões que podem ser aplicadas noutras áreas da vida. Muitas pessoas que estudam filosofia aplicam depois as suas aptidões em profissões tão diferentes quanto o di-reito, a informática, a consultoria de gestão, o funciona-lismo público e o jornalismo — áreas onde a clareza de pensamento é um grande trunfo1. Os filósofos usam tam-bém a perspicácia que adquirem acerca da natureza da existência humana quando se voltam para as artes: alguns filósofos foram também romancistas, críticos, poe-tas, realizadores de cinema e dramaturgos de sucesso.

1 O autor referc-se, claro, à situação britânica, c nSo à portu-guesa. (N. do T.)

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Page 23: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

INTRODUÇÃO

Prazer

Outra justificação ainda para o estudo da filosofia é o facto de, para muitas pessoas, esta ser uma actividade que dá imenso prazer. Mas é preciso dizer qualquer coisa acerca desta defesa da filosofia. O seu perigo é ser tomada como uma redução da actividade filosófica a qualquer coisa equivalente à resolução de palavras cruzadas. Por vezes, a atitude que os filósofos têm em relação à filosofia pode parecer-se muito com isso: alguns filósofos profis-sionais ficam obcecados com a resolução de enigmas ló-gicos obscuros como um fim em si, publicando os seus resultados em revistas esotéricas. No outro extremo, al-guns filósofos que trabalham nas universidades enca-rarn-se a si próprios como parte de um «negócio», publi-cando o que muitas vezes são estudos medíocres unica-mente porque isso lhes permitirá prosperar e ser promo-vidos (uma vez que a quantidade de publicações é um factor que determina a promoção)2. Dá-lhes prazer ver o seu nome impresso, ganhar mais e usufruir o prestígio associado à promoção. Felizmente, contudo, muita da filosofia se eleva acima deste nível.

A filosofia é difícil?

A filosofia é muitas vezes descrita como uma disci-plina difícil. Há vários tipos de dificuldades associadas à filosofia, algumas delas evitáveis.

Em primeiro lugar, é verdade que muitos dos pro-blemas com os quais os filósofos profissionais lidam

2 Este é um problema inexistente em Portugal: ao contrário do resto do mundo civilizado, a publicação em revistas internacionais é irrelevante em termos de carreira académica ou liceal. (N. do T.)

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Page 24: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

exigem efectivamente um nível bastante elevado de pensamento abstracto. Contudo, o mesmo se aplica a praticamente todas as actividades intelectuais: a esse respeito, a filosofia não é diferente da física, da teoria literária, da informática, da geologia, da matemática ou da história. Tal como acontece com estas e outras áreas de estudo, a dificuldade em dar um contributo subs-tancialmente original na área respectiva não deve ser usada como desculpa para negar às pessoas comuns o conhecimento dos avanços dessas áreas, nem para as impedir de aprender os seus métodos básicos.

Contudo, há um segundo tipo de dificuldade asso-ciada à filosofia que pode ser evitada. Os filósofos nem sempre são bons prosadores. Muitos têm fracas capacida-des para comunicar claramente as suas próprias ideias. Por vezes, isto acontece porque só estão interessados em atingir uma pequeníssima audiência de leitores especia-lizados; outras vezes, porque usam uma gíria desneces-sariamente complicada que se limita a confundir os que com ela não estão familiarizados. Os termos especializa-dos podem ser úteis para evitar explicar certos conceitos sempre que são usados. Contudo, há entre os filósofos profissionais uma tendência infeliz para usar termos especializados como um fim em si; muitos usam expres-sões latinas apesar de existirem equivalentes portugueses perfeitamente aceitáveis3. Um parágrafo cheio de pala-vras desconhecidas e de palavras conhecidas usadas de forma desconhecida pode intimidar. Alguns filósofos parecem falar e escrever numa linguagem inventada por eles. Isto pode fazer que a filosofia pareça muito mais difícil do que na verdade é.

3 Em Portugal acontece sobretudo o uso desnecessário de neo-logismos e de expressões alemãs, gregas e inglesas. (N. do T.)

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Page 25: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

INTRODUÇÃO

Neste livro tentei evitar a gíria desnecessária e expli-car os termos desconhecidos a par e passo. Esta abor-dagem deve ser suficiente para proporcionar ao leitor um vocabulário filosófico básico, necessário para com-preender alguns dos textos mais difíceis que são reco-mendados no final de cada capítulo.

Os limites do que a filosofia pode fazer

Alguns estudantes têm expectativas excessivamente altas em relação à filosofia. Esperam que a filosofia lhes forneça uma imagem acabada e detalhada dos dilemas humanos. Pensam que a filosofia lhes irá revelar o sen-tido da vida e explicar todas as facetas das nossas com-plexas existências. Ora, apesar de o estudo da filosofia poder iluminar algumas questões fundamentais rela-cionadas com a nossa existência, não oferece nada que se pareça com uma imagem acabada, se é que de facto pode existir tal coisa. Estudar filosofia não é uma alter-nativa ao estudo da arte, da história, da psicologia, da antropologia, da sociologia, da política e da ciência. Estas diferentes disciplinas concentram-se em diferen-tes aspectos da vida humana e oferecem diferentes tipos de esclarecimentos. Alguns aspectos da vida das pessoas resistem à análise filosófica e até talvez a qual-quer outro tipo de análise. É por isso importante não esperar demasiado da filosofia.

Como usar este livro

Já sublinhei o facto de a filosofia ser uma actividade. Por isso, este livro não deve ser lido passivamente.

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Page 26: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Podemos limitar-nos a aprender de cor os argumentos usados aqui, mas isso, só por si, não seria ainda apren-der a filosofar, apesar de proporcionar um conheci-mento sólido de muitos dos argumentos básicos usa-dos pelos filósofos. O leitor ideal deste livro será aquele que o ler criticamente, questionando constantemente os argumentos usados e concebendo contra-argumen-tos. Este livro pretende estimular o pensamento, e não ser uma alternativa ao pensamento. Se o ler critica-mente, o leitor encontrará sem dúvida muitas coisas de que discorda, o que concorrerá para clarificar as suas próprias convicções.

Apesar de ter tentado que todos os capítulos fossem acessíveis a alguém que nunca tenha estudado filoso-fia, alguns são mais difíceis do que outros. A maior parte das pessoas já pensou na questão de saber se Deus existe ou não e já pensou nos argumentos a favor de ambos os lados — logo, o capítulo sobre Deus deve ser relativamente fácil de seguir. Por outro lado, poucas pessoas, à excepção dos filósofos, terão pensado deta-lhadamente sobre os assuntos abordados nos capítulos sobre o mundo exterior e a mente, assim como nos assuntos tratados nas secções mais abstractas do capí-tulo sobre o bem e o mal. Estes capítulos, especial-mente o capítulo sobre a mente, podem ser de leitura mais demorada. Recomendo que comece por fazer uma primeira leitura rápida de todos os capítulos, relendo depois aquelas secções que ache mais interessantes, em vez de ler demoradamente secção a secção, arriscando--se assim a atolar-se nos detalhes sem ter percebido como os diferentes argumentos se relacionam entre si.

Há um tópico óbvio que este livro podia ter incluí-do, mas não o fez: a lógica. Deixei-o de fora porque é uma área excessivamente técnica para .poder ser tra-

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INTRODUÇÃO

tada satisfatoriamente num livro desta dimensão e com este estilo4.

Este livro deverá ser útil para os estudantes conso-lidarem o que aprendem nas aulas e proporcionará uma ajuda na redacção de ensaios: o sumário que ofe-reço das principais abordagens filosóficas de cada tema, juntamente com várias críticas a essas abordagens, pode facilmente ser usado quando se procuram ideias para ensaios.

Leitura complementar

As minhas sugestões de leitura complementar são deliberadamente breves: só incluí sugestões que posso sinceramente recomendar a alguém que começa agora a estudar filosofia.

Os Grandes Filósofos, de Brian Magee (Lisboa, Editorial Presença, 1989), é uma boa introdução à história da filo-sofia. Consiste num conjunto de conversas com vários filósofos contemporâneos acerca de grandes filósofos do passado e é baseado na série de televisão da BBC com o mesmo nome. The British Empiricists, de Stephen Priest (Londres, Penguin, 1990), é um sumário muito claro das ideias de alguns dos mais importantes filósofos britânicos do século xvii a meados do século xx. A Short History of Modem Philosophy, de Roger Scruton (Londres, Routledge, 1989), é uma breve descrição das ideias dos grandes filó-sofos, de Descartes a Wittgenstein.

A Dictionary of Philosophy, organizado por Anthony Flew (Londres, Pan, 1979) é útil como referência, tal

4 A Gradiva publicará brevemente, nesta colecção, a obra Curso Introdutório de Lógica, de W. H. Newton-Smith. (N. do E.)

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

como A Dictionary of Philosophy, de A. R. Lacey (Lon-dres, Routledge, 1976)5.

Os interessados nos métodos de argumentação usa-dos pelos filósofos têm vários livros relevantes, incluindo o meu Thinking from A to Z (Londres, Routledge, 1996), A Arte de Argumentar, de Anthony Weston (Lisboa, Gradiva, 1996) e The Logic of Real Arguments (Cam-bridge, Cambridge University Press, 1988), de Alec Fisher. Há mais dois livros nesta área que estão esgo-tados, mas que existem nas bibliotecas: Thinking about Thinking, de Anthony Flew (Londres, Fontana, 1975), e Straight and Crooked Thinking, de H. Thouless (Londres, Pan, 1974).

Sobre o tema de como escrever claramente e da im-portância de o fazer, o ensaio de George Orwel l «Politics and the English Language», incluído em The Penguin Essays of George Orwell (Londres, Penguin, 1990), é uma leitura proveitosa. The Complete Plain Words (Londres, Penguin, 1962) e Plain English (Milton Keynes, Open University Press, 2." edição, 1992) são ambos livros excelentes que dão conselhos práticos nesta área.

5 A Gradiva publicou cm 1997, nesta mesma colecção, o mais recente Dicionário de Filosofia, de Simon Blackburn. (N. ilo E•.)

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Deus

Será que Deus existe? Esta é uma questão funda-mental, uma questão que a maior parte das pessoas já enfrentou num ou noutro período da vida. A resposta dada por cada um de nós não afecta apenas a forma como agimos, mas também a forma como compreende-mos e interpretamos o mundo e o que esperamos do futuro. Se Deus existe, a existência humana pode ter sentido e podemos mesmo ter esperança na vida eterna. Se não, temos de criar nós mesmos o sentido das nossas vidas: nenhum sentido será dado a partir do exterior e a morte será provavelmente definitiva.

Quando os filósofos voltam a sua atenção para a religião, costumam examinar os vários argumentos que têm sido oferecidos a favor e contra a existência de Deus. Ponderam as provas e examinam atentamente a estrutura e as implicações dos argumentos. Examinam também conceitos tais como a fé e a crença, para ver se a maneira como as pessoas falam acerca de Deus faz sentido.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

O ponto de partida da maior parte da filosofia da religião é uma doutrina muito geral acerca da natureza de Deus, conhecida como teís)iio. Esta doutrina defende a existência de um deus único, a sua omnipotência (capacidade para fazer tudo), omnisciência (capacidade de saber tudo) e suprema benevolência (sumamente bom). Esta perspectiva é partilhada pela maior parte dos cristãos, judeus e muçulmanos. Nestas páginas irei deter-me na ideia cristã de Deus, apesar de a maior parte dos argumentos se aplicarem igualmente a outras religiões teístas e de alguns deles serem relevantes para qualquer religião.

Mas será que o Deus descrito pelos teístas existe de facto? Poderemos demonstrar que esse Deus existe? Há muitos argumentos que têm por objectivo demonstrar a existência de Deus. Neste capítulo irei apresentar os mais importantes.

O argumento do desígnio

Um dos argumentos a favor da existência de Deus usado com mais frequência é o argumento do desígnio, por vezes também conhecido como argumento teleoló-gico (da palavra grega telos, que significa finalidade). Este argumento afirma que, se observarmos a natu-reza, não podemos deixar de notar como tudo é apro-priado à função que desempenha: tudo mostra sinais de ter sido concebido. Isto demonstraria a existência de um Criador. Se, por exemplo, examinarmos o olho humano, verificaremos que todas as suas ínfimas par-tes se adaptam entre si e que cada parte está judiciosa-mente adaptada àquilo para que aparentemente foi feita: ver.

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DEUS

Os defensores do argumento do desígnio, tais como William Paley (1743-1805), defendem que a complexi-dade e a eficiência de objectos naturais como o olho são indícios de que tiveram de ser concebidos por Deus. De que outra forma poderiam ter chegado a ser como são? Tal como, ao observar um relógio, podemos ver que foi concebido por um relojoeiro, também ao obser-var o olho, argumentam eles, podemos ver que foi concebido por uma espécie de Relojoeiro Divino. E como se Deus tivesse deixado uma marca em todos os objectos que fez.

Este é um argumento que parte de um efeito e infere a sua causa: observamos o efeito (o relógio ou o olho) e tentamos descobrir o que o causou (um relojoeiro ou um Relojoeiro Divino) a partir do exame que fizemos. O argumento apoia-se na ideia de que um objecto que tenha sido concebido, como acontece com um relógio, é em certos aspectos muito semelhante a um objecto natural, como um olho. Este tipo de argumento, ba-seado na semelhança entre duas coisas, é conhecido como argumento por analogia. Os argumentos por analo-gia baseiam-se no princípio de que, se duas coisas são análogas em alguns aspectos, serão também, muito possivelmente, análogas noutros.

Aqueles que aceitam o argumento do desígnio afir-mam que, para onde quer que olhemos, sobretudo tra-tando-se da natureza — quer olhemos para árvores, falésias, animais, estrelas, quer seja para o que for—, encontramos cada vez mais indícios que confirmam a existência de Deus. Porque estas coisas são concebidas de formas muito mais engenhosas do que um relógio, o Relojoeiro Divino deve, concomitantemente, ter sido mais inteligente do que o relojoeiro humano. De facto, o Relojoeiro Divino deve ter sido tão poderoso e tão

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inteligente que faz sentido presumir que terá sido o Deus tradicional dos teístas.

Contudo, há fortes argumentos contra o argumento do desígnio, a maior parte dos quais foram levanta-dos pelo filósofo David Hume (1711-1776) nos seus póstumos Diálogos sobre a Religião Natural, assim como na secção xi da sua Investigação sobre o Entendi-mento Humano.

Críticas ao argumento do desígnio

Fraca analogia

Uma objecção ao argumento apresentado defende que este se baseia numa analogia fraca: presume sem discussão a existência de uma semelhança significativa entre os objectos naturais e os que sabemos terem sido concebidos. Mas não é óbvio que, para usar mais uma vez os mesmos exemplos, o olho humano seja real-mente como um relógio em todos os aspectos impor-tantes. Os argumentos por analogia baseiam-se no facto de existir uma forte semelhança entre as duas coisas comparadas. Se a semelhança for fraca, as conclusões que podem ser retiradas com base na comparação serão igualmente fracas. Assim, por exemplo, um reló-gio de pulso e um relógio de bolso são suficientemente semelhantes para que possamos presumir terem am-bos sido concebidos por relojoeiros. Mas, apesar de existir alguma semelhança entre um relógio e um olho — ambos são intrincados e cumprem as suas funções específicas —, essa semelhança é apenas vaga e quais-quer conclusões baseadas nessa analogia resultarão igualmente vagas.

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DEUS

Evolução

A existência de um Relojoeiro Divino não é a única explicação possível de como os animais e as plantas estão tão bem adaptados às suas funções. Em particu-lar, a teoria da evolução pela selecção natural, defen-dida por Charles Darwin (1809-1882) no seu livro A Ori-gem das Espécies (1859, trad. 1961), oferece-nos uma ex-plicação alternativa, largamente aceite, deste fenómeno. Darwin mostrou como, pelo processo da sobrevivência do mais apto, os animais e as plantas melhor adapta-dos ao seu meio ambiente sobrevivem e transmitem os seus genes aos seus descendentes. Este processo ex-plica como as maravilhosas adaptações ao meio am-biente que encontramos nos reinos animal e vegetal podem ter ocorrido, sem precisar de introduzir a noção de Deus.

Claro que a teoria da evolução de Darwin não refuta de forma alguma a existência de Deus — na verdade, muitos cristãos aceitam-na como a melhor explicação de como as plantas, os animais e os seres humanos se tornaram no que são hoje: eles acreditam que Deus criou o próprio mecanismo da evolução. Contudo, a teoria de Darwin enfraquece, de facto, a força do argu-mento do desígnio, uma vez que explica os mesmos efeitos sem mencionar Deus como causa. A existência desta teoria acerca do mecanismo da adaptação bioló-gica impede o argumento do desígnio de constituir uma demonstração conclusiva da existência de Deus.

Limites da conclusão

Mesmo que, apesar das objecções mencionadas até agora, o leitor ache convincente o argumento do

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desígnio, deve reparar que este argumento não de-monstra a existência de um deus único, todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom. Um exame mais minu-cioso do argumento mostra que este tem várias limita-ções.

Em primeiro lugar, o argumento não consegue, de forma alguma, sustentar o monoteísmo — a ideia de que só existe um deus. Mesmo que o leitor aceite que o mundo e tudo o que ele contém mostra claramente sinais de ter sido concebido, não há razão para acredi-tar que foi tudo concebido por um só deus. Porque não poderia ter sido tudo concebido por uma equipa de deuses menores trabalhando em conjunto? Afinal de contas, a maioria das grandes e complexas constru-ções humanas, como os arranha-céus, as pirâmides, os foguetões espaciais, etc., foram construídos por equi-pas de indivíduos; por isso, se levarmos a analogia a sério, a sua conclusão lógica irá conduzir-nos à convic-ção de que o mundo foi concebido por um grupo de deuses trabalhando em equipa.

Em segundo lugar, o argumento não apoia necessa-riamente a perspectiva de que aquele ou aqueles que projectaram o mundo são todo-poderosos. E plausível argumentar que o universo tem vários «defeitos de concepção»: por exemplo, o olho humano tem uma tendência para a miopia e para criar cataratas com a idade — o que dificilmente pode ser considerado a obra de um criador todo-poderoso que desejasse criar o melhor mundo possível. Tais verificações poderiam levar algumas pessoas a pensar que o Arquitecto do universo, longe de ser todo-poderoso, será antes um deus ou deuses comparativamente fracos ou talvez um deus ainda novo a experimentar os seus poderes. Tal-vez o Arquitecto tivesse morrido pouco tempo depois

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DEUS

de ter criado o universo, deixando-o assim a degradar--se sozinho. O argumento do desígnio oferece, pelo menos, tantas razões para estas conclusões como para a existência do deus descrito pelos teístas. Por isso, o argumento do desígnio, por si só, não pode demons-trar que é o deus dos teístas que existe, e não qualquer outro tipo de deus ou deuses.

Por último, sobre o carácter omnisciente e bom do Arquitecto, muitas pessoas acham que o mal existente no mundo contraria esta conclusão. O mal vai desde a crueldade humana, o assassínio e a tortura, ao sofri-mento causado pelos desastres naturais e pela doença. Se, como o argumento do desígnio sugere, devemos olhar à nossa volta para ver os sinais da obra de Deus, muitas pessoas acham difícil aceitar que o que vêem seja o resultado de um criador benevolente. Um deus omnisciente saberia que o mal existe; um deus todo--poderoso poderia impedi-lo de existir; e um Deus su-mamente bom não quereria que o mal existisse. Mas o mal continua a existir. Este sério desafio à crença no Deus dos teístas tem sido muito discutido pelos filó-sofos. E conhecido como o problema do mal. Numa pró-xima secção examinaremos, algo detalhadamente, este problema e as várias tentativas de o resolver. Mas, para já, este problema deve pelo menos fazer-nos ponderar se é verdadeira a ideia de o argumento do desígnio oferecer razões conclusivas a favor da existência de um Deus sumamente bom.

Como podemos ver nesta discussão, o argumento do desígnio só pode oferecer-nos, na melhor das hipó-teses, uma conclusão muito limitada: a de que o mundo e tudo o que nele existe foi concebido por algo ou alguém. Ir para além desta conclusão seria ultrapas-sar o que logicamente pode concluir-se do argumento.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

O argumento da causa primeira

O argumento do desígnio é baseado na observação directa do mundo. Como tal, trata-se do que os filóso-fos chamam um argumento empírico. Pelo contrário, o argumento da causa primeira, por vezes conhecido como argumento cosmológico, baseia-se apenas no facto empírico de o universo existir, e não em factos particu-lares sobre as características do universo.

O argumento da causa primeira afirma que todas as coisas foram causadas por qualquer coisa que lhes é anterior: não há nada que tenha pura e simplesmente irrompido e começado a existir sem uma causa. Porque sabemos que o universo existe, podemos seguramente presumir que toda uma série de causas e efeitos produ-ziram o universo tal como é hoje. Se seguirmos esta série retrospectivamente, encontraremos uma causa original, a primeira causa de todas. Esta causa primeira, afirma o argumento da causa primeira, é Deus.

Contudo, tal como acontece com o argumento do desígnio, há várias críticas a este argumento.

Críticas ao argumento da causa primeira

Autocontradição

O argumento da causa primeira começa por admitir que todas as coisas foram causadas por qualquer outra coisa, mas depois acaba por contradizer esta ideia, afir-mando que Deus foi a primeira causa de todas. De-fende simultaneamente que não pode haver uma causa não causada e que há uma causa não causada: Deus. Convida-nos a perguntar: «E o que causou Deus?»

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DEUS

Uma pessoa que se deixe convencer pelo argumento da causa primeira pode objectar que o argumento não quer dizer que tudo tem uma causa, mas apenas que tudo, excepto Deus, tem uma causa. Mas isto também não serve. Se a série de causas e efeitos vai parar algu-res, por que razão tem de parar em Deus? Por que razão não pode parar antes, no aparecimento do pró-prio universo?

Não é uma demonstração

O argumento da causa primeira pressupõe que os efeitos e as causas não poderiam retroceder para sem-pre numa espécie de regressão infinita: uma série sem fim a retroceder no tempo. O argumento pressupõe a existência de uma causa primeira que deu origem a todas as outras coisas. Mas será que as coisas terão mesmo de ter sido assim?

Se usássemos um argumento análogo sobre o futuro, teríamos de supor que existiria um efeito final, um efeito que não seria a causa de nada para além dele. Mas, apesar de ser de facto difícil de imaginar, parece plausível pensar que as causas e efeitos se prolongam infinita-mente no futuro, tal como não existe um número que seja o maior de todos, uma vez que a qualquer número que, por hipótese, seja o maior podemos sempre adicionar mais um. Se é realmente possível ter uma série infinita, por que razão não podem os efeitos e as causas pro-longar-se retrospectivamente no passado, infinitamente?

Limites da conclusão

Mesmo que se possa responder a ambas as críticas ao argumento, este não demonstra que a causa primeira é o

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deus descrito pelos teístas. Tal como acontece com o ar-gumento do desígnio, há limites sérios ao que pode ser concluído a partir do argumento da primeira causa.

Em primeiro lugar, é verdade que a primeira causa foi, provavelmente, extremamente poderosa, de forma a poder criar e pôr em movimento a série de causas e efeitos que tiveram como resultado todo o universo tal como o conhecemos. Pode, por isso, haver alguma jus-tificação para defender que o argumento mostra que existe um deus muito poderoso, apesar de não ser, talvez, todo-poderoso.

Mas o argumento não apresenta absolutamente ne-nhuma razão para aceitar que existe um deus omnis-ciente nem sumamente bom. Uma primeira causa não teria de ter nenhum destes atributos. E, tal como com o argumento do desígnio, um defensor do argumento da causa primeira ficaria ainda com o problema de saber como poderia um deus todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom tolerar o mal existente no mundo.

O argumento ontológico

O argumento ontológico é muito diferente dos dois argumentos anteriores a favor da existência de Deus, uma vez que não depende de quaisquer dados empíricos. O argumento do desígnio, como vimos, de-pende de dados acerca da natureza do mundo e dos objectos e organismos nele existentes; o argumento da causa primeira precisa de menos dados — baseia-se apenas na verificação de que algo existe, e não o nada. O argumento ontológico, contudo, é uma tentativa de mostrar que a existência de Deus se segue necessaria-mente da definição de Deus como o ser supremo. Por-

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DEUS

que esta conclusão pode ser retirada sem recorrer à experiência, diz-se que é um argumento a priori.

De acordo com o argumento ontológico, Deus defi-ne-se como o ser mais perfeito que é possível imaginar; ou, na mais famosa formulação do argumento, a de Santo Anselmo (1033-1109), Deus define-se como «aquele ser maior do que o qual nada pode ser conce-bido». A existência seria um dos aspectos desta perfei-ção ou grandiosidade. Um ser perfeito não seria per-feito se não existisse. Consequentemente, da definição de Deus seguir-se-ia que Deus existe necessariamente, tal como da definição de um triângulo se segue que a soma dos seus ângulos internos será de 180 graus.

Este argumento, que tem sido usado por vários filó-sofos, incluindo René Descartes (1596-1650), na quinta das suas Meditações, não convenceu muita gente; mas não é fácil de ver exactamente o que há de errado nele.

Críticas ao argumento ontológico

Consequências absurdas

Uma crítica comum ao argumento ontológico defende que ele permitiria que, através de definições de todo o género de coisas, pudéssemos demonstrar a sua exis-tência. Por exemplo, podemos muito facilmente imagi-nar uma ilha perfeita, com uma praia perfeita, vida selvagem perfeita, etc., mas é óbvio que daqui não se segue que essa ilha existe algures. Logo, porque o ar-gumento ontológico parece justificar uma conclusão tão absurda como esta, pode facilmente ver-se que se trata de um mau argumento. Ou a estrutura do argumento não é sólida, ou, pelo menos, um dos seus pressupos-

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tos tem de ser falso; de outra maneira, não poderia dar lugar a consequências tão obviamente absurdas.

Um defensor do argumento ontológico pode res-ponder a esta objecção dizendo que, apesar de ser cla-ramente absurdo pensar que podemos demonstrar a existência de uma ilha através da sua definição, não é absurdo pensar que da definição de Deus se segue que Deus existe necessariamente. Isto é assim porque as ilhas perfeitas, tal como carros perfeitos, dias perfeitos, ou seja lá o que for, são apenas exemplos perfeitos de categorias particulares de coisas. Mas Deus é um caso especial: Deus não é apenas um exemplo perfeito de uma categoria, mas a mais perfeita de todas as coisas.

Contudo, mesmo que aceitemos este argumento implausível, há mais uma crítica ao argumento ontológico que qualquer seu defensor terá de enfrentar. Esta crítica foi originalmente feita por Immanuel Kant (1724-1804).

A existência não é uma propriedade

Um celibatário pode ser definido como um homem solteiro. Ser solteiro é a propriedade essencial definidora de um celibatário. Ora, se eu dissesse «os celibatários existem», não estaria a descrever mais uma proprie-dade dos celibatários. A existência não é o mesmo tipo de coisa que a propriedade de ser solteiro: para que uma pessoa possa ser solteira tem primeiro de existir, apesar de o conceito de celibatário ser o mesmo, quer existam celibatários quer não.

Se aplicarmos o mesmo raciocínio ao argumento ontológico, veremos que o erro que comete é tratar a existência de Deus como se não passasse de outra pro-priedade, como a omnisciência ou a omnipotência. Mas Deus não poderia ser omnisciente nem omnipotente

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sem existir; logo, mesmo numa simples definição de Deus já estamos a pressupor que Deus existe. Acres-centar a existência como mais uma propriedade essen-cial de um ser perfeito é cometer o erro de tratar a existência como uma propriedade, em vez de a tratar como a condição de possibilidade para que qualquer coisa possa realmente ter uma propriedade qualquer.

Mas que dizer, então, dos seres ficcionais, como os unicórnios? Claro que podemos falar acerca das proprie-dades de um unicórnio, tal como ter um corno e quatro patas, sem que os unicórnios tenham de existir real-mente. A resposta é esta: uma frase como «Os unicórnios têm um corno» quer realmente dizer que «Se os unicór-nios existissem, teriam de ter um corno». Por outras pala-vras, a frase «Os unicórnios têm um corno» é de facto uma afirmação hipotética. Logo, a inexistência de unicór-nios não é um problema para a perspectiva que defende que a existência não é uma propriedade.

O mal

Mesmo que o argumento ontológico seja aceite, há ainda muitos sinais de que pelo menos um aspecto da sua conclusão é falso. A presença do mal no mundo parece opor-se à ideia de que Deus é sumamente bom. Apresentarei as possíveis respostas a esta crítica na secção sobre o problema do mal.

Conhecimento, demonstração e existência de Deus

Os argumentos a favor da existência de Deus que considerámos até agora foram todos apresentados, por

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vezes, como demonstrações, argumentos que produzi-riam conhecimento da existência de Deus.

Neste contexto, o conhecimento pode ser definido como uma espécie de crença justificada verdadeira. Se pu-déssemos saber que Deus existe, teria de ser verdade que Deus existe realmente. Mas a nossa crença de que Deus existe teria também de ser justificada: teria de ser baseada no tipo certo de dados. E possível ter crenças que são ver-dadeiras, mas injustificadas: por exemplo, posso acreditar que é terça-feira porque vi o que estava escrito no que eu acredito ser o jornal de hoje. Mas, na realidade, estava a ver um jornal velho que, por acaso, tinha sido publicado numa terça-feira. Apesar de acreditar que é terça-feira (tal como de facto é), não adquiri esta crença de forma fide-digna, uma vez que podia perfeitamente ter pegado num jornal velho que me convencesse que hoje era quinta--feira. Por isso, eu não tinha realmente conhecimento, apesar de poder erradamente ter pensado que tinha.

Todos os argumentos a favor da existência de Deus que examinámos até agora estão sujeitos a várias objecções. Se estas objecções são sólidas ou não, com-pete ao leitor decidir. As objecções devem, é claro, levan-tar dúvidas sobre a questão de saber se estes argumen-tos podem ou não ser considerados demonstrações da existência de Deus. Mas poderemos nós saber — esse tipo de crença justificada verdadeira — que Deus não existe? Por outras palavras, existirão argumentos que possam conclusivamente demonstrar que o deus des-crito pelos teístas não existe?

Há, de facto, pelo menos um argumento muito forte contra a existência de um deus benevolente, um argu-mento que já usei como crítica ao argumento do desíg-nio, ao argumento da primeira causa e ao argumento ontológico. Trata-se do chamado problema do mal.

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O problema do mal

Há mal no mundo: isto não pode ser seriamente negado. Basta pensar no Holocausto, nos massacres de Pol Pot no Camboja ou na prática generalizada da tor-tura. Todos eles são exemplos de mal moral e crueldade: seres humanos que provocam sofrimento a outros seres humanos por uma razão qualquer. A crueldade tem também muitas vezes como objecto os animais. Há também outro tipo de mal, conhecido como mal natu-ral ou metafísico: terramotos, doença e fome são exem-plos deste tipo de mal.

O mal natural tem causas naturais, apesar de se poder tornar ainda pior em função da incompetência humana ou falta de cuidado. A palavra «mal» talvez não seja a melhor para designar estes fenómenos natu-rais, que dão origem ao sofrimento humano, uma vez que é habitualmente usada para referir a crueldade deliberada. Contudo, quer lhe chamemos «mal natu-ral», quer lhe chamemos qualquer outra coisa, a exis-tência de coisas como a doença e as calamidades natu-rais tem, sem dúvida, de ser tomada em conta se que-remos manter a crença num deus benevolente.

Visto existir tanto mal, como pode alguém acreditar seriamente na existência de um deus sumamente bom? Um deus omnisciente saberia que o mal existe; um deus todo-poderoso poderia evitar que o mal ocorresse; e um Deus sumamente bom não quereria que o mal existisse. Mas o mal continua a existir. Este é o problema do mal: o problema de explicar como os alegados atri-butos de Deus podem ser compatíveis com o facto ine-gável de o mal existir. Este é o mais sério desafio à crença no deus dos teístas. O problema do mal levou muitas pessoas a rejeitar completamente a crença em

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Deus, ou, pelo menos, a rever a sua opinião acerca da suposta benevolência, omnipotência ou omnisciência de Deus.

Os teístas têm sugerido várias soluções para o pro-blema do mal, três das quais serão aqui consideradas.

Tentativas de solução do problema do mal

Santidade

Algumas pessoas argumentaram que a presença de mal no mundo se justifica, apesar de não ser claramente uma coisa boa, porque conduz a uma maior virtude moral. Sem a pobreza e a doença, por exemplo, não seria possível a virtude moral que a Madre Teresa de-monstrava ao ajudar os necessitados. Sem guerra, tor-tura e crueldade, os santos e os heróis não poderiam existir. O mal permite a existência do bem, suposta-mente maior, que este tipo de triunfo sobre o sofrimento humano representa. Contudo, esta solução está sujeita a pelo menos duas objecções. Em primeiro lugar, o grau e a dimensão do sofrimento são muito maiores do que seria necessário para permitir que santos e heróis desempenhassem os seus actos de bem moral. É extre-mamente difícil justificar com este argumento as mor-tes horríveis de vários milhões de pessoas nos campos de concentração nazis. Além disso, grande parte deste sofrimento passa despercebido e não é registado, de forma que não pode ser explicado desta maneira: em alguns casos, o indivíduo que sofre é a única pessoa capaz de aperfeiçoamento moral em tal situação, mas é altamente improvável que este aperfeiçoamento possa ocorrer em casos de dor extrema.

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DEUS

Em segundo lugar, não é óbvio que um mundo no qual exista muito mal seja preferível a um mundo no qual existisse menos mal e, consequentemente, menos santos e heróis. De facto, há qualquer coisa de ofensivo na tentativa de justificar a agonia de uma criança que morre de uma doença incurável, por exemplo, argu-mentando que isto permite que os que a presenciam se tornem melhores pessoas do ponto de vista moral. Iria realmente um deus sumamente bom usar tais métodos para nos ajudar a aperfeiçoar-nos moralmente?

Analogia artística

Algumas pessoas defenderam a existência de uma analogia entre o mundo e uma obra de arte. A harmo-nia geral de uma peça de música inclui geralmente dissonâncias que são subsequentemente convertidas num acorde; uma pintura tem, tipicamente, grandes áreas de pigmento mais escuro e mais claro. De forma análoga, defende este argumento, o mal contribui para a harmonia ou beleza geral do mundo. Esta perspectiva está também sujeita a pelo menos duas objecções.

Em primeiro lugar, é pura e simplesmente difícil de aceitar. Por exemplo, é difícil de perceber como se pode dizer que alguém a morrer em grande sofrimento na cerca de arame farpado da terra-de-ninguém na Batalha de Somme esteve a contribuir para a harmonia geral do mundo. Se a analogia com a obra de arte for realmente a explicação da razão pela qual Deus permite tanto mal, isto é quase uma admissão de que o mal não pode ser satisfatoriamente explicado, uma vez que coloca a compreensão do mal para além da compreensão mera-mente humana. A harmonia só pode ser observada e apreciada do ponto de vista de Deus. Se é isto que os

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teístas querem dizer quando afirmam que Deus é su-mamente bom, trata-se de um uso muito diferente da palavra «bom», relativamente ao uso habitual.

Em segundo lugar, um deus que permite tal sofri-mento por motivos meramente estéticos — de forma a poder apreciá-lo da mesma maneira que se aprecia uma obra de a r t e — parece mais um sádico do que o deus sumamente bom de que falam os teístas. Se o papel do sofrimento é este, Deus está desconfortavelmente pró-ximo do psicopata que põe uma bomba no meio da multidão de forma a poder observar os belos padrões criados pela explosão e pelo sangue. Para muitas pes-soas, esta analogia entre uma obra de arte e o mundo teria mais sucesso como um argumento contra a bene-volência de Deus do que a seu favor.

A defesa do livre arbítrio

A tentativa mais importante de solução do problema do mal é, de longe, a defesa do livre arbítrio. Trata-se da afirmação de que Deus deu o livre arbítrio aos seres humanos: a capacidade para escolhermos o que quere-mos fazer. Se não tivéssemos livre arbítrio, seríamos como robots, ou autómatos, sem escolhas próprias. Os que aceitam a defesa do livre arbítrio argumentam que uma consequência necessária da posse do livre arbítrio é a possibilidade de praticar o mal; caso contrário, não seria, genuinamente, livre arbítrio. Os seus defensores afirmam que um mundo no qual os seres humanos têm livre arbítrio, conduzindo-nos por vezes ao mal, é preferível a um mundo no qual a acção humana fosse predeterminada, um mundo no qual seríamos como robots, programados para praticar apenas boas acções.

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DEUS

De facto, se fôssemos programados desta forma, não poderíamos sequer dizer que as nossas acções seriam moralmente boas, uma vez que o bem moral depende de poder escolher o que fazemos. Uma vez mais, há várias objecções a esta proposta de solução.

Críticas à defesa do livre arbítrio

Admite dois pressupostos básicos

O pressuposto básico que a defesa do livre arbítrio admite é o de que um mundo com livre arbítrio e a possibilidade do mal é preferível a um mundo de pes-soas-robots que nunca praticam más acções. Mas será isto obviamente verdade? O sofrimento pode ser tão terrível que muitas pessoas, dada a possibilidade de escolha, prefeririam que toda a gente tivesse sido pré--programada para só praticar o bem, em vez de ter de passar por certos sofrimentos. Estes seres pré-pro-gramados poderiam mesmo ter sido concebidos-de maneira a acreditarem ter livre arbítrio, apesar de o não terem: poderiam ter a ilusão do livre arbítrio com todos os benefícios que a crença de que seriam livres lhes traria, mas sem nenhuma das desvantagens.

Este argumento sugere um segundo pressuposto da defesa do livre arbítrio, nomeadamente o de que temos de facto livre arbítrio, e não apenas a ilusão de que o temos. Alguns psicólogos pensam que podemos expli-car todas as decisões ou escolhas que uma pessoa faz através de um condicionamento anterior que a pessoa sofreu, de forma que, apesar de a pessoa se poder sen-tir livre, a sua acção é na realidade inteiramente deter-minada pelo que aconteceu no passado. Não podemos

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ter a certeza de que não é assim que as coisas realmente se passam.

Contudo, deve notar-se, a favor da defesa do livre arbí-trio, que a maior parte dos filósofos acredita que os seres humanos têm de facto, genuinamente, num certo sentido, livre arbítrio; e deve também notar-se que o livre arbítrio é geralmente considerado essencial ao ser humano.

Livre arbítrio sem mal

Se Deus é omnipotente, é presumível que esteja den-tro dos seus poderes a criação de um mundo no qual existisse livre arbítrio sem que existisse mal. De facto, um tal mundo não é particularmente difícil de imagi-nar. Apesar de a posse do livre arbítrio nos dar sempre a possibilidade de fazer o mal, não há razão para que esta possibilidade se torne real. É logicamente possível que toda a gente tivesse tido livre arbítrio mas tivesse decidido evitar sempre a má linha de acção.

Aqueles que aceitam a defesa do livre arbítrio res-ponderiam possivelmente a este argumento afirmando que num tal estado de coisas não existiria verdadeiro livre arbítrio. Esta ideia está em discussão.

Deus poderia intervir

Os teístas acreditam, tipicamente, que Deus pode intervir e que intervém de facto no mundo, sobretudo através da execução de milagres. Se Deus intervém por vezes, por que escolhe Deus executar o que podem parecer, a quem não for crente, «truques» menores, como provocar estigmas (marcas nas mãos das pes-soas, como os buracos dos pregos das mãos de Cristo), ou transformar a água em vinho? Porque não interveio

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DEUS

Deus de forma a prevenir o Holocausto, ou toda a segunda guerra mundial ou a epidemia da SIDA?

Uma vez mais, os teístas podem responder que, se Deus tivesse intervindo, não teríamos genuíno livre ar-bítrio. Mas isto seria abandonar um aspecto da crença em Deus defendido pela maioria dos teístas, nomeada-mente que a intervenção divina ocorre por vezes.

Não explica o mal natural

Uma crítica da maior importância à defesa do livre arbítrio afirma que este argumento só poderá, na melhor das hipóteses, justificar a existência do mal moral, o mal que resulta directamente dos seres humanos. Não se con-cebe qualquer conexão entre a posse de livre arbítrio e a existência de males naturais, como terramotos, doenças, erupções vulcânicas, etc., a não ser que se aceite uma es-pécie qualquer da doutrina do pecado original, segundo a qual a traição da confiança de Deus, perpetrada por Adão e Eva, terá trazido toda a espécie de mal ao mundo. A dou-trina do pecado original torna os seres humanos respon-sáveis por todas as formas de mal existente no mundo. Contudo, tal doutrina só seria aceitável para alguém que já acreditasse na existência do deus judaico-cristão.

Há outras explicações, mais plausíveis, do mal natu-ral, uma das quais afirma que a regularidade das leis da natureza oferece, em geral, um maior benefício, que ultrapassa as calamidades ocasionais a que dá origem.

Leis benéficas da natureza

Sem regularidade na natureza, o nosso mundo seria um mero caos e não teríamos forma de prever os resul-tados de nenhuma das nossas acções. Se, por exemplo,

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

as bolas de futebol só às vezes deixassem os nossos pés quando as chutamos, limitando-se outras vezes a ficar coladas aos pés, teríamos muita dificuldade em prever o que iria acontecer numa qualquer ocasião específica em que fôssemos chutar uma bola. A falta de regulari-dade noutros aspectos do mundo poderia fazer que a própria vida fosse impossível. A ciência, tal como a vida quotidiana, apoia-se na existência de muitas regu-laridades na natureza, na qual causas análogas têm a tendência para produzir efeitos análogos.

Argumenta-se por vezes que, porque esta regulari-dade é habitualmente benéfica para nós, o mal natural se justifica, uma vez que é um efeito colateral da ope-ração regular e contínua das leis da natureza. Os efeitos benéficos gerais desta regularidade ultrapassariam os prejudiciais. Mas este argumento é vulnerável de duas maneiras, pelo menos.

Primeiro, não explica por que razão não poderia um Deus omnipotente ter criado leis da natureza que nunca pudessem de facto conduzir ao mal natural. Uma res-posta possível a isto é afirmar que mesmo Deus está submetido às leis da natureza; mas isto sugere que Deus não é realmente omnipotente.

Segundo, continua a não explicar por que razão Deus não intervém para executar milagres mais vezes. Se argumentarmos que Deus nunca intervém, elimina-mos um aspecto central da crença em Deus da maioria dos teístas.

O argumento dos milagres

Ao discutir o problema do mal e as suas tentativas de solução, afirmei que os teístas acreditam habitual-

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DEUS

mente que Deus executou certos milagres: na tradição cristã, estes milagres incluem a Ressurreição, a multi-plicação dos pães, o ressuscitar de Lázaro, etc. Todos estes milagres teriam sido realizados por Cristo, mas os partidários do cristianismo e de outras religiões defen-dem muitas vezes que os milagres ocorrem também hoje em dia. Nestas páginas examinaremos a questão de saber se a afirmação de que ocorreram milagres no passado poderá proporcionar uma prova suficiente para acreditarmos na existência de Deus.

Um milagre pode ser definido como um tipo de inter-venção divina no curso normal de acontecimentos que compreende o quebrar de uma lei estabelecida da natu-reza. Uma lei da natureza é uma generalização sobre a maneira como certas coisas se comportam: por exemplo, as coisas pesadas caiem ao chão se não as seguramos, ninguém pode ressuscitar, etc. Estas leis da natureza ba-seiam-se num vasto número de observações.

Os milagres devem desde logo distinguir-se de ocor-rências meramente'extraordinárias. Uma pessoa pode tentar suicidar-se saltando de uma ponte alta. Por uma combinação bizarra de factores, tais como as condições do vento, a capacidade de as suas roupas actuarem como um pára-quedas, etc., essa pessoa pode sobreviver à queda — o que de facto já tem acontecido. Apesar de isto ser extremamente raro, podendo mesmo ser descrito como um «milagre» pelos jornais, não é um milagre no sentido em que estou a usar o termo nestas páginas. Poderíamos dar uma explicação científica satisfatória de» como esta pessoa veio a sobreviver: foi apenas um acon-tecimento extraordinário, e não um acontecimento mila-groso, uma vez que não se violou nenhuma lei da natu-reza e, tanto quanto podemos saber, não esteve envolvida nenhuma intervenção divina. Contudo, se a pessoa que

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saltou fosse misteriosamente devolvida pelo rio de re-gresso à ponte, isso teria sido um milagre.

A maioria das religiões defendem que Deus fez mila-gres e que os relatos destes milagres devem ser tratados como uma confirmação da existência de Deus. Contudo, há fortes argumentos contra a ideia de basear uma crença em Deus em tais relatos da ocorrência de milagres.

Hume e os milagres

David Hume, na secção x das suas Investigações sobre o Entendimento Humano, argumentou que uma pessoa racional nunca deve acreditar num relato que afirme a ocorrência efectiva de um milagre, excepto se a possi-bilidade de a pessoa que faz o relato estar enganada for um milagre ainda maior. Mas isto, defendeu Hume, é altamente improvável que aconteça. Devemos, por princípio, acreditar sempre no que seria o menor mila-gre. Nesta afirmação, Hume está a jogar deliberada-mente com o significado da palavra «milagre». Como já vimos, um milagre em sentido estrito é uma violação de uma lei da natureza que presumivelmente terá sido causada por Deus. Contudo, quando Hume declara que devemos acreditar sempre no que seria o menor milagre, está a usar a palavra «milagre» no sentido quotidiano, que pode incluir aquelas coisas que são apenas pouco comuns.

Apesar de Hume admitir a possibilidade da ocor-rência de milagres, pensava que nunca tinha existido nenhum relato suficientemente fidedigno de um mila-gre no qual se pudesse basear uma crença em Deus. Hume usou vários argumentos convincentes para sus-tentar esta ideia.

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DEUS

Os milagres são sempre improváveis

Antes de mais, Hume analisou os indícios que te-mos para sustentar que qualquer lei específica da natu-reza é verdadeira. Para que algo seja aceite como uma lei da natureza — por exemplo, que ninguém pode ressuscitar — tem de existir o máximo possível de indí-cios que a confirmem.

Uma pessoa sensata baseia sempre aquilo em que acredita nos indícios disponíveis. Mas no caso dos re-latos de milagres haverá sempre mais indícios que sugerem que o milagre não ocorreu do que o contrário. Isto é apenas uma consequência do facto de os mila-gres envolverem a violação de leis da natureza bem estabelecidas. Assim, com este argumento, uma pessoa sensata deverá encarar sempre com extrema relutância uma crença num relato que afirma a ocorrência de um milagre. E sempre logicamente possível que alguém possa ressuscitar, mas há muitíssimos indícios que sus-tentam a ideia de que isso nunca aconteceu. Logo, ape-sar de não podermos afastar absolutamente a possibi-lidade de a ressurreição ter ocorrido, devemos, defende Hume, encarar com extrema relutância a crença de que ocorreu realmente.

Hume apresentou vários argumentos para tornar a sua conclusão mais convincente.

Factores psicológicos

Os factores psicológicos podem levar as pessoas a en-ganarem-se a si mesmas ou até mesmo a serem fraudu-lentas acerca da ocorrência de milagres. Por exemplo, é sabido que o assombro e o deslumbramento são emoções agradáveis. Temos uma forte tendência para acreditar em

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coisas altamente improváveis — tais como a crença de que a existência de OVNIS demonstra que existe vida inteligente em Marte, ou de que as histórias de fantasmas provam a possibilidade da vida depois da morte e outras do mesmo género — por causa do prazer que temos em alimentar essas crenças fantásticas. Analogamente, temos tendência para acreditar nos relatos de milagres, uma vez que quase toda a gente gostaria, secretamente ou não, que esses relatos fossem verdadeiros.

E também extremamente apelativo pensar que se foi escolhido para testemunhar um milagre, que se é uma espécie de profeta. Muitas pessoas gostariam de ser objecto da admiração que os seus semelhantes conce-dem aos que afirmam terem testemunhado milagres. Isto pode levar as pessoas a interpretar acontecimentos meramente extraordinários como milagres reveladores da existência de Deus. Pode até levá-las a forjar histó-rias acerca de acontecimentos milagrosos.

As religiões neutralizam-se mutuamente

Os milagres têm sido defendidos por todas as gran-des religiões. Os indícios invocados por cada uma des-sas religiões para defender que os milagres acontece-ram de facto têm força análoga e são do mesmo tipo. Em consequência, o argumento dos milagres, se fosse de confiança, demonstraria a existência dos diferentes deuses que cada religião defende. Mas é claro que to-dos estes diferentes deuses não podem existir simulta-neamente: não pode ser verdade que exista simultanea-mente o deus cristão uno e os vários deuses hindus. Logo, os milagres defendidos pelas diferentes religiões neutralizam-se mutuamente enquanto demonstrações da existência de um deus ou deuses particulares.

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DEUS

A combinação destes factores deve fazer que as pes-soas racionais tenham relutância em acreditar nos rela-tos de milagres. A adequação de uma explicação natu-ral, ainda que em si seja improvável, é sempre mais plausível do que uma explicação milagrosa. Está claro que um relato de um milagre nunca pode ser equiva-lente a uma demonstração da existência de Deus.

Estes argumentos não se restringem aos relatos alheios de milagres. A maior parte destes argumentos aplica-se igualmente se nós mesmos estivermos perante a extraordinária situação de pensar que testemunhá-mos um milagre. Todos nós já sonhámos, já recordámos mal certas coisas ou já pensámos ter visto coisas que, na realidade, não estavam realmente lá. Em todos os casos em que pensamos termos testemunhado um mila-gre é muito mais provável que os nossos sentidos nos tenham enganado do que um milagre tenha realmente ocorrido. Ou podemos ter apenas assistido a algo ex-traordinário e, por causa dos factores psicológicos men-cionados acima, pensámos tratar-se de um milagre.

Claro que qualquer pessoa que pensasse ter testemu-nhado um milagre levaria esta experiência muito a sério, e com razão. Mas, por ser tão fácil estar enganado acerca destas coisas, essa experiência nunca deve contar como uma demonstração conclusiva da existência de Deus.

O argumento do apostador: a aposta de Pascal

Todos os argumentos a favor e contra a existência de Deus que examinámos até agora pretendem demonstrar que Deus existe ou que Deus não existe. Todos eles pre-tendem dar-nos conhecimento da sua existência ou não

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existência. O argumento do apostador, derivado da obra do filósofo e matemático Blaise Pascal (1623-1662), habi-tualmente conhecido como aposta de Pascal, é muito dife-rente dos outros. O seu objectivo não é proporcionar uma demonstração, mas antes mostrar que um apostador sen-sato deveria «apostar» na existência de Deus.

O argumento parte da posição de um agnóstico, isto é, alguém que acredita que não existem dados suficien-tes para decidir se Deus existe ou não. Um agnóstico acredita que é genuinamente possível que Deus exista, mas que não há dados suficientes para decidir a ques-tão com toda a certeza. Um ateu, pelo contrário, acre-dita geralmente que existem dados conclusivos a favor da inexistência de Deus.

O argumento do jogador é o seguinte. Uma vez que não sabemos se Deus existe ou não, estamos numa posição muito semelhante à de um apostador antes de uma corrida de cavalos se ter realizado ou antes de uma carta ter sido voltada. Precisamos por isso de cal-cular as hipóteses que temos. Mas ao agnóstico pode parecer que tanto a existência como a inexistência de Deus são igualmente prováveis. A atitude do agnóstico consiste em ficar indeciso, sem tomar nenhuma decisão em nenhuma das direcções. O argumento do aposta-dor, contudo, afirma que a coisa mais racional a fazer é procurar que a hipótese de ganhar seja tão grande quanto possível, ao mesmo tempo que a possibilidade de perder seja tão pequena quanto possível: por outras palavras, devemos maximizar os ganhos possíveis e minimizar as perdas possíveis. De acordo com o argu-mento do apostador, a melhor forma de alcançar este objectivo é acreditar em Deus.

Há quatro resultados possíveis. Se apostarmos na existência de Deus e ganharmos (i. e., se Deus existir),

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DEUS

ganhamos a vida eterna — um excelente prémio. O que perdemos se apostarmos nesta opção e verificarmos que Deus não existe não é muito, se compararmos com a possibilidade da vida eterna: podemos perder alguns prazeres mundanos, perder muitas horas a rezar e vi-ver as nossas vidas debaixo de uma ilusão. Contudo, se escolhermos apostar na opção da inexistência de Deus e ganharmos (i. e., se Deus não existir), viveremos uma vida sem ilusão (pelo menos neste aspecto) e teremos a liberdade de gozar os prazeres desta vida sem medo do castigo divino. Mas, se apostarmos nesta opção e perdermos (i. e., se Deus existir), perdemos pelo menos a possibilidade da vida eterna e podemos mesmo cor-rer o risco da condenação eterna.

Pascal defendeu que, enquanto apostadores perante estas opções, o curso de acção mais racional será acre-ditar que Deus existe. Assim, se tivermos razão, esta-remos em posição de obter a vida eterna. Se apos-tarmos na existência de Deus e não tivermos razão, não estaremos em posição de perder tanto quanto esta-ríamos se escolhêssemos acreditar na inexistência de Deus e não tivéssemos razão. Logo, se queremos maxi-mizar os nossos ganhos possíveis e minimizar as nos-sas perdas possíveis, devemos acreditar na existência de Deus.

Críticas ao argumento do apostador

Não podemos decidir acreditar

Mesmo que aceitemos o argumento do apostador, ficamos ainda com o problema de não nos ser possível acreditar em seja o que for que queiramos. Não pode-

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mos, pura e simplesmente, decidir acreditar em algo. Não posso decidir acreditar amanhã que os porcos voam, que Londres é a capital do Egipto, ou que existe um deus todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom. Preciso de estar convencido de que estas coisas são de facto assim antes de poder acreditar nelas. Mas o argumento do apostador não oferece quaisquer da-dos para me convencer que Deus existe: diz-me apenas que, como apostador, será uma boa ideia passar a acre-ditar que isso é verdade. Mas agora sou obrigado a enfrentar o problema seguinte: para poder acreditar em algo, tenho de acreditar que isso é verdade.

Pascal tinha uma solução para o problema de como fazer para acreditar que Deus existe quando isso vai contra os nossos sentimentos: sugeriu que a forma de o fazer era agir como se já acreditássemos que Deus existe — frequentar a igreja, pronunciar as palavras das orações apropriadas, etc. Pascal argumentou que, se dermos sinais exteriores de crer em Deus, acabaremos muito rapidamente por desenvolver a crença propria-mente dita. Por outras palavras, há formas indirectas através das quais podemos gerar crenças deliberada-mente.

Argumento inapropriado

Apostar na existência de Deus por ganharmos com isso a hipótese da vida eterna, fingindo seguidamente crer realmente na sua existência por causa do prémio que ganharemos se tivermos razão, parece uma atitude inapropriada para tomarmos em relação à existência de Deus. O filósofo e psicólogo William James (1842-1910) foi ao ponto de afirmar que, se estivesse na posição de Deus, teria grande prazer em impedir a entrada no Céu

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DEUS

às pessoas que acreditassem nele com base neste pro-cesso. O processo parece, todo ele, ser insincero e intei-ramente motivado pelo interesse-próprio.

Não realismo acerca de Deus

O não realismo acerca de Deus proporciona uma alternativa controversa ao teísmo tradicional. Os não realistas argumentam que é um erro conceber Deus como algo que existe independentemente dos seres humanos. O verdadeiro significado da linguagem reli-giosa não é descrever uma espécie de ser objectiva-mente existente; é antes uma maneira de apresentar-mos a nós mesmos a unidade ideal de todos os nossos valores morais e espirituais e as exigências que esses valores nos colocam. Por outras palavras, quando um não realista deste tipo afirma que acredita em Deus, isto não quer dizer que acredite em Deus enquanto entidade realmente existente numa outra esfera, o tipo de deus descrito pelos teístas tradicionais; ao invés, quer dizer que está comprometido com um conjunto particular de valores morais e espirituais e que a lin-guagem da religião proporciona uma forma especial-mente poderosa de apresentar estes valores. Como afir-mou Don Cupitt (1934-), um dos mais bem conhecidos não realistas, «falar de Deus é falar dos objectivos morais e espirituais que devemos ter em vista e acerca daquilo em que nos devemos tornar».

Segundo os não realistas, os que acreditam que Deus existe como algo que será descoberto lá fora, como outro planeta ou como os Yetis, são vítimas do pensa-mento mitológico. O verdadeiro significado da lingua-gem religiosa, afirmam eles, é apresentar, a nós mes-

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E L E M E N T O S BÁSICOS DE FILOSOFIA

mos, os mais altos ideais humanos. Isto explica porque surgiram as várias religiões: cresceram como personifi-cações de diferentes valores culturais, mas, num certo sentido, são todas parte do mesmo tipo de actividade.

Crít icas a o não rea l i smo acerca de D e u s

Ateísmo disfarçado

A principal crítica ao não realismo acerca de Deus defende tratar-se esta posição de uma forma de ateísmo mal disfarçado. Dizer que Deus é apenas a soma dos valores humanos é a mesma coisa que dizer que o Deus tal como é tradicionalmente concebido não existe; a linguagem religiosa proporciona apenas uma forma útil de falar de valores num mundo sem Deus. Isto pode parecer hipócrita, uma vez que os não realistas rejeitam a ideia de que Deus tenha uma existência objectiva, ao mesmo tempo que, no entanto, querem apegar-se à linguagem e ao ritual religiosos. Parece mais honesto ser consistente com as consequências de acreditar que Deus não existe de facto e tornar-se ateu.

Implicações para a doutrina religiosa

Uma segunda crítica à abordagem não realista à questão da existência de Deus defende que esta tem implicações muito sérias para a doutrina religiosa. Por exemplo, a maior parte do teístas acredita na existên-cia do Céu; mas, se Deus não existe realmente, é de presumir que o Céu também não (nem o Inferno, a propósito). Analogamente, se Deus não existe em sen-tido realista, é difícil ver como se pode oferecer uma

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DEUS

explicação plausível dos milagres. No entanto, a crença na possibilidade dos milagres é central para muitos teístas. Adoptar uma posição não realista quanto à questão da existência de Deus implicaria uma revisão radical de muitas crenças religiosas básicas. Esta consequência não enfraquece, necessariamente e por si mesma, a abordagem não realista: se alguém esti-ver preparado para aceitar essas revisões radicais, pode fazê-lo de forma consistente. O que está em jogo é o facto de a perspectiva não realista implicar uma revisão substancial da doutrina religiosa básica, revisão que muitas pessoas não estariam preparadas para fazer.

Todos os argumentos a favor da existência de Deus que examinámos até agora estão sujeitos a críticas. Es-tas críticas não são necessariamente conclusivas. O lei-tor pode ser capaz de encontrar respostas às críticas apresentadas. Mas, se o leitor não encontrar respostas às críticas, quererá isso dizer que deverá rejeitar comple-tamente a crença em Deus? Os ateus diriam que sim. Os agnósticos produziriam o veredicto «por demons-trar». Os crentes, contudo, poderiam argumentar que a abordagem filosófica, que pondera vários argumentos, é inapropriada. A crença em Deus, poderiam eles dizer, não é uma questão apropriada para a especulação inte-lectual abstracta, mas antes para o comprometimento pessoal. E uma questão de fé, e não de uso inteligente da razão.

A fé implica a confiança. Se estou a escalar uma montanha e confio no cabo de segurança, isto significa

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

que confio que o cabo irá aguentar o meu peso se eu escorregar e cair, apesar de não poder ter a certeza absoluta de que o cabo irá de facto aguentar comigo antes de o experimentar. Para algumas pessoas, a fé em Deus é como a confiança no cabo: não há nenhuma demonstração reconhecida de que Deus existe e se inte-ressa por todas as pessoas, mas o crente tem confiança na ideia de que Deus existe de facto e vive a sua vida em harmonia com essa confiança.

A atitude de fé religiosa é apelativa para muitas pes-soas e faz que o tipo de argumentos que considerámos até agora seja irrelevante. No entanto, nos casos mais extremos, a fé religiosa pode fazer que as pessoas sejam completamente cegas aos dados contra as suas ideias: pode parecer-se mais com teimosia do que com uma atitude racional.

Quais são os perigos de adoptar uma atitude destas em relação à existência de Deus, se tivermos tendência para isso?

Os perigos da fé

A fé, tal como a descrevi, baseia-se em dados insu-ficientes. Se existissem dados suficientes para declarar que Deus existe, existiria menos necessidade de fé: sa-beríamos nesse caso que Deus existe. Porque há dados insuficientes para poder ter a certeza de que Deus existe, há sempre a possibilidade de os crentes estarem erra-dos na sua fé. E, tal como acontece com a crença na ocorrência de milagres, há vários factores psicológicos que podem conduzir as pessoas a acreditar em Deus.

Por exemplo, a segurança que advém de acreditar que um ser todo-poderoso toma conta de nós é irrecusavelmente apelativa. A crença na vidn depois da

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DEUS

morte é um bom antídoto para o medo da morte. Estes factores podem ser incentivos para que algumas pes-soas se entreguem à fé em Deus. E claro que isto não faz, necessariamente, que a sua fé seja deslocada; mos-tra apenas que as causas da sua fé podem ser uma combinação de insegurança e raciocínio caprichoso.

Além disso, como Hume defendeu, os sentimentos de assombro e deslumbramento, associados à crença em ocorrências paranormais, dão muito prazer aos seres humanos. No caso da fé em Deus é importante distin-guir a fé genuína do prazer derivado do facto de ali-mentar a crença na existência de Deus.

Estes factores psicológicos devem fazer-nos ter cui-dado antes de nos entregarmos à fé em Deus: é muito fácil, para cada um de nós, estar enganado quanto às suas próprias motivações nesta área. No fim de contas, cada crente deve ajuizar se a sua fé é ou não genuína e apropriada.

Conclusão

Neste capítulo, considerámos a maior parte dos ar-gumentos a favor e contra a existência de Deus. Vimos que os teístas têm de enfrentar sérias críticas se quise-rem manter a crença num Deus omnipotente,, omnisciente e sumamente benevolente. Uma forma de responder a muitas destas críticas seria rever as quali-dades habitualmente atribuídas a Deus: talvez Deus não seja inteiramente benevolente, ou talvez existam limites ao seu poder ou ao seu conhecimento. Fazer isto seria rejeitar a noção tradicional de Deus. Mas, para muitas pessoas, isto seria uma solução mais acei-tável do que rejeitar completamente a crença em Deus.

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E L E M E N T O S BÁSICOS D E FILOSOFIA

Leitura complementar

Recomendo vivamente The Miracle of Theism, de J. L. Mackie (Oxford, Clarendon Press, 1992). E claro, inteli-gente e estimulante. Apresenta de forma mais deta-lhada todos os temas cobertos por este capítulo.

An Introduction to the Philosophy of Religion, de Brian Davies (Oxford, Oxford University Press, 2.a ed., 1993), é uma introdução abrangente a esta área, escrita por um dominicano.

Diálogos sobre a Religião Natural, a obra póstuma de David Hume, publicada pela primeira vez em 1779, contém um ataque brilhante e constante ao argumento do desígnio a favor da existência de Deus. A prosa do século xvin pode por vezes ser bastante difícil de enten-der, mas os argumentos principais são fáceis de seguir e são ilustrados com exemplos espirituosos e inesque-cíveis. Dialogues and Natural History of Religion (Oxford, Oxford University Press World's Classics, 1993), de David Hume, é a melhor edição.

Don Cupitt esboça a sua alternativa não realista ao teísmo no capítulo final do seu livro The Sea of Faith (Londres, BBC Books, 1984).

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Bem e mal

O que faz que uma acção seja boa ou má? Que queremos dizer quando afirmamos que alguém devia ou não fazer qualquer coisa? Como devemos viver? Como devemos tratar as outras pessoas? Estas são questões fundamentais que os filósofos têm discutido desde há milhares de anos. Se não pudermos dizer por que razão coisas como a tortura, o assassínio, a cruel-dade, a escravatura, a violação e o roubo são etica-mente erradas, que justificação podemos ter para as impedir? É a moral unicamente uma questão de pre-conceito, ou poderemos dar boas razões a favor das nossas crenças morais? A área da filosofia que trata destas questões é usualmente conhecida quer como ética quer como filosofia moral — usarei ambos os termos indiferentemente.

Sou céptico quanto à capacidade da filosofia para mudar os preconceitos fundamentais das pessoas acerca do bem e do mal. Como Friedrich Nietzsche (1844-1900) fez notar em Para além do Bem e do Mal, a maior

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

parte dos filósofos morais acaba por justificar «um de-sejo íntimo, filtrado e tornado abstracto». Por outras palavras, estes filósofos oferecem análises complicadas que parecem envolver um pensamento lógico e impes-soal, mas que acaba sempre por demonstrar a correcção dos seus preconceitos prévios. No entanto, a filosofia moral pode oferecer perspectivas esclarecedoras ao li-dar com questões morais genuínas: pode clarificar as implicações de certas crenças muito gerais acerca da moral e mostrar como estas crenças podem ser consis-tentemente postas em prática. Nestas páginas irei exa-minar três tipos de teorias morais: as baseadas no de-ver, as consequencialistas e as baseadas na virtude. Estas teorias são enquadramentos rivais muito gerais para a compreensão das questões morais. Em primeiro lugar esboçarei as características principais destes três tipos de teoria e mostrarei como poderão ser aplicados a um caso real. Prosseguirei seguidamente em direcção às questões filosóficas mais abstractas acerca do significado da linguagem moral, uma área conhecida por metaética.

Teorias baseadas no dever

As teorias éticas baseadas no dever sublinham que cada um de nós tem certos deveres — acções que deve-mos executar ou não — e que agir moralmente é equi-valente a cumprir o nosso dever, sejam quais forem as consequências que daqui se seguirem. É esta ideia — a de que algumas acções são absolutamente boas ou más independentemente dos resultados a que derem ori-g e m — que distingue as teorias éticas baseadas nos deveres (também conhecidas por deontológicas) das teo-rias éticas consequencialistas. Nestas páginas examina-

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BEM E MAL

remos duas teorias baseadas no dever: a ética cristã e a ética kantiana.

A ética cristã

O ensino moral cristão tem dominado a compreen-são ocidental da moral: toda a nossa concepção da moral tem sido moldada pela doutrina religiosa e até as teorias éticas ateias lhe são imensamente devedoras. Os Dez Mandamentos apresentam uma lista de vários deveres e actividades proibidas. Estes deveres devem ser cumpridos independentemente das suas conse-quências: são deveres absolutos. Alguém que acredita que a Bíblia é a palavra de Deus não terá dúvidas acerca do significado de «moralmente certo» e «moral-mente errado»: «moralmente certo» quer dizer o que estiver de acordo com a vontade de Deus e «moral-mente errado» tudo o que for contrário à vontade de Deus. Para um tal crente, a moral é uma questão de seguir mandamentos absolutos dados por uma autori-dade externa — Deus. Logo, por exemplo, matar é sempre moralmente errado porque está explicitamente referido na lista dos Dez Mandamentos. Isto é assim mesmo quando matar um certo indivíduo — Hitler, por exemplo — pode salvar a vida de outras pessoas. Isto é uma simplificação: na verdade, os teólogos dis-cutem acerca da existência de circunstâncias excepcio-nais nas quais matar poderá ser moralmente permissí-vel, como, por exemplo, numa guerra justa.

Na prática, a moral cristã é muito mais complicada do que obedecer apenas aos Dez Mandamentos: inclui a aplicação dos ensinamentos de Cristo e, especifica-mente, do mandamento do Novo Testamento: «Ama o

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

teu próximo». A essência desta moral é, contudo, um sistema de obrigações e proibições. O mesmo se passa com a maior parte das outras teorias morais baseadas numa religião.

Muitas pessoas pensam que, se Deus não existir, a moral é algo que não poderá existir: como Dostoievsky, o romancista russo, formulou a questão, «se Deus não existir, tudo será permitido». No entanto, há pelo me-nos três objecções principais a qualquer teoria ética baseada unicamente na vontade de Deus.

Críticas à ética cristã

Qual é a vontade de Deus?

Uma dificuldade imediata da ética cristã é descobrir qual é verdadeiramente a vontade de Deus. Como pode-mos ter a certeza do que Deus quer que façamos? Os cristãos respondem geralmente a esta pergunta dizendo «leia a Bíblia». Mas a Bíblia está aberta a várias interpre-tações, muitas vezes conflituosas: basta pensar nas di-ferenças entre os que tomam o livro do Génesis literal-mente e acreditam que o mundo foi criado em sete dias e os que pensam tratar-se de uma metáfora; ou nas dife-renças entre os que pensam que na guerra é por vezes aceitável matar e os que pensam que o Mandamento «não matarás» é absoluto e incondicional.

O dilema de Êutifron

Gera-se um dilema quando há apenas duas alterna-tivas possíveis e nenhuma é desejável. Neste caso tra-ta-se de um dilema originalmente formulado no Euti-

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BEM E MAL

fron, de Platão. O dilema que se apresenta a quem acredita que a moral deriva dos mandamentos divinos é o seguinte: Deus aprova os mandamentos porque são moralmente bons? Ou é o facto de serem mandamen-tos aprovados por Deus que faz que sejam moralmente bons?

Considere a primeira opção. Se Deus aprovou os mandamentos porque são bons, a moral é, num certo sentido, independente de Deus. Deus limita-se a res-ponder a valores morais já existentes no universo: des-cobre-os, em vez de os criar. Nesta perspectiva, seria possível descrever completamente a moral sem qual-quer menção a Deus, apesar de se poder pensar que Deus nos proporciona uma informação mais fidedigna acerca da moral do que seria possível recolher directa-mente do mundo com os nossos limitados intelectos. No entanto, nesta perspectiva, Deus não é a fonte da moral.

A segunda opção é provavelmente menos apelativa para os defensores da ética cristã. Se a rectidão é criada por Deus unicamente através dos seus mandamentos e aprovação, isto parece tornar a moral, de alguma forma, arbitrária. Deus podia, em princípio, ter declarado o assassínio moralmente digno de louvor — e, nesse caso, o assassínio seria digno de louvor. Quem defende a moral como um sistema de mandamentos divinos poderia responder que Deus nunca declararia o assas-sínio digno de louvor porque Deus é bom e nunca nos desejaria isso. Mas, se por «bom» se quer dizer «moral-mente bom», isto tem como consequência que tudo o que a expressão «Deus é bom» pode querer dizer será «Deus aprova-se a si mesmo». Isto dificilmente corres-ponde ao que os crentes querem dizer quando afirmam que Deus é bom.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Pressupõe a existência de Deus

Contudo, uma objecção muito mais séria a esta pers-pectiva da ética é o facto de pressupor que Deus real-mente existe e é benevolente. Se Deus não fosse bene-volente, por que razão seriam as acções conforme à sua vontade consideradas moralmente boas? Como vimos no capítulo 1, nem a existência de Deus nem a sua benevolência podem ser dadas como garantidas.

Nem todas as teorias morais baseadas nos deveres se apoiam na existência de Deus. A mais importante teoria moral baseada no dever, a de Kant, apesar de fortemente influenciada pela tradição cristã protestante e do facto de o próprio Kant ter sido um cristão devoto, descreve a moral de uma forma que, nos seus contor-nos mais gerais, muitos ateus acham apelativa.

A ética kantiana

Motivação

Immanuel Kant estava interessado na questão de saber o que é uma acção moral. A resposta que deu tem sido muito importante para a filosofia. Nesta secção, esboçarei as suas características principais.

Para Kant era óbvio que uma acção moral teria de ser executada por sentido do dever, e não apenas como resultado de uma inclinação, de um sentimento ou da possibilidade de qualquer tipo de benefício para o seu autor. Assim, por exemplo, se eu doar dinheiro para acções de caridade por ter profundos sentimentos de compaixão pelos mais necessitados, a minha acção não será necessariamente moral, segundo Kant: se eu agir apenas em função dos meus sentimentos de com-

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BEM E MAL

paixão, e não em função de um sentido do dever, não terei agido moralmente. Se eu doar dinheiro para acções de caridade por pensar que isso irá aumentar a minha popularidade entre os meus amigos, não estarei, uma vez mais, a agir moralmente, mas em função do benefí-cio em termos de estatuto social.

Assim, para Kant, a motivação de uma acção era muito mais importante do que a própria acção e as suas consequências. Ele pensava que, para saber se alguém está a agir moralmente ou não, temos de saber a intenção dessa pessoa. Não é suficiente saber apenas se o Bom Samaritano ajudou o homem que precisava de assistên-cia. O Samaritano poderia ter agido em função do seu interesse-próprio, com a expectativa de receber uma re-compensa pelo seu incómodo. Ou então poderá tê-lo feito só porque sentiu uma ponta de compaixão: neste caso, a sua acção teria uma motivação emocional, e não uma motivação baseada num sentido do dever.

A maior parte dos filósofos morais concordaria com a ideia de Kant de que o interesse-próprio não é uma motivação própria para a acção moral. Mas muitos dis-cordariam da sua ideia de o facto de alguém sentir ou não uma emoção como a compaixão ser irrelevante para a nossa avaliação das suas acções. Contudo, para Kant, a única motivação aceitável para a acção moral era o sentido do dever.

Uma razão pela qual Kant se concentrou tanto nas motivações das acções, em vez de nas suas conse-quências, foi o facto de acreditar que todas as pessoas podiam ser morais. Uma vez que só é razoável ser moralmente responsável por coisas sobre as quais se exerce algum controlo — ou, na formulação de Kant, uma vez que «o dever implica o poder» — e porque as consequências das acções estão muitas vezes fora do

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nosso controlo, estas consequências não podem ser cruciais para a moral. Por exemplo, se, ao agir em fun-ção do meu sentido do dever, eu tentar salvar uma criança que está a afogar-se, mas acabar por, acidental-mente, a afogar, pode ainda considerar-se que agi moralmente, uma vez que os meus motivos eram do tipo apropriado: as consequências da minha acção teriam sido, neste caso, trágicas, mas irrelevantes no que respeita ao valor moral do que fiz.

Analogamente, como não temos necessariamente um controlo completo sobre as nossas reacções emocionais, estas também não podem ser essenciais para a moral. Se queremos uma moral acessível a todos os seres humanos conscientes, então, pensava Kant, a moral terá de apoiar--se na vontade e, sobretudo, no nosso sentido do dever.

Máximas

Kant descreveu a intenção que subjaz a qualquer acto humano como a máxima. A máxima é o princípio geral subjacente à acção. Por exemplo, o Bom Sama-ritano poderia ter agido segundo a máxima «Ajuda sempre os que precisam se esperas ser recompensado pelo teu incómodo», ou então segundo a máxima «Ajuda sempre os que precisam quando tens um sen-timento de compaixão». Contudo, se o Bom Samari-tano agisse moralmente, tê-lo-ia feito provavelmente segundo a máxima «Ajuda sempre os que precisam porque é esse o teu dever».

O imperativo categórico

Kant acreditava que, como seres humanos racionais, temos certos deveres. Estes deveres são categóricos: por

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BEM E MAL

outras palavras, são absolutos e incondicionais — deve-res como «Deves sempre dizer a verdade» ou «Nunca deves matar ninguém». Estes deveres são válidos se-jam quais forem as consequências que possam advir de se lhes obedecer. Kant pensava que a moral era um sistema de imperativos categóricos: mandamentos para agir de determinadas maneiras. Este é um dos aspectos mais distintivos da sua ética. Ele contrastou os deveres categóricos com os hipotéticos. Um dever hipotético é um dever como «Se queres ser respeitado, deves dizer a verdade», ou «Se não queres ir para a prisão, não deves matar ninguém». Os deveres hipotéticos dizem--nos o que devemos ou não fazer se quisermos alcançar ou evitar um dado objectivo. Kant pensava que só exis-tia um imperativo categórico básico: «Age apenas se-gundo as máximas que possas ao mesmo tempo querer como leis universais.» Por outras palavras, age apenas segundo uma máxima que quererias aplicar a toda a gente. Este princípio é conhecido como princípio da universalizabilidade.

Apesar de Kant ter dado várias versões diferentes do imperativo categórico, esta formulação é a mais importante e tem sido extraordinariamente influente. Iremos examiná-la mais detalhadamente.

Universalizabilidade

Kant pensava que, para que uma acção fosse moral, a máxima subjacente teria de ser universalizável. Teria de ser uma máxima que se aplicaria a todas as outras pessoas em circunstâncias análogas. Não devemos erigir-nos numa excepção, mas antes ser imparciais. Assim, por exemplo, se o leitor roubar um livro, agindo segundo a máxima «Rouba sempre que fores dema-

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siado pobre para comprar o que queres», e para que este seja um acto moral, esta máxima teria de aplicar--se a qualquer outra pessoa que estivesse na sua situa-ção.

Claro que isto não significa que qualquer má-xima que possa ser universalizável seja, por essa razão, uma máxima moral. É óbvio que muitas máximas triviais, tais como «Deita sempre a língua de fora a pessoas mais altas do que tu», podem facilmente ser universalizáveis, apesar de terem pouco ou nada a ver com a moral. Outras máximas universalizáveis, como a máxima sobre o roubo que usei no parágrafo anterior, podem, mesmo assim, ser consideradas imorais.

Esta noção de universalizabilidade é uma versão da chamada regra de ouro do cristianismo: «Faz aos ou-tros o que gostarias que te fizessem a ti.» Alguém que agisse segundo a máxima «Sê um parasita, vive sem-pre à custa de outras pessoas», não estaria a agir moral-mente, uma vez que seria impossível universalizar a máxima. Tentá-lo seria enfrentar a questão: «E se toda a gente fizesse isso?» Se todas as pessoas fossem para-sitas, não sobraria ninguém para ser parasitado. A má-xima não passa o teste de Kant e por isso não pode ser uma máxima moral.

Por outro lado, podemos facilmente universalizar a máxima «Nunca tortures bebés». E certamente possível e desejável que todos obedeçam a esta ordem, apesar de poderem não o fazer. Aqueles que não lhe obedece-rem e torturarem bebés estarão a agir imoralmente. Com máximas como esta, a noção de universalizabi-lidade de Kant dá claramente uma resposta consonante com as intuições incontestadas da maior parte das pes-soas acerca da rectidão.

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BEM E MAL

Meios e fins

Outra das versões de Kant do imperativo categórico era «Trata as outras pessoas como fins em si, nunca como meios». Esta é outra forma de dizer que não devemos usar as outras pessoas e que devemos, ao invés, reconhecer a sua humanidade: o facto de serem pessoas com arbítrio e desejos próprios. Se alguém for simpático consigo só porque sabe que o leitor pode dar-lhe um emprego, estará a tratá-lo como um meio de obter esse emprego, e não como uma pessoa, um fim em si. E claro que, se alguém for simpático consigo porque acontece gostar de si, isso nada terá a ver com a moral.

Críticas à ética kantiana

E vazia

A teoria ética de Kant, e sobretudo a sua noção de universalizabilidade dos juízos morais, é por vezes criticada por ser vazia. Isto significa que a sua teoria só nos oferece um enquadramento que revela a estrutura dos juízos morais sem ajudar em nada os que estão perante tomadas de decisão morais efectivas. Dá pouca ajuda às pessoas que tentam decidir o que devem fazer.

Esta crítica negligencia a versão do imperativo cate-górico que nos ensina a tratar as pessoas como fins, e nunca como meios. Nesta última formulação, Kant dá, sem dúvida, algum conteúdo à sua teoria moral. Mas, mesmo combinando a tese da universalizabilidade com a formulação dos meios e dos fins, a teoria de Kant não oferece soluções satisfatórias para muitas questões morais.

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Por exemplo, a teoria de Kant não consegue dar facil-mente conta dos conflitos entre deveres. Se, por exemplo, eu tenho o dever de dizer sempre a verdade e também o de proteger os meus amigos, a teoria de Kant não me poderá mostrar o que deverei fazer quando estes deveres entram em conflito. Se um louco com um machado me perguntasse onde está o meu amigo, a minha primeira reacção seria mentir-lhe. Dizer a verdade seria fugir ao meu dever de proteger o meu amigo. Mas, por outro lado, segundo Kant, dizer uma mentira, mesmo numa situação-limite como esta, seria uma acção imoral: tenho o dever absoluto de nunca mentir.

Actos imorais universalizáveis

Outro ponto fraco, relacionado com o anterior, que algumas pessoas detectam na teoria de Kant é o facto de, aparentemente, permitir algumas acções obviamente imorais. Por exemplo, aparentemente, uma máxima como «Mata qualquer pessoa que te estorve» poderia ser consistentemente universalizada. E, no entanto, esta máxima é claramente imoral.

Mas este tipo de crítica não consegue ser uma crítica a Kant: ignora a versão do imperativo categórico em termos de meios e fins, uma vez que a contradiz clara-mente. Matar alguém que nos estorva dificilmente é tratar essa pessoa como um fim em si: não mostra consideração pelos seus interesses.

Aspectos implausíveis

Apesar de grande parte da teoria de Kant ser plau-sível — especialmente a ideia de respeitar os interesses das outras pessoas—, tem alguns aspectos implausí-

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veis. Em primeiro lugar, parece justificar a lgumas acções absurdas, tal como dizer a um louco com um machado onde o nosso amigo se encontra, em vez de o afastar, mentindo-lhe.

Em segundo lugar, o papel que a teoria dá a emo-ções tais como a compaixão, a simpatia e a piedade parece inadequado. Kant afasta tais emoções como irrelevantes para a moral: a única motivação apropriada para a acção moral é o sentido do dever. Sentir com-paixão pelos mais necessitados — apesar de, de certos pontos de vista, poder ser digno de louvor — não tem, para Kant, nada a ver com a moral. Pelo contrário, muitas pessoas pensam que há emoções distintamente morais — tais como a compaixão, a simpatia e o re-morso — e separá-las da moral, como Kant tentou fa-zer, será ignorar um aspecto central do comportamento moral.

E m terceiro lugar, a teoria não dá atenção às consequências da acção. Isto significa que idiotas bem intencionados que, involuntariamente, causem várias mortes em consequência da sua incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da teoria de Kant, uma vez que seriam primariamente julgados pelas suas in-tenções. Mas, em alguns casos, as consequências das acções parecem relevantes para uma apreciação do seu valor moral: pense como se sentiria em relação a uma babysitter que tentasse secar o seu gato no microondas. Contudo, para ser justo com Kant a este respeito, é verdade que ele considera condenáveis alguns tipos de incompetência.

Os que acham convincente este último tipo de críti-cas às teorias deontológicas verão muito provavel-mente o que há de apelativo no tipo de teoria ética conhecido como consequencialismo.

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Consequencialismo

O termo «consequencialismo» é usado para des-crever teorias éticas que ajuízam da rectidão ou não de uma acção, não através das intenções do autor da acção, mas antes das consequências da acção. Enquanto Kant afirmaria que dizer uma mentira será sempre errado, sejam quais forem os possíveis benefícios que daí possam resultar, um consequencialista julgaria o acto de mentir através dos seus resultados efectivos ou previstos.

Utilitarismo

O utilitarismo é o tipo mais bem conhecido de teoria ética consequencialista. O seu mais famoso defensor foi John Stuart Mill (1806-1873). O utilitarismo baseia-se no pressuposto de que o objectivo último de toda a actividade humana é (num certo sentido) a felicidade. Esta perspectiva é conhecida como hedonismo.

Um utilitarista define o «bem» como «seja o que for que trouxer a maior felicidade global». Isto é, por ve-zes, conhecido como o princípio da maior felicidade ou princípio da utilidade. Para um utilitarista, a boa acção pode ser calculada, em quaisquer circunstâncias, exa-minando as consequências prováveis dos vários cursos possíveis de acção. A boa acção é a que tiver mais probabilidades de trazer a maior felicidade nas circuns-tâncias em causa (ou, pelo menos, mais felicidade do que infelicidade), seja ela qual for.

O utilitarismo tem de lidar com consequências pro-váveis, porque habitualmente é extremamente difícil, se não mesmo impossível, prever os resultados possíveis

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BEM E MAL

de uma acção específica: por exemplo, insultar pessoas provoca habitualmente infelicidade, mas a pessoa que estamos a insultar pode ser afinal um masochista que tem imenso prazer em ser insultado.

Críticas ao utilitarismo

Dificuldades de cálculo

Apesar de os princípios utilitaristas poderem pare-cer apelativos, há muitas dificuldades que se levantam quando tentamos pô-los em prática.

E extremamente difícil medir a felicidade e compa-rar a felicidade de pessoas diferentes. Quem decidirá se o enorme prazer do sádico ultrapassa ou não o sofri-mento da sua vítima? Ou como se compara o prazer que um entusiasta do futebol tem quando a sua equipa marca um golo brilhante com as deleitosas vibrações de um devoto da ópera que ouve uma ária favorita? E como se comparam estes tipos de prazer com sensa-ções de carácter mais físico, tais como as que se obtêm com o sexo e a alimentação?

Jeremy Bentham (1748-1832), um dos primeiros utilitaristas, pensava que, em princípio, tais compara-ções poderiam ser feitas. Para ele, a origem da felicida-de era irrelevante. A felicidade era apenas um estado de espírito bem-aventurado: prazer e ausência de dor. Apesar de ocorrer com diferentes intensidades, era sempre do mesmo tipo e, portanto, devia ter peso nos cálculos utilitaristas, independentemente da forma como era obtido. No que chamou o seu «cálculo da felicidade» estabeleceu directrizes para fazer compara-ções entre prazeres, tendo em conta características

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como a sua intensidade, duração, tendência para dar origem a novos prazeres e assim por diante.

Contudo, John Stuart Mill achou que a abordagem de Bentham era grosseira: em seu lugar sugeriu uma distinção entre os chamados prazeres elevados e praze-res baixos. Mill argumentou que qualquer pessoa que tenha conhecido os prazeres elevados (que eram, na sua perspectiva, sobretudo intelectuais), iria automati-camente preferi-los aos chamados prazeres baixos (que eram sobretudo físicos). No esquema de Mill, os praze-res elevados contavam muito mais no cálculo da felici-dade do que os baixos: por outras palavras, ele ava-liava os prazeres de acordo não só com a sua quali-dade, como também com a sua quantidade. Mill argu-mentou que seria certamente preferível ser um Sócrates triste, mas sábio, a um ignorante feliz, mas tolo, uma vez que os prazeres de Sócrates seriam de um género mais elevado do que os do tolo.

Mas isto soa a elitismo. E uma justificação intelec-tual para as suas próprias preferências particulares e os interesses e valores da sua classe social. O facto é que continua a ser extremamente difícil calcular quanti-dades relativas de felicidade. E, na verdade, este pro-blema não estaria completamente resolvido mesmo que aceitássemos a divisão de Mill entre os prazeres eleva-dos e os baixos.

Uma dificuldade de cálculo mais básica ocorre quanto à decisão do que irá contar como os efeitos de uma acção particular. Se alguém bate numa criança porque ela se portou mal, a questão de saber se esta foi uma acção moral ou não depende inteiramente das consequências da acção. Mas devemos nós con-tar unicamente os efeitos imediatos de bater na criança, ou ter em conta os efeitos a longo prazo? Se optar-

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mos por esta última alternativa, podemos acabar por tentar contrabalançar coisas como o desenvol-vimento emocional da criança (e até mesmo, talvez, os efeitos sobre os seus futuros filhos) com a felici-dade resultante para a criança de se evitarem situações potencialmente perigosas em resultado do castigo. Os efeitos de qualquer acção podem prolongar-se extraor-dinariamente no futuro e só raramente há uma fron-teira óbvia.

Casos problemáticos

Outra objecção ao utilitarismo defende que este pode justificar muitas acções que habitualmente são consideradas imorais. Por exemplo, se pudesse mos-trar-se que enforcar publicamente um inocente teria o efeito benéfico directo de reduzir os crimes violentos, por actuar como um factor de dissuasão, causando assim, no cômputo geral, mais prazer do que dor, um utilitarista seria obrigado a dizer que enforcar o inocente era a coisa moralmente correcta a fazer. Mas tal conclusão repugna ao nosso sentido de justiça. Claro que um sentimento de repugnância em relação a algu-mas das suas conclusões não demonstra que existe algo de errado com a teoria utilitarista. E de supor que um utilitarista inflexível aceitaria a conclusão facilmente e sem se queixar. Contudo, estas consequências desagra-dáveis devem fazer-nos ser cautelosos quanto à aceita-ção do utilitarismo como teoria moral completamente satisfatória.

Os utilitaristas que, como Bentham, acreditam que a felicidade é unicamente um estado de espírito bem--aventurado ficam sujeitos a outra objecção. A sua teo-ria sugere que o mundo seria moralmente melhor se se

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misturasse no abastecimento de água uma droga como a Ecstasy, que provocasse alterações no estado de espí-rito, desde que isso aumentasse o prazer global. No entanto, quase toda a gente acha que uma vida com menos momentos bem-aventurados, mas com a possi-bilidade de escolher como os atingir, seria preferível a esta situação e que a pessoa que misturasse a droga ao fornecimento de água teria feito algo imoral.

Considere outro caso difícil para o utilitarista. Ao passo que Kant afirma que devemos manter as nossas promessas sejam quais forem as consequências de o fazer, os utilitaristas calculariam a felicidade provável que resultaria, em cada caso, de manter ou faltar às promessas, agindo depois em conformidade com o re-sultado do cálculo. Os utilitaristas poderiam muito bem concluir que, nos casos em que soubessem que os seus credores se haviam esquecido de uma dívida e que não seria provável que alguma vez se lembrassem dela, seria moralmente correcto não pagar a dívida. A maior felicidade de quem fica a dever, em função do seu aumento de riqueza, pode muito bem ultrapassar qual-quer infelicidade que sentisse em relação a enganar os outros. E o credor não sentiria, presumivelmente, ne-nhuma ou quase nenhuma infelicidade, uma vez que se teria esquecido da dívida.

Mas, em tais casos, a integridade pessoal parece constituir um aspecto importante da interacção hu-mana. Efectivamente, muitas pessoas estariam dispos-tas a achar que dizer a verdade, pagar dívidas, ser honesto nas nossas relações com os outros, etc., cons-tituem exemplos centrais de comportamento moral. Para essas pessoas, o utilitarismo, com a sua rejeição do conceito de deveres absolutos, é uma teoria moral inadequada.

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Utilitarismo negativo

O utilitarismo tem como pressuposto a ideia de que a acção moralmente boa é, em qualquer circunstância, a que produz a maior felicidade global. Mas talvez isto coloque excessiva ênfase na felicidade. Evitar a dor e o sofrimento é um objectivo muito mais importante do que alcançar mais felicidade do que infelicidade. Certa-mente que um mundo no qual ninguém fosse particu-larmente feliz, mas no qual ninguém sofresse dor ex-trema, seria mais apelativo do que um mundo no qual algumas pessoas sofressem uma infelicidade extrema, compensada pelo facto de muitas outras pessoas bene-ficiarem de grande contentamento e felicidade.

Uma forma de enfrentar esta objecção é transformar o utilitarismo no que é habitualmente conhecido como utilitarismo negativo. O princípio básico do utilitarismo negativo é a ideia de que a melhor acção em quaisquer circunstâncias não é a que produz mais felicidade do que infelicidade para o maior número de pessoas pos-sível, mas antes a que produz a menor quantidade geral de infelicidade. Por exemplo, um utilitarista ne-gativo rico poderia perguntar-se se seria melhor deixar todo o seu dinheiro a um pobre gravemente doente, vítima de um extremo sofrimento, que seria considera-velmente aliviado por esta oferta, ou dividi-lo por mil pessoas moderadamente felizes, cada uma das quais veria a sua felicidade aumentar ligeiramente com esta oferta. Um utilitarista normal iria calcular qual das acções produziria mais felicidade do que infelicidade para o maior número de pessoas; um utilitarista nega-tivo procuraria apenas minimizar o sofrimento. Logo, ao passo que um utilitarista normal dividiria provavel-mente o dinheiro pelas mil pessoas moderadamente

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felizes, uma vez que isso iria maximizar a felicidade, o utilitarista negativo deixaria o dinheiro à pessoa grave-mente doente, minimizando assim o sofrimento.

Mas este utilitarismo negativo está, contudo, sujeito a muitas das dificuldades de cálculo que se levantam ao utilitarismo normal. E está também sujeito a críticas próprias.

Crítica ao utilitarismo negativo

Destruição de toda a vida

A melhor maneira de eliminar todo o sofrimento no mundo seria eliminar toda a vida sensível. Se não exis-tissem coisas vivas capazes de sentir dor, não existiria dor. Se fosse possível conseguir este resultado de forma indolor, talvez através de uma enorme explosão atómica, então, pelo princípio do utilitarismo negativo, esta seria uma acção moralmente correcta. Mesmo que o processo envolvesse alguma dor, esta seria provavel-mente ultrapassada pelos benefícios a longo prazo no que respeita à eliminação da dor. No entanto, esta con-clusão dificilmente é aceitável. No mínimo, o utilita-rismo negativo precisa de ser reformulado de forma a poder evitar tal conclusão.

Utilitarismo das regras

Alguns filósofos sugeriram outra versão modificada da teoria, conhecida como utilitarismo das regras, como uma forma de contornar a objecção que afirma que o utilitarismo normal (também conhecido como utili-

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tarismo dos actos) tem muitas consequências desagradá-veis. Esta teoria procura combinar os melhores aspec-tos do utilitarismo dos actos com os melhores aspectos das éticas deontológicas.

Os utilitaristas das regras, em vez de avaliarem sepa-radamente as consequências de cada acção, adoptam re-gras gerais acerca dos géneros de acções que geralmente produzem maior felicidade para o maior número de pes-soas. Por exemplo, uma vez que, em geral, castigar pes-soas inocentes produz mais infelicidade do que felici-dade, os utilitaristas das regras adoptariam a regra «nunca castigues os inocentes», apesar de poderem existir casos particulares nos quais o castigo de inocentes produziria mais felicidade do que infelicidade — tal como quando actua como um forte factor de dissuasão contra o crime violento. Analogamente, um utilitarista das regras defen-deria que devemos cumprir as promessas porque, em geral, isto produz mais felicidade do que infelicidade.

O utilitarismo das regras tem a grande vantagem prática de tornar desnecessário fazer complicados cál-culos de cada vez que estamos confrontados com uma decisão moral. Contudo, numa situação na qual sabe-mos que quebrar uma promessa terá como resultado mais felicidade do que se a honrássemos, e se as nossas simpatias morais básicas tiverem contornos utilitaris-tas, parece despropositado mantermo-nos fiéis a uma regra em vez de tratar esse caso específico unicamente segundo os seus méritos.

Teoria da virtude

A teoria da virtude baseia-se em grande parte na Ética a Nicómaco, de Aristóteles, sendo por isso por ve-

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zes conhecida como neo-aristotelismo («neo» quer dizer «novo»). Ao contrário dos kantianos e dos utilitaristas, que se concentram tipicamente na rectidão ou não de acções particulares, os teóricos da virtude concentram--se no carácter e estão interessados na vida da pessoa como um todo. A questão central para os teóricos da virtude é «Como devo viver?». A resposta por eles dada a esta questão é: cultive as virtudes. Só cultivando as virtudes poderemos prosperar como seres humanos.

Prosperar

De acordo com Aristóteles, toda a gente quer pros-perar. A palavra grega usada para «prosperar» era eudaimonia, por vezes traduzida por «felicidade». Mas esta tradução pode gerar confusões, uma vez que Aristóteles acreditava que podíamos ter muito prazer físico, por exemplo, sem alcançar a eudaimonia. A eudai-monia aplica-se a toda uma vida, e não apenas a esta-dos particulares em que nos podemos encontrar em certos momentos. Talvez «verdadeira felicidade» seja uma tradução melhor, mas dá a ideia errada de que a eudaimonia é um estado de espírito de bem-aventurança que se alcança, em vez de ser uma forma de viver a vida com sucesso. Aristóteles acreditava que certas for-mas de vida promoviam a prosperidade, tal como cer-tas formas de cuidar de uma cerejeira farão que cresça, floresça e dê frutos.

As virtudes

Aristóteles defendia que a maneira de prosperar como ser humano é cultivar as virtudes. Mas o que é uma virtude? E um padrão de comportamento e senti-

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BEM E MAL

mento: uma tendência para agir de certa maneira e desejar e sentir certas coisas em certas situações. Ao contrário de Kant, Aristóteles pensava que ter as emo-ções apropriadas era essencial para a arte de viver bem. Uma virtude não é um hábito irreflectido; ao invés, implica um juízo inteligente sobre a resposta apropriada à situação em que nos encontramos.

Uma pessoa que tenha a virtude de ser generosa sentir-se-ia generosa e agiria generosamente nas situa-ções apropriadas. Isto envolveria ajuizar a situação e a sua resposta como apropriadas. Uma pessoa virtuosa, colocada na situação do Bom Samaritano, sentiria com-paixão pelo homem abandonado no caminho, ao mesmo tempo que agiria caridosamente em relação a ele. Um samaritano que se limitasse a ajudar a vítima por ter previsto um benefício futuro para si mesmo não estaria a agir virtuosamente, uma vez que a generosidade implica dar sem pensar no benefício próprio.

Se o Samaritano tivesse chegado no momento em que os ladrões atacavam a sua desventurada vítima, e se tivesse a virtude da coragem, teria vencido o medo e enfrentado os ladrões. Ser corajoso é, em parte, ser capaz de vencer o medo.

Virtudes como a generosidade e a coragem são, pen-sam os teóricos da virtude, necessárias para que qual-quer ser humano viva bem. Isto pode dar a impressão de que uma pessoa virtuosa poderia escolher escrupu-losamente num catálogo de virtudes aquelas que que-reria desenvolver, ou de que alguém que tivesse uma única virtude muito desenvolvida poderia ser virtuosa. Contudo, isto seria um mal-entendido. Para Aristóteles, uma pessoa virtuosa é alguém que harmonizou todas as virtudes: elas têm de ser incorporadas na estrutura da vida da pessoa virtuosa.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Críticas à teoria da virtude

Que virtudes devemos adoptar?

Uma grande dificuldade da teoria da virtude é esta-belecer que padrões de comportamento, desejo e senti-mento devem contar como virtudes. A resposta do teó-rico da virtude é: aquelas virtudes de que os seres humanos carecem para prosperar. Mas isto não oferece, na verdade, muita ajuda. Os teóricos da virtude apre-sentam muitas vezes listas de virtudes tais como a benevolência, a honestidade, a coragem, a generosi-dade e a lealdade, etc., analisando-as com algum deta-lhe. Mas, uma vez que não existe completa coincidên-cia entre as suas várias listas, há espaço para debater o que deve ser incluído. E nem sempre é claro com que fundamentos se elege algo como virtude.

O perigo consiste na possibilidade de os teóricos da virtude se limitarem a redefinir os seus preconceitos e formas de vida preferidas como virtudes e as acti-vidades de que não gostam como vícios. Uma pessoa que gosta de boa comida e bebida pode declarar que o estímulo subtil das papilas gustativas faz parte essen-cial de uma boa vida humana, sendo portanto uma virtude gostar de boa comida e bebida. Um monógamo pode declarar a fidelidade a um parceiro sexual uma virtude; um teórico da virtude sexualmente promíscuo pode defender a virtude da independência sexual. Assim, a teoria da virtude pode ser usada como uma barreira intelectual atrás da qual os preconceitos são sub-repticiamente introduzidos. Além disso, se o teó-rico da virtude optar por aceitar apenas aquelas formas de comportamento, desejo e sentimento tipicamente consideradas virtuosas naquela sociedade em particu-

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bem v. Mal

lar, a teoria surge como essencialmente conservadora, com pouco alcance para mudar essa sociedade em ter-mos morais.

Natureza humana

Outra crítica à teoria da virtude é o facto de pressupor a existência de uma coisa a que chama a natureza humana, existindo por isso padrões gerais de comportamento e sentimento apropriados para todos os seres humanos. Contudo, esta ideia tem sido posta em causa por muitos filósofos que acreditam ser um erro grave presumir a existência de uma natureza humana. Regressarei a este tema mais à frente, na secção sobre o naturalismo.

Ética aplicada

Até agora, neste capítulo, esbocei três tópicos bási-cos de teoria ética. E óbvio que estes não são os únicos tipos de teoria ética, mas sà0 os mais importantes. Ve-jamos agora como os filósofos aplicam realmente as suas teorias a decisões morais reais, e não apenas ima-ginadas. Para ilustrar os géneros de considerações rele-vantes em ética aplicada, iremos concentrar-nos num tema ético, nomeadamente o tema da eutanásia ou morte misericordiosa.

Eutanásia

A eutanásia é habitualmente definida como morte misericordiosa. A questão de saber se a eutanásia é justificável surge tipicamente em relação às pessoas

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

muito velhas e cronicamente doentes, especialmente as que estão em grande sofrimento. Se, por exemplo, al-guém está a sofrer e não tem nenhumas perspectivas de viver uma vida que valha a pena, será moralmente aceitável desligar a máquina de apoio à vida ou até, talvez, administrar uma droga letal? Esta é uma ques-tão ética prática, uma questão que os médicos são muitas vezes obrigados a enfrentar.

Tal como acontece com a maior parte da ética apli-cada, nem todas as questões filosóficas que se levan-tam em relação à eutanásia são de carácter ético. Para começar, há várias distinções importantes que pode-mos fazer entre tipos de eutanásia. Em primeiro lugar, há a eutanásia voluntária — quando o paciente deseja morrer e expressa o seu desejo. Geralmente, trata-se de uma forma de suicídio assistido. Em segundo lugar, há a eutanásia involuntária — quando o paciente não deseja morrer, mas o seu desejo é ignorado. Em muitos casos, isto é equivalente a assassínio. Em terceiro lugar, há a eutanásia não voluntária — quando o paciente não está consciente ou em posição de exprimir o seu desejo. Nesta secção iremos concentrar a nossa atenção no tema da moralidade da eutanásia voluntária.

A teoria ética geral que uma pessoa adopta deter-mina obviamente a sua reacção a questões específicas. Assim, é provável que um cristão que aceite a teoria ética baseada no dever, esboçada no início deste capí-tulo, responda a questões acerca da eutanásia de forma diferente da de alguém que aceite a teoria consequen-cialista de John Stuart Mill — o utilitarismo. Um cristão teria provavelmente dúvidas quanto à justificação moral da eutanásia voluntária porque parece contradi-zer o mandamento «Não matarás». Contudo, as coisas podem não ser assim tão simples. Poderá existir um

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BEM E MAL

conflito entre este mandamento e o mandamento do Novo Testamento acerca de amar o próximo. Se uma pessoa está a sofrer muito e deseja morrer, pode ser um acto de amor ajudá-la a acabar com a sua vida. Um cristão teria de decidir qual destes dois mandamentos tem mais força e agir em conformidade.

Analogamente, alguém que adopta a teoria ética de Kant pode sentir-se no dever de nunca matar. Matar alguém parece contradizer a perspectiva de Kant se-gundo a qual devemos tratar as outras pessoas como fins em si e nunca como meios para atingir fins — devemos respeitar a sua humanidade. Mas esta mesma versão do imperativo categórico poderia, no caso da eutanásia voluntária, proporcionar uma justificação moral a favor de acabar com a vida de alguém, se isso for o que o paciente quiser e, no entanto, não o puder fazer sem ajuda.

Um utilitarista veria a questão de forma muito dife-rente. Para um utilitarista, a dificuldade não consistiria num conflito de deveres, mas na forma de calcular os efeitos dos vários cursos de acção possíveis à nossa disposição. Fosse qual fosse o curso de acção que cau-sasse a maior felicidade ao maior número, ou pelo menos mais felicidade do que infelicidade, seria a moralmente correcta. O utilitarista consideraria as con-sequências para o paciente. Se o paciente continuasse a viver, teria grande sofrimento e, provavelmente, mor-reria, em qualquer caso, dentro de pouco tempo. Se o paciente morresse em consequência de um acto de eutanásia, o sofrimento terminaria, tal como terminaria toda a possibilidade de felicidade. Contudo, estes não são os únicos efeitos a ter em consideração. Há vários efeitos secundários. Por exemplo, a morte do paciente por eutanásia poderia implicar violar a lei, de forma

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

que a pessoa que ajudasse o paciente a morrer poderia correr o risco de ser levado a tribunal. Isto levanta também a questão da moralidade de violar a lei em geral.

Outro efeito secundário de praticar a eutanásia é a possibilidade de tornar mais fácil aos médicos sem escrúpulos matar pacientes fingindo que estão a cum-prir os seus desejos. Os oponentes de todos os tipos de eutanásia fazem notar muitas vezes que as técnicas de extermínio de Hitler foram pela primeira vez testadas em vítimas de um programa de eutanásia involuntária. Talvez qualquer acto individual de eutanásia voluntá-ria torne mais fácil a alguém implantar uma política de eutanásia involuntária. Um utilitarista ponderaria este tipo de consequências possíveis, de forma a poder decidir se o acto de eutanásia em causa seria moral-mente justificado.

Como esta breve discussão de um problema ético prático mostra, raramente há respostas fáceis acerca do que devemos fazer. E, no entanto, somos frequente-mente forçados a proferir juízos morais. Os desenvol-vimentos modernos da tecnologia e da genética dão constantemente origem a novas questões éticas acerca da vida e da morte. Na ciência médica, o desenvolvi-mento da possibilidade da fertilização in vitro e da engenharia genética levanta questões éticas difíceis; o mesmo acontece com os grandes avanços tecnológicos, como os ocorridos no campo da informática, que per-mitem vigiar e aceder a informações pessoais numa escala nunca antes imaginada. A epidemia da SIDA trouxe um largo espectro de questões éticas acerca de quando é aceitável forçar alguém a submeter-se aos testes de despistagem da síndrome. A clarificação das abordagens possíveis a tais problemas não pode deixar

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BEM E MAL

de ser útil. Mas continua a ser um facto que as decisões éticas são as mais difíceis e as mais importantes das nossas decisões. A responsabilidade pelas nossas esco-lhas repousa, em última análise, em cada um de nós.

Ética e metaética

Os três tipos de teoria ética que examinámos até agora (a baseada nos direitos, a consequencialista e a da virtude) são exemplos de teorias de primeira ordem. Isto é, são teorias acerca de como devemos agir. Os filósofos morais interessam-se também por questões de segunda ordem: questões acerca não do que devemos fazer, mas do estatuto das teorias éticas. Esta teorização acerca das teorias éticas é habitualmente conhecida como metaética. Uma teoria metaética típica pergunta: «Que quer dizer 'bem' no contexto moral?» Conside-rarei de seguida três exemplos de metateorias: natura-lismo ético, relativismo e emotivismo.

Naturalismo

A questão metaética de saber se as chamadas teorias éticas naturalistas são aceitáveis tem sido uma das mais discutidas no século xx. Uma teoria ética naturalista é uma teoria baseada no pressuposto de que os juízos éti-cos emergem directamente de factos que podem ser des-cobertos pelas ciências — muitas vezes, factos acerca da natureza humana.

A ética utilitarista passa de uma descrição da natu-reza humana para uma perspectiva acerca de como devemos agir. Idealmente, o utilitarismo usaria méto-

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

dos científicos para medir a qualidade e a quantidade de felicidade de cada pessoa, de forma a poder mostrar o que é moralmente bom e o que é moralmente mau. Ao invés, a ética kantiana não está tão intimamente presa à psicologia humana: os nossos deveres categó-ricos seguem-se supostamente de considerações lógi-cas, e não psicológicas.

Críticas ao naturalismo

Distinção facto/valor

Muitos filósofos acreditam que todas as teorias éti-cas naturalistas se baseiam num erro: a incapacidade de reconhecer que factos e valores são coisas funda-mentalmente diferentes. Os que se opõem ao natura-lismo — os antinaturalistas — defendem que nenhuma descrição factual alguma vez conduz automaticamente a qualquer juízo de valor: são sempre necessários argu-mentos adicionais. Isto é por vezes conhecido como a lei de Hume, em homenagem a David Hume, um dos primeiros a fazer notar que os filósofos morais passam muitas vezes, sem argumentos adicionais, de discus-sões sobre «o que é» para discussões sobre «o que deve ser».

Os antinaturalistas defendem que é impossível ofe-recer os argumentos adicionais necessários para se po-der passar sem sobressaltos dos factos aos valores, ou, como se diz por vezes, do «ser» para o «dever ser». Factos e valores constituem domínios diferentes e não existe conexão lógica entre, por exemplo, a felicidade humana e o valor moral. Seguindo G. E. Moore (1873-1958), os antinaturalistas usam por vezes o termo falá-

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BEM E MAL

cia naturalista para descrever o alegado erro de argu-mentar dos factos para o valor (uma falácia é um tipo de mau argumento).

Um argumento que os antinaturalistas usam para sustentar as suas posições é conhecido como argumento da questão em aberto.

O argumento da questão em aberto

Este argumento, usado pela primeira vez por G. E. Moore, é na verdade apenas uma maneira de tornar mais claras as crenças que as pessoas efectivamente têm em relação à ética. E uma forma de mostrar que, pela maneira como pensamos acerca de termos como «bem» e «rectidão», quase todos nós já rejeitámos a abordagem naturalista.

O argumento é o seguinte: primeiro, tome-se qual-quer afirmação factual da qual supostamente se se-guem conclusões éticas. Por exemplo, pode ter sido um facto que, de todas as escolhas à disposição do Bom Samaritano, ajudar o homem roubado seria a que cau-saria mais felicidade ao maior número de pessoas. Numa análise utilitarista — uma forma de naturalismo ético — seguir-se-ia logicamente que ajudar o homem seria portanto uma acção moralmente boa. Contudo, um antinaturalista, usando o argumento da questão em aberto, faria notar que não há nada de logicamente inconsistente em dizer «É provável que esta acção dê origem à maior felicidade para o maior número, mas será ela a coisa moralmente correcta a fazer?». Se esta versão de naturalismo fosse verdadeira, não valeria a pena fazer tal pergunta: a resposta seria óbvia. Tal como as coisas são, argumentam os antinaturalistas, trata-se de uma questão que continua em aberto.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Um antinaturalista defenderia que poderia fazer-se o mesmo tipo de pergunta acerca de qualquer situação na qual a descrição de qualidades naturais dê suposta-mente origem, automaticamente, a uma conclusão ética. O argumento da questão em aberto é uma forma de os antinaturalistas sustentarem o seu lema: «O 'de-ver ser' não se segue do 'ser'.»

Não existe natureza humana

Outros filósofos, como Jean-Paul Sartre (1905-1980) na conferência O Existencialismo E Um Humanismo, atacaram de outra forma as éticas naturalistas — pelo menos o género de ética naturalista que afirma ser a moralidade determinada por factos acerca da natureza humana. Estes filósofos argumentaram que é um erro presumir a exis-tência de uma coisa como a natureza humana. Isto, afir-mam eles, é uma forma de auto-ilusão, uma negação da grande responsabilidade que cada um de nós tem. Cada um tem de escolher por si próprio os seus valores, não existindo respostas simples às questões éticas. Não pode-mos determinar o que devemos fazer a partir de uma descrição científica do mundo; no entanto, todos temos de tomar decisões éticas. Um aspecto da condição hu-mana é o facto de termos de fazer estes juízos de valor, mas sem quaisquer directrizes exteriores a nós. O natura-lismo em ética é uma negação auto-enganadora desta liberdade de escolhermos por nós mesmos.

Relativismo

E uma verdade incontroversa que pessoas de dife-rentes sociedades têm costumes diferentes e diferentes

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BEM E MAL

ideias acerca do bem e do mal morais. Não há consenso mundial sobre a questão de saber que acções são mo-ralmente boas e moralmente más, apesar de existir uma convergência considerável sobre estas matérias. Se ti-vermos em consideração o quanto as ideias morais mu-daram, quer de lugar para lugar, quer ao longo do tempo, pode ser tentador pensar que não existem fac-tos morais absolutos e que, pelo contrário, a moral é sempre relativa à sociedade na qual fomos educados. Segundo esta perspectiva, uma vez que a escravatura era moralmente aceitável para a maior parte dos Gre-gos antigos, apesar de o não ser para a maior parte dos Europeus de hoje em dia, a escravatura seria moral-mente boa para os Gregos antigos, apesar de ser moral-mente má para os Europeus contemporâneos. Esta perspectiva, conhecida como relativismo moral, faz que a moral seja apenas a descrição dos valores adoptados por uma sociedade em particular, num certo momento do tempo. Trata-se de uma perspectiva metaética acerca da natureza dos juízos morais. Os juízos mo-rais só podem ser avaliados como verdadeiros ou falsos relativamente a uma sociedade particular. Não há juízos morais absolutos: são todos relativos. O relativismo moral contrasta fortemente com a pers-pectiva de que algumas acções são absolutamente boas ou más — uma perspectiva defendida, por exemplo, por muitas pessoas que acreditam que a moralidade é constituída pelos mandamentos prescritos por Deus à humanidade.

Os relativistas juntam muitas vezes esta perspectiva da moralidade à crença de que, porque a moralidade é relativa, nunca devemos interferir com os hábitos de outras sociedades, uma vez que não existe uma perspec-tiva neutra a partir da qual possamos ajuizar. Esta pers-

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pectiva tem sido especialmente popular junto dos antro-pólogos, talvez em parte porque tiveram muitas vezes contacto directo com a destruição causada noutras socie-dades pela importação selvagem de valores ocidentais. Quando se acrescenta ao relativismo moral este compo-nente, indicando como nos devemos comportar em rela-ção a outras sociedades, obtém-se o que é habitualmente conhecido como relativismo normativo.

Críticas ao relativismo moral

Serão os relativistas inconsistentes?

Os relativistas morais são por vezes acusados de inconsistência, uma vez que defendem que todos os juízos morais são relativos, ao mesmo tempo que que-rem que acreditemos que a própria teoria do rela-tivismo moral é absolutamente verdadeira. Isto só é um problema sério para um relativista moral que seja também um relativista acerca da verdade, isto é, al-guém que acha que a verdade absoluta é coisa que não existe: só existem verdades relativas a sociedades par-ticulares. Este tipo de relativismo não pode defender nenhuma teoria como absolutamente verdadeira.

No entanto, os relativistas normativos estão certa-mente sujeitos à acusação de inconsistência. Eles acre-ditam simultaneamente que todos os juízos morais são relativos à nossa sociedade e que as sociedades não devem interferir umas com as outras. Mas esta segunda crença é certamente um exemplo de um juízo moral absoluto, um juízo completamente incompatível com a premissa básica do relativismo normativo. Esta é uma crítica devastadora para o relativismo normativo.

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BEM E MAL

O que conta como sociedade?

Os relativistas morais são geralmente vagos acerca do que pode ou não contar como sociedade. Por exem-plo, no Reino Unido contemporâneo há sem dúvida membros de subculturas que acreditam ser moralmente aceitável usar, com fins recreativos, drogas proibidas. A que ponto estará o relativista preparado para dizer que os membros destas subculturas formam uma socie-dade separada, podendo portanto dizer-se que têm a sua própria moral, imune à crítica de outras culturas? Não há uma resposta óbvia a esta questão.

Não há crítica moral dos valores de uma sociedade

Ainda que se possa responder à crítica anterior, le-vanta-se outra dificuldade com o relativismo moral. Não parece dar a possibilidade de crítica moral aos va-lores centrais de uma sociedade. Se os juízos morais se definem em termos dos valores centrais dessa mesma sociedade, nenhum crítico destes valores centrais pode usar argumentos morais contra ela. Numa sociedade na qual a perspectiva dominante seja a de que as mu-lheres não devem poder votar, qualquer pessoa que sugerisse o direito de voto para as mulheres estaria a sugerir algo imoral relativamente aos valores dessa sociedade.

Emotivismo

Outra teoria metaética importante é conhecida como emotivismo ou não cognitivismo. Os emotivistas, como A. J. Ayer (1910-1988) no capítulo 6 de Linguagem, Ver-

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dade e Lógica, defendem que as afirmações éticas não significam nada. Não exprimem quaisquer factos; o que exprimem é a emoção do locutor. Os juízos morais não têm nenhum significado literal: são apenas expres-sões de emoção, como resmungos, bocejos ou garga-lhadas.

Logo, quando alguém diz «A tortura está errada» ou «Devemos dizer a verdade», está a fazer pouco mais do que mostrar o que sente em relação à tortura e à hones-tidade. O que dizem não é verdadeiro nem falso: é mais ou menos o mesmo que gritar «Abaixo!» perante a tortura e «Viva!» perante a honestidade. Na verdade, tem-se chamado por vezes ao emotivismo a teoria do abaixo/viva. Tal como quando uma pessoa grita «Abaixo!» ou «Viva!» não está geralmente apenas a mostrar como se sente, mas também a tentar encorajar as outras pes-soas a partilhar o seu sentimento, também, com as afirmações morais, o locutor está frequentemente a tentar persuadir alguém a pensar da mesma maneira acerca do tema em causa.

Críticas ao emotivismo

A discussão moral é impossível

Uma das críticas ao emotivismo é que, se fosse verdadeiro, toda a discussão moral seria impossível. O mais parecido com uma discussão moral a que pode-ríamos chegar seria uma situação em que duas pessoas expressassem as suas emoções uma à outra: o equiva-lente à situação em que uma grita «Abaixo!» e a outra «Viva!» Mas, alega esta crítica, existem debates sérios de temas morais; logo, o emotivismo é falso.

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BEM E MAL

Contudo, um emotivista não veria esta crítica como uma ameaça à teoria. Usam-se muitos tipos diferentes de argumentos nos chamados debates morais. Por exemplo, ao discutir a questão ética prática de saber se o aborto voluntário é ou não moralmente aceitá-vel, o que está em questão pode ser em parte uma questão factual. O que está a ser discutido pode ser a questão de saber com quantas semanas um feto seria capaz de sobreviver fora do útero. Esta seria uma questão científica e não ética. Ou então, algumas pes-soas, aparentemente empenhadas num debate ético, podem estar preocupadas com a definição de termos éticos como «bem moral», «mal moral», «responsabili-dade», etc.: o emotivista admitiria que tal debate pode-ria ter significado. Só os verdadeiros juízos morais, como «E errado matar pessoas», são meramente expressões da emoção.

Assim, um emotivista concordaria que existe de facto algum debate com significado acerca de questões morais: a discussão só se torna uma expressão sem significado da emoção quando os intervenientes profe-rem verdadeiros juízos morais.

Consequências perigosas

Uma segunda crítica ao emotivismo é que, mesmo que seja verdadeiro, terá provavelmente consequências perigosas. Se toda a gente acabasse por acreditar que uma frase como «O assassínio é mau» era equivalente a afirmar «Assassínio — puh!», então, defende esta crí-tica, a sociedade entraria em colapso.

Uma perspectiva, como a kantiana, de que os juízos morais se aplicam a toda a gente — de que são impes-soais — oferece boas razões para que as pessoas obede-

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

çam a um código moral aceite de maneira geral. Mas, se tudo o que estamos a fazer quando proferimos um juízo moral é exprimir as nossas emoções, não parece ser muito importante quais os juízos morais que es-colhemos: poderíamos igualmente dizer «Torturar crianças é moralmente bom», se isso correspondesse ao nosso sentimento; e ninguém pode empreender uma discussão moral significativa connosco acerca deste juízo: o melhor que alguém pode fazer é exprimir os seus próprios sentimentos morais no que respeita à questão.

C o n t u d o , isto não é v e r d a d e i r a m e n t e um ar-gumento contra o emotivismo, uma vez que não põe a teoria em causa directamente: indica apenas os per igos para a soc iedade que a ace i tação gene-ralizada do emotivismo acarretaria, o que é outra questão.

Conclusão

Como pode ver-se desta breve discussão, a filosofia moral é uma vasta e complicada área da filosofia. Os filósofos americanos e britânicos do pós-guerra concen-traram-se sobretudo em questões metaéticas. Con-tudo, têm recentemente voltado progressivamente as suas atenções para problemas éticos práticos, como a moralidade da eutanásia, do aborto, da investigação com embriões, das experiências com animais e de mui-tos outros temas. Apesar de a filosofia não oferecer respostas fáceis a estas ou quaisquer outras questões morais, fornece um vocabulário e um enquadramento no qual essas questões podem ser discutidas racional-mente.

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BEM E MAI.

Leitura complementar

The Moral Philosophers, de Richard Norman (Oxford, Clarendon Press, 1983), é uma excelente introdução à história da ética: inclui sugestões detalhadas de leitura.

A melhor introdução ao utilitarismo é Utilitarianism and Its Critics, organizado por Jonathan Glover (Nova Iorque, Macmillan, 1990). Inclui excertos dos textos mais importantes de Bentham e Mill, assim como tex-tos mais recentes sobre o utilitarismo e as suas varian-tes. Parte do material é bastante avançado, mas as in-troduções de Glover a cada secção são muito úteis.

Sobre o tema da ética aplicada, Causing Death and Saving Lives, de Jonathan Glover (Londres, Penguin, 1977) e Practical Ethics, de Peter Singer (Cambridge, Cambridge University Press, 2.a ed., 1993), são ambos interessantes e acessíveis. Applied Ethics (Oxford, Oxford University Press, 1986), organizado por Peter Singer, é uma excelente selecção de ensaios.

Ethics: Inventing Right and Wrong, de J. L. Mackie (Londres , Penguin, 1977), e Contemporary Moral Philosophy, de G. J. Warnock (Londres, Macmil lan, 1967), são livros introdutórios sobre filosofia moral cuja leitura é compensadora, apesar de nenhum dos dois ser fácil.

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3 Política

O que é a igualdade? O que é a liberdade? Serão estes objectivos que valham a pena? Como podem atingir-se? Que justificação pode dar-se para as res-trições impostas pelo estado aos que violam a lei? Existem algumas circunstâncias nas quais devamos violar a lei? Estas são questões importantes para todas as pessoas. Os filósofos políticos têm tentado clarificá-las e responder-lhes. A filosofia política é um tema vasto, cruzando-se com a ética, a econo-mia, a ciência política e a história das ideias. Os filósofos políticos escrevem geralmente em resposta às situações políticas nas quais se encontram. Nesta área, mais do que na maior parte das outras, o co-nhecimento do contexto histórico é importante para compreender os argumentos de um filósofo. Neste pequeno livro não há espaço, obviamente, para dar uma imagem histórica. Para os que se interessarem pela história das ideias, a lista de leituras comple-mentares, no final do capítulo, deverá ser útil.

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POLÍTICA

Neste capítulo concentrar-me-ei nos conceitos polí-ticos centrais de igualdade, democracia, liberdade, cas-tigo e desobediência civil; e examinarei as questões filosóficas a que dão origem.

Igualdade

A igualdade é muitas vezes apresentada como um objectivo político, um ideal que vale a pena tentar al-cançar. Os que argumentam a favor de uma qualquer forma de igualdade são conhecidos como igualitaristas. A motivação para alcançar esta igualdade é habitual-mente moral: pode basear-se na crença cristã de que somos todos iguais aos olhos de Deus, numa crença kantiana na racionalidade da igualdade de respeito de todas as pessoas ou, talvez, numa crença utilitarista de que tratar todas as pessoas como iguais é a melhor forma de maximizar a felicidade. Os igualitaristas defendem que os governantes devem procurar passar do reconhecimento da igualdade moral para a criação efectiva de algum tipo de igualdade nas vidas daqueles que governam.

Mas como devemos entender a «igualdade»? E claro que os seres humanos nunca poderiam ser iguais em todos os aspectos. As pessoas diferem em inteligência, beleza, valor atlético, altura, cor do cabelo, local de nascimento, sentido da moda e em muitos outros as-pectos. Seria ridículo defender que as pessoas devem ser absolutamente iguais em todos os aspectos. A com-pleta uniformidade é pouco apelativa. Os igualitaristas não propõem um mundo povoado por clones. No en-tanto, apesar dos absurdos óbvios de interpretar a igualdade como completa uniformidade, alguns adver-

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

sários do igualitarismo insistem em descrevê-lo desta forma. Este é um exemplo da falácia do homem de palha: cria-se um alvo fácil apenas para o deitar abaixo. Eles pensam que refutam o igualitarismo ao apontar aspectos importantes que diferenciam as pessoas ou fazendo notar que, mesmo que uma quase uniformi-dade fosse alcançada, as pessoas recuariam muito rapi-damente para qualquer coisa semelhante à sua situa-ção anterior. Contudo, tal ataque só tem êxito contra uma caricatura da teoria, deixando incólume a maior parte das versões de igualitarismo.

Assim, a igualdade é sempre relativa a certos aspec-tos, e não a todos os aspectos. Assim, quando alguém afirma ser um igualitarista, é importante descobrir em que sentido o é. Por outras palavras, o termo «igual-dade», no contexto político, não quer dizer pratica-mente nada a não ser que exista uma explicação sobre o que devia ser partilhado de forma mais igualitária e por quem. Algumas das coisas que os igualitaristas muitas vezes defendem que devem ser igualitaria-mente, ou mais igualitariamente, distribuídas são o di-nheiro, o acesso ao emprego e o poder político. Apesar de os gostos das pessoas diferirem consideravelmente, todas estas coisas podem contribuir significativamente para uma vida aprazível e que valha a pena. Distribuir estes bens de forma mais igualitária é uma maneira de conceder igualdade de respeito a todos os seres humanos.

Distribuição igualitária do dinheiro

Um igualitarista radical poderia defender que o di-nheiro deveria ser igualitariamente distribuído por to-

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POLÍTICA

dos os seres humanos adultos, recebendo toda a gente exactamente os mesmos proventos. Na maior parte das sociedades, o dinheiro é necessário para as pessoas viverem; sem ele não podem obter comida, abrigo ou roupas. A redistribuição poderia justificar-se, por exem-plo, numa base utilitarista, como a forma que mais provavelmente maximizaria a felicidade e minimizaria o sofrimento.

Críticas à distribuição igualitária do dinheiro

Impraticável e de curta duração

É razoavelmente óbvio que a distribuição igualitária do dinheiro é um objectivo inalcançável. As dificulda-des práticas da distribuição igualitária do dinheiro numa cidade seriam imensas; distribuir o dinheiro igualitariamente por todos os seres humanos adultos seria um pesadelo logístico. Logo, em termos realistas, o máximo a que esta forma de igualitarismo pode alme-jar será uma distribuição mais igualitária do dinheiro, talvez através do estabelecimento de um salário fixo distribuído a todos os adultos.

Mas, mesmo que conseguíssemos aproximar-nos substancialmente de uma distribuição igualitária da riqueza, seria sempre de curta duração. Pessoas dife-rentes iriam usar o seu dinheiro de formas diversas; os inteligentes, os traiçoeiros e os fortes ficariam rapida-mente com a riqueza dos fracos, dos tolos e dos igno-rantes. Algumas pessoas esbanjariam o seu dinheiro; outros poupá-lo-iam. Algumas pessoas poderiam per-der o seu dinheiro no jogo assim que o recebessem;

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E L E M E N T O S B Á S I C O S DE FILOSOFIA

outras poderiam roubar para aumentar o seu quinhão. A única forma de manter qualquer coisa parecida com uma distribuição igualitária da riqueza seria através da intervenção enérgica vinda de cima. Isto implicaria, sem dúvida, a intromissão desagradável na vida das pessoas e limitaria a sua liberdade de fazerem o que querem.

Pessoas diferentes merecem quantitativos diferentes

Outra objecção a qualquer tentativa de alcançar uma distribuição igualitária do dinheiro defende que dife-rentes pessoas merecem diferentes recompensas finan-ceiras pelo trabalho desempenhado e pela sua contri-buição para com a sociedade. Assim, por exemplo, de-fende-se por vezes que os grandes patrões da indústria merecem os enormes salários que pagam a si próprios devido à sua contribuição, relativamente maior, para a nação: eles tornam possível o trabalho a outras pessoas e aumentam o bem-estar económico geral de todo o país no qual operam.

Mesmo que não mereçam salários mais elevados, talvez os salários mais elevados sejam necessários como incentivo para que as suas funções sejam desem-penhadas eficientemente, sendo os seus custos ultra-passados pelos benefícios gerais colhidos pela socie-dade: sem eles poderia existir muito menos para toda a gente. Sem o incentivo de altos salários, ninguém que fosse competente para desempenhar esse cargo o acei-taria.

Neste caso encontramos uma diferença fundamental entre os igualitaristas e os que acreditam que as gran-des desigualdades de riqueza entre as pessoas são acei-táveis. Uma crença básica da maior parte dos iguali-

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POLÍTICA

taristas é que só são aceitáveis diferenças moderadas de riqueza entre as pessoas e que, idealmente, essas diferenças deveriam corresponder a diferentes carên-cias. Isto sugere outra crítica ao princípio da distribui-ção igualitária do dinheiro.

Pessoas diferentes têm diferentes carências

Algumas pessoas precisam de mais dinheiro para viver do que outras. Alguém que só consiga sobre-viver se lhe for ministrado diariamente um trata-mento médico dispendioso teria poucas probabilida-des de viver muito tempo numa sociedade em que cada pessoa tivesse apenas uma parte igual da ri-queza total dessa sociedade, a não ser, claro, que a sociedade fosse particularmente rica. Um método de distribuição baseado na carência individual estaria mais próximo do objectivo de respeitar a humanidade comum do que um método de distribuição igualitá-ria do dinheiro.

Ninguém tem o direito de redistribuir

Alguns filósofos argumentaram que, independen-temente de quão apelativo possa ser o objectivo da redistribuição do dinheiro, este violaria o direito de as pessoas preservarem a sua propriedade e que essa violação é sempre moralmente errada. Estes filóso-fos defendem que os direitos ultrapassam sempre quaisquer outras considerações, como as utilita-ristas. Robert Nozick (1938-), no seu livro Anarchy, State and Utopia, toma esta posição, sublinhando o direito básico de preservar a propriedade legalmente adquirida.

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Estes filósofos ficam com o problema de dizer preci-samente o que são estes direitos e qual a sua origem. Por «direitos», eles não querem dizer direitos legais, apesar de tais direitos poderem coincidir com os direi-tos legais numa sociedade justa: os direitos legais são determinados pelo governo ou pela autoridade compe-tente. Os direitos em questão são os direitos naturais, que deveriam, idealmente, orientar a formação de leis. Alguns filósofos resistiram à ideia de que tais direitos naturais poderiam existir: é famosa a atitude de Bentham, afastando a noção como um «disparate emproado» («nonsense on stilts»). No mínimo, um par-tidário da ideia de que o estado não tem o direito de redistribuir a riqueza terá de poder explicar a origem dos supostos direitos de propriedade naturais, em vez de se limitar a afirmar a sua existência. É de assinalar que os partidários dos direitos naturais não têm conse-guido explicar a sua origem.

Igualdade de oportunidades no emprego

Muitos igualitaristas acreditam que todas as pessoas deviam ter as mesmas oportunidades, apesar de não poder existir uma distribuição igualitária da riqueza. Uma área importante na qual há grandes desigualda-des de tratamento é a do emprego. A igualdade de oportunidades no emprego não significa que todas as pessoas devem poder ter o emprego que querem, inde-pendentemente das suas capacidades: a ideia de que qualquer pessoa que queira deve poder tornar-se den-tista ou cirurgião, por pior que seja a sua coordenação visual-motora, é claramente absurda. O que a igual-dade de oportunidades quer dizer é igualdade de opor-

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tunidades para todos os que possuam as capacidades e competências relevantes para desempenhar a tarefa em questão. Isto pode ainda ser encarado como uma forma de desigualdade de tratamento, uma vez que algumas pessoas tiveram a sorte de nascer com mais potencial genético do que outras ou receberam melhor formação e por isso têm vantagens, logo à partida, numa competição aparentemente igualitária no mer-cado de emprego. Contudo, a igualdade de oportuni-dades no emprego é habitualmente defendida como um dos aspectos de um movimento que visa uma maior igualdade de vários géneros, tais como a igual-dade de acesso à educação.

A exigência de igualdade de oportunidades no em-prego é em grande parte motivada pela vasta discrimina-ção racial e sexual existente em algumas profissões. Os igualitaristas defendem que devem ser dadas as mesmas oportunidades a todas as pessoas com qualificações rele-vantes que procurem emprego. Ninguém deve ser discri-minado com base no sexo ou na raça, excepto nos casos em que precisamente a raça ou o sexo possam ser consi-deradas qualificações relevantes para o emprego em questão: por exemplo, seria impossível a uma mulher doar esperma; logo, não representaria uma violação do princípio da igualdade de oportunidades desqualificar qualquer mulher que apresentasse a sua candidatura.

Alguns igualitaristas vão mesmo mais longe do que a simples exigência da existência de igualdade de tra-tamento nos concursos para empregos: defendem que é importante eliminarmos desequilíbrios existentes em certas profissões, como, por exemplo, a predominância de juízes em detrimento de juízas. O método por eles proposto para compensar os desequilíbrios existentes é conhecido por discriminação positiva.

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Discriminação positiva

A discriminação positiva significa recrutar activa-mente pessoas de grupos previamente em situação de desvantagem. Por outras palavras, a discriminação positiva trata deliberadamente os candidatos de forma desigual, favorecendo pessoas de grupos que tenham sido vítimas habituais de discriminação. O objectivo de tratar as pessoas desta forma desigual é acelerar o pro-cesso de tornar a sociedade mais igualitária, acabando não apenas com desequilíbrios existentes em certas profissões, mas proporcionando também modelos que possam ser seguidos e respeitados pelos jovens dos grupos tradicionalmente menos privilegiados.

Assim, por exemplo, existem no Reino Unido mais professores universitários de Filosofia do sexo mascu-lino do que do feminino, apesar de muitas mulheres estudarem Filosofia ao nível da licenciatura. Um par-tidário da discriminação positiva argumentaria que, em vez de esperar que esta situação mude gradual-mente, devemos actuar categoricamente e discriminar favoravelmente as candidatas a professoras nas univer-sidades. Isto significa que, se uma mulher e um ho-mem se candidatassem ao mesmo lugar e tivessem mais ou menos a mesma habilitação, deveríamos esco-lher a mulher. Mas a maior parte dos defensores da discriminação positiva iria mais longe do que isto, defendendo que, mesmo que a mulher fosse um candi-dato pior do que o homem, desde que fosse compe-tente para executar as funções associadas ao lugar, deveríamos empregá-la a ela, preterindo o homem. A discriminação positiva é apenas uma medida tem-porár ia , até que a percentagem de m e m b r o s do grupo tradicionalmente excluído reflicta mais ou me-

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POLÍTICA

nos a percentagem de membros deste grupo na popu-lação em geral. Em alguns países é ilegal; noutros é obrigatória.

Críticas à discriminação positiva

Anti-igualitária

O objectivo da discriminação positiva pode ser igua-litário, mas algumas pessoas sentem que a forma de a atingir é injusta. Para um igualitarista dedicado, um princípio de igualdade de oportunidades no emprego significa que se deve evitar qualquer forma de discri-minação baseada em aspectos irrelevantes. O trata-mento diferenciado de candidatos só pode basear-se nos atributos relevantes que estes possuam. No entanto, a justificação da discriminação positiva baseia-se no pressuposto de que, na maior parte dos empregos, coisas como o sexo, as preferências sexuais ou a origem racial dos candidatos não são relevantes. Logo, por mais apelativo que o resultado final da discriminação positiva possa ser, deveria ser inaceitável para alguém que esteja comprometido com a igualdade de oportu-nidades como um princípio fundamental.

Um defensor da discriminação positiva poderá res-ponder que o estado de coisas actual é muito mais injusto em relação a membros de grupos em situação de desvan-tagem do que uma situação na qual a discriminação positiva seja geralmente praticada. Alternativamente, nos casos em que esta política extrema seja apropriada, as origens raciais ou o sexo dos candidatos podem de facto tornar-se qualificações para o desempenho das suas fun-ções; isto porque parte da função de qualquer pessoa

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seleccionada através desta forma seria agir como um modelo a seguir, para mostrar que aquelas funções po-dem ser desempenhadas por membros do seu grupo. Contudo, é discutível se esta última situação é realmente um caso de discriminação positiva: se estes atributos são relevantes, tomá-los em consideração aquando da selecção de pessoal não é realmente uma forma de discri-minação, mas antes um ajustamento do que pensamos serem as qualidades mais importantes necessárias para desempenhar determinada função.

Pode conduzir ao ressentimento

Apesar de o objectivo da discriminação positiva ser criar uma sociedade na qual o acesso a certas profis-sões esteja distribuído de forma mais justa, na prática pode causar mais discriminação contra grupos em situa-ção de desvantagem. Os que não conseguem ser con-tratados para um emprego determinado por não per-tencerem a grupos em situação de desvantagem po-dem ficar ressentidos com os que obtêm empregos em grande parte por causa da sua origem sexual ou racial. Este é um problema sobretudo quando os empregado-res admitem candidatos visivelmente incapazes de de-sempenhar bem as suas funções. Isto não só confirma os piores preconceitos dos seus empregadores e cole-gas, como acaba também por fazer deles maus modelos a seguir pelos outros membros do seu grupo. A longo prazo, isto pode destruir todo o movimento a favor da igualdade de acesso ao trabalho que a discriminação positiva procura atingir. Contudo, esta crítica pode ser anulada se se garantir ser relativamente alto o nível mínimo de capacidades de um candidato seleccionado em função da discriminação positiva.

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POLÍTICA

Igualdade política: democracia

Outra área na qual se procura atingir a igualdade é a da participação política. A democracia é muito famosa como método de distribuir por todos os ci-dadãos parte do processo de tomada de decisão política. Contudo, a palavra «democracia» é usada de várias formas. Há duas perspectivas poten-cialmente diferentes de democracia que sobressaem. A primeira salienta a necessidade de os membros da população terem a oportunidade de participar no governo do estado, geralmente através da votação. A segunda salienta a necessidade de um estado de-mocrático reflectir os verdadeiros interesses do povo, apesar de o próprio povo os poder ignorar. Nestas páginas concentrar-me-ei no primeiro tipo de demo-cracia.

Na Grécia antiga, uma democracia era uma ci-dade-estado governada pelo povo, e não por um pequeno grupo (uma oligarquia) ou por uma única pessoa (uma monarquia). A Atenas antiga é ha-bitualmente considerada um modelo de democracia, mas seria um erro pensar que era governada pelo povo como um todo, uma vez que a participação não era permitida às mulheres, aos escravos e a muitos outros não cidadãos que residiam na cidade--estado. Nenhum estado democrático permite o voto a todos os que vivem sob o seu controlo, o que in-cluiria muitas pessoas incapazes de compreenderem o que estariam a fazer, como as crianças e os defi-cientes mentais graves. Contudo, um estado que ne-gasse a participação política a uma grande parte do seu povo não teria hoje direito a intitular-se demo-crático.

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Democracia directa

Os primeiros estados democráticos eram democracias directas; isto é, os que podiam votar discutiam e votavam cada assunto, em vez de elegerem representantes. As democracias directas só são exequíveis com um pequeno número de participantes ou quando as decisões a tomar são relativamente poucas. São imensas as dificuldades práticas de pôr um grande número de pessoas a votar sobre variadíssimos assuntos, apesar de ser possível que a comunicação electrónica acabe por permiti-lo. Mas, ainda que isto se conseguisse, para que nessa democracia se chegasse a decisões razoáveis, os eleitores teriam de perceber bem os assuntos em votação, uma condição que exigiria tempo e um programa de educação política. Pres-supor que todos os cidadãos se mantêm a par dos assun-tos reievantes é talvez esperar demasiado. As democra-cias actuais são representativas.

Democracia representativa

Numa democracia representativa realizam-se elei-ções nas quais os eleitores seleccionam os seus repre-sentantes preferidos. Estes representantes participam então no processo quotidiano de decisão, que pode estar, ele próprio, organizado segundo um tipo qual-quer de princípios democráticos. Há várias formas de conduzir essas eleições gerais, exigindo algumas uma decisão maioritária. Outras formas, como é o caso da britânica, seguem um processo que permite que os re-presentantes sejam eleitos ainda que a maioria do elei-torado não vote neles, desde que mais ninguém receba mais votos do que eles.

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POLÍTICA

As democracias representativas constituem um go-verno do povo em alguns aspectos, mas não noutros. Constituem um governo do povo no sentido em que os que foram eleitos foram escolhidos pelo povo. Con-tudo, uma vez eleitos, os representantes do povo não estão geralmente obrigados a seguir os desejos do povo em tópicos específicos. Ter eleições frequentes é uma garantia contra o abuso de poder: os representantes que não respeitarem os desejos do eleitorado têm pou-cas probabilidades de ser reeleitos.

Críticas à democracia

Uma ilusão

Alguns teóricos, sobretudo os que foram influencia-dos por Karl Marx (1818-1883), têm atacado as formas de democracia esboçadas acima por darem uma sensa-ção meramente ilusória de participação na decisão polí-tica. Defendem estes teóricos que os processos eleito-rais não garantem o governo do povo. Alguns eleitores podem não compreender quem defende melhor os seus interesses ou ser intrujados, através de discursos há-beis. Além disso, a variedade de candidatos oferecida na maior parte das eleições não dá aos eleitores uma escolha genuína. É difícil ver por que razão este tipo de democracia é tão elogiada, quando, tipicamente, acaba por significar escolher entre dois ou três candidatos com propostas políticas virtualmente impossíveis de distinguir. Isto, afirmam os marxistas, é mera «demo-cracia burguesa», limitando-se a reflectir relações de poder já existentes, sendo estas, por sua vez, o resul-tado de relações económicas. Enquanto estas relações

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de poder não forem alteradas, dar à população a hi-pótese de votar em eleições é uma perda de tempo.

Os eleitores não são especialistas Outros críticos da democracia, dos quais se destaca

Platão, fazem notar que as decisões políticas sólidas exigem um elevado grau de conhecimentos especiali-zados, conhecimentos estes que os eleitores não têm. Assim, a democracia directa resultaria muito provavel-mente num sistema político muito pobre, uma vez que o estado estaria nas mãos de pessoas com fracos conhe-cimentos e competências.

Um argumento semelhante pode ser usado para ata-car a democracia representativa. Muitos eleitores não estão em posição de avaliar a aptidão de certos candi-datos. Uma vez que não estão em posição de avaliar as opções políticas, escolhem os seus representantes com base em atributos irrelevantes, tais como o aspecto fí-sico ou o sorriso. Ou, então, o seu voto é determinado por preconceitos irreflectidos acerca de partidos políti-cos. Em resultado disso, muitos excelentes represen-tantes potenciais não são eleitos, escolhendo-se muitos que são inadequados com base em qualidades ina-propriadas que por acaso possuam.

Contudo, estes dados podem ser usados contra os detractores da democracia como um argumento a favor da educação dos cidadãos para a participação demo-crática, em vez de ser um argumento a favor do aban-dono da democracia. Mas, mesmo que isto não seja possível, pode ainda assim ser verdade que a democra-cia representativa seja, de todas as alternativas à nossa disposição, aquela que tem mais probabilidades de pro-mover os interesses do povo.

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POLÍTICA

O paradoxo da democracia Eu acredito que a pena capital é bárbara e que ja-

mais deveria existir num estado civilizado. Se num referendo sobre este tema eu votar contra a pena capi-tal e, no entanto, a maioria decidir que esta deve ser adoptada, fico perante um paradoxo. Enquanto parti-dário dos princípios democráticos, acredito que a deci-são da maioria deve ser seguida. Enquanto indivíduo com crenças fortes contra a pena capital, acredito que a pena capital nunca deve ser permitida. Assim, parece que, neste caso, acredito simultaneamente que a pena capital deve existir (em resultado da decisão da maio-ria) e que não deve existir (por causa das minhas cren-ças pessoais). Mas estas duas crenças são incompatí-veis. E provável que qualquer pessoa partidária dos princípios democráticos fique perante um paradoxo semelhante quando se encontra em minoria.

Isto não enfraquece completamente a noção de de-mocracia, mas chama a atenção, na verdade, para a possibilidade de conflitos entre a consciência e a deci-são da maioria, algo que discutirei mais à frente, na secção da desobediência civil. Qualquer pessoa parti-dária dos princípios democráticos terá de decidir o peso relativo dado às crenças individuais e às decisões colectivas. Terá também de explicar o que significa ser «partidário de princípios democráticos».

Liberdade

Tal como a «democracia», a «liberdade» é uma palavra que tem sido usada de formas muito diferentes. Há dois sentidos principais da palavra «liberdade» no contexto político: o negativo e o positivo. Estes dois sentidos foram

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identificados e analisados por Isaiah Berlin (1909-1997) num artigo famoso, «Two Concepts of Liberty».

Liberdade negativa

Uma definição de liberdade é «ausência de coerção». A coerção existe quando alguém nos força a agir de certa maneira, ou quando nos impede de agir de certa ma-neira. Se ninguém exerce coerção sobre nós, então somos livres — neste sentido negativo de liberdade.

Se alguém nos prendeu e nos mantém presos, não somos livres. Nem somos livres se queremos deixar o país e o nosso passaporte for confiscado; nem se que-remos viver abertamente uma relação homossexual e formos processados judicialmente por fazê-lo. A liber-dade negativa consiste em não ter obstáculos nem im-posições. Se ninguém nos impede activamente de fazer algo, então, a esse respeito, somos livres.

A maioria dos governos restringe, de uma forma ou outra, a liberdade das pessoas. A justificação apresen-tada é geralmente a necessidade de proteger todos os membros da sociedade. Se todas as pessoas tivessem a liberdade de fazer tudo o que quisessem, os mais fortes e implacáveis prosperariam provavelmente à custa dos fracos. Contudo, muitos filósofos políticos liberais acre-ditam que deve existir uma área sacrossanta de liber-dade individual de tal maneira que, desde que não estejamos a prejudicar mais ninguém, o governo não possa intervir. No seu ensaio Da Liberdade, por exem-plo, John Stuart Mill defendeu energicamente que os indivíduos devem poder conduzir as suas próprias «experiências de vida» sem interferência do estado, desde que ninguém fique por isso prejudicado.

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POLÍTICA

Críticas à liberdade negativa

O que conta como prejuízo?

Na prática, pode ser difícil decidir o que conta como prejuízo para as outras pessoas. Incluirá, por exemplo, ofender outras pessoas? Se inclui, temos de excluir vários tipos de «experiências de vida», uma vez que ofendem um grande número de pessoas. Por exemplo, um vizinho especialmente pudico pode sentir-se ofen-dido por saber que um casal naturista da casa ao lado nunca usa roupas. Ou, já agora, o casal naturista pode sentir-se ofendido por saber que muitas pessoas usam roupas. Quer os naturistas quer os seus vizinhos po-dem sentir-se prejudicados pelos estilos de vida das outras pessoas. Mill não acreditava que ficar ofendido devesse contar como um prejuízo sério, mas não é fácil traçar a linha entre ficar ofendido e ficar prejudicado; por exemplo, muitas pessoas considerariam a blasfémia contra a sua religião muito mais prejudicial do que os danos físicos. Com que fundamentos poderemos dizer que estas pessoas estão erradas?

Liberdade positiva

Alguns filósofos têm atacado a ideia de a liberdade negativa ser o tipo de liberdade que devemos procurar aumentar. Argumentam que a liberdade positiva é um objectivo político muito mais importante. A liberdade positiva é a liberdade de controlar a nossa própria vida. Somos livres, em sentido positivo, se controlarmos de facto as nossas vidas e não somos livres se não o fizer-mos, ainda que não estejamos de facto submetidos a qualquer tipo de constrangimento. A maior parte dos

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defensores do conceito positivo de liberdade acredita que a verdadeira liberdade consiste num tipo qualquer de auto-realização que resulta de as pessoas poderem fazer as suas próprias escolhas de vida.

Por exemplo, se um alcoólico for convencido, contra aquilo que lhe convém, a gastar todo o seu dinheiro numa pândega, representa esta atitude o exercício da sua liberdade? Intuitivamente, parece implausível, sobretudo se nos momentos em que está sóbrio o alcoó-lico se arrepende dessas patuscadas. Pelo contrário, temos tendência para pensar que o alcoólico estava sob o efeito do álcool: um escravo dos impulsos. Apesar de não existir constrangimento do ponto de vista da liber-dade positiva, o alcoólico não é genuinamente livre.

Mesmo um defensor da liberdade negativa poderá argumentar que se deve exercer alguma coerção sobre os alcoólicos, tal como sobre as crianças, uma vez que nem as crianças nem os alcoólicos são completamente respon-sáveis pelas suas acções. Mas se alguém toma sistematica-mente decisões disparatadas em relação à sua vida, des-perdiçando todos os seus talentos, etc., temos, de acordo com os princípios de Mill, o direito de discutir com eles, mas não o de exercer a coerção para os conduzir a uma vida melhor. Tal coerção implicaria a limitação da sua liberdade negativa. Os que defendem um qualquer princípio de liberdade positiva poderiam argumentar que tal pessoa não é verdadeiramente livre até desenvolver o seu potencial e ultrapassar as suas tendências capricho-sas. O passo que separa esta posição da defesa da coerção como um caminho para a liberdade genuína é muito pequeno.

Isaiah Berlin sustenta que a concepção positiva de liberdade pode ser usada para justificar todos os tipos de coerção injusta: os agentes do estado podem justificar-se,

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sempre que nos forçam a agir de certa forma, com o argumento de que estão a ajudar-nos a aumentar a nossa liberdade. De facto, Berlin sublinha que, historicamente, o conceito positivo de liberdade tem sido frequentemente usado de forma abusiva neste sentido. Não há nada de intrinsecamente errado com a concepção de liberdade positiva; acontece apenas que a história mostrou tratar-se de uma arma perigosa quando é mal usada.

Subtrair a liberdade: o castigo

O que pode justificar que se subtraia a liberdade a alguém como uma forma de castigo? Por outras palavras, que razões podem dar-se para se exercer a coerção sobre pessoas, tirando-lhes a liberdade no sentido negativo? Como vimos na secção anterior, a noção de liberdade positiva pode ser usada para justificar certas formas de coerção: certas pessoas só podem atingir a verdadeira liberdade quando as protegemos delas mesmas.

Os filósofos têm tentado justificar o castigo estatal de pessoas com base em quatro ideias principais: retri-buição, dissuasão, protecção da sociedade e reabilita-ção da pessoa que sofre o castigo. A primeira é habitual-mente defendida a partir de uma posição deontológica; as outras três são tipicamente defendidas com argu-mentos consequencialistas.

O castigo como retribuição

Na sua forma mais simples, o retributivismo é a perspectiva segundo a qual aqueles que violam a lei merecem o seu castigo, independentemente de existi-

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rem ou não quaisquer consequências benéficas para eles ou para a sociedade. Aqueles que violam intencio-nalmente a lei merecem sofrer. Existem claramente muitas pessoas que não podem ser completamente res-ponsáveis pela sua própria violação da lei, pelo que merecem um castigo mais moderado ou até, em casos extremos, tratamento, tal como acontece com os doen-tes mentais graves. Contudo, em geral, de acordo com uma teoria retributivista, o castigo justifica-se como uma resposta adequada à violação da lei. Além disso, a severidade do castigo deve reflectir a severidade do crime. Na sua forma mais simples («olho por olho», por vezes conhecida como lex talionis), o retributivismo exige uma resposta exactamente proporcional ao crime cometido. Em alguns crimes, como a chantagem, é di-fícil ver o que seria uma resposta adequada: não se pode esperar que o juiz condene o chantagista a seis meses de chantagem. Analogamente, é difícil de perce-ber como poderia punir-se de forma exactamente pro-porcional um pobre que tivesse roubado um relógio de ouro. Isto só constitui um problema para o princípio do olho por olho; com formas mais sofisticadas de retribu-tivismo, o castigo não tem de espelhar o crime.

Críticas ao retributivismo

Faz apelo a sentimentos baixos

Grande parte da força do retributivismo deriva de sentimentos de vingança. A vingança é uma forma muito básica de resposta ao dano. Os oponentes do re-tributivismo reconhecem que este sentimento é muito comum, mas argumentam que o castigo estatal deve

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ter como base um princípio mais sólido do que o «pa-gar na mesma moeda». Contudo, os que defendem justificações híbridas do castigo incluem-no muitas vezes nas suas teorias.

Ignora os efeitos

A crítica principal ao retributivismo defende que este não dá atenção aos efeitos produzidos pelo castigo no criminoso e na sociedade. Questões de dissuasão, reabilitação e protecção são irrelevantes. De acordo com os retributivistas, os criminosos merecem ser castiga-dos quer isso tenha um efeito benéfico sobre eles quer não. Os consequencialistas objectam a esta ideia afir-mando que nenhuma acção pode ser moralmente boa, a menos que tenha consequências benéficas; perante isto, os deontologistas poderão responder que, se uma acção se justifica moralmente, justificar-se-á sempre, sejam quais forem as suas consequências.

Dissuasão

Uma justificação comum do castigo defende que este desencoraja a violação da lei, quer pela pessoa que é castigada, quer pelas outras pessoas que sabem que o castigo existe e que lhes será aplicado se violarem a lei. Se soubermos que poderemos acabar na prisão, defende este argumento, será mais improvável que en-veredemos por uma carreira de ladrão do que seria se pensássemos que poderíamos não ser castigados. Isto justifica o castigo mesmo em relação aos que não serão reabilitados por ele: ver o castigo como um resultado do crime é mais importante do que a modificação do

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

carácter da pessoa em causa. Este tipo de justificação centra-se exclusivamente nas consequências do castigo. O sofrimento dos que perdem a sua liberdade tem menos peso do que os benefícios sociais.

Críticas à dissuasão

O castigo cios inocentes

Uma crítica muito séria à teoria dissuasiva do cas-tigo defende que, pelo menos na sua forma mais sim-ples, esta teoria poderia ser usada para justificar o cas-tigo de pessoas completamente inocentes, ou inocentes em relação ao crime pelo qual são castigadas. Em algu-mas situações, castigar um bode expiatório, o qual muita gente acusa de ter cometido um certo crime, terá um efeito dissuasor muito forte noutras pessoas que terão considerado a hipótese de perpetrar crimes seme-lhantes, sobretudo se o público em geral continuar sem saber que a vítima do castigo está de facto inocente. Em tais casos, parece que teríamos justificação para casti-gar um inocente — uma consequência desagradável desta teoria. Qualquer teoria plausível da dissuasão terá de enfrentar esta objecção.

Não funciona

Alguns críticos do castigo como dissuasão argumen-tam que este, pura e simplesmente, não funciona. Mesmo os castigos extremos, tais como a pena de morte, não detêm os serial killers; castigos mais moderados, tais como multas e pequenos períodos de aprisionamento, não dissuadem os ladrões.

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POLÍTICA

Este tipo de crítica apoia-se em dados empíricos. A relação entre diferentes tipos de castigo e as taxas de criminalidade é extremamente difícil de apurar, uma vez que existem muitos factores que podem distorcer a interpretação dos dados. Contudo, se pudesse mostrar-se conclusivamente que o castigo tinha pouco ou nenhum efeito dissuasor, isto seria um golpe devastador para este tipo específico de justificação do castigo.

Protecção da sociedade

Outra justificação do castigo, baseada nas suas alegadas consequências benéficas, sublinha a neces-sidade de proteger a sociedade de pessoas que têm tendência para violar a lei. Se alguém arrombou uma casa, é provável que arrombe outras. Assim, a justi-ficação estatal para os prender é o impedir a reinci-dência. Esta justificação é usada sobretudo no caso de crimes violentos, tais como a violação ou o assas-sínio.

Críticas à protecção da sociedade

Só é relevante para alguns crimes

Alguns tipos de crimes, tais como a violação, podem ser cometidos repetidamente pela mesma pessoa. Em tais casos, a restrição da liberdade do criminoso minimizará as hipóteses de o crime voltar a ser come tido. Contudo, outros crimes são isolados. Por exem pio, uma mulher ressentida durante toda a sua vida

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

com o seu marido pode um dia reunir finalmente a coragem suficiente para lhe envenenar o muesli. Esta mulher pode não representar nenhuma ameaça para mais ninguém. Cometeu um crime muito sério, mas é um crime que provavelmente jamais voltará a cometer. Em relação a tal mulher, a protecção da sociedade não ofereceria nenhuma justificação para o seu castigo. Contudo, na prática não é fácil identificar os crimino-sos que não reincidirão.

Não funciona

Outra crítica a esta justificação do castigo defende que aprisionar os criminosos só protege a sociedade a curto prazo e que a longo prazo tem de facto como resultado uma sociedade mais perigosa, porque os presos ensinam uns aos outros como levar a melhor no mundo do crime. Assim, a menos que todos os crimes graves sejam punidos com a prisão perpétua, é improvável que a prisão possa proteger a socie-dade.

Trata-se, uma vez mais, de um argumento em-pírico. Se aquilo que afirma for verdade, existem boas razões para combinar a protecção da sociedade com algumas tentativas de reabilitar os hábitos dos criminosos.

Reabilitação

Uma outra justificação para castigar quem viola a lei é a tendência que o castigo tem para reabilitar os prevaricadores. Isto é, o castigo serve para mudar os seus caracteres de forma a não voltarem a cometer

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POLÍTICA

crimes depois de libertados. Nesta perspectiva, sub-trair a liberdade pode servir como uma forma de tratamento.

Críticas à reabilitação

Só e relevante para alguns criminosos

Alguns criminosos não precisam de ser reabilitados. As pessoas que cometem crimes isolados não devem ser castigados de acordo com esta justificação, uma vez que é improvável que violem outra vez a lei. Além disso, alguns criminosos estão claramente para lá da reabilitação, pelo que também não valeria a pena castigá-los, presumindo que poderiam ser identifica-dos. Este argumento não é em si uma crítica à teoria, mas um olhar mais detalhado sobre o que a teoria implica. Contudo, muitas pessoas acham que estas im-plicações são inaceitáveis.

Não funciona

Os castigos existentes raramente reabilitam os crimi-nosos. Contudo, nem todos os tipos de castigo estão condenados a falhar a este respeito. Este tipo de argu-mento empírico só seria fatal para a ideia do castigo como reabilitação se pudesse mostrar-se que tais tenta-tivas de reabilitação nunca poderiam ser bem sucedi-das. Contudo, existem pouquíssimas justificações que se centrem exclusivamente nos aspectos reabilitadores do castigo. As justificações mais plausíveis fazem da reabilitação um elemento da justificação, juntamente com a dissuasão e a protecção da sociedade. Estas jus-

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

tificações híbridas baseiam-se habitualmente em princí-pios morais consequencialistas.

Desobediência civil

Estudámos, até agora, as justificações para punir quem viola a lei. As razões para punir eram morais. Mas poderá alguma vez a violação da lei ser moral-mente aceitável? Nesta secção deito um olhar sobre um tipo particular de violação da lei que se justifica em termos morais: a desobediência civil.

Algumas pessoas argumentam que a violação da lei nunca se pode justificar: se não estamos satisfeitos com a lei, devemos tentar mudá-la através dos meios legais, como as campanhas, a redacção de cartas, etc. Mas há muitos casos em que tais protestos legais são comple-tamente inúteis. Há uma tradição de violação da lei em tais circunstâncias conhecida por desobediência civil. A ocasião para a desobediência civil emerge quando as pessoas descobrem que lhes é pedido que obedeçam a leis ou a políticas governamentais que consideram in-justas.

A desobediência civil trouxe mudanças importantes no direito e na governação. Um exemplo famoso é o movimento das sufragistas britânicas, que conseguiu publicitar o seu objectivo de dar o voto às mulheres através de uma campanha de desobediência civil pú-blica que incluía o auto-acorrentamento das manifes-tantes. A emancipação limitada foi finalmente alcan-çada em 1918, quando foi permitido o voto às mulheres com mais de 30 anos, em parte devido ao impacte da primeira guerra mundial. No entanto, o movimento das sufragistas desempenhou um papel significativo

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POLÍTICA

na mudança da lei injusta que impedia as mulheres de participar em eleições supostamente democráticas.

Mahatma Gandi e Martin Luther King foram ambos defensores apaixonados da desobediência civil. Gandi influenciou decisivamente a independência indiana através do protesto ilegal não violento, que acabou por conduzir ao fim da soberania britânica na índia; o de-safio de Martin Luther King ao preconceito racial atra-vés de métodos análogos ajudou a garantir direitos civis básicos para os Negros americanos nos estados americanos do Sul.

Outro exemplo de desobediência civil está patente na recusa de alguns americanos em participarem na Guerra do Vietname, apesar de serem requisitados pelo governo. Alguns americanos justificaram esta atitude afirmando acreditar que matar é moralmente errado, pensando por isso que era mais importante violar a lei do que lutar e possivelmente matar outros seres humanos. Outros havia que não objectavam a todas as guerras, mas sentiam que a guerra no Vietname era injusta e que sujeitava os civis a grandes riscos, sem nenhuma boa razão. A dimensão da oposição à guerra no Vietname acabou por conduzir os Estados Unidos à retirada. Sem dúvida que a violação pública da lei alimentou esta oposição.

A desobediência civil corresponde a uma tradição de violação não violenta e pública da lei, concebida para chamar a atenção para leis ou políticas injustas. Os que agem nesta tradição de desobediência civil não violam a lei unicamente para seu benefício pessoal; fazem-no para chamar a atenção para uma lei injusta ou uma política moralmente objectável e para publicitar ao máximo a sua causa. Por isso é que estes protestos ocorrem habitualmente em lugares públicos, de prefe-rência na presença de jornalistas, fotógrafos e câmaras

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

de televisão. Por exemplo, um americano chamado para a guerra que deitasse fora a sua convocatória du-rante a Guerra do Vietname, escondendo-se de seguida do exército só por ter medo de ir para a guerra e por não querer morrer, não estaria a executar um acto de desobediência civil. Seria um acto de autopreservação. Se agisse da mesma maneira, não por causa da sua segurança pessoal, mas por motivos morais, mas que no entanto o fizesse em segredo, não tornando público este caso de nenhuma forma, continuaria a não poder considerar-se um acto de desobediência civil. Pelo con-trário, outro americano convocado para a guerra que queimasse a sua convocatória em público perante câ-maras da televisão, comunicando ao mesmo tempo à imprensa as razões que o levavam a pensar que o envolvimento americano no Vietname era imoral, esta-ria a cometer um acto de desobediência civil.

O objectivo da desobediência civil é, em última aná-lise, mudar leis e políticas particulares, e não arruinar completamente o estado de direito. Os que agem na tradição da desobediência civil evitam geralmente to-dos os tipos de violência, não apenas porque pode arruinar a sua causa ao encorajar a retaliação, condu-zindo assim a um agravamento do conflito, mas sobre-tudo porque a sua justificação para violar a lei é moral, e a maior parte dos princípios morais só permite que se prejudique outras pessoas em situações extremas, tal como quando somos atacados e temos de nos defender.

Os terroristas ou os combatentes pela liberdade (a maneira como lhes chamamos depende da simpatia que temos pelos seus objectivos) usam actos violentos com fins políticos. Tal como os que enveredam por actos de desobediência civil, também eles desejam mudar o estado de coisas existente, não para benefícios privados, mas

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POLÍTICA

para o bem geral, tal como este é por eles concebido; mas diferem nos métodos que estão preparados para usar para originar a mudança desejada.

Críticas à desobediência civil

Não é democrática

Presumindo que a desobediência civil ocorre num tipo qualquer de democracia, pode parecer não democrática. Se uma maioria de representantes democraticamente elei-tos vota a favor de uma certa lei ou de uma certa política, violar a lei como protesto parece ir contra o espírito da democracia, sobretudo se só uma pequena minoria de cidadãos está envolvida no acto de desobediência civil. Certamente que o facto de ser provável que todas as pessoas achem uma ou outra política desagradável é apenas o preço a pagar por viver num estado democrá-tico. Se a desobediência civil praticada por uma minoria for eficaz, parece dar a um pequeno número de pessoas o poder de contrariar a opinião da maioria. Isto parece profundamente antidemocrático. No entanto, se a deso-bediência civil não for eficaz, não parece valer a pena adoptá-la. Logo, nesta perspectiva, a desobediência civil ou é antidemocrática ou não vale a pena.

E importante darmo-nos conta, contra tal argumento, de que os actos de desobediência civil têm por objec-tivo salientar decisões ou práticas moralmente inaceitá-veis. Por exemplo, o movimento a favor dos direitos cívicos, na América dos anos 60, através de manifesta-ções muito publicitadas contra as leis a favor da segre-gação racial deram publicidade mundial ao tratamento injusto dos Americanos negros. Compreendida assim,

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

a desobediência civil é uma técnica para que a maioria ou os seus representantes reconsiderem a sua posição sobre um tema específico, e não uma forma não demo-crática de mudar a lei ou a política.

Derrapagem para a anarquia

Outra objecção à desobediência civil faz notar que ela encoraja a violação da lei, o que poderia a longo prazo corroer o poder do governo e o estado de direito e que este risco ultrapassa decisivamente quaisquer possíveis benefícios a que possa dar origem. Uma vez colocado em causa o respeito pela lei, há o perigo de que resulte daí a anarquia.

Este é um argumento da derrapagem, um argumento que sugere que, se dermos um passo numa certa direcção, não seremos capazes de parar um processo que terá um resultado obviamente desagradável. Tal como quando damos um passo para descer um declive escorregadio é quase impossível parar antes de chegar ao fim, o mesmo acontece, defendem algumas pessoas, se tornarmos aceitáveis alguns tipos menores de viola-ção da lei: não seremos capazes de parar e, no fim, já ninguém respeitará a lei. Contudo, este tipo de argu-mento pode fazer que o resultado final pareça inevitá-vel, quando na verdade o não é. Não há razão para acreditar na afirmação de que os actos de desobediên-cia civil arruinarão o respeito pela lei, ou, para conti-nuarmos com a metáfora do declive escorregadio, não há nenhuma razão para acreditar que não podemos parar num certo ponto e dizer: «Não avanço mais.» Na verdade, alguns defensores da desobediência civil argumentam que, longe de pôr em perigo o estado de direito, o que eles fazem revela um profundo respeito

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POLÍTICA

pela lei. Se alguém está preparado para ser castigado pelo estado por chamar a atenção para o que pensa ser uma lei injusta, isso revela que está comprometido com a posição geral de que as leis devem ser justas e respei-tadas. Isto é muito diferente da violação da lei para benefício pessoal.

Conclusão

Neste capítulo discuti vários tópicos centrais de filo-sofia política. Subjacente a todos estes tópicos está a questão da relação das pessoas com o estado, em par-ticular a origem de qualquer autoridade que o estado tenha sobre as pessoas, uma questão tratada directa-mente em muitas das leituras complementares reco-mendadas a seguir.

Os próximos dois capítulos centram-se sobre o nosso conhecimento e compreensão do mundo que nos rodeia, prestando especial atenção à questão de saber o que podemos aprender através dos sentidos.

Leitura complementar

Para os interessados na história da filosofia política, Great Political Thinkers, de Quentin Skinner, Richard Tuk, William Thomas e Peter Singer (Oxford, Oxford University Press, 1992), oferece uma boa introdução à obra de Maquiavel, Hobbes, Mill e Marx. Recomendo também Political Thought from Plato to Nato, organizado por Brian Redhead (Londres, BBC Books, 1984).

Political Philosophy: An Introduction, de Jonathan Wolff (Oxford, Oxford University Press, 1996), é uma

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

introdução minuciosa que aborda um vasto leque de temas nesta área da filosofia.

Practical Ethics, de Peter Singer (2.a ed., Cambridge, Cambridge University Press, 1993), um livro que reco-mendei como leitura complementar para o capítulo 2, contém uma discussão da igualdade, incluindo a igual-dade no emprego. O autor defende também a igual-dade dos animais. The Sceptical Feminist, de Janet Rad-cliffe Richards (2.a ed., Londres, Penguin, 1994), é um estudo filosófico claro e incisivo de algumas questões morais e políticas acerca das mulheres, incluindo a questão da discriminação positiva no emprego.

Democracy, de Ross Harrison (Londres, Routledge, 1993), é uma lúcida introdução a um dos conceitos centrais da filosofia política. Combina um levantamento crítico da história da democracia com a análise filosó-fica do conceito tal como o usamos hoje.

Liberty, organizado por David Mil ler (Oxford, Oxford University Press, Oxford Readings in Politics and Government, 1991), inclui um excerto do ensaio «Two Concepts of Liberty», de Isaiah Berlin. O Ensaio sobre a Liberdade (1859, trad. 1964), de John Stuart Mill, é a defesa clássica do liberalismo.

Civil Disobedience in Focus, organizado por Hugo Adam Bedau (Londres, Routledge, 1991), é uma inte-ressante colecção de artigos sobre este tópico, incluindo o texto «Letter from Birmingham City Jail», de Martin Luther King.

Para os que desejam estudar filosofia política mais detalhadamente e a um nível mais avançado, Contempo-rary Political Philosophy: An Introduction (Oxford, Oxford University Press, 1990), de Will Kymlicka, oferece uma avaliação crítica das tendências principais na filosofia po-lítica corrente. Algumas passagens são bastantes difíceis.

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O mundo exterior

O nosso conhecimento básico do mundo exterior chega-nos através dos cinco sentidos: visão, audição, tacto, olfacto e gosto. Para quase toda a gente, a visão desempenha o papel principal. Sei como é o mundo exterior porque posso vê-lo. Se duvido da existência real do que vejo, posso, em geral, estender o braço e tocar-lhe para ter a certeza. Sei que tenho uma mosca na sopa porque posso vê-la e, se chegar a tanto, posso tocar-lhe e até prová-la. Mas qual é exactamente a re-lação entre o que penso ver e o que está de facto à minha frente? Poderei alguma vez ter a certeza acerca do que existe no mundo exterior? Poderei eu estar a sonhar? Os objectos continuam a existir quando ninguém os está a observar? Terei alguma vez expe-riência directa do mundo exterior? Todas estas ques-tões são acerca de saber como adquirimos conheci-mento das nossas imediações; pertencem ao ramo da filosofia conhecido por teoria do conhecimento ou epistemologia.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Neste capítulo examinaremos várias questões epistemológicas, concentrando-nos nas teorias da per-cepção.

Realismo de senso comum

O realismo de senso comum é a posição assumida pela maior parte das pessoas que não estudaram filosofia. Admite a existência de objectos físicos — casas, árvores, carros, sardinhas, colheres de chá,

bolas de futebol, corpos humanos, livros de filosofia, etc. — acerca dos quais podemos ter conhecimento directo através dos nossos cinco sentidos. Estes objectos físicos continuam a existir quer os esteja-mos a percepcionar, quer não. Além disso, estes objectos são mais ou menos como nos parecem ser: as sardinhas são de facto cinzentas e as bolas de futebol são de facto esféricas. Isto é assim porque os nossos órgãos dos sentidos — os olhos, os ouvidos, a língua, a pele e o nariz — são, em geral, fidedig-nos; dão-nos uma apreciação realista do que está realmente lá fora.

Contudo, apesar de ser possível viver a vida toda sem nunca questionar as crenças do realismo de senso comum acerca da percepção sensorial, esta perspectiva não é satisfatória. O realismo de senso comum não re-siste satisfatoriamente aos argumentos cépticos acerca da fiabilidade dos sentidos. Nesta secção examina-remos vários argumentos cépticos que parecem enfra-quecer o realismo de senso comum, antes de examinar-mos quatro teorias da percepção mais sofisticadas: o realismo representativo, o idealismo, o fenomenismo e o realismo causal.

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O MUNDO EXTERIOR

Cepticismo acerca dos dados dos sentidos

O cepticismo é a perspectiva segundo a qual nunca podemos ter a certeza de nada; há sempre algumas razões para duvidar mesmo das nossas crenças mais fundamentais acerca do mundo. Na filosofia, os argu-mentos cépticos procuram mostrar que as formas tra-dicionais de descobrir coisas acerca do mundo não são fidedignas e que não nos garantem o conhecimento do que realmente existe. Os argumentos cépticos das secções seguintes baseiam-se nos argumentos de Des-cartes patentes na primeira das suas Meditações.

O argumento da ilusão

O argumento da ilusão é um argumento céptico que questiona a fiabilidade dos sentidos, ameaçando assim enfraquecer o realismo de senso comum. Habitualmente, confiamos nos nossos sentidos, mas, por vezes, eles enganam-nos. Por exemplo, quase toda a gente já teve a experiência embaraçosa de parecer reconhecer um amigo à distância, para descobrir depois que estamos a acenar a um desconhecido. Uma vara direita parcialmente imersa em água pode parecer curva; uma maçã pode ter um sabor amargo se acabámos de comer qualquer coisa muito doce; vista de certo ângulo, uma moeda redonda pode parecer oval; os carris do comboio parecem conver-gir à distância; o tempo quente pode fazer que a estrada pareça tremeluzir; o mesmo vestido pode parecer carme-sim na penumbra e escarlate à luz do Sol; a Lua parece tanto maior quanto mais baixa está no horizonte. Estas ilusões sensoriais, e outras análogas, mostram que os sentidos não são sempre completamente fidedignos: pa-

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

rece pouco provável que o mundo exterior seja exactamente como parece ser.

O argumento da ilusão afirma que, porque os nos-sos sentidos nos enganam por vezes, nunca podemos ter a certeza, perante qualquer caso específico, que não nos estão a enganar nesse momento. Este é um argu-mento céptico porque desafia a nossa crença quotidiana — o realismo de senso comum — de que os sentidos nos dão conhecimento do mundo.

Críticas ao argumento da ilusão

Graus de certeza

Apesar de podermos cometer erros no que respeita à visão de objectos à distância sob condições extraordinárias, existem certamente observações das quais não podemos duvidar seriamente. Por exemplo, não posso duvidar seriamente de que neste momento estou sentado à minha secretária a escrever estas palavras, de que tenho uma caneta na minha mão e de que existe um bloco de apon-tamentos à minha frente. Analogamente, não posso duvi-dar seriamente de que estou em Inglaterra, e não, por exemplo, no Japão. Há casos incontestáveis de conhe-cimento através dos quais aprendemos o conceito de co-nhecimento. Só podemos duvidar de outras crenças por-que temos este pano de fundo de casos de conhecimento: sem estes casos incontroversos não teríamos nenhum conceito de conhecimento e não teríamos nada contra o qual pudéssemos contrastar crenças mais duvidosas.

Contra esta perspectiva, um céptico faria notar que eu poderia muito bem estar enganado quanto ao que parecem casos inquestionáveis de conhecimento: posso

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O MUNDO EXTERIOR

ter pensado, em sonhos, que estava acordado a escre-ver, quando de facto estava a dormir na minha cama. Logo, como posso afirmar que não estou a sonhar e que estou a escrever? Como posso afirmar que não estou deitado algures em Tóquio, sonhando que estou acordado em Inglaterra? Certamente que já tive sonhos mais estranhos do que isso. Existe alguma coisa na experiência do sonho que possa distingui-lo conclusi-vamente da experiência da vigília?

Poderei estar a sonhar?

Não posso estar sempre a sonhar

Não faria sentido dizer que toda a minha vida é um sonho. Se eu estivesse sempre a sonhar, não teria qual-quer conceito de sonho: não teria nada com o qual contrastar o sonho, uma vez que não teria nenhum conceito de estar acordado. Só podemos dar sentido à ideia de uma nota falsa quando existem notas genuínas com as quais podemos compará-las; analogamente, a ideia de sonho só faz sentido quando podemos compará-lo com a vigília.

Isto é verdade, mas não destrói a posição céptica. O céptico não afirma que podemos estar sempre a so-nhar, mas antes que em nenhum momento podemos ter a certeza se estamos ou não a sonhar.

Os sonhos são diferentes

Outra objecção à ideia de que poderia estar a sonhar que estou a escrever estas palavras defende que a expe-riência que temos quando sonhamos é muito diferente

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

daquela que possuímos durante a vigília e que, de facto, podemos saber se estamos a sonhar ou não através do exame da qualidade da nossa experiência. Os sonhos implicam muitos acontecimentos que seriam impossíveis na vigília; habitualmente, não são tão vívidos como a experiência da vigília; podem ser imprecisos, desarticula-dos, impressivos, bizarros, etc. Além disso, todo o argu-mento céptico se baseia na capacidade de distinguir os sonhos da vigília: de que outra forma poderia eu saber que por vezes sonhei estar acordado quando, na reali-dade, estava a dormir? Esta recordação só faz sentido se eu tiver uma forma de afirmar que numa das experiên-cias estava realmente acordado e que na outra estava a sonhar que estava acordado.

A força desta resposta depende muito da experiência que cada um tem dos sonhos. Os sonhos de algumas pessoas podem ser extraordinariamente diferentes da vigília. Contudo, muitas pessoas têm pelo menos alguns sonhos indistinguíveis da experiência quotidiana; e a experiência que algumas pessoas têm durante a vigília, sobretudo quando estão sob a influência do álcool ou de outras drogas, pode ter uma índole fortemente onírica. Além disso, a experiência de falsos despertares — quando o sonhador sonha que acordou, se levantou, se vestiu, tomou o pequeno-almoço, etc. — é relativamente comum. Contudo, em tais casos, o sonhador não se pergunta habitualmente se se trata da vigília ou não; geralmente, só quando ele acorda de facto é que a questão «Estarei a sonhar agora?» se torna relevante.

Não posso perguntar «Estarei a sonhar?»

Pelo menos um filósofo contemporâneo, Norman Malcom (1911-), defendeu que o conceito de sonho faz

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O MUNDO EXTERIOR

que seja logicamente impossível perguntar «estarei a sonhar?» quando estamos a sonhar. Fazer uma per-gunta implica que a pessoa que a faz está consciente. Mas, sustenta Malcom, quando estou a sonhar, não estou, por definição, consciente, uma vez que estou a dormir. Se não estou a dormir, não posso estar a so-nhar. Se posso fazer a pergunta, não posso estar a dormir e, portanto, não posso estar a sonhar. Só posso sonhar que estou a fazer a pergunta e isso não é o mesmo que fazer, verdadeiramente, a pergunta.

Contudo, a investigação sobre o sonho mostrou que muitas pessoas experimentam diferentes níveis de cons-ciência enquanto dormem. Algumas têm o que é conhe-cido por sonhos lúcidos. Num sonho lúcido, o sonhador torna-se consciente de que está a sonhar, continuando no entanto a sonhar. A existência de tais sonhos refuta a ideia de que é impossível estar consciente ao mesmo tempo que se está a dormir. O erro cometido por Malcom foi redefinir «sonho» de forma a já não significar o que ge-ralmente se entende por esse termo. Afirmar que o sonho é necessariamente um estado não consciente é uma perspectiva excessivamente simples.

Alucinação

Mesmo que não esteja a dormir, posso estar a alucinar. Alguém pode ter deitado uma droga no meu café que provoque alterações mentais de forma que me pareça ver coisas que na verdade não existem. Talvez não tenha realmente uma caneta na mão; talvez não esteja de facto sentado frente a uma janela num dia soalheiro. Se ninguém deitou LSD no meu café, talvez aconteça apenas que atingi um tal estado de alcoolismo

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

que comecei a alucinar. Contudo, apesar de esta ser uma possibilidade, é altamente improvável que possa prosseguir tão facilmente a minha vida. Se a cadeira onde estou sentado é apenas imaginária, como pode ela sustentar o meu peso? Uma resposta a isto é que eu posso desde logo estar a alucinar que estou sentado: posso pensar que me vou sentar numa confortável poltrona quando de facto estou deitado num chão de pedra e tomei um alucinogénio, ou bebi uma garrafa inteira de Pernod.

Cérebro numa cuba?

A versão mais extrema deste cepticismo acerca do mundo exterior e da minha relação com ele é imaginar que não tenho corpo. Tudo o que sou é um cérebro a flutuar numa cuba de produtos químicos. Um cientista perverso ligou de tal forma fios ao meu cérebro que tenho a ilusão da experiência sensorial. O cientista criou uma espécie de máquina de experiências. Do meu ponto de vista, posso levantar-me e dirigir-me à loja para comprar um jornal. Contudo, quando faço isto, o que está realmente a acontecer é que o cientista está a estimular certos nervos do meu cérebro de maneira que eu tenha a ilusão de fazer isto. Toda a experiência que penso provir dos meus cinco sentidos é na verdade o resultado de este cientista perverso estar a estimular o meu cérebro desencarnado. Com esta máquina de experiências, o cientista pode fazer que eu tenha qual-quer experiência sensorial que poderia ter na vida real. Através de um estímulo complexo dos nervos do meu cérebro, o cientista pode dar-me a ilusão de estar a ver televisão, a correr uma maratona, a escrever um livro, a comer massa ou qualquer outra coisa que eu poderia

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O MUNDO EXTERIOR

fazer. A situação não é tão rebuscada como pode pare-cer: os cientistas estão já a fazer experiências com simu-lações feitas em computador conhecidas como máqui-nas de «realidade virtual».

A história do cientista perverso é um exemplo do que os filósofos chamam uma experiência mental. Tra-ta-se de uma situação imaginária descrita de forma a esclarecer certas características dos nossos conceitos e pressupostos diários. Numa experiência mental, tal como numa experiência científica, através da elimina-ção de detalhes que complicam as coisas e através do controlo do que acontece, o filósofo pode fazer desco-bertas acerca dos conceitos sob investigação. Neste caso, a experiência mental é concebida para mostrar alguns dos pressupostos que costumamos ter acerca das causas da nossa experiência. Haverá alguma coisa acerca da minha experiência que possa mostrar que esta experiência mental não dá uma boa imagem da realidade, que eu não sou apenas um cérebro numa cuba a um canto do laboratório do cientista perverso?

Memória e lógica

Apesar de a ideia de que posso ser apenas um cére-bro numa cuba parecer constituir uma forma extrema de cepticismo, há ainda, de facto, outros pressupostos de que podemos duvidar. Todos os argumentos que discutimos até agora pressupõem que a memória é mais ou menos digna de confiança. Quando dizemos que nos recordamos de ocasiões passadas em que os nossos sentidos não foram dignos de confiança, pres-supomos que estas recordações são realmente recorda-ções e que não são apenas produtos da nossa imagina-

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

ção ou de raciocínios caprichosos. E todos os argumen-tos que usam palavras pressupõem que nos lembra-mos correctamente do significado das palavras usadas. No entanto, a memória, tal como os dados dos nossos sentidos, não é digna de confiança. A minha expe-riência é não só compatível com a perspectiva de que poderia ser um cérebro numa cuba estimulado por um cientista perverso, mas também, como Bertrand Russell (1872-1970) fez notar, com a ideia de que o mundo poderia ter aparecido há cinco minutos juntamente com todas as pessoas que o habitam com «recordações» intactas, recordando-se todas de um passado completa-mente irreal.

Contudo, se começarmos a questionar seriamente a fiabilidade da memória, tornamos toda a comunicação impossível: se não podemos presumir que as nossas recordações dos significados das palavras são geral-mente fidedignas, não há maneira de podermos sequer discutir o cepticismo. Além disso, poderia argumentar--se que a experiência mental do cientista perverso que manipula o cérebro numa cuba já introduz um cepticismo acerca da fiabilidade da memória, uma vez que se pressupõe que o nosso algoz tem o poder sufi-ciente para nos fazer acreditar que as palavras signifi-cam seja o que for que ele quiser.

Um segundo tipo de pressuposto de que os cépticos raramente duvidam é a fiabilidade da lógica. Se os cépticos duvidassem que a lógica era realmente digna de confiança, isto enfraqueceria a sua posição. Os cépticos usam argumentos que se apoiam na lógica: o seu objectivo não é autocontradizer-se. No entanto, se usam argumentos lógicos para demonstrar que nada é imune à dúvida, isto significa que os seus próprios argumentos podem não ser procedentes. Logo, ao usar

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O MUNDO EXTERIOR

argumentos, os cépticos parecem apoiar-se fortemente em algo que, se fossem consistentes, teriam de afirmar ser incerto.

Contudo, estas objecções não respondem ao argu-mento da ilusão: sugerem apenas que o cepticismo tem limites; há alguns pressupostos que até mesmo um céptico extremo tem de admitir.

Penso, logo existo

Sendo assim, existirá alguma coisa acerca da qual eu possa ter a certeza? A resposta mais famosa e impor-tante a esta questão céptica foi dada por Descartes. Ele argumentou que, mesmo que toda a minha experiência fosse o produto de algo ou de alguém que me enga-nasse deliberadamente — Descartes usou a ideia de um génio maligno em vez de um cientista perverso —, o próprio facto de eu estar a ser iludido me mostraria algo de indubitável — me mostraria que existo, uma vez que, se não existisse, não haveria ninguém para o enganador enganar. Este argumento é muitas vezes conhecido como o cogito, do latim «Cogito ergo sum», que significa «Penso, logo existo».

Crítica ao cogito

Algumas pessoas acham o argumento do cogito con-vincente. No entanto, as suas conclusões são extrema-mente limitadas. Mesmo que aceitemos que o facto de eu estar a pensar constitui uma demonstração da mi-nha existência real, nada diz quanto ao que sou, excepto que sou uma coisa pensante.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

De facto, alguns filósofos, incluindo A. J. Ayer, argu-mentaram que mesmo esta conclusão vai demasiado longe. Descartes errou ao usar a expressão «Eu penso»: se tivesse sido consistente com a sua abordagem céptica geral, deveria ter dito «Há pensamentos». Des-cartes estava a pressupor que, se há pensamentos, tem de haver um pensador. Mas podemos duvidar disto. Talvez os pensamentos possam existir independente-mente dos pensadores. Talvez seja apenas a forma como a nossa linguagem está estruturada que nos leva a pensar que todo o pensamento precisa de um pen-sador. O «eu» da expressão «Eu penso» pode ser do mesmo tipo que o «ele» da expressão «Ele hoje ainda vem chuva», que não se refere a nada.

Realismo representativo

Percorremos um longo caminho, no qual considerá-mos a posição do realismo de senso comum. Ao seguir os argumentos cépticos acerca dos sentidos e da ques-tão de saber se poderemos estar a sonhar, vimos o alcance e os limites deste tipo de dúvida filosófica. Entretanto, descobrimos algumas das limitações do realismo de senso comum. O argumento da ilusão, sobretudo, mostrou a implausibilidade do pressuposto de que os sentidos nos dão, quase sempre, informação verdadeira sobre a natureza do mundo exterior. O facto de os nossos sentidos nos poderem enganar tão facil-mente deveria ser suficiente para reduzir a nossa con-fiança na ideia de que os objectos são realmente como parecem.

O realismo representativo é uma forma modificada do realismo do senso comum. Chama-se representativo

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O MUNDO EXTERIOR

porque sugere que toda a percepção é o resultado da consciência de representações internas do mundo exte-rior. Quando vejo uma gaivota, não a vejo directa-mente, ao contrário do que sugere o realismo de senso comum. Não tenho contacto sensorial directo com a ave. Ao invés, aquilo de que tenho consciência é uma representação mental, qualquer coisa como uma ima-gem interna da gaivota. Não tenho uma experiência visual directa da gaivota, apesar de a minha experiên-cia visual ser causada pela gaivota; ao invés, tenho uma experiência da representação da gaivota produ-zida pelos meus sentidos.

O realismo representativo responde a objecções levantadas pelo argumento da ilusão. Tomemos o exemplo da cor. O mesmo vestido pode parecer muito diferente quando é visto sob diferentes ilu-minações: o espectro de cores aparentes pode ir de escarlate a negro. Se examinássemos as fibras do tecido do vestido mais de perto descobriríamos, provavelmente, tratar-se de uma mistura de cores. A maneira como é percepcionado dependerá tam-bém do observador: um daltónico pode muito bem ver o vestido de forma diferente de mim. Perante estas observações, não faz sentido afirmar que o vestido é realmente vermelho: a sua cor vermelha não é independente de quem percepciona. Para po-der explicar este tipo de fenómeno, o realismo repre-sentativo introduz a noção de qualidades primárias e secundárias.

Qualidades primárias e secundárias

John Locke (1632-1704) usou a distinção entre qualidades primárias e secundárias. As qualidades

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

primárias são aquelas que um objecto tem efecti-vamente, independentemente das condições sob as quais é percepcionado e de estar sequer a ser per-cepcionado. As qual idades pr imárias incluem o tamanho, a forma e o movimento. Todos os objectos, por mais pequenos que sejam, têm estas qualidades e, segundo Locke, as nossas representações mentais destas qualidades são muito parecidas às dos objec-tos. A ciência preocupa-se sobretudo com as quali-dades primárias dos objectos físicos. A constituição de um objecto, detern inada pelas suas qualidades primárias, dá origem à nossa experiência das quali-dades secundárias.

As qualidades secundárias incluem a cor, o cheiro e o sabor. Pode parecer que estas qualidades pertencem realmente aos objectos da nossa percepção, fazendo a cor vermelha parte, de alguma forma, de um vestido vermelho. Mas, na verdade, a cor vermelha não é se-não a capacidade de produzir imagens vermelhas num observador normal em condições normais. A cor ver-melha não faz parte de um vestido vermelho da mes-ma maneira que a sua forma faz. As ideias de qualida-des secundárias não são semelhantes aos próprios objectos; são em parte, ao invés, um produto do tipo de sistema sensorial que por acaso é o nosso. Segundo o realismo indirecto, quando vemos um vestido verme-lho, vemos uma imagem mental que corresponde parcialmente ao vestido real que dá origem à imagem. A cor vermelha da imagem do vestido vermelho (uma qualidade secundária do vestido) não é semelhante a qualidades efectivas existentes no vestido real; con-tudo, a forma da imagem do vestido (uma qualidade primária do vestido) é geralmente parecida com a forma do vestido real.

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O MUNDO EXTERIOR

Críticas ao realismo representativo

Observador na cabeça

Uma crítica ao realismo representativo defende que esta teoria parece limitar-se a fazer recuar o problema da compreensão da percepção. Segundo o realismo re-presentativo, quando percepcionamos algo, fazemo-lo através de um tipo qualquer de representação mental. Assim, ver alguém a dirigir-se na minha direcção é como ver um filme deste acontecimento. Mas se isto é assim, o que estará então a interpretar a imagem no écran? E como se eu tivesse uma pessoa pequenina sentada na minha cabeça a interpretar o que acontece. E é de presumir que esta pessoa pequenina teria de ter outra pessoa ainda mais pequenina dentro da sua ca-beça para interpretar a interpretação: e assim por diante, infinitamente. Parece improvável que eu tenha um número infinito de pequenos intérpretes na minha cabeça.

O mundo real é incognoscível

Uma objecção importante ao realismo representa-tivo afirma que esta teoria faz que o mundo real seja incognoscível. Ou então só é indirectamente cognos-cível. Tudo o que poderá alguma vez constituir as nos-sas experiências são as nossas representações mentais do mundo — e não temos maneira de comparar as nossas representações mentais do mundo com o pró-prio mundo. É como se cada um de nós estivesse en-curralado num cinema privado que nunca podemos abandonar. No écran vemos vários filmes e presumi-mos que eles mostram o mundo real tal como é — pelo

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

menos em termos das qualidades primárias dos objectos que vemos representados. Mas, uma vez que não podemos sair do cinema para verificar o nosso pressuposto, nunca podemos saber qual é o grau de semelhança entre o mundo tal como aparece nos filmes e o mundo real.

Este é um problema sobretudo para o realismo re-presentativo, porque esta teoria afirma que as nossas representações mentais das qualidades primárias dos objectos são semelhantes às próprias qualidades dos objectos do mundo exterior. Mas, se não temos maneira de verificar se isto é verdade, não temos razões para acreditar nisso. Se a minha representação mental de uma moeda é circular, não tenho maneira de verificar se isto corresponde à verdadeira forma da moeda. Es-tou limitado aos dados dos meus sentidos e, uma vez que estes funcionam através de representações men-tais, nunca poderei ter uma informação directa acerca das verdadeiras propriedades da moeda.

Idealismo

O idealismo é uma teoria que evita algumas das dificuldades que se levantam ao realismo representa-tivo. Tal como esta última teoria, o idealismo faz dos dados sensoriais de entrada o ingrediente básico na nossa experiência do mundo. Assim, também o idea-lismo se baseia na noção de que toda a nossa experiên-cia é constituída por representações mentais, e não pelo mundo. Contudo, o idealismo vai mais longe do que o realismo representativo. Defende que não existe justifi-cação para afirmar que o mundo exterior existe real-mente, uma vez que, como vimos nas nossas críticas ao

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O MUNDO EXTERIOR

realismo representativo, o mundo exterior é incognos-cível.

Isto parece absurdo. Como pode alguém defender seriamente que estamos enganados quando falamos do mundo exterior? Sem dúvida que todos os indícios apontam na direcção oposta. Um idealista responderia que os objectos físicos — a Catedral de S. Paulo, a mi-nha secretária, as outras pessoas, etc. — só existem enquanto estão a ser percepcionadas. Não precisamos de introduzir a ideia da existência de um mundo real para lá da nossa experiência: tudo o que podemos de facto conhecer são as nossas experiências. E mais con-veniente dizer «Estou a ver ali a minha guitarra» do que «Estou a ter uma experiência visual do tipo gui-tarra», mas um idealista argumentaria que a primeira é apenas uma abreviatura da última. As palavras «minha guitarra» são uma forma conveniente de referir um padrão recorrente de experiências sensoriais, e não um qualquer objecto físico que exista independentemente das minhas percepções. Estamos todos fechados em cinemas individuais a ver filmes, mas não há nenhum mundo fora dos cinemas. Não podemos abandonar o cinema porque não há nada lá fora. Os filmes são a nossa única realidade. Quando ninguém está a olhar para o écran, o projector desliga-se, mas o filme conti-nua a passar. Sempre que olho para o écran, o projector acende-se e o filme está precisamente no momento em que estaria se o projector tivesse estado sempre ligado.

Uma consequência disto é que, para os idealistas, os objectos só existem enquanto são percepcionados. Quando um objecto não está a ser percepcionado no meu cinema privado, não existe. O bispo Berkeley (1685-1753), o mais famoso idealista, declarou que «esse est percipi»: existir é ser percepcionado. Assim, quando

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

deixo uma sala, esta deixa de existir, quando fecho os olhos, o mundo desaparece, quando pestanejo, seja o que for que está à minha frente deixa de estar — desde que, claro, mais ninguém esteja a percepcionar estas coisas na altura.

Críticas ao idealismo

Alucinações e sonhos

Á primeira vista, esta teoria da percepção pode ter dificuldades em lidar com as alucinações e com os so-nhos. Se tudo aquilo de que temos experiência são as nossas próprias ideias, como conseguimos distinguir a realidade da imaginação?

Contudo, os idealistas conseguem explicar isto. Os verdadeiros objectos físicos são, de acordo com o idea-lista, padrões repetidos de informação sensorial. A minha guitarra é um padrão de informação sensorial, previsivel-mente recorrente. As minhas experiências visuais da guitarra ajustam-se às minhas experiências tácteis da mesma: posso ver a minha guitarra encostada à parede e depois tocar-Ihe. As minhas experiências da guitarra re-lacionam-se entre si de forma regular. Se estivesse a ter a alucinação de uma guitarra, não existiria tal inter-relação entre as minhas experiências: talvez no momento em que fosse tocar guitarra não tivesse as experiências tácteis que esperava. Talvez as minhas experiências visuais da gui-tarra se comportassem de formas completamente imprevisíveis: a minha guitarra poderia parecer materia-lizar-se e dissolver-se à minha frente.

Analogamente, um idealista pode explicar como podemos distinguir entre os sonhos e a vigília através

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O MUNDO EXTERIOR

das diferenças detectáveis entre as diversas maneiras segundo as quais as experiências sensoriais se conectam entre si. Por outras palavras, não é apenas a natureza de uma experiência imediata que é capaz de identificar se se trata de uma alucinação, de um sonho ou de uma experiência da vida real, mas também a sua relação com outras experiências: o contexto geral da experiência.

Conduz ao solipsismo

Uma das principais críticas à teoria idealista da per-cepção defende que esta parece conduzir ao solipsismo: a perspectiva segundo a qual a minha mente é tudo o que existe e que tudo o resto é uma criação minha. Se as únicas coisas de que posso ter experiência são as minhas próprias ideias, não somos conduzidos apenas à perspectiva segundo a qual não existem objectos físi-cos; somos também conduzidos à perspectiva segundo a qual não existem outras pessoas (ver a secção «Men-tes alheias», pp. 212-213). Tenho tantos indícios favorá-veis à existência de outras pessoas como a favor da existência de outros objectos físicos, nomeadamente padrões repetidos de informação sensorial. Mas então, uma vez que afastámos a ideia da existência de objectos físicos reais responsáveis pela minha experiência, tal-vez nada exista excepto enquanto ideia na minha mente. Talvez todo o mundo e tudo o que ele tem seja uma criação da minha mente. Talvez não exista mais ninguém. Para o colocar em termos do meu exemplo do cinema: talvez o meu próprio cinema privado, com o seu repertório específico de filmes, seja a única coisa que existe. Não há outros cinemas e não há nada exte-rior ao meu cinema.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Por que razão constituirá uma crítica afirmar que uma teoria conduz ao solipsismo? Uma resposta a isto é que o solipsismo se parece mais com uma doença mental, uma forma de megalomania, do que com uma posição filosófica defensável. Talvez uma resposta mais persuasiva, usada por Jean-Paul Sartre na sua obra O Ser e o Nada, seja a de que, em quase todas as acções, todos nós mostramos acreditar que existem outras mentes para além da nossa. Por outras palavras, não é o tipo de posição que qualquer de nós poderia facil-mente adoptar à vontade: estamos tão acostumados a presumir a existência de outras pessoas que agir de acordo com o solipsismo dificilmente seria concebível. Tome-se o exemplo de emoções sociais como a vergo-nha e o embaraço. Se for apanhado a fazer qualquer coisa que preferia não ser visto a fazer, tal como esprei-tar pelo buraco da fechadura, terei muito provavel-mente vergonha. No entanto, se eu fosse um solipsista, isto não faria sentido. O próprio conceito de vergonha não teria sentido. Enquanto solipsista, eu acreditaria ser a única mente existente: não existiria mais ninguém para me julgar. Analogamente, sentir embaraço seria absurdo para um solipsista. Não existiria nenhuma pessoa perante a qual pudesse sentir-me embaraçado, excepto eu mesmo. O grau com que estamos compro-metidos com a crença na existência de um mundo para além das nossas próprias experiências é tal, que mos-trar que uma posição filosófica conduz ao solipsismo é suficiente para enfraquecer a sua plausibilidade.

A explicação mais simples

O idealismo pode também ser criticado por outros motivos. Mesmo que concordemos com a ideia do idea-

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O MUNDO EXTERIOR

lista de que tudo a que temos acesso são as nossas próprias experiências sensoriais, poderíamos, ainda assim, querer saber o que causa estas experiências e porque se conformam a tais padrões regulares. Por que razão podem as experiências sensoriais ser organiza-das tão facilmente naquilo a que na linguagem quoti-diana chamamos «objectos físicos»? Certamente que a resposta mais directa a isto é afirmar que os objectos físicos existem realmente lá fora, no mundo exterior, e que causam as experiências sensoriais que temos deles. Era isto, sem dúvida, que Samuel Johnson (1709-1784) queria dizer quando, em resposta ao idealismo do bispo Berkeley, deu um forte pontapé numa grande pedra, declarando: «Refuto-o assim.»

Berkeley sugeriu que é Deus, e não os objectos fí-sicos, que causa a nossa experiência sensorial. Deus deu-nos uma experiência sensorial ordenada. Deus percepciona todos os objectos durante todo o tempo, de forma que o mundo continua a existir quando não é percepcionado pelos seres humanos. Contudo, como vimos no capítulo 1, a existência de Deus não pode ser dada como garantida. Para muitas pessoas, a existência de objectos físicos reais seria uma hipótese explicativa muito mais aceitável das causas da nossa experiência.

O idealista acredita que, para que algo exista, tem de ser percepcionado. Uma razão para esta crença é o facto de ser logicamente impossível que alguém possa verificar se o contrário é verdade: ninguém poderia observar se a minha guitarra deixa de existir quando ninguém está a percepcioná-la, uma vez que para fazer essa observação alguém teria de estar a percepcioná-la. No entanto, mesmo que isto seja verdade, há vários indícios que apontam para o facto de a minha guitarra continuar a existir quando não é percepcionada. A ex-

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

plicação mais simples para o facto de ela continuar encostada à parede quando acordo de manhã é admitir que ninguém lhe mexeu, nem a levou emprestada, nem a roubou e que continuou a existir impercepcionada pela noite fora. A teoria do fenomenismo é um desen-volvimento do idealismo que leva em linha de conta esta hipótese altamente plausível.

Fenomenismo

Tal como o idealismo, o fenomenismo é uma teoria da percepção baseada na ideia de que só temos acesso directo à experiência sensorial e não ao mundo exterior. Mas difere do idealismo na sua explicação dos objectos físicos. Ao passo que os idealistas defendem que a nossa noção de um objecto físico é uma abreviatura de um grupo de experiências sensoriais, fenomenistas como John Stuart Mill pensam que os objectos físi-cos podem ser completamente descritos em termos de padrões de experiências sensoriais efectivas ou possí-veis. A possibilidade de ter experiência sensorial da minha guitarra continua em aberto mesmo quando não estou efectivamente a olhar para ela ou a tocar-lhe. Os fenomenistas acreditam que todas as descrições dos objectos físicos podem ser traduzidas em termos de descrições de experiências sensoriais efectivas ou hipo-téticas.

Um fenomenista é como alguém encurralado no seu próprio cinema privado, a ver filmes. Mas, ao contrário do idealista, que acredita que as coisas representadas no écran deixam de existir quando não estão a ser projectadas, o fenomenista acredita que estes objectos continuam a existir enquanto expe-

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O MUNDO EXTERIOR

riências possíveis mesmo que não estejam a ser pro-jectados no écran nesse momento. Além disso, o feno-menista acredita que tudo o que aparece, ou poderia aparecer, no écran pode ser descrito na linguagem da experiência sensorial sem qualquer referência a objectos físicos.

O fenomenismo pode ser criticado das seguintes formas.

Críticas ao fenomenismo

Dificuldade em descrever objectos

É extremamente complicado exprimir uma afirma-ção sobre objectos físicos como «a minha guitarra está encostada à parede, no meu quarto, impercepcionada» somente em termos de experiências sensoriais. Na ver-dade, todas as tentativas de descrever objectos físicos desta forma falharam.

O solipsismo e o argumento da linguagem privada

O fenomenismo, tal como o idealismo, parece con-duzir ao solipsismo: as outras pessoas são apenas expe-riências perceptivas efectivas ou possíveis que eu po-deria ter. Já examinámos várias objecções ao solip-sismo. O argumento da linguagem privada, original-mente usado por Ludwig Wittgenstein (1889-1951) na sua obra Investigações Filosóficas, proporciona outra objecção a este aspecto do fenomenismo.

O fenomenismo presume que cada pessoa pode identificar e nomear sensações particulares somente com base na sua própria experiência directa. Esta iden-

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E L E M E N T O S BÁSICOS DE FILOSOFIA

tificação e reidentificação de sensações apoia-se na experiência privada, e não na existência de objectos físicos públicos. O argumento da linguagem privada mostra que esse acto privado de nomear e re-identificar as sensações jamais poderia ocorrer, enfraquecendo assim o fenomenismo.

Toda a linguagem depende de regras e as regras dependem da existência de maneiras de verificar se elas foram ou não bem aplicadas. Ora, suponha-se que um fenomenista teve uma sensação de verme-lho: como pode ele verificar se esta sensação é da mesma cor que as outras que ele rotulou de «verme-lho»? Não há maneira de verificar isto, uma vez que para o fenomenista não há diferença entre ser ver-melho e pensar-se que é vermelho. E como alguém que procura recordar-se do horário do comboio e tem de verificar a sua recordação através de si pró-prio, em vez de através do horário real. É uma ve-rificação privada, e não pública, não podendo ser usada para ter a certeza quanto à correcção do nosso uso público da palavra «vermelho». Assim, o pres-suposto de que um fenomenista poderia descrever a sua experiência nesta linguagem que se verifica a si mesma está errado.

Realismo causal

O realismo causal presume que as causas da nossa experiência sensorial são os objectos físicos existentes no mundo exterior. O realismo causal parte da observa-ção de que a função biológica principal dos nossos sentidos é ajudar a orientarmo-nos no nosso meio ambiente. E através dos nossos sentidos que adquiri-

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O MUNDO EXTERIOR

mos crenças acerca do nosso meio. Segundo o realismo causal, quando vejo a minha guitarra, o que acontece realmente é o seguinte: os raios de luz reflectidos na guitarra causam certos efeitos na minha retina e nou-tras áreas do meu cérebro. Isto faz-me adquirir certas crenças acerca do que estou a ver. A experiência de adquirir tais crenças é a experiência de ver a minha guitarra.

A maneira pela qual adquirimos crenças perceptivas é importante: nem todas as maneiras servem. Para que eu possa ver realmente a minha guitarra é essencial que a mesma seja a causa das crenças por mim adqui-ridas acerca dela. A ligação causal própria da visão é a que resulta de um objecto que reflecte raios de luz para a minha retina e o processo subsequente de processar esta informação no meu cérebro. Se, por exemplo, eu estava sob o efeito de barbitúricos e estava apenas a sofrer uma alucinação, não estava a ver a minha gui-tarra. A causa das minhas crenças eram os barbitúricos, e não a guitarra.

Na visão trata-se de adquirir informação acerca do meio, e não de produzir representações mentais de qualquer tipo. Tal como o realismo representativo, o realismo causal presume que existe realmente um mun-do exterior que continua a existir quer esteja a ser objecto de experiência quer não. Presume também que as crenças que adquirimos através dos órgãos dos sen-tidos são geralmente verdadeiras — é por isso que, em resultado da selecção natural no decurso da evolução, os nossos receptores sensoriais são como são: têm a tendência para nos dar informação fidedigna acerca do nosso meio.

Outra grande vantagem do realismo causal sobre as teorias rivais da percepção é o facto de poder facilmente

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E L E M E N T O S BÁSICOS DE FILOSOFIA

explicar como pode o nosso conhecimento actual afectar a nossa percepção. Ao adquirir informação, o nosso sistema de classificação e o nosso conhecimento existente afectam directamente a forma como tratamos a nova informação e o que seleccionamos e inter-pretamos como relevante. Iremos regressar a este tema no próximo capítulo, na secção «Observação» (ver pp. 168-171).

Críticas ao realismo causal

A experiência da visão

A principal crítica ao realismo causal defende que ele não dá conta, satisfatoriamente, do que é realmente ver algo, não dá conta do aspecto qualitativo da visão. Reduz a experiência da percepção a uma forma de recolha de informação. Contudo, o realismo causal é, até hoje, a teoria da percepção mais satisfatória.

Pressupõe o mundo real

O realismo causal pressupõe um mundo real exterior que existe independentemente de as pessoas o percep-cionarem ou não. Isto é conhecido como um pressu-posto metafísico — por outras palavras, é um pressu-posto acerca da natureza da realidade. Para uma pessoa com tendências idealistas, este pressuposto metafísico é inaceitável. Contudo, uma vez que quase toda a gente está comprometida com a crença num mundo real que existe independentemente de nós, este pressu-posto pode ser encarado como um aspecto a favor do realismo causal, em vez de constituir uma crítica.

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O MUNDO EXTERIOR

Conclusão

Neste capítulo explorámos algumas das teorias filo-sóficas mais importantes acerca do mundo exterior e da nossa relação com ele. O próximo capítulo centra-se numa forma particular de descobrir o mundo, nomea-damente a investigação científica.

Leitura complementar

Os argumentos cépticos de Descartes são apresenta-dos na primeira das suas Meditações e o seu argumento do cogito ericontra-se no princípio da segunda. Ambas podem ser encontradas em Meditações sobre a Filosofia Primeira (Coimbra, Livraria Almedina, 1985). A melhor pequena introdução à filosofia de Descartes é, de longe, a entrevista de Bernard Williams presente em Os Gran-des Filósofos, organizado por Brian Magee (Lisboa, Edi-torial Presença, 1989), um livro que já recomendei.

The British Empiricists, de Stephen Priest (Londres, Pen-guin, 1990), outro livro já recomendado na minha intro-dução, inclui discussões de vários tópicos deste capítulo.

Introduction to the Theory of Knowledge (Brighton, Harvester, 1982), de D. J. O'Connor e Brian Carr, é uma introdução útil a esta área, tal como The Problem of Knowledge (Londres, Penguin, 1956), de A. J. Ayer.

Os Problemas da Filosofia (Coimbra, Arménio Amado, 1980), de Bertrand Russell, é ainda hoje uma leitura compensadora: trata-se de uma pequena introdução à filosofia que se concentra sobre questões epistemológi-cas e tem feito parte das leituras recomendadas aos can-didatos ao estudo universitário da Filosofia ao longo da maior parte desde século.

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Ciência

A ciência permitiu-nos mandar pessoas à Lua, curar a tuberculose, inventar a bomba atómica, os automó-veis, o aeroplano, a televisão, os computadores e várias outras coisas que mudaram a natureza da nossa vida quotidiana. Reconhece-se, geralmente, que o método científico é a forma mais eficaz de descobrir e prever o comportamento da natureza. Nem todas as invenções científicas têm sido benéficas para os seres humanos — é óbvio que esses desenvolvimentos tanto têm sido usados para destruir como para melhorar a vida huma-na. Contudo, seria difícil negar o sucesso na manipula-ção da natureza que a ciência tornou possível. A ciência produziu resultados, ao passo que a bruxaria, a magia, a superstição e a mera tradição não têm mostrado, com-parativamente, grande coisa a seu favor.

O método científico é um grande avanço em relação a formas anteriores de adquirir conhecimento. Histori-camente, a ciência substituiu a «verdade de autori-dade». A verdade de autoridade significava aceitar como verdadeiras as ideias de várias «autoridades» im-

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CIÊNCIA

portantes — especialmente as obras que sobreviveram de Aristóteles (384-322 a. C.)7 o filósofo grego antigo, e os ensinamentos da Igreja —, por causa não do que afirmavam, mas de quem o afirmava. Ao invés, o mé-todo científico sublinha a necessidade de efectuar tes-tes e fazer observações detalhadas acerca dos resulta-dos antes de confiar em qualquer afirmação.

Mas o que é o método científico? Será realmente tão digno de confiança quanto somos habitualmente leva-dos a acreditar? Como progride a ciência? Este é o tipo de questões que os filósofos da ciência colocam. Nesta secção, consideraremos algumas questões gerais acerca da natureza do método científico.

A perspectiva simples do método científico

Uma perspectiva simples, mas muito comum, do método científico é a seguinte: o cientista começa por um vasto número de observações de certo aspecto do mundo: por exemplo, o efeito de aquecer a água. Estas observações devem ser tão objectivas quanto possível: o objectivo do cientista é ser imparcial e não ter precon-ceitos ao registar os dados. Uma vez recolhida, pelo cientista, uma grande quantidade de dados baseados na observação, o estádio seguinte é criar uma teoria que explique o padrão de resultados. Esta teoria, se for boa, explicará simultaneamente o que estava a acon-tecer e irá prever o que é provável que aconteça no futuro. Se os resultados futuros não se coadunarem completamente com estas previsões, o cientista modi-ficará a sua teoria para dar conta deles. Porque existe uma grande regularidade na natureza, as previsões científicas podem ser extraordinariamente precisas.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Assim, por exemplo, um cientista pode começar por aquecer água a 100°C sob condições normais e observar a água a entrar em ebulição e a evaporar-se. O cientista pode então fazer várias outras observações do com-portamento da água sob diferentes temperaturas e pressões. Com base nestas observações, o cientista irá sugerir uma teoria acerca do ponto de ebulição da água em relação à temperatura e à pressão. Esta teoria irá explicar não apenas as observações particulares feitas pelo cientista, mas também, se for uma boa teoria, explicar e prever todas as observações futuras do com-portamento da água sob diferentes temperaturas e pressões. Segundo esta perspectiva, o método cientí-fico começa com observações, passa à teoria e produz assim uma generalização (ou enunciado universal) capaz de gerar previsões. Se a generalização for boa, será considerada uma lei da natureza. A ciência pro-duz resultados objectivos que podem ser confirmados por qualquer pessoa que queira repetir os testes ori-ginais.

Esta perspectiva do método científico é surpreen-dentemente comum, mesmo entre os cientistas activos. No entanto, é insatisfatória por vários motivos, os mais importantes dos quais são os seus pressupostos acerca da natureza da observação e dos argumentos indu-tivos.

Críticas à perspectiva simples

Observação

Como vimos, a perspectiva simples do método cientí-fico afirma que os cientistas começam por efectuar obser-

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CIÊNCIA

vações imparciais antes de formularem teorias para expli-car essas observações. Contudo, isto é uma má descrição do que a observação realmente é: a perspectiva simples pressupõe que o nosso conhecimento e expectativas não afectam as nossas observações, que é possível fazer observações de forma completamente isenta de precon-ceitos.

Tal como sugeri quando discuti a percepção no capí-tulo anterior, ver algo não é apenas ter uma imagem na nossa retina. Ou, como defendeu o filósofo N. R. Hanson (1924-1967), «a visão envolve mais coisas do que o globo ocular». O nosso conhecimento e as nossas expectativas do que iremos provavelmente ver afectam o que vemos de facto. Por exemplo, quando eu olho para os fios de uma central telefónica, vejo apenas um emaranhado caó-tico de fios coloridos; um engenheiro de telecomunica-ções, ao olhar para a mesma coisa, veria padrões de conexões e outras coisas. O pano de fundo das crenças do engenheiro de telecomunicações afecta o que ele efectivamente vê. O engenheiro e eu não temos a mesma experiência visual que depois interpretamos de forma diferente: a experiência visual, como a teoria realista cau-sal da percepção sublinha, não pode separar-se das nos-sas crenças acerca do que estamos a ver.

Como outro exemplo deste aspecto, pense o leitor na diferença entre o que um físico experiente vê quando olha para um microscópio electrónico e o que uma pes-soa de uma cultura pré-científica veria ao olhar para o mesmo equipamento. O físico compreenderia a inter-re-lação entre as diferentes partes do instrumento e avaliaria a forma de o usar e o que poderia fazer-se com ele. Para a pessoa da cultura pré-científica, o instrumento cons-tituiria provavelmente uma confusão de estranhos boca-dos de metal e fios, unidos de forma misteriosa.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

É claro que existem muitas coisas em comum que observadores diferentes da mesma coisa irão ver; caso contrário, a comunicação seria impossível. Mas a pers-pectiva simples do método científico tem tendência para menosprezar este facto importante acerca da observação: o que vemos não pode ser pura e simplesmente reduzido às imagens nas nossas retinas. O que habitualmente ve-mos depende daquilo a que se chama o «enquadramento mental»: o nosso conhecimento e expectativas e também o meio cultural em que fomos educados.

Contudo, vale a pena notar que existem algumas ob-servações que se recusam obstinadamente a ser afectadas pelas nossas crenças. Apesar de saber que a Lua não é maior quando surge mais abaixo no horizonte do que quando está no seu zénite, não consigo evitar vê-la maior. Neste caso, a minha experiência perceptiva da Lua não é afectada pelas minhas crenças conscientes de fundo. E óbvio que digo que a Lua «parece maior», e não que «é maior», e isto implica a presença de conhecimentos teó-ricos, mas parece ser um caso em que a minha experiên-cia perceptiva é imune à influência das minhas crenças. Isto mostra que a relação entre o que sabemos e o que vemos não é tão simples como por vezes se pensa: o conhecimento de fundo não faz sempre que vejamos de forma diferente. Isto não enfraquece o argumento contra a perspectiva simples da ciência, uma vez que, na maio-ria dos casos, o que vemos é significativamente afectado pelo nosso enquadramento mental.

Enunciados observacionais

Uma segunda característica importante da observa-ção num contexto científico que a perspectiva simples negligencia é a natureza dos enunciados observacio-

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CIÊNCIA

nais. O cientista tem de exprimir observações particu-lares numa linguagem. No entanto, a linguagem que o cientista usa para exprimir estes enunciados observa-cionais tem sempre pressupostos teóricos associados. Um enunciado observacional completamente neutro é coisa que não existe: os enunciados observacionais estão «teoricamente subordinados». Por exemplo, até uma afirmação comum como «Ele tocou no fio eléctrico e apanhou um choque» presume que existe electri-cidade e que a electricidade pode ser perigosa. Ao usar a palavra «eléctrico», o locutor pressupõe toda uma teoria acerca das causas do dano sofrido pela pessoa que tocou no fio. Compreender o enunciado completa-mente implica compreender teorias acerca de coisas como a electricidade e a fisiologia. Os pressupostos teóricos estão incorporados na forma como o aconteci-mento é descrito. Por outras palavras, os enunciados observacionais classificam a nossa experiência de uma forma específica, mas esta não é a única maneira de a classificar.

O tipo de enunciado observacional efectivamente feito em ciência, como, por exemplo, «a estrutura molecular da substância foi afectada pelo calor», pressupõe teorias bastante elaboradas. A teoria vem sempre primeiro: a perspectiva simples do método científico está completamente enganada ao supor que a observação imparcial precede sempre a teoria. O que vemos depende do que sabemos e as palavras que escolhemos para descrever o que vemos pressu-põem sempre uma teoria sobre a natureza do que vemos. Estes são dois factos inescapáveis acerca da natureza da observação que enfraquecem a noção de uma observação objectiva, sem preconceitos e neutra.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Selecção Um terceiro aspecto acerca da observação é que os

cientistas não se limitam a «observar», registando todas as medições de todos os fenómenos. Isso seria fisicamente impossível. Os cientistas escolhem os aspectos da situa-ção sobre os quais se concentram. Esta escolha envolve, também ela, decisões teoricamente subordinadas.

O problema da indução Um tipo diferente de objecção à perspectiva simples

do método científico levanta-se pelo facto de esta se apoiar na indução, e não na dedução. A indução e a dedução são dois tipos diferentes de argumentos. Um argumento indutivo envolve uma generalização ba-seada num certo número de observações específicas. Se eu observar um grande número de animais com pêlo, concluindo a partir das minhas observações que todos os animais com pêlo são vivíparos (isto é, dão à luz crias em vez de porem ovos), estaria a usar um argu-mento indutivo. Um argumento dedutivo, por outro lado, parte de certas premissas, passando depois logicamente para uma conclusão que se segue dessas premissas. Por exemplo, das premissas «Todas as aves são animais» e «Os cisnes são aves» posso concluir que, portanto, todos os cisnes são animais: este é um argumento dedutivo.

Os argumentos dedutivos preservam a verdade. Isto significa que, se as suas premissas são verdadeiras, as suas conclusões tèn de ser verdadeiras. Entraríamos em contradição se afirmássemos as premissas e negás-semos a conclusão. Assim, se as premissas «Todas as aves são animais» e «Os cisnes são aves» são ambas

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CIÊNCIA

verdadeiras, tem de ser verdade que todos os cisnes são animais. Ao invés, os argumentos indutivos com premissas verdadeiras podem ter ou não ter conclusões verdadeiras. Mesmo que todas as observações de ani-mais com pêlo por mim efectuadas tenham sido fide-dignas e que todos os animais sejam de facto vivíparos, e mesmo que eu tenha feito milhares de observações, pode vir a descobrir-se que a minha conclusão indutiva de que todos os animais com pêlo são vivíparos é falsa. Na verdade, a existência do plátipo ornitorrinco, um tipo peculiar de animal com pêlo que põe ovos, signi-fica que se trata de uma generalização falsa.

Estamos sempre a usar argumentos indutivos. E a indução que nos leva a esperar que o futuro seja seme-lhante ao passado. Já bebi café muitas vezes, mas nunca me envenenou, por isso presumo, com base num argu-mento indutivo, que o café não me vai envenenar da-qui para a frente. Sempre vi o dia seguir-se à noite, pelo que presumo que continuará a fazê-lo. Observei muitas vezes que, se estiver à chuva, fico molhado, pelo que presumo que o futuro será como o passado e evito sempre que possível estar à chuva. Todos estes exem-plos são casos de indução. As nossas vidas são todas baseadas no facto de a indução nos proporcionar pre-visões razoavelmente fidedignas acerca do nosso meio e do resultado provável das nossas acções. Sem o prin-cípio da indução, a nossa interacção com o meio seria completamente caótica: não teríamos bases para presu-mir que o futuro seria como o passado. Não sabería-mos se a comida que nos preparamos para ingerir iria alimentar-nos ou envenenar-nos; não saberíamos a cada passo se o chão iria sustentar-nos ou abrir-se um abismo, etc. Toda a regularidade prevista do nosso meio estaria aberta à dúvida.

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Apesar deste papel central desempenhado pela indução nas nossas vidas, é um facto indesmentível que o princípio da indução não é inteiramente fide-digno. Como já vimos, pode dar-nos uma conclusão falsa relativamente à questão de saber se é verdade que todos os animais com pêlo são vivíparos. As suas con-clusões não são tão fidedignas quanto as conclusões resultantes de argumentos dedutivos com premissas verdadeiras. Para ilustrar este aspecto, Bertrand Rus-sell, nos Problemas da Filosofia, usou o exemplo de uma galinha que acorda todas as manhãs pensando que, uma vez que foi alimentada no dia anterior, sê-lo-á mais uma vez naquele dia. Um dia acorda e o campo-nês torce-lhe o pescoço. A galinha estava a usar um argumento indutivo baseado num grande número de observações. Estaremos a ser tão tolos quanto esta gali-nha ao apoiar-nos tão fortemente na indução? Como poderemos justificar a nossa fé na indução? Este é o chamado problema da indução, um problema identifi-cado por David Hume no seu Tratado acerca do Conheci-mento Humano. Como poderemos nós alguma vez justi-ficar a nossa confiança num método de argumentação tão pouco digno de confiança? Esta questão é particular-mente relevante para a filosofia da ciência porque, pelo menos na teoria simples delineada acima, a indução desempenha um papel crucial no método científico.

Outro aspecto do problema da indução

Até agora tratámos o problema da indução como uma questão acerca da justificação da generalização sobre o futuro com base no passado. Há outro aspecto do problema da indução que ainda não abordámos. Trata-se do facto de existirem numerosas generaliza-

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ções muito diferentes que poderíamos fazer com base no passado, todas elas consistentes com a informação disponível. Contudo, estas diferentes generalizações podem resultar em previsões completamente diferen-tes acerca do futuro. Isto é muito bem exemplificado no exemplo do «verdul», introduzido pelo filósofo con-temporâneo Nelson Goodman (1906-). Este exemplo pode parecer de alguma forma artificial, mas ilustra um aspecto importante.

Goodman inventou o termo «verdul» para revelar este segundo aspecto do problema da indução. «Ver-dul» é o nome de uma cor. Uma coisa é verdul se for observada antes do ano 2000 e for verde ou se não for observada antes do ano 2000 e for azul. Temos uma vasta experiência que sugere ser verdadeira a genera-lização «Todas as esmeraldas são verdes». Mas a infor-mação disponível é igualmente consistente com a ideia de que «todas as esmeraldas são verduis» (presumindo que todas as observações foram feitas antes do ano 2000). No entanto, afirmar que todas as esmeraldas são verdes ou que são verduis afecta as previsões que fare-mos acerca da observação de esmeraldas depois do ano 2000. Se dissermos que todas as esmeraldas são verduis, a nossa previsão será a de que algumas esme-raldas observadas depois do ano 2000 serão azuis: as que foram observadas antes do ano 2000 serão verdes e as que não foram observadas antes do ano 2000 serão azuis. No entanto, se dissermos, como é mais natural, que todas as esmeraldas são verdes, a nossa previsão será a de que todas elas serão verdes seja qual for a altura em que forem observadas.

Este exemplo mostra que as previsões que fazemos com base na indução não são as únicas que podería-mos fazer com base na informação disponível. Assim,

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não só ficamos com a conclusão de que as previsões que fazemos com base na indução não são cem por cento fidedignas, mas também que nem sequer são as únicas previsões consistentes com a informação que acumulámos.

Tentativas de solução do problema da indução

Parece funcionar

Uma resposta ao problema da indução é fazer notar que a confiança na indução não é apenas generalizada, mas também razoavelmente frutuosa: a maior parte das vezes é uma forma extremamente útil de descobrir regularidades na natureza e de descobrir o seu compor-tamento futuro. Como já fizemos notar, a ciência per-mitiu-nos mandar pessoas à Lua: se a ciência se baseia no princípio da indução temos muitíssimos indícios de que a nossa crença na indução, é justificada. E claro que há sempre a possibilidade de o Sol não nascer amanhã ou de, como a galinha, nos torcerem o pescoço mal acordemos amanhã, mas a indução é o melhor método que temos. Nenhuma outra forma de argumentação nos ajudará a prever melhor o futuro do que o princí-pio da indução.

Uma objecção a esta defesa do princípio da indução afirma que a própria defesa se apoia na indução. Por outras palavras, é um argumento viciosamente circular. O argumento acaba por não ser mais do que afirmar que, porque a indução demonstrou no passado ser bem sucedida, sob vários aspectos, continuará a sê-lo no futuro. Mas esta afirmação é, ela própria, uma genera-

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CIÊNCIA

lização baseada num número específico de casos felizes de indução, tratando-se por isso, também, de um argu-mento indutivo. Um argumento indutivo não pode justificar satisfatoriamente a indução: isso seria uma petição de princípio, pressupondo o que nos propomos demonstrar, nomeadamente que a indução é justi-ficada.

Evolução

Proposições universais, isto é, enunciados que co-meçam por «Todos ...», tais como «Todos os cisnes são brancos», pressupõem semelhanças entre as coisas in-dividuais que estão a ser agrupadas. Neste caso tem de existir uma semelhança entre todos os cisnes indivi-duais para que faça sentido agrupá-los. Contudo, como vimos no caso do «verdul», não existe apenas uma maneira de classificar as coisas que encontramos no mundo ou as propriedades que lhes atribuímos. E pos-sível que, se um dia alguns extraterrestres pousassem na Terra, viéssemos a descobrir que usavam categorias muito diferentes das que nós usamos e que, com base nelas, faziam previsões indutivas muito diferentes das que nós fazemos.

No entanto, como o exemplo do «verdul» mostra, algumas generalizações parecem mais naturais do que outras. A explicação mais plausível deste facto é evolucionista: os seres humanos nascem com um grupo de categorias geneticamente programadas, com base nas quais classificamos a nossa experiên-cia. Obtivemos, enquanto espécie, por um processo de selecção natural, uma tendência para fazer gene-ralizações que prevêem com bastante exactidão o comportamento do mundo que nos rodeia. São estas

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tendências que entram em jogo quando raciocina-mos indutivamente: temos uma tendência natural para classificar as nossas experiências do mundo de formas que conduzem a previsões fidedignas. Quer esta explicação da indução justifique a nossa con-fiança nela quer não, proporciona sem dúvida uma explicação da razão pela qual confiamos geralmente nos argumentos indutivos e do motivo por que esta confiança é geralmente correcta.

Probabilidade

Outra resposta ao problema da indução é admitir que, apesar de nunca podermos mostrar que a conclu-são de um argumento indutivo é cem por cento certa, podemos, no entanto, mostrar que é muito provavel-mente verdadeira. As chamadas leis da natureza que a ciência descobre não estão absolutamente demonstra-das como verdadeiras: são generalizações que têm uma alta probabilidade de serem verdadeiras. Quantas mais observações confirmarem estas leis, mais provavel-mente serão verdadeiras. Esta resposta é por vezes co-nhecida como probabilismo. Não podemos ter a certeza de que o Sol irá nascer amanhã, mas podemos, com base na indução, achar que isso é altamente provável.

Contudo, uma objecção a esta ideia é que a pró-pria probabilidade é algo que pode mudar. A atribui-ção de probabilidades a um acontecimento futuro é baseada na frequência da sua ocorrência no passado. Mas a única justificação para supor que a probabili-dade se verificará no futuro é, ela mesma, indutiva. Logo, trata-se de um argumento circular, uma vez que confia na indução para justificar a nossa con-fiança na indução.

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Falsificacionismo: conjectura e refutação

Outra saída para o problema da indução, pelo me-nos tal como ele afecta o tema do método científico, é negar que a indução seja a base do método científico. O falsificacionismo, a filosofia da ciência desenvolvida por Karl Popper (1902-1994), entre outros, ocasiona isto mesmo. Os falsificacionistas defendem que a perspec-tiva simples da ciência está errada. Os cientistas não começam por fazer observações, começam com uma teoria. As teorias científicas e as chamadas leis da na-tureza não aspiram à verdade: ao invés, são tentativas especulativas de oferecer uma análise de vários aspec-tos da natureza. São conjecturas: suposições bem infor-madas, concebidas para serem melhores do que as teo-rias anteriores.

Estas conjecturas são então sujeitas a testes experi-mentais. Mas estes testes têm um objectivo muito espe-cífico. Não pretendem demonstrar que a conjectura é verdadeira, mas antes demonstrar que é falsa. A ciência funciona tentando falsificar teorias, e não demonstrar que são verdadeiras. Qualquer teoria que se mostre ser falsa é abandonada ou, pelo menos, modificada. A ciên-cia progride, assim, através de conjecturas e refutações. Nunca podemos ter a certeza, em relação a qualquer teoria, de que ela é absolutamente verdadeira: em prin-cípio, qualquer teoria pode ser falsificada. Esta pers-pectiva parece adaptar-se bem ao progresso testemu-nhado na história da ciência: a visão ptolemaica do universo, que coloca a Terra no seu centro, foi ultrapas-sada pela copernicana; a física de Newton foi ultrapas-sada pela física de Einstein.

A falsificação tem pelo menos uma grande vantagem em relação à perspectiva simples da ciência: um único

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caso de falsificação é suficiente para mostrar que uma teoria não é satisfatória, ao passo que, por mais observa-ções que confirmem uma teoria, nunca podem ser sufi-cientes para nos darem cem por cento de certeza de que a teoria será confirmada por todas as observações futu-ras. Esta é uma característica dos enunciados universais. Se digo «Todos os cisnes são brancos», basta a observação de um único cisne preto para refutar a minha teoria. Contudo, se eu observar dois milhões de cisnes brancos, o próximo cisne que observar pode muito bem ser preto: por outras palavras, a generalização é muito mais fácil de refutar do que de demonstrar.

Falsificabilidade

O falsificacionismo proporciona também uma ma-neira de distinguir as hipóteses científicas úteis das hipóteses irrelevantes para a ciência. O teste da utili-dade de uma teoria é o seu grau de falsificabilidade. Uma teoria é inútil para a ciência — na verdade, nem sequer é uma hipótese científica — se não for possível que exista qualquer observação que a falsifique. Por exemplo, é relativamente simples conceber testes que poderiam falsificar a hipótese «A chuva em Espanha atinge principalmente a planície», ao passo que ne-nhum teste pode mostrar que é falso que «Ou vai cho-ver hoje ou não». Este último enunciado é verdadeiro por definição e portanto não tem nada a ver com a observação empírica: não é uma hipótese científica.

Quanto mais falsificável for um enunciado, mais útil é à ciência. Muitos enunciados são expressos de forma vaga, fazendo que seja bastante difícil ver como pode-riam ser testados e como interpretar os resultados. Um enunciado arrojado e falsificável, contudo, mostrará

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muito rapidamente ser falso, ou então resistirá à falsi-ficação. Em qualquer dos casos ajudará ao progresso da ciência: se for falsificável, contribuirá para encorajar o desenvolvimento de uma hipótese que não possa ser assim tão facilmente refutada; se mostrar ser difícil de falsificar, fornecerá uma teoria convincente, e quais-quer novas teorias serão ainda melhores.

• Ao examinar melhor algumas hipóteses que muitas pessoas pensam serem científicas verificamos não se-rem testáveis: não há observações que as falsifiquem. Um exemplo controverso disto ocorre no caso da psica-nálise. Alguns falsificacionistas argumentaram que muitas das afirmações da psicanálise são logicamente infalsificáveis, não sendo, portanto, científicas. Se um psicanalista afirma que o sonho de um certo doente é de facto acerca de um conflito sexual não resolvido da sua infância, não há nenhuma observação que possa falsificar esta afirmação. Se o doente negar a existência de qualquer conflito, o analista tomará isto como mais uma confirmação de que o doente está a reprimir algo. Se o doente admitir que a interpretação do analista é correcta, também isto irá confirmar a hipótese. Logo, não há maneira de falsificar a afirmação, não podendo portanto aumentar o nosso conhecimento do mundo. Portanto, segundo os falsificacionistas, é uma hipótese pseudocientífica: não é de maneira nenhuma uma ver-dadeira hipótese científica. Contudo, só porque uma teoria não é científica neste sentido, não se segue que não tenha valor. Popper pensava que muitas das afir-mações da psicanálise poderiam eventualmente tornar--se testáveis, mas que, na sua forma pré-científica, não deveriam ser tomadas como hipóteses científicas.

A razão para evitar hipóteses que não podem ser testadas é o facto de impedirem o progresso científico:

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se não é possível refutá-las, não há maneira de as subs-tituir por uma teoria melhor. O processo da conjectura e refutação característico do progresso científico seria contrariado. A ciência progride através dos erros: atra-vés de teorias que são falsificadas e substituídas por outras melhores. Neste sentido, há um certo grau de tentativa e erro na ciência. Os cientistas experimentam uma hipótese, verificam se podem falsificá-la e, se o conseguirem, substituem-na por outra melhor, que é então sujeita ao mesmo tratamento. Todas as hipóteses substituídas — os erros — contribuem para o acrés-cimo geral do nosso conhecimento do mundo. Ao in-vés, as teorias logicamente infalsificáveis são, a esse respeito, pouco úteis para o cientista.

Muitas das mais revolucionárias teorias científicas tiveram origem em conjecturas arrojadas e imaginati-vas. A teoria de Popper sublinha a imaginação criativa envolvida na concepção de novas teorias. A este res-peito dá uma explicação mais plausível da criatividade cientifica do que a perspectiva simples, que faz das teorias científicas deduções lógicas a partir das obser-vações.

Críticas ao falsificacionismo

O papel da confirmação

Uma crítica ao falsificacionismo é o facto de não conseguir tomar em linha de conta o papel da confir-mação de hipóteses na ciência. Ao concentrar-se nas tentativas de falsificar hipóteses, não presta atenção aos efeitos das previsões bem sucedidas sobre a aceita-ção ou não de uma hipótese científica. Por exemplo, se

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a minha hipótese afirma que a temperatura a que a água entra em ebulição varia de forma constante em relação à pressão atmosférica do ambiente em que a experiência for conduzida, isto permitir-me-á fazer várias previsões acerca da temperatura a que a água entrará em ebulição sob diferentes pressões. Por exem-plo, poderá levar-me a prever — e bem — que os mon-tanhistas não conseguirão fazer uma boa chávena de chá a altitudes elevadas porque a água entra em ebu-lição a uma temperatura inferior a 100°C, de forma que a infusão das folhas de chá não se daria da forma apropriada. Se se mostrar que as minhas previsões são precisas, esse facto servirá para apoiar a minha teoria. O tipo de falsificacionismo descrito acima ignora este aspecto da ciência. Previsões bem sucedidas com base em hipóteses, sobretudo se são hipóteses invulgares e originais, desempenham um papel importante no de-senvolvimento científico.

Isto não destrói o falsificacionismo: o poder lógico de uma única observação falsificadora continuará a ser sempre maior do que qualquer número de observações confirmadoras. No entanto, o falsificacionismo precisa de ser ligeiramente modificado para dar conta do papel desempenhado pela confirmação de hipóteses.

Erro humano

O falsificacionismo parece advogar o derrube de uma teoria com base num único caso de falsificação. Contudo, na prática há muitas componentes em qual-quer experiência ou estudo científico, havendo geral-mente margem considerável para o erro e a má inter-pretação dos resultados. Os aparelhos de medição po-dem funcionar mal ou os métodos de recolha de dados

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podem não ser fidedignos. Assim, os cientistas não deviam, certamente, ser facilmente influenciados por uma observação única que pareça destruir uma teoria.

Popper concordaria com isto. Não se trata de um problema sério para o falsificacionismo. Do ponto de vista da lógica é claro que, em princípio, um único caso falsificador pode destruir uma teoria. Contudo, Popper não sugere que os que praticam a ciência devem pura e simplesmente abandonar uma teoria assim que tive-rem um caso que aparentemente a falsifique: pelo con-trário, devem ser cépticos e investigar todas as origens possíveis de erro.

Historicamente incorrecto

O falsificacionismo não dá adequadamente conta de muitos dos desenvolvimentos mais significativos da história da ciência. A revolução copernicana, a ideia de que o Sol estava no centro do universo e de que a Terra e os outros planetas o orbitavam, ilustra o facto de a presença de casos aparentemente falsificadores não ter conduzido as grandes figuras à rejeição das suas hipó-teses. Agarraram-se às suas teorias perante dados em contrário que, segundo os padrões da época, eram arra-sadores. A alteração do modelo científico da natureza do universo não ocorreu segundo um processo de conjecturas seguido de refutações. Só depois de vários séculos de desenvolvimento da física pôde a teoria ser adequadamente testada em função da observação.

Analogamente, a teoria da gravitação de Isaac Newton (1642-1727) foi aparentemente falsificada por observações da órbita lunar, realizadas pouco depois da apresentação pública da sua teoria. Só muito mais tarde se mostrou que estas observações tinham sido

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enganadoras. Apesar desta refutação aparente, Newton e outros cientistas mantiveram-se fiéis à teoria da gravitação, o que teve efeitos benéficos para o desen-volvimento da ciência. No entanto, segundo a perspec-tiva falsificacionista de Popper, a teoria de Newton deveria ter sido abandonada por ter sido falsificada.

O que estes dois exemplos sugerem é que a teoria falsificacionista da ciência nem sempre se ajusta muito bem à história efectiva da ciência. A teoria precisa pelo menos de ser modificada para poder explicar de forma precisa como as teorias científicas são substituídas.

Conclusão

Neste capítulo centrei-me no problema da indução e na perspectiva falsificacionista do método científico. Apesar de as pessoas que fazem ciência não precisarem de estar conscientes das implicações filosóficas do que fazem, muitas delas foram influenciadas pela explica-ção falsificacionista do progresso científico. Apesar de a filosofia não afectar necessariamente a forma como os cientistas trabalham, pode, sem dúvida, alterar a forma como compreendem o seu trabalho.

Leitura complementar

What Is This Thing Called Science? (Milton Keynes, Open University Press, 1978), de A. F. Chalmers, é uma excelente introdução a esta área: está bem escrito e é estimulante. Cobre de forma acessível a maior parte dos temas importantes da filosofia contemporânea da ciência. Philosophy of Natural Science (Nova Jérsia,

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Prentice-Hall, 1966), de C. G. Hempel, e An Introduction to the Philosophy of Science (Oxford, Clarendon Press, 1989), de Anthony O'Hear, podem também ser úteis.

Popper (Londres, Fontana, 1973), de Bryan Magee, é uma boa introdução à obra de Karl Popper.

A Historical Introduction to the Philosophy of Science (Oxford, Oxford University Press, 3.a ed., 1993), de John Losee, oferece um estudo claro e interessante da histó-ria da filosofia da ciência.

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O que é a mente? Teremos nós almas não físicas? É o pensamento apenas um aspecto da matéria física, unica-mente um resultado do estímulo de nervos no cérebro? Como poderemos ter a certeza de que as outras pessoas não são apenas robots sofisticados? Como podemos afir-mar que são efectivamente conscientes? Todas estas ques-tões pertencem à área da filosofia da mente.

Filosofia da mente e psicologia

A filosofia da mente deve distinguir-se da psicologia, apesar de as suas relações serem estreitas. A psicologia é o estudo científico do comportamento e pensamento humanos: baseia-se na observação das pessoas, muitas vezes sob condições experimentais. Ao invés, a filosofia da mente não é uma disciplina experimental: não en-volve a produção de verdadeiras observações científicas. A filosofia centra-se na análise dos nossos conceitos.

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Os filósofos da mente ocupam-se de questões con-ceptuais que surgem quando pensamos acerca da mente. Um psicólogo pode investigar, por exemplo, alterações da personalidade, como a esquizofrenia, através do exame de doentes, submetendo-os a testes, etc. Um filósofo, por outro lado, coloca questões conceptuais como «O que é a mente?» ou «Que queremos dizer com 'doença mental'?». Tais questões não podem ser respondidas através do exame só de casos reais: exigem que analisemos o signi-ficado dos termos nos quais as próprias questões se ex-primem.

Para ilustrar este aspecto considere-se outro exem-plo. Um neuropsicólogo que investigue o pensamento humano pode observar padrões de estimulação ner-vosa no cérebro. Um filósofo da mente colocaria a ques-tão conceptual mais básica de saber se a actividade destes nervos é equivalente ao pensamento ou se existe alguma característica do nosso conceito de pensamento que signifique que não pode ser reduzido a uma ocor-rência física. Ou, para colocar a questão de uma forma mais tradicional, teremos nós mentes distintas dos nos-sos corpos?

Neste capítulo, examinaremos alguns dos debates centrais da filosofia da mente, concentrando-nos nas questões de saber se uma explicação física da mente é adequada e se podemos ter conhecimento das mentes das outras pessoas.

O problema da mente /corpo

Na forma como nos descrevemos a nós próprios e ao mundo fazemos geralmente uma distinção entre os aspectos mentais e os aspectos físicos. Os aspectos

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mentais são coisas como o pensamento, o sentimento, A decisão, o sonho, a imaginação, os desejos, etc. Os físicos incluem os pés, os membros, os nossos cérebros, chávenas de chá, o Empire State Building, etc.

Quando fazemos algo, tal como jogar ténis, usamos ambos os aspectos, mentais e físicos: pensamos nas regras do jogo, de onde o nosso adversário irá prova-velmente fazer a próxima jogada, etc., e movemos os nossos corpos. Mas existirá uma verdadeira divisão entre a mente e o corpo, ou será esta apenas uma forma conveniente de falar sobre nós mesmos? O problema de explicar a verdadeira relação entre a mente e o corpo é conhecido como o problema da mente/corpo.

Chamam-se dualistas aos que acreditam que a mente e o corpo são coisas separadas, que cada um de nós tem as duas coisas, a mente e o corpo. Os que acredi-tam que o mental é, num certo sentido, a mesma coisa que o físico, que não somos mais do que carne e san-gue e que não temos uma substância mental separada são conhecidos como fisicalistas. Começaremos por con-siderar o dualismo e as suas principais críticas.

Dualismo

O dualismo, como vimos, envolve a crença na exis-tência de uma substância não física: o mental. Um dualista acredita tipicamente que o corpo e a mente são substâncias distintas que interagem uma com a outra, mas que permanecem separadas. Os processos men-tais, tais como o pensamento, não são o mesmo que os físicos, tais como o disparar das células do cérebro; os processos mentais ocorrem na mente, e não no corpo. A mente não é o cérebro vivo.

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O dualismo mente/corpo é uma perspectiva defen-dida por muita gente, sobretudo aqueles que acreditam ser possível sobreviver à nossa morte corpórea, quer vivamos num tipo qualquer de mundo de espíritos, quer reencar-nemos num novo corpo. Ambas estas perspectivas pres-supõem que os seres humanos não são apenas seres físicos e que a nossa componente mais importante é a mente não física ou, como é geralmente chamada em contextos reli-giosos, a alma. René Descartes é provavelmente o dualista mente/corpo mais famoso: tal dualismo é geralmente conhecido como dualismo cartesiano (o adjectivo «carte-siano» é formado a partir do nome de Descartes).

Um motivo forte para acreditar que o dualismo é verdadeiro é a dificuldade que quase toda a gente tem em ver como pode uma coisa puramente física, como o cérebro, dar origem aos complexos padrões de senti-mentos e pensamentos a que chamamos consciência. Como poderia uma coisa puramente física sentir me-lancolia ou apreciar uma pintura? Tais questões dão ao dualismo uma plausibilidade inicial, enquanto solução do problema da mente/corpo. Contudo, há várias crí-ticas importantes a esta teoria.

Críticas ao dualismo

Não pode ser cientificamente investigado

Uma crítica por vezes levantada ao dualismo mente/ /corpo defende que esta perspectiva não nos ajuda real-mente a compreender a natureza da mente. Tudo o que nos diz é que existe em cada um de nós uma substância não física que pensa, sonha, tem experiências, etc. Mas, alegam os fisicalistas, uma mente não física não poderia

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MENTE

ser investigada directamente: em particular, não poderia ser investigada cientificamente, porque a ciência só lida com o mundo físico. Tudo o que poderíamos examinar seriam os seus efeitos no mundo.

Contra isto, o dualista poderia responder que pode-mos observar a mente através da introspecção, isto é, através do exame do nosso pensamento. E nós podemos investigar, e investigamos de facto, a mente indirecta-mente, através dos seus efeitos no mundo físico. A in-ferência de causas a partir de efeitos é a maneira como a maior parte da ciência funciona; a investigação científica de uma mente não física seria um exemplo do mesmo tipo de abordagem. Além disso, o dualismo mente/corpo tem pelo menos a vantagem de explicar como poderia ser possível sobreviver à morte corpórea, algo que o fisica-lismo não pode fazer sem introduzir a ideia de ressurrei-ção do corpo depois da morte.

Evolução

Aceita-se geralmente que os seres humanos evoluíram a partir de formas de vida mais simples. Contudo, um dualista terá dificuldade em explicar como poderá isto ter sido assim. Presumivelmente, as formas de vida muito simples, tais como as amebas, não têm mentes, ao passo que os seres humanos, e talvez alguns dos animais mais complexos, as têm. Mas então como poderão as amebas ter dado origem a criaturas que têm mentes? De onde poderia esta substância mental ter subitamente apare-cido? E por que razão é a evolução da mente completa-mente paralela à evolução do cérebro?

Uma maneira de responder a esta crítica é afirmar que mesmo as amebas têm mentes de um tipo muito limitado e que a evolução da mente é paralela à evolu-

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ção dos corpos dos animais. Ou então o dualista pode-ria ir mais longe e afirmar que todas as coisas físicas têm também uma mente de um certo tipo: esta última perspectiva é conhecida como pampsiquismo. De acordo com os partidários do pampsiquismo, até as pedras têm mentes muito primitivas. O desenvolvimento da capacidade mental humana pode então ser explicado em termos de uma combinação de substâncias físicas, constituindo assim uma fusão de mentes simples que criam uma mente mais complexa. Contudo, poucos dualistas são simpáticos a esta abordagem, em parte porque obscurece a distinção entre seres humanos e aquilo que consideramos o mundo inanimado.

Interacção

A dificuldade mais séria que o dualista enfrenta consiste em explicar como é possível que duas substân-cias tão diferentes como a mente e o corpo possam interagir. Na perspectiva do dualista é claro que, por exemplo, posso ter um pensamento, dando este pensa-mento em seguida origem a um movimento. Por exem-plo, posso pensar que vou coçar o nariz, movendo-se de seguida o meu dedo em direcção ao meu nariz, coçando-o. A dificuldade para o dualista é mostrar pre-cisamente como pode o pensamento puramente men-tal conduzir à acção física de coçar o nariz.

Esta dificuldade torna-se mais crítica pelo facto de os acontecimentos no cérebro estarem ligados de forma muito íntima a acontecimentos mentais. Para quê in-troduzir a ideia de que a mente é distinta do corpo quando é óbvio que, por exemplo, as lesões cerebrais graves conduzem à deficiência mental? Se a mente e o corpo são realmente distintos, como se explica isto?

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MENTE

Contradiz um princípio científico básico

Outro aspecto da dificuldade de explicar a inte-racção é que esta parece contradizer um princípio muito básico da ciência. A maior parte dos cientistas, sobretudo os fisicalistas, presume que todas as mudan-ças num objecto podem ser explicadas por um aconte-cimento físico anterior: as causas de todos os aconteci-mentos físicos são, elas próprias, físicas. Assim, por exemplo, se uma célula nervosa no cérebro de alguém dispara, um neuropsicólogo irá procurar uma das suas causas físicas. Mas, se o pensamento puro, que é uma actividade da mente, pode levar à acção, alguns acon-tecimentos meramente mentais têm de conduzir direc-tamente a acontecimentos físicos. Os dualistas têm de justificar a revisão de um pressuposto muito básico da ciência. É claro que eles podem sentir que têm a possi-bilidade de justificar esta revisão afirmando que a ver-dade do dualismo é auto-evidente; mas, se duvidar-mos disto, parece mais sensato presumir que é a teoria do dualismo que está errada, e não aquele pressuposto científico, que até agora produziu resultados tão frutuosos na investigação científica.

Dualismo sem interacção

Paralelismo mente/corpo

Uma maneira de o dualista contornar os problemas associados com a explicação de como é possível a interacção mente/corpo é negar pura e simplesmente a sua ocorrência. Alguns dualistas defendem que, apesar de ambos existirem, a mente e o corpo, e de cada um de nós ter um de cada, não existe interacção efectiva

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entre eles. Esta ideia ligeiramente estranha é conhecida como paralelismo psicofísico. A mente e o corpo funcio-nam em paralelo como dois relógios sincronizados. Quando alguém me pisa, sinto uma dor, mas não por receber uma mensagem do meu corpo para a minha mente. Acontece apenas que Deus (ou então uma coin-cidência cosmológica espantosa) fez que esses dois aspectos independentes da minha pessoa funcionas-sem em paralelo. No momento em que alguém me pisa, as coisas foram arranjadas de maneira que eu sinta dor na minha mente, mas o primeiro aconteci-mento não causa o segundo: acontece apenas que um ocorre imediatamente depois do outro.

Ocasionalismo

Outra tentativa igualmente estranha de explicar como a mente e o corpo podem interagir é conhecida como ocasionalismo. Ao passo que o paralelismo afirma que a existência de uma ligação aparente entre a mente e o corpo é uma ilusão, o ocasionalismo permite a existência real de uma ligação, mas defende que esta é sustentada pela intervenção de Deus. Deus propor-ciona a conexão entre a mente e o corpo, entre a lesão do meu pé e a minha sensação de dor ou entre a minha decisão de coçar o nariz e o movimento da minha mão.

Um enorme problema que se depara quer ao paralelismo mente/corpo, pelo menos na sua forma mais plausível, quer ao ocasionalismo, é o facto de ambos pressuporem a existência de Deus, algo que, como vimos no capítulo 1, não é de forma alguma auto-evidente. Além disso, até os teístas costumam achar estas teorias um pouco rebuscadas.

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Epifenomenismo

Uma terceira abordagem do problema da interacção é conhecida como epifenomenismo. Trata-se da pers-pectiva segundo a qual, apesar de os acontecimentos no corpo causarem os acontecimentos mentais, os acon-tecimentos mentais nunca causam acontecimentos físi-cos nem dão origem a outros estados mentais. A mente é então um epifenómeno: por outras palavras, é algo que não afecta directamente o corpo de forma ne-nhuma. O epifenomenista explica a minha aparente capacidade de levantar a minha mão concebendo-a Como uma ilusão. Levantar a minha mão é uma acção puramente física que só parece ser causada pelo meu pensamento. Todos os acontecimentos mentais são directamente causados por acontecimentos físicos, mas nenhuns acontecimentos mentais dão origem a aconte-cimentos físicos.

Tal como o paralelismo e o ocasionalismo, o epi-fenomenismo tem pouca plausibilidade enquanto teoria da mente. Levanta tantas questões difíceis quantas as respostas que oferece. Um dos problemas mais graves a si associados é o facto de tornar o livre nrbítrio uma impossibilidade: nunca podemos real-mente escolher agir, tudo o que podemos ter é a ilu-são de agir em consequência de uma escolha. E por que razão só há causalidade numa direcção, tendo as causas físicas efeitos mentais, mas nunca vice--versa?

Fisicalismo

Depois de termos examinado o dualismo mente/ /corpo e as suas várias críticas e variantes, voltemo-

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-nos agora para o fisicalismo. O fisicalismo é a pers-pectiva segundo a qual os acontecimentos mentais podem ser completamente explicados em termos de acontecimentos físicos, habitualmente em termos do cérebro. Ao contrário do dualismo mente/corpo, que af irma a existência de dois tipos de substâncias , o fisicalismo é uma forma de monismo: é a pers-pectiva de que só existe um tipo de substância, a física. Uma vantagem imediata do fisicalismo em relação ao dualismo é o facto de sugerir um pro-grama de estudo científico da mente. Teoricamente, pelo menos, deve ser possível oferecer uma descri-ção completamente física de qualquer acontecimento mental.

Os filósofos fisicalistas não procuram descobrir a correspondência precisa entre os estados mentais par-ticulares e os pensamentos: essa é uma tarefa para os neuropsicólogos e outros cientistas. Tais filósofos estão sobretudo preocupados em demonstrar que todos os acontecimentos mentais são físicos e que o dualismo é, portanto, falso.

Há vários tipos de fisicalismo, alguns mais suscep-tíveis de crítica do que outros.

Teoria da identidade-tipo

Este tipo de fisicalismo afirma que os estados men-tais são idênticos a estados físicos. Um pensamento acerca do tempo, por exemplo, é unicamente um es-tado particular do cérebro. Sempre que este estado par-ticular do cérebro ocorre, podemos descrever isto como um pensamento acerca do tempo. Isto é conhecido como teoria da identidade-tipo. Todos os estados físi-

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cos de um tipo particular são também estados mentais de um tipo particular.

Para tornar esta perspectiva clara, considere-se como os termos «água» e «H20» referem ambos a mesma substância. Usamos o termo «água» em contextos quo-tidianos e «H20» em contextos científicos. Ora, apesar de ambos os termos referirem a mesma coisa, têm sig-nificados ligeiramente diferentes: «água» é usado para chamar a atenção para as propriedades básicas de humidade, etc., da substância; «H20» é usado para re-velar a sua composição química. Ninguém pede um copo de H20 para misturar com o uísque; no entanto, n água é H20: são uma e a mesma coisa.

Analogamente, um relâmpago é também uma des-carga eléctrica de um certo tipo. Usaremos «relâm-pago» ou «descarga eléctrica» para descrever este acon-tecimento consoante tivermos sido apanhados por uma tempestade ou estivermos a fornecer uma análise cien-tífica do que se está a passar. Podemos usar o termo quotidiano, «relâmpago», sem ter nenhuma consciên-cia da análise científica da causa deste fenómeno, tal como podemos usar o termo «água» e compreender o que é ficar molhado, sem saber a composição química da água.

Regressando à teoria da identidade mente/corpo, «um pensamento acerca do tempo» e «um estado par-ticular do cérebro» podem ser duas maneiras de referir precisamente a mesma coisa. As duas expressões des-crevem um acontecimento idêntico, mas o significado das expressões é, de certo modo, diferente. Quase toda a gente usaria a descrição mental, «um pensamento acerca do tempo», para descrever essa coisa, mas, de acordo com a teoria da identidade-tipo, um cientista poderia, em princípio, oferecer uma análise detalhada

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do estado do cérebro que este pensamento constitui. Além disso, um teórico da identidade-tipo argumenta-ria que todos os pensamentos deste tipo são efectiva-mente estados cerebrais do mesmo tipo. Uma vanta-gem desta teoria da mente é sugerir o tipo de coisas que os neuropsicólogos podem procurar, nomeada-mente os estados físicos do cérebro que correspondem a vários tipos de pensamento. Contudo, há várias objecções à teoria da identidade-tipo.

Críticas à teoria da identidade-tipo

Não há conhecimento dos processos cerebrais

Temos um conhecimento directo dos nossos pensa-mentos; no entanto, quase ninguém sabe nada de pro-cessos cerebrais. Algumas pessoas encaram isto como uma objecção ao fisicalismo: o pensamento não pode ser a mesma coisa que um processo cerebral, porque é possível conhecer o pensamento sem saber nada de neuropsicologia. Todos nós temos um acesso privile-giado aos nossos próprios pensamentos: isto é, sabe-mos melhor do que qualquer outra pessoa o que são os nossos próprios pensamentos conscientes, mas o mesmo não acontece em relação aos estados do cérebro. No entanto, se os pensamentos e os estados do cérebro são idênticos, deveriam partilhar as mesmas propriedades.

Contudo, esta objecção não é um problema sério para o fisicalista. Podemos não saber nada acerca da composição química da água; no entanto, isto não nos impede de compreender o conceito de «água» e de reconhecer o seu sabor quando a bebemos. Analoga-mente, todos os pensamentos podem ser processos do

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cérebro sem que, no entanto, exista razão para esperar que os pensadores têm de compreender a natureza precisa destes processos do cérebro para poderem com-preender os seus pensamentos.

As propriedades dos pensamentos c dos estados do cérebro

Se um pensamento acerca da minha irmã é idên-tico a um certo estado do cérebro, segue-se que o pensamento tem de estar localizado exactamente no mesmo sítio do estado cerebral. Mas isto parece um pouco estranho: os pensamentos não parecem ter uma localização precisa neste sentido. No entanto, deveriam tê-la, pois isso é uma consequência da teo-ria da identidade-tipo. Se tenho uma pós-imagem verde fluorescente provocada por fixar a vista numa luz intensa, esta pós-imagem tem um certo tama-nho, uma cor lívida e uma forma específica; no en-tanto, o estado do meu cérebro é, presumivelmente, muito diferente em relação a estes aspectos. Como pode então a pós-imagem ser idêntica a uni estado específico do cérebro?

Todos os pensamentos são acerca de algo

Todos os pensamentos são acerca de algo: é impos-NÍvel ter um pensamento acerca de nada. Se eu penso «Paris é a minha cidade favorita», o meu pensamento rtlaciona-se com um local no mundo real. Mas os pro-cessos e estados do cérebro não parecem ser acerca de nnda: ao contrário dos pensamentos, não parecem rela-donar-se com nada de exterior.

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Qualia

O fisicalismo-tipo, como muitas tentativas de solu-ção do problema da mente/corpo, é muitas vezes cri-ticado por não conseguir dar conta da experiência cons-ciente: o que é estar efectivamente num certo estado. A consciência pode ser difícil de definir, mas inclui certamente sensações, sentimentos, dor, alegria, desejo, etc. A palavra latina qualia é por vezes usada como um termo geral para designar tais coisas. Apesar de poder-mos falar de «água» e «H20» como descrições alterna-tivas da mesma coisa, «uma recordação da primeira vez que avistei Nova Iorque» não pode ser tão facil-mente parafraseada em termos de «um certo estado do cérebro». A diferença é que no segundo caso não estamos a lidar com objectos inanimados: há um sen-timento específico correspondente a essa experiência consciente. No entanto, reduzir completamente este pensamento a um estado do cérebro não oferece ne-nhuma explicação de como isto pode ser possível. Ig-nora um dos fenómenos mais básicos associados à consciência e ao pensamento: a existência de qualia. Para destacar este aspecto, considere-se a diferença entre os aspectos puramente físicos de uma dor terrível — em termos do comportamento das células nervosas,

etc. — e a sensação real e lancinante de dor: a descrição física é claramente incapaz de captar o que é realmente sofrer essa experiência.

Diferenças individuais

Outra crítica ainda à teoria da identidade-tipo resulta do facto de sustentar que, por exemplo, os pensa-mentos acerca do tempo têm todos de ser estados do

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cérebro de tipo idêntico, mesmo quando os pensamen-tos pertencem a pessoas diferentes. Mas podem existir boas razões para acreditar que os cérebros de pessoas diferentes funcionam de formas ligeiramente diferen-tes, de maneira que cérebros diferentes em pessoas di-ferentes possam, apesar disso, dar origem a um pensa-mento análogo.

Mesmo esta ideia pressupõe que os pensamentos podem ser claramente divididos, que podemos dizer onde acaba um pensamento e começa outro. Um pressuposto básico da teoria da identidade-tipo é que duas pessoas podem ter pensamentos precisa-mente do mesmo tipo. Uma análise mais detalhada mostra que este parece ser um pressuposto dúbio. Se o leitor e eu estamos a pensar que o céu escuro é bonito, podemos exprimir-nos com palavras idênti-cas. Podemos ambos chamar a atenção para a forma especial como a Lua ilumina as nuvens, etc. Mas esta-remos nós necessariamente a ter um pensamento do mesmo tipo?

O meu pensamento acerca da beleza do céu não pode isolar-se facilmente de toda a minha experiência de céus nocturnos, que é obviamente muito diferente da do leitor. Outro caso: se acredito que o autor de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro usou um pseudónimo e se o leitor acredita que Eric Blair usou um pseudónimo, partilharemos nós um pensamento do mesmo tipo? Certamente que os enunciados das nossas crenças refe-rem o mesmo homem, geralmente conhecido em círcu-los literários como George Orwell. No entanto, não há uma resposta fácil a estas questões. O que elas mos-tram é a dificuldade de dividir a nossa vida mental em pedaços claramente definidos que possam depois ser removidos e comparados com os pedaços da vida

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mental de outras pessoas. Se é impossível determinar quando duas pessoas têm pensamentos do mesmo tipo, o fisicalismo do género identidade-tipo é implau-sível enquanto teoria da mente.

Teoria da identidade-espécime

Uma forma de contornar algumas destas críticas à teoria da identidade-tipo é fornecida pela teoria da identidade-espécime. Tal como a teoria da identidade--tipo, a teoria da identidade-espécime, que é outra forma de fisicalismo, afirma que todos os pensamentos são idênticos a estados do cérebro. Contudo, ao contrá-rio da teoria da identidade-tipo, a teoria da identidade--espécime permite que os pensamentos do mesmo tipo não sejam todos estados cerebrais do mesmo tipo. Esta teoria usa a distinção básica entre «tipo» e «espécime»: esta distinção explica-se mais facilmente através de exemplos. Todos os exemplares do livro Guerra e Paz são espécimes de um tipo específico (o romance Guerra e Paz); se o leitor possui um Volkswagen «carocha», pos-sui um espécime de um tipo específico (um «carocha»). O tipo é a espécie; o espécime é o caso individual da espécie. O que a teoria da identidade-espécime afirma é que os espécimes individuais de um tipo específico de pensamento não são necessariamente estados físicos precisamente do mesmo tipo.

Assim, quando penso hoje «Bertrand Russell era um filósofo», isto pode envolver um estado do cérebro dife-rente do de quando tive esse pensamento ontem. Analogamente, para que o leitor tenha este pensamento, não precisa de estar no mesmo estado cerebral em que eu estava em qualquer das duas situações anteriores.

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A teoria da identidade-espécime, contudo, está su-jeita a pelo menos uma crítica fundamental.

Críticas à teoria da identidade-espécime

Alguns estados do cérebro podem ser pensamentos diferentes

Esta simples identidade-espécime parece permitir que duas pessoas sejam fisicamente idênticas, até à mais pequena molécula, e, no entanto, diferir completamente do ponto de vista mental. Isto parece tornar o mental excessivamente independente do físico. Torna a relação entre o físico e o mental completamente misteriosa: mais misteriosa até do que o dualismo mente/corpo.

Contudo, os teóricos da identidade-espécime intro-duzem geralmente a noção de superveniência na sua teoria. Uma propriedade de algo é superveniente em relação a outra propriedade (literalmente, «vai mais nlto») se a sua existência depende dessa outra. Assim, por exemplo, pode dizer-se que a beleza (física) é superveniente em relação aos atributos físicos: se duas pessoas são fisicamente idênticas, é impossível que uma delas seja bonita e a outra não. Contudo, isto não é afirmar que todas as pessoas bonitas são idênticas; quer dizer apenas que, se duas pessoas são idênticas célula a célula, não é possível que uma delas seja bo-nita e a outra não. Se adaptarmos a teoria da identida-de-espécime, acrescentando-lhe a ideia de que as pro-priedades mentais são supervenientes em relação às propriedades físicas, isto significa que, se se mantive-rem as mesmas propriedades físicas, as propriedades mentais não podem variar. Por outras palavras, se duas

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pessoas estão precisamente no mesmo estado cerebral, terão a mesma experiência mental. Contudo, isto não significa que só porque duas pessoas partilham a mes-ma experiência mental tenham de ter o mesmo estado cerebral.

Behaviourismo

Em relação às teorias dualistas e fisicalistas exami-nadas, o behaviourismo oferece uma saída muito dife-rente para o problema da mente/corpo. Quando dize-mos que alguém está com dores ou irritado, isto não é, defendem os behaviouristas, uma descrição da expe-riência mental dessa pessoa. Trata-se antes de uma des-crição do comportamento público dessa pessoa ou do seu comportamento potencial em situações hipotéticas. Por outras palavras, trata-se de uma descrição do que ela faria em tais e tais circunstâncias, isto é, das suas disposições comportamentais. Ter dores é ter tendência para ficar inquieto, para gemer, chorar, gritar, etc., dependendo da intensidade da dor. Estar irritado é ter tendência para gritar, bater com os pés e ser rude com as pessoas. Apesar de falarmos de estados men-tais, isto é apenas, segundo o behaviourista, uma forma abreviada de descrever o nosso comportamento e a tendência para nos comportarmos de certas formas. Esta forma abreviada de descrever o comportamento mental levou-nos a pensar que a mente é uma coisa separada: no seu livro The Concept of Mind, Gilbert Ryle (1900-1976), um famoso filósofo behaviourista, chamou a esta concepção dualista «o dogma do fantasma na máquina», sendo o fantasma a mente e a máquina o corpo.

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A concepção behaviourista faz com que o problema da mente/corpo seja um pseudoproblema — e não um problema genuíno. Não há dificuldade em explicar a relação entre a mente e o corpo porque os padrões de comportamento dão perfeitamente conta da experiên-cia mental. Logo, em vez de resolver o problema, os behaviouristas defendem tê-lo dissolvido completa-mente.

Críticas ao behaviourismo

Fingimento

Uma crítica que por vezes se faz ao behaviourismo defende que esta concepção não consegue distinguir entre uma pessoa que esteja efectivamente com dores e outra que finja estar com dores. Se tudo o que se diz do mental deve ser reduzido a descrições de comporta-mentos, então não pode haver uma explicação da dife-rença entre um actor convincente e alguém que está genuinamente em agonia.

Contra esta objecção, um behaviourista poderia fa-zer notai" que a análise disposicional de uma pessoa que finge ter dores seria diferente da de uma pessoa i|ue tivesse efectivamente dores. Apesar de o seus com-portamentos serem superficialmente análogos, exis-tiriam certamente aspectos em relação aos quais se-riam diferentes. Por exemplo, é improvável que uma pessoa que finja estar com dores produza todas as características fisiológicas que acompanham a dor — mudanças de temperatura, suores, etc. Além disso, uma pessoa que fingisse estar com dores reagiria de forma muito diferente a analgésicos do que alguém

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que estivesse genuinamente com dores: o fingidor não teria maneira de saber em que momento os analgésicos teriam começado a surtir efeito, ao passo que a pessoa que estava efectivamente com dores o saberia, devido a uma mudança no seu comportamento relacionado com a dor.

Qual ia

Outra crítica ao behaviourismo é que ele não con-segue incluir nenhuma referência ao que se sente efectivamente quando estamos num estado mental específico. Ao reduzir todos os acontecimentos mentais a tendências comportamentais, o behaviourismo deixa os qualia fora da equação. Uma das críticas mais impor-tantes ã teoria é a afirmação de que ela reduz a expe-riência de ter efectivamente dores a ter pura e simples-mente uma disposição para gritar, ficar inquieto e dizer «Está a doer-me». Há algo que se sente efectivamente quando temos dores, e isto é um aspecto essencial da vida mental; no entanto, o behaviourismo ignora este aspecto.

Como adquiro conhecimento das minhas próprias crenças?

De acordo com o behaviourismo, a maneira como adquiro conhecimento das minhas próprias crenças é precisamente igual à maneira como adquiro o conheci-mento das crenças das outras pessoas, nomeadamente através da observação do comportamento. Mas esta é sem dúvida uma imagem inexacta do que acontece efectivamente. Pode ser verdade que eu faça descober-

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tas interessantes acerca das minhas próprias crenças ao ouvir o que digo e ao prestar atenção ao que faço em várias circunstâncias. Contudo, não preciso de fazer observações do meu próprio comportamento para sa-ber que acredito que o assassínio é errado ou que vivo na Inglaterra. Sei estas coisas sem precisar de agir como um detective privado que investiga o seu próprio com-portamento. Logo, o behaviourismo não oferece uma explicação satisfatória da diferença entre formas de conhecimento de si e formas de descobrir quais são as crenças das outras pessoas.

Uma resposta possível a esta crítica defende que o que faço na introspecção (quando olho para o meu interior), para ver se acredito que, por exemplo, a tor-tura é cruel, é pensar para mim mesmo: «Que diria e faria eu se descobrisse que alguém estava a ser tortu-rado?» A resposta a esta questão revelar-me-ia então as minhas disposições relevantes. Se isto for verdade, o behaviourista pode justificadamente presumir que não existe nenhuma diferença entre descobrir quais são as suas próprias crenças e descobrir quais são as crenças de outra pessoa qualquer. Contudo, esta análise da introspecção não é especialmente convincente: não coincide com o que sinto que faço quando pratico a introspecção.

A dor dos paralíticos

Dado que o behaviourismo se baseia inteiramente nas respostas ou possíveis respostas do indivíduo em questão, parece seguir-se que, numa análise behaviou-rista, as pessoas que estão completamente paralíticas não podem ter experiências mentais. Se não se podem mexer, e nunca poderão fazê-lo, como podem apresen-

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tar um qualquer comportamento? Um behaviourista teria de dizer que as pessoas completamente paralíticas não podem sentir dor, uma vez que não mostram nenhum comportamento associado à dor. No entanto, a partir das informações fornecidas por pessoas que estiveram paralíticas, mas que recuperaram a mobili-dade, sabemos que os paralíticos têm muitas vezes uma vida mental muito rica e que possuem, sem dú-vida, a capacidade de sentir dor.

As crenças podem causar o comportamento

Uma outra crítica ao behaviourismo consiste em ele tornar impossível o comportamento de alguém poder ser influenciado pelas suas crenças. Na análise behaviourista, a causa do acto de vestir a gabardina não é a crença de que está a chover; ao invés, é a tendência para vestir uma gabardina que constitui o elemento fundamental da crença. Os acontecimentos mentais não podem causar o comportamento porque não existem independentemente do comportamento: segundo o behaviourismo, os acontecimentos mentais são apenas disposições para certos comportamentos. No entanto, é certamente verdade que, pelo menos por vezes, os nossos acontecimentos mentais conduzem ao comportamento. Visto a minha gabardina porque penso que vai chover. Mas um behaviourista não poderia usar a minha crença de que vai chover, nem mesmo como uma explicação do meu comportamento, porque a minha crença é de facto constituída pelo comporta-mento e pela minha disposição para adoptar certos comportamentos: a crença e a acção não podem ser separadas.

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Funcionalismo

O funcionalismo é uma abordagem do problema da mente/corpo recentemente desenvolvida. Con-centra-se no papel funcional dos estados mentais: na prática, isto significa que se concentra nos dados de entrada (input), nos dados de saída (output) e na relação entre os estados internos. Um funcionalista define qualquer estado mental em termos das suas relações típicas com outros estados mentais e dos seus efeitos no comportamento. Assim, um pensa-mento acerca do tempo define-se em termos das suas relações com outros pensamentos e com o comporta-mento: o que me levou a ter esse pensamento; a sua relação com outros pensamentos; e o que esse pen-samento me leva a fazer. Assim, o funcionalismo beneficia de algumas das ideias perspicazes do behaviourismo — tal como a de que a actividade mental está em geral intimamente ligada a dispo-sições comportamentais—, ao mesmo tempo que admite que os acontec imentos mentais podem efectivamente causar comportamentos.

O funcionalismo pode compreender-se mais facil-mente através de uma comparação com a relação entre um computador e o seu programa. Quando falamos de computadores, é conveniente distinguir entre o suporte físico (hardware) e o suporte lógico (software). O suporte físico de um computador é aquilo de que ele é efectivamente feito: transístores, circuitos, integrados de silicone, monitor, teclado, etc. O suporte lógico, por outro lado, é o programa, 0 sistema de operações que o suporte físico executa. O suporte lógico pode geralmente ser adaptado para ser usado em vários sistemas diferentes. O suporte

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lógico é habitualmente um complicado sistema de instruções dadas ao suporte físico do computador, que pode ser executado de várias formas, atingindo sempre o mesmo resultado.

O funcionalismo, enquanto teoria da mente, trata do suporte lógico do pensamento, e não do suporte físico. Neste aspecto assemelha-se ao behaviou-rismo. Ao invés, o fisicalismo procura mostrar a re-lação existente entre certos fragmentos do suporte físico — o cérebro humano — e um pacote específico de suporte lógico — o pensamento humano. O fun-cionalismo não é de maneira nenhuma uma teoria acerca do suporte físico do pensamento, apesar de ser certamente compatível com vários tipos de fisi-calismo: é neutro em relação à questão de saber em que tipos de sistemas físicos operam os programas mentais. O seu objectivo principal é especificar as relações existentes entre diferentes tipos de pensa-mentos e comportamentos.

Críticas ao funcionalismo

Qualia: computadores e pessoas

Apesar de o funcionalismo ser uma teoria da mente extremamente popular no meio filosófico, uma crítica frequente afirma que esta concepção não dá adequa-damente conta da experiência e sensações conscientes: o que é ter dores, estar feliz, estar a pensar acerca do tempo, etc.

Uma objecção análoga é muitas vezes levantada à perspectiva segundo a qual os computadores têm

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mentes. Por exemplo, o filósofo contemporâneo John Searle usou uma experiência mental para tentar indi-car a diferença entre a compreensão que um ser humano tem de uma história e a «compreensão» que um computador tem dela. Imagine o leitor que está fechado num quarto e que não percebe chinês. Pela caixa do correio da porta entram vários caracteres Chineses impressos em pedaços de cartão. Numa mesa do quarto está um livro e um monte de peda-ços de cartão com outros caracteres chineses. A sua tarefa é fazer coincidir o carácter chinês do pedaço de cartão que entrou pela caixa do correio com um carácter chinês do livro. O livro indica então outro carácter chinês diferente, que está colocado ao lado do primeiro. O leitor tem de tirar este outro carácter do monte de cartões que estão em cima da mesa, mandando-o para fora pela caixa do correio. Do exte-rior do quarto parece que o leitor responde em chi-nês a perguntas acerca de uma história. Os cartões <|Ue entram no quarto são perguntas escritas em chi-nês; os cartões que o leitor empurra para fora são as suas respostas, também em chinês. Apesar de o lei-tor não perceber chinês, do exterior do quarto parece que compreende a história e que está a responder de lorma inteligente às perguntas que lhe são feitas acerca dela. No entanto, o leitor não tem qualquer experiência da compreensão da história: limita-se a manipular o que para si são caracteres sem signifi-cado.

Um chamado programa «inteligente» de compu-tador está na mesma posição em que o leitor se en-contra no «quarto chinês» da experiência mental de Searle. Tal como o leitor, o computador manipula HÍmbolos sem compreender genuinamente ao que

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eles se referem. Consequentemente, se na analogia com o computador sugerida acima pensarmos no funcionalismo, esta concepção não pode dar-nos uma imagem completa da mente. Não capta a com-preensão genuína, tornando-a equivalente à mani-pulação de símbolos.

Mentes alheias

Já examinámos a maior parte das tentativas mais importantes de solução do problema da mente/corpo. Como vimos, nenhuma teoria da mente é intei-ramente satisfatória. Voltemo-nos agora para outro tema da filosofia da mente, o chamado problema das mentes alheias. Como posso saber que as outras pes-soas pensam, sentem e são conscientes como eu? Sei, sem sombra de dúvidas, quando tenho dores; mas como posso alguma vez ter a certeza de que outra pessoa tem dores? Da maneira como vivo a minha vida pressuponho que as outras pessoas são seres sencientes, capazes de ter experiências muito seme-lhantes às minhas. Mas poderei ter a certeza disto? Tanto quanto posso saber, as outras pessoas podem ser todas robots altamente sofisticados ou, como por vezes são chamados, autómatos, programados para responder como se tivessem vida interior, quando de facto não têm.

Apesar de esta noção parecer próxima de uma forma de paranóia, é uma questão séria à qual os filósofos têm dedicado muita atenção. O seu estudo revela dife-renças importantes entre a forma como conhecemos a nossa própria experiência e a forma como conhecemos a experiência alheia.

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Não é um problema para o behaviourismo

Antes de examinar a forma mais comum de respon-der a estas dúvidas acerca da experiência alheia, vale a pena fazer notar que o problema das mentes alheias não se levanta para os behaviouristas. Para um beha-viourista é claramente apropriado atribuir experiências mentais aos outros com base no seu comportamento, uma vez que isso é o que a mente é: tendências para certos comportamentos em certas situações. Isto dá origem à devastadora piada behaviourista: dois beha-viouristas fazem amor, após o que um deles diz ao outro: «Tu gostaste muito; e eu, também gostei?»

O argumento por analogia

A resposta mais óbvia à dúvida quanto à consciên-cia alheia é um argumento por analogia. Como vimos no capítulo 1, quando examinámos o argumento do desígnio a favor da existência de Deus, um argumento por analogia baseia-se numa comparação entre duas coisas bastante semelhantes. Se uma coisa é análoga a outra em alguns aspectos, presume-se que o será tam-bém noutros.

As outras pessoas são semelhantes a mim em mui-tos aspectos importantes: somos todos membros da mesma espécie e, consequentemente, temos corpos bastante semelhantes; também temos comportamentos muito semelhantes. Quando tenho muitas dores, grito, tal como a maior parte das pessoas quando se encon-tram em situações nas quais eu esperaria que sentis-sem dor. O argumento por analogia defende que as semelhanças dos corpos e dos comportamentos entre o

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meu caso e o das outras pessoas são suficientes para inferir que as outras pessoas são, tal como eu, genuina-mente conscientes.

Críticas ao argumento por analogia

Não é uma demonstração

O argumento por analogia não proporciona uma demonstração conclusiva da existência de mentes alheias. Os argumentos por analogia exigem bastan-tes dados de apoio. Mas no caso deste argumento por analogia só há um único exemplo — eu pró-prio — no qual testemunhei uma conexão entre um certo tipo de corpo e de comportamento e um certo tipo de consciência.

Além disso, os corpos e comportamentos alheios são diferentes em muitos aspectos do meu próprio corpo e comportamento. Estas diferenças podem ser mais importantes do que as semelhanças: poderia usar um argumento por analogia para demonstrar que as diferenças existentes entre o meu corpo e o meu com-portamento, por um lado, e os corpos e os comporta-mentos alheios, por outro, indicam uma diferença pro-vável entre o tipo de experiência mental que eu tenho e aquele que têm as outras pessoas. Além disso, os argumentos por analogia, sendo indutivos, só podem fornecer indícios prováveis a favor das suas conclu-sões: nunca podem demonstrar nada de forma conclu-siva. Assim, na melhor das hipóteses, tal argumento só poderia mostrar que as outras pessoas quase de certeza têm mentes. Não é uma demonstração dedutiva, mas, como vimos no capítulo sobre a ciência, não está de-

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monstrado que o Sol nascerá amanhã — e, no entanto, temos, mesmo assim, boas razões para ter a certeza de que nascerá.

Inverificável

No entanto, parece não existir nenhuma maneira de mostrar conclusivamente que uma af irmação como «ele tem dores» é verdadeira ou, então, que é falsa. Só porque alguém está a gritar não se segue que essa pessoa tenha o mesmo tipo de experiência i|ue eu tenho quando sinto dores. Essa pessoa pode nem estar a ter qualquer experiência. Nenhum relato verbal da sua experiência é fidedigno: um robot po-deria ter sido programado para responder persuasi-vamente em tais circunstâncias. Não há observação possível que possa confirmar ou refutar a ideia de i|ue a pessoa tem dores. E óbvio que o facto de al-guém estar a gritar seria suficiente, em casos reais, |>ara que estivéssemos razoavelmente certos de que a pessoa estava com dores. Mas, do ponto de vista lógico, o comportamento não oferece uma demons-tração absoluta da existência de dor (apesar de a maior parte das pessoas partir do pressuposto de que o comportamento é um indício fidedigno).

Claro que podemos achar que a suposição de que as outras pessoas não são conscientes é bastante rebus-cada. Podemos, pois, estar já tão certos de que os outros têm mentes que não precisamos de uma de-monstração conclusiva nesta matéria — certamente que n maioria das pessoas age, a maior parte do tempo, sob o pressuposto de que os outros têm mentes. O solip-ftismo, como vimos no capítulo sobre o mundo exterior, nfío é uma posição sustentável.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Conclusão

Este capítulo centrou-se nos debates em torno do dualismo, do fisicalismo e do problema das mentes alheias. Estes são tópicos centrais na filosofia da mente. Uma vez que a filosofia se ocupa muito da natureza do pensamento, muitos filósofos, sobre-tudo os que se especializam na filosofia da mente, acham que o tipo de questões discutidas neste capí-tulo constituem o âmago de quase todas as questões filosóficas. Sem dúvida que muitos dos mais bri-lhantes filósofos do século xx têm dirigido as suas energias para questões da filosofia da mente. Em resultado disso, muitos dos escritos desta área são altamente sofisticados e técnicos. Os livros listados a seguir deverão orientá-lo no complicado labirinto bibliográfico desta área.

Leitura complementar

A melhor introdução à filosofia da mente é a de Peter Smith e O. R. Jones, The Philosophy of Mind (Cambridge, Cambridge University Press, 1986): é clara e informativa acerca da maior parte dos debates con-temporâneos nesta área. Matter and Consciousness, de P. M. Churchland (Cambridge, Mass., MIT Press, 1984), é outra introdução útil. Theories of the Mind, de Stephen Priest (Londres, Penguin, 1991), é um estudo crítico das abordagens mais importantes da filosofia da mente. Recomendo também The Character of Mind, de Colin McGinn (Oxford, Oxford University Press, 2.a ed., 1997), apesar de algumas passagens serem bastante difíceis.

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MENTE

The Mind's I, organizado por Douglas R. Hofs-tadter e Daniel C. Dennett (Londres, Penguin, 1982), é uma colecção interessante e divertida de artigos, meditações e pequenos contos que tratam de ideias filosóficas acerca da mente. Inclui o artigo «Mentes, cérebros e programas», de John Searle, no qual se discute a questão de saber se os computadores po-dem realmente pensar.

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7 Arte

A maior parte das pessoas que visitam galerias de arte, lêem romances e poesia, vão ao teatro e ao ballet, vêem cinema ou ouvem música, já perguntaram a si próprias, num momento ou noutro, o que é a arte. Esta é a questão básica que subjaz a toda a filosofia da arte. Este capítulo considera várias respostas que lhe têm sido dadas.

O facto de terem emergido novas formas de arte, tais como o cinema e a fotografia, e de as galerias de arte terem exibido coisas como um monte de tijolos ou uma pilha de caixas de cartão, forçou-nos a reflectir acerca dos limites do nosso conceito de arte. E óbvio que a arte tem tido significados diferentes em culturas diferentes e em épocas diferentes: tem servido fins ri-tuais e religiosos, tem servido como diversão e tem dado corpo às crenças, medos e desejos mais importan-tes da cultura na qual é produzida. Dantes, o que con-tava como arte parecia estar mais claramente definido. No entanto, nos finais do século xx parece que che-

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ARTE

primos a uma situação em que tudo e mais alguma coisa pode ser arte. Se isto é assim, o que fará que um certo objecto — um escrito ou uma peça musical —, e nfío outro, seja digno de se chamar arte?

Pode a arte ser definida?

Há uma imensa variedade de obras de arte — pin-turas, peças de teatro, filmes, romances, peças musi-cais, dança — e todas elas parecem ter muito pouco em comum. Isto levou alguns filósofos a defender que a flrte não pode de maneira nenhuma ser definida; de-fendem que é um erro completo olhar para um deno-minador comum, uma vez que existe, pura e simples-mente, demasiada variedade entre as obras de arte para que uma definição que as cubra a todas possa ser satisfatória. Para sustentar esta opinião, estes filósofos usam a ideia de parecença familiar, uma noção usada pelo filósofo Ludwig Wittgenstein nas suas Investiga-ções Filosóficas.

O conceito de parecença familiar

O leitor pode parecer-se ligeiramente com o seu pai e o seu pai pode parecer-se com a irmã dele. Contudo, é possível que o leitor não se pareça nada com a irmã do seu pai. Por outras palavras, podem existir parecenças sobrepostas entre diferentes membros de uma família, sem que exista uma característica única observável, par-tilhada por todos. Analogamente, há muitos jogos seme-lhantes, mas é difícil ver o que têm em comum as pa-ciências, o xadrez, o râguebi e a malha.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

As semelhanças entre diferentes tipos de arte po-dem ser deste tipo: apesar das semelhanças óbvias entre algumas obras de arte, podem não existir carac-terísticas observáveis partilhadas por todas: podem não existir denominadores comuns. Se isto for verdade, é um erro procurar uma qualquer definição geral de arte. O melhor que podemos desejar é uma definição de uma certa forma de arte, como o romance, o filme de ficção ou a sinfonia.

Críticas à perspectiva da parecença familiar

Uma forma de demonstrar a falsidade desta pers-pectiva seria produzir uma definição satisfatória de arte. Examinaremos a seguir várias tentativas de o con-seguir. Contudo, vale a pena notar que mesmo no caso das parecenças de família há algo que todos os mem-bros de uma família têm realmente em comum: o facto de estarem geneticamente relacionados. E os jogos são todos parecidos por poderem constituir interesses ab-sorventes de carácter não prático para jogadores ou espectadores. Ora, apesar de esta definição de jogo ser bastante vaga e nem sequer inteiramente satisfatória — não nos ajuda a distinguir os jogos de outras activi-dades, como, por exemplo, beijar ou ouvir música —, sugere que pode encontrar-se uma definição mais de-talhada e plausível. Se isto pode fazer-se em relação aos jogos, não há razão para afastar à partida a possi-bilidade de o fazer em relação às obras de arte. Claro que o denominador comum a todas as formas de arte pode revelar-se particularmente pouco interessante ou importante, mas é claramente possível encontrar um. 220

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ARTE

Consideremos, então, algumas das tentativas de defini-ção da arte. Examinaremos a teoria da forma signi-ficante, a idealista e a institucional.

A teoria da forma significante A teoria da forma significante, popular no princípio

do século xx e particularmente ligada ao crítico de arte Clive Bell (1881-1964) e ao seu livro Art, começa pelo pressuposto de que todas as obras de arte genuínas produzem uma emoção estética no espectador, ouvinte ou leitor. Esta emoção é diferente das emoções da vida quotidiana: distingue-se por não ter nada a ver com interesses práticos.

Que características das obras de arte fazem que as pessoas reajam daquela forma? Porque evocam as obras de arte aquela emoção estética? A resposta dada por Bell é que todas as obras de arte genuínas partilham uma qualidade conhecida como «forma significante» — um termo por ele introduzido. A forma significante é uma certa relação entre as partes — as características que dis-tinguem a estrutura de uma obra de arte, e não o seu tema específico. Apesar de esta teoria se aplicar geral-mente apenas às artes visuais, pode também ser tomada como uma definição de todas as artes.

Assim, por exemplo, ao considerar o que faz que um quadro de Van Gogh representando um par de bo-tas velhas seja uma obra de arte, um teórico da forma significante faria notar a combinação de cores e textu-ras que possuem forma significante e que produzem, portanto, a emoção estética em críticos sensíveis.

A forma significante é uma propriedade indefinível que os críticos sensíveis podem intuitivamente reco-

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

nhecer numa obra de arte. Infelizmente, os críticos in-sensíveis são incapazes de apreciar a forma signifi-cante. Bell, ao contrário, por exemplo, dos teóricos institucionalistas discutidos a seguir, acreditava que a arte era um conceito valorativo: isto significa que afir-mar que algo é uma obra de arte não é apenas clas-sificá-lo, mas também atribuir-lhe um certo estatuto. Todas as obras de arte genuínas, de todas as épocas e culturas, possuem forma significante.

Críticas à teoria da forma significante

Circularidade

O argumento a favor da teoria da forma significante parece ser circular. Parece estar apenas a dizer que a emoção estética é produzida por uma propriedade que produz emoção estética, propriedade acerca da qual nada mais pode dizer-se. Isto é a mesma coisa que explicar como funciona um soporífero referindo a sua proprie-dade de provocar o sono. E um argumento circular por-que o que se pretendia explicar é usado na explicação. Contudo, alguns argumentos circulares podem ser infor-mativos; os que não são informativos são conhecidos como viciosamente circulares. Os defensores da teoria da forma significante sustentam que esta não é viciosamente circular, uma vez que permite compreender por que razão algumas pessoas são melhores críticos do que outras, nomeadamente porque têm mais capacidade para detec-tar a forma significante. Proporciona também uma justi-ficação para a prática de tratar obras de arte de culturas e épocas diferentes como se fossem análogas, em muitos aspectos, às obras de arte actuais.

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ARTE

Irrefutabilidade

Outra objecção à teoria defende que esta não pode nor refutada. A teoria da forma significante pressupõe que todas as pessoas que genuinamente desfrutam da a r t e sentem um único tipo de emoção quando apre-ciam verdadeiras obras de arte. Contudo, isto é extre-mamente difícil, se não impossível, de demonstrar.

Se alguém afirmar ter desfrutado genuinamente Uma obra de arte, sem no entanto ter sentido a referida emoção estética, Bell afirmará que essa pessoa está enganada: ou não a desfrutou genuinamente ou então nílo é um crítico sensível. Mas isto é pressupor precisa-mente o que a teoria estaria supostamente a demons-trar: que existe realmente uma emoção estética e que esta é produzida pelas obras de arte genuínas. A teoria parece, portanto, irrefutável. Muitos filósofos acredi-tam que uma teoria que seja logicamente impossível de refutar, porque todas as observações possíveis a confir-mariam, não tem qualquer significado.

Analogamente, se um exemplo de algo que consi-deramos uma obra de arte não evoca emoção estética a um crítico sensível, um teórico da forma significante ilefenderá que não se trata de uma obra de arte ge-n u í n a . Mais uma vez, não há qualquer observação pos-'.(vel que possa demonstrar que esse teórico não tem razão.

A teoria idealista

A teoria idealista da arte, cuja formulação mais per-luasiva se encontra em Principles of Art, de R. G. I 'ollingwood (1889-1943), difere de outras teorias da

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

arte pelo facto de sustentar que a verdadeira obra de arte não é física: é uma ideia ou emoção na mente do artista. A esta ideia é dada uma expressão imaginativa física e é modificada pelo envolvimento do artista com um meio artístico específico, mas a própria obra de arte permanece na mente do artista. Algumas versões da teoria idealista dão muita importância à sinceridade da emoção expressa, o que acrescenta um forte elemento avaliativo à teoria.

A teoria idealista distingue a arte do artefacto. As obras de arte não têm qualquer propósito específico. São criadas em resultado do envolvimento do artista com um meio específico, como as tintas ou as palavras. Ao invés, o artefacto é criado com um propósito defi-nido e o artesão começa por ter um plano, em vez do ir concebendo o objecto à medida que o vai criando. Assim, um quadro de Picasso, por exemplo, não tem nenhum propósito específico e não foi, presumivel-mente, previamente planeado na sua totalidade, ao passo que a mesa defronte da qual estou sentado tem uma função óbvia e foi executada de acordo com um esboço preexistente, um projecto. O quadro é uma obra de arte; a mesa é um artefacto. Isto não significa que as obras de arte não possam ser em parte artefactos: c5 claro que muitas grandes obras de arte são em parte artefactos. Collingwood afirma explicitamente que as duas categorias, arte e artefacto, não são mutuamente exclusivas. Acontece apenas que nenhuma obra de arte é unicamente um meio para um fim.

A teoria idealista contrasta as obras de arte genuínas com a arte recreativa (arte produzida com o propósito único de divertir as pessoas ou de provocar emoções específicas). A arte genuína não tem nenhum propó-sito: é um fim em si. A arte recreativa é artefacto, sendo

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ARTE

por isso inferior à verdadeira arte. Analogamente, a chamada arte puramente religiosa é também artefacto porque foi feita com um propósito específico.

Críticas à teoria idealista da arte

Estranheza

A principal objecção à teoria idealista é a estranheza provocada pelo facto de considerar as obras de arte Ideias que residem na mente, em vez de objectos físi-cos. Isto significa que, quando vamos a uma galeria de Arte, tudo o que vemos são vestígios das verdadeiras criações dos artistas. Esta é uma ideia difícil de aceitar, apesar de ser mais plausível no caso das obras de arte literárias e musicais, onde não existe um objecto físico Único a que possamos chamar obra de arte.

Excessivamente restritiva

Uma segunda objecção a esta teoria afirma que esta 6 excessivamente restritiva: parece classificar muitas obras de arte estabelecidas como artefactos, e não como verdadeiras obras de arte. Muitos dos grandes retratos foram pintados para se ter um registo da aparência da pessoa retratada; muitas das grandes peças de teatro foram escritas para divertir. Significa isto que, porque foram criadas tendo em mente propósitos específicos, lítio podem ser obras de arte? E quanto à arquitectura, que constitui tradicionalmente uma das belas-artes? A maior parte dos edifícios foram criados para um pro-pósito específico, de maneira que esta teoria não pode considerá-los obras de arte.

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

A teoria institucional

A chamada teoria institucional da arte é uma tenta-tiva recente, levada a cabo por autores como George Dickie (um filósofo contemporâneo), de explicar como coisas tão diferentes como a peça Macbeth, a Quint ti Sinfonia de Beethoven, uma pilha de tijolos, um urinol intitulado «A Fonte», o poema The Waste Land, de T. S. Eliot, /Is Viagens de Gulliver, de Swift, e as fotografias de William Klein podem ser consideradas obras de arte. A teoria afirma existirem duas coisas comuns a todas elas.

Em primeiro lugar, todas são artefactos: isto é, todas foram parc ia lmente manipuladas por seres huma-nos. A palavra «artefacto» é usada de forma bastante vaga — até um pedaço de madeira flutuante apanhado na praia poderia ser considerado um artefacto se al-guém o exibisse numa galeria de arte. Colocá-lo numa galeria para que as pessoas o observassem de certa maneira contaria como manipulação. Na verdade, esta definição de artefacto é tão vaga que não acrescenta nada de importante ao conceito de arte.

Em segundo lugar, e o que é mais importante, a todas aquelas obras foi dado o estatuto de obra de arte por um membro ou conjunto de membros do mundo da arte, tal como o proprietário de uma galeria, um editor, um produtor, um maestro ou um artista. Em todos os casos, alguém com a autoridade apropriada fez o equivalente a baptizá-las como obras de arte.

Pode parecer que isto significa que as obras de arte são unicamente aquelas coisas a que certas pesso.i chamam obras de arte, uma afirmação aparentemente circular. Contudo, os membros do mundo da arte não têm realmente de fazer nenhum tipo de cerimónia em

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ARTE

que baptizam algo como uma obra de arte; não preci-lam sequer de lhe chamar realmente «obra de arte»: basta que tratem a obra como arte. A teoria institucional •firma, pois, que alguns indivíduos e grupos da nossa lociedade têm a capacidade de transformar qualquer ârtefacto numa obra de arte, através de uma acção de ••baptismo», que pode consistir em chamar a algo ««arte», mas que muitas vezes consiste em publicar, exi-bir ou representar a obra. Os próprios artistas podem ser membros deste mundo da arte. Todos os membros desta elite têm uma capacidade equivalente ao rei Midas, que transformava em ouro tudo em que tocava.

Críticas à teoria institucional

Não distingue a boa cia má arte

Defende-se por vezes que a teoria institucional é pobre porque parece justificar que se considerem obras de arte os objectos mais pretensiosos e superficiais. Se cu fosse um membro do mundo da arte, poderia fazer que o meu sapato esquerdo fosse uma obra de arte ao exibi-lo numa galeria.

E sem dúvida verdade que a teoria institucional permite que quase tudo possa tornar-se uma obra de arte. Baptizar uma coisa como obra de arte não signi-fica que se trate de uma boa obra de arte, nem, na verdade, de uma má obra de arte. Só faz que o objecto em questão seja uma obra de arte do ponto de vista classificativo: por outras palavras, coloca o objecto na classe de coisas a que chamamos obras de arte. Isto é diferente da maneira como muitas vezes usamos a palavra «arte», não apenas para classificar algo, mas

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

também para sugerir que esse algo é um bom exemplo da sua categoria. Por vezes também usamos o termo metaforicamente, para falar de coisas que literalmente não são, de maneira nenhuma, obras de arte: quando dizemos coisas como, por exemplo, «aquela omeleta é uma obra de arte». A teoria institucional não tem nada a dizer acerca de qualquer destes casos de uso valo-rativo da palavra «arte». E uma teoria acerca do que todas as obras de arte — boas, más e indiferentes — têm em comum. E apenas acerca do sentido classifi-cativo da palavra «arte».

Contudo, a maior parte das pessoas que levantam a questão «O que é a arte?» não estão apenas interessa-das no que chamamos arte; querem saber porque valo-rizamos mais uns objectos do que outros. Quer a teoria da forma significante, quer a idealista, são parcialmente valorativas: segundo elas, chamar a algo «obra de arte» é dizer que é boa num certo sentido — quer por-que tem uma forma significante, quer porque é a ex-pressão artística sincera de uma emoção. A teoria institucional, contudo, não procura dar uma resposta a questões valorativas acerca da arte. E extremamente aberta acerca do que pode contar como arte. Algumas pessoas vêm isto como a sua maior virtude; outras, como o seu pior defeito.

Circularidade

A teoria institucional é circular. Afirma que a arte é o que um certo grupo de privilegiados escolher chamar arte, seja lá o que for.'Isto parece um jogo de pala-vras — um jogo que pode ter implicações políticas perturbadoras se só as pessoas de uma certa classe social tiverem o dom do toque de Midas.

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ARTE

Um defensor da teoria institucional poderia argu-mentar contra esta crítica, sustentando que a exigência de que a obra de arte seja um artefacto e a restrição sobre quem pode conferir o estatuto de obra de arte a um objecto são suficientes para dar algum conteúdo à teoria. Se isto for verdade, precisamos de uma elucida-ção mais pormenorizada acerca de quem faz exacta-mente parte do mundo da arte. No entanto, mesmo que soubéssemos quem tem este toque de Midas e por que razão estão habilitados a tê-lo, continuaríamos a querer saber porque escolhem eles alguns objectos, e não outros, para serem considerados obras de arte. Isto conduz à terceira crítica.

Que critérios usa o mundo da arte?

A objecção mais forte à teoria institucional é, talvez, a que foi feita pelo filósofo e escritor contemporâneo de arte, Richard Wollheim (1923-): mesmo que concorde-mos que os membros do mundo da arte têm o poder de transformar quaisquer artefactos em obras de arte, eles têm de ter razões para transformar em arte alguns artefactos e não outros. Se não há qualquer lógica por detrás do que fazem, então que razão haveria para que a categoria da arte tivesse para nós qualquer interesse? E se eles têm razões, serão estas, então, que determi-nam se algo é arte ou não. A análise destas razões seria muitíssimo mais interessante e informativa do que a — algo vazia — teoria institucional. Se pudéssemos identificar estas razões, a teoria institucional seria des-necessária.

Contudo, a teoria institucional chama-nos pelo me-nos a atenção para isto: o que faz que algo seja uma obra de arte é uma questão cultural, dependendo de

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

instituições sociais em épocas específicas, e não de um cânone a temporal.

Crítica de arte

Outra área importante de debate filosófico acerca das artes tem-se centrado nos métodos e justificações de vários tipos de crítica de arte. Um dos debates cen-trais nesta área tem sido acerca da questão de saber até que ponto as intenções manifestas do artista são rele-vantes para a interpretação crítica de uma obra de arte.

Anti-intencionalismo

Os anti-intencionalistas defendem que só temos de dar atenção às intenções presentes na própria obra de arte. Seja o que for que se recolha de diários, entrevis-tas com o artista, manifestos artísticos, etc., não é direc-tamente relevante para o acto de genuína interpretação crítica. Tal informação é mais relevante para um estudo da psicologia do artista. A psicologia é em si mesma um assunto muito interessante e pode dizer-nos muito acerca das origens das obras de arte. Mas a origem de uma obra não deve ser confundida com o seu signifi-cado. A crítica deve lidar apenas com indícios internos à obra (i. e., contidos na obra). Afirmações pessoais acerca do que o artista tinha em mente são externas à obra e por isso irrelevantes para a verdadeira crítica. Os anti--intencionalistas, como os críticos William Wimsatt e Monroe Beardsley, nos seus escritos da década de 1940, chamaram ao suposto erro de se apoiar em indícios externos a falácia intencional.

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ARTE

Esta perspectiva anti-intencionalista é usada para defender leituras e análises escrupulosas de textos e outras obras de arte. Baseia-se na ideia de que as obras de arte são num certo sentido públicas e que, uma vez criadas, os artistas não devem ter mais controlo sobre a sua interpretação do que qualquer outra pessoa.

Mais recentemente foi defendida uma ideia análoga, em termos metafóricos, por autores como Roland Barthes (1915-1980), que declararam a morte do autor. Parte do que eles queriam dizer com esta afirmação era que, uma vez tornado público um texto literário, com-pete ao leitor interpretá-lo: não deve considerar-se que o autor detém uma posição privilegiada a este respeito. Uma consequência desta perspectiva é passar a consi-derar-se que a importância dos textos é maior do que a dos autores que os produzem, elevando-se o papel do crítico. O significado dos textos é criado pela inter-pretação dos leitores, e não pela intenção dos escrito-res. A concepção anti-intencionalista é, assim, uma teo-ria acerca de quais são os aspectos relevantes de uma obra para a avaliação do crítico.

Críticas ao anti-intencionalismo

Uma ideia errada da intenção

Uma crítica à posição anti-intencionalista é que ela depende de uma concepção errada das intenções. Trata as intenções como se fossem sempre acontecimentos men-tais que ocorrem antes de fazermos qualquer coisa. Na verdade, muitos filósofos acreditam que as intenções estão normalmente misturadas com a maneira como fazemos coisas: não podem separar-se assim tão facilmente das

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

próprias acções. Assim, quando acendo intencionalmente a luz, não tem de haver um acontecimento mental que anteceda imediatamente a minha acção de alcançar o in-terruptor: pode ocorrer ao mesmo tempo que eu alcanço o interruptor, constituindo o próprio acto de alcançar o interruptor a corporização da intenção.

Contudo, este não é de facto um argumento satisfa-tório contra o anti-intencionalismo, uma vez que aquilo a que os seus partidários se opõem não é unicamente a uma crítica baseada nas intenções, mas também a uma crítica baseada em tudo o que seja exterior à obra de arte. Os anti-intencionalistas não se importam de tratar como relevantes para a crítica as intenções que se corporizem efectivamente na obra.

Ironia

Uma objecção mais forte ao anti-intencionalismo defende que certos tipos de recursos artísticos, como a ironia, exigem um reconhecimento das intenções do artista. Em muitos casos essas serão intenções exteriores.

A ironia é dizer ou descrever algo, querendo dizer o oposto. Por exemplo, quando um amigo nos diz «Está um belo dia», pode não ser óbvio se isto deve ser tomado literalmente ou ironicamente. Uma maneira de deci-dir seria olhar para coisas como o contexto no qual ele o disse — por exemplo, será que estava a chover torren-cialmente? Outra maneira seria dar atenção ao tom de voz em que o disse. Mas se nenhuma destas informações decidisse a questão, uma forma óbvia de o fazer seria perguntar ao locutor se a sua afirmação era irónica: por outras palavras, apelar a intenções exteriores.

Em alguns usos da ironia na arte, a informação ex-terior à obra pode ser extremamente útil para descobrir

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ARTE

o seu significado. Não parece razoável rejeitar comple-tamente esta fonte de informação acerca da obra. Um nnti-intencionalista responderia provavelmente que, se a ironia não é prontamente compreensível a partir de uma análise minuciosa da obra, é porque não é rele-vante para a crítica, uma vez que esta se ocupa do que é público. Qualquer ironia que se apoie nas intenções externas do artista é excessivamente parecida com um código secreto para ser realmente importante.

Uma perspectiva muito restritiva da crítica de arte

Uma terceira objecção ao anti-intencionalismo de-fende que esta posição adopta uma perspectiva muito restritiva do que constitui a crítica de arte. A boa crítica de arte usará todas as informações disponíveis, sejam elas internas ou externas à obra de arte em questão. É excessivamente restritivo impor ao crítico, à partida, regras rígidas e absolutas acerca dos tipos de informa-ção que podem ser usados para apoiar comentários críticos.

Apresentação, interpretação, autenticidade

A apresentação de obras de arte pode levantar difi-culdades filosóficas de alguma forma análogas às le-vantadas pela prática da crítica de arte. Todas as apre-sentações constituem uma interpretação da obra em causa. Levantam-se dificuldades especiais quando a obra de arte pertence a um período muito antigo. Nesta secção irei considerar o caso da interpretação de peças musicais de séculos anteriores como um exemplo deste problema, mas podem usar-se argumentos análogos

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

acerca de, por exemplo, representações historicamente rigorosas das peças de Shakespeare.

Autenticidade histórica na interpretação musical

O número de concertos e gravações nos quais os músicos tentam produzir sons historicamente autênticos tem aumentado nos últimos tempos. Isto significa, habi-tualmente, usar o tipo de instrumentos disponíveis na altura em que a música foi composta, em vez dos seus descendentes modernos. Assim, por exemplo, uma orquestra que procure uma interpretação historicamente autêntica dos Concertos Brandeburgueses evitará os ins-trumentos modernos e usará antes o tipo de instrumen-tos disponíveis no tempo de Bach, com os seus sons e limitações característicos. O maestro consultará o maior número possível de estudos históricos para descobrir o tempo e o estilo de interpretação típicos da época de Bach. O objectivo de uma interpretação destas seria reproduzir tão fielmente quanto possível os sons que as primeiras audiências de Bach terão ouvido.

Estas interpretações levantam várias questões filosófi-cas importantes acerca do estatuto de diferentes apresen-tações de uma obra de arte, apesar de terem claramente grande interesse para um historiador da música. Usar a palavra «autêntica» para descrever estas interpretações sugere que as interpretações com instrumentos modernos são de alguma forma inautênticas: implica que existe algo significativamente melhor nas interpretações «autênticas». Isto levanta a questão de saber se as interpretações musi-cais devem procurar este tipo de autenticidade histórica, existindo várias objecções à ideia de que o devem fazer.

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ARTE

Críticas à autenticidade histórica na interpretação

Viagem fantasiosa no tempo

Uma crítica ao movimento a favor das interpreta-ções autênticas é que nunca se consegue uma interpre-tação historicamente autêntica. O que a motiva é uma tentativa ingénua de recuar no tempo para ouvir os sons que o compositor teria ouvido. Mas os intérpretes «autênticos» esquecem que, apesar de podermos ser bem sucedidos na recriação de instrumentos de uma época passada, nunca poderemos, pura e simples-mente, fazer desaparecer a música que desde essa época tem sido composta e interpretada. Por outras palavras, nunca podemos ouvir a música com ouvidos historicamente autênticos. Hoje em dia, ao ouvir Bach, temos consciência dos grandes desenvolvimentos que a música conheceu desde a sua época; estamos fami-liarizados com os sons dos instrumentos modernos, executados segundo técnicas modernas. Ouvimos música atonal e conhecemos melhor o som do piano moderno do que o do cravo. Consequentemente, a mú-sica de Bach tem para o ouvinte actual um significado completamente diferente do que tinha para as suas audiências originais.

Visão simplista da interpretação musical

Outra crítica a esta procura de uma interpretação historicamente autêntica é que ela implica uma visão simplista da interpretação musical. Faz que o juízo sobre o valor de uma interpretação específica dependa unicamente de considerações históricas, e não de outras

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

considerações artísticas relevantes. Limita seriamente as possibilidades do intérprete em termos de interpre-tação criativa de uma partitura. Cria um museu de interpretação musical, em vez de dar aos intérpretes de cada nova geração a possibilidade de interpretar de forma nova e estimulante a obra do compositor, uma interpretação que leve em linha de conta quer a história da música quer a história da interpretação daquela peça musical específica.

As interpretações históricas podem falsear o espírito

Uma preocupação exagerada com o rigor histórico pode muitas vezes piorar a interpretação de uma peça musical. Um intérprete cuja preocupação principal seja a história pode muito bem não conseguir fazer justiça à obra do compositor: uma interpretação sensível, que procure capturar o espírito da obra do compositor, em vez de tentar reproduzir os sons originais, tem muito a seu favor. Este é um tipo diferente de autenticidade: é uma autenticidade de interpretação, na qual a palavra «autenticidade» quer dizer qualquer coisa como «since-ridade artística», e não apenas rigor histórico.

Imitações e valor artístico

Outra questão acerca da autenticidade que levanta questões filosóficas é a que diz respeito ao problema de saber se um quadro original tem mais valor artístico do que uma imitação perfeita. Nesta secção tratarei apenas das imitações no caso da pintura, mas podem existir imitações de qualquer tipo de obra de arte que se cons-titua como objecto físico: por exemplo, uma escultura,

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ARTE

uma gravura, uma fotografia, etc. A impressão em série de romances, poemas e sinfonias não é considerada uma imitação. Contudo, os manuscritos originais po-dem ser falsificados e as imitações, escritas segundo o estilo de um certo autor ou compositor, podem passar por genuínas.

E importante distinguir à partida entre diferentes tipos de imitação. Os dois tipos básicos são a cópia perfeita e a imitação do estilo de um artista famoso. Uma cópia exacta da Mona Lisa seria uma imitação do primeiro tipo; os quadros do falsário Van Meegeren, pintados de acordo com o estilo de Vermeer, que na verdade enganaram a maior parte dos especialistas, são exemplos do segundo tipo — os seus quadros não foram copiados a partir de originais. E óbvio que só o verdadeiro manuscrito de uma peça, de um romance ou de um poema podem ser falsi-ficados no primeiro sentido. Contudo, poderiam fazer-se imitações do segundo tipo (por exemplo, das peças de Shakespeare), por alguém que imitasse de forma inteli-gente o estilo de um escritor.

Devem as imitações ser tratadas como obras de arte significativas em si? Se o falsário é capaz de produzir algo capaz de fazer os especialistas ficar convencidos que se trata de uma obra do artista original, isso signi-fica que o falsário é certamente tão dotado quanto o artista original, devendo por isso ser tratado como um igual. Há argumentos a favor e contra esta posição.

Preço, snobismo, relíquias

O que faz as pessoas dar valor aos originais em detrimento das boas imitações talvez sejam apenas as preocupações financeiras do mundo da arte, a obsessão com o preço dos quadros. Se existir um único exemplar

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

de cada quadro, os leilões de arte podem vender cada quadro como um objecto único, por um preço eleva-díssimo. Isto é por vezes conhecido como o «efeito Sotheby», em nome dos famosos leiloeiros de arte. Se existirem muitas cópias de um quadro, é provável que o preço de cada cópia baixe, sobretudo se o original tiver o mesmo estatuto que as cópias. Com efeito, isto colocaria os quadros na mesma posição que as gravuras.

Ou talvez não seja apenas o aspecto financeiro do mundo da arte, mas também o snobismo dos coleccio-nadores de arte, que conduz à ênfase colocada nos quadros originais em detrimento das cópias. Os colec-cionadores gostam de possuir um objecto único: para eles pode ser mais importante possuir um esboço ori-ginal de Constable do que uma cópia perfeita, só por uma questão de valor snobe, e não de valor artístico.

Outra motivação para possuir originais tem a ver com o seu apelo enquanto relíquias. As relíquias são fascinantes por causa da sua história: um fragmento da verdadeira Cruz (a cruz onde Cristo foi crucificado) teria um fascínio especial comparado com quaisquer outros fragmentos indistinguíveis de madeira só por se pensar que esteve em contacto directo com a carne de Cristo. Analogamente, um quadro original de Van Gogh pode ser valorizado por se tratar de um objecto que o grande pintor tocou, ao qual deu atenção e no qual investiu o seu esforço artístico, etc.

O preço, o valor snobe e o valor de relíquia têm pouco a ver com o mérito artístico. O primeiro tem a ver com a raridade, as flutuações dos gostos dos coleccionadores e as manipulações dos negociantes de arte; o segundo é uma questão de rivalidade social; o terceiro, uma questão psicológica que tem a ver com a maneira como tratamos os objectos. Se estes três

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ARTE

factores explicam as causas da grande preferência por obras de arte originais em detrimento da preferência por boas imitações, talvez as boas imitações sejam real-mente tão significativas, artisticamente, quanto os origi-nais. Contudo, há vários argumentos fortes contra esta posição.

Imitações perfeitas

Uma razão para preferir originais a imitações é o facto de nunca podermos ter a certeza de uma imitação ser realmente perfeita. O facto de uma imitação de um quadro de Van Gogh ser suficientemente boa para en-ganar os especialistas actuais não significa que irá enga-nar os especialistas do futuro. Se as diferenças se tor-nam visíveis mais tarde, nunca podemos ter a certeza se uma imitação será perfeita. Logo, mesmo que acre-ditássemos que uma imitação perfeita tinha o mesmo mérito artístico que o original, em nenhum caso real de imitação poderíamos ter a certeza se essa imitação seria uma cópia rigorosa.

Vale a pena notar, contra esta posição, que as dife-renças que poderão surgir entre imitação e original serão geralmente pequeníssimas. E implausível supor que serão muitas vezes de uma natureza tal que pos-sam vir a alterar substancialmente a nossa apreciação do valor artístico do quadro.

Obras de arte versus artistas

Mesmo que alguém conseguisse produzir um qua-dro que não se distinguisse de uma obra de Cézanne, por exemplo, constituiria um feito muito diferente do feito do próprio Cézanne. Parte do que valorizamos no

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

feito de Cézanne não é apenas a produção de um belo quadro isolado, mas também a forma como criou um estilo original e toda uma série de quadros. A sua ori-ginalidade faz parte do seu feito; e os diferentes qua-dros que produziu ao longo da sua vida contribuem para a nossa compreensão de cada imagem individual por ele pintada. Só podemos dar valor ao seu feito artístico se pudermos colocar cada quadro no contexto da sua produção completa.

Ora, apesar de um falsário poder possuir a mesma destreza mecânica de pintor que Cézanne tinha, não devemos reduzir o feito de Cézanne à sua destreza artesanal. O falsário, com a sua cópia barata, nunca pode esperar vir a ser um grande pintor porque não pode ser original como Cézanne.

No caso de um falsário que produza obras com o estilo de Cézanne (imitações do segundo tipo), em vez de fazer cópias efectivas de quadros específicos, pode haver mais razões para comparar o mérito artístico das imitações com o mérito dos quadros de Cézanne. Mas, mesmo nesse caso, o falsário estaria a copiar um estilo, e não a criar um novo — e nós temos tendência para dar mais valor à criatividade do artista original do que à destreza de um imitador. A criatividade é um aspecto importante do mérito artístico.

Isto mostra que não devemos realmente pôr o falsá-rio a par do artista original só porque é capaz de pro-duzir uma imitação convincente. Mas, apesar disso, no caso de uma cópia de um quadro original, poderíamos, mesmo assim, admirar o mérito artístico de Cézanne olhando para a cópia. Logo, isto não é um argumento contra o valor artístico das imitações, mas contra o mérito artístico dos falsários. A cópia permitiria detec-tar indícios do génio de Cézanne, e não do falsário.

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Page 239: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ARTE

O argumento moral O que as imitações têm realmente de errado é o

facto de, pela sua própria natureza, implicarem uma tentativa de enganar o público acerca das suas origens. Uma imitação não seria uma imitação sem o objectivo de enganar: seria uma cópia ou um ensaio de pintura com o estilo de outro artista — o que é conhecido como pasticho. E em parte devido à fraude envolvida — o equivalente a uma mentira — que as imitações são inferiores aos originais. Contudo, podem existir boas razões para separar por vezes as questões morais das artísticas: mesmo que uma imitação brilhante implique a fraude, pode ser tocante como obra de arte.

Conclusão

Neste capítulo examinei várias questões filosóficas relacionadas com a arte e a crítica de arte, desde ques-tões sobre a definição da arte até questões sobre o valor estético das imitações. Muitas das discussões sobre a arte conduzidas por artistas, críticos e público interes-sado são confusas e ilógicas. O uso de rigor filosófico e a insistência na clareza dos argumentos só pode me-lhorar a situação desta área. Como em todas as áreas da filosofia, o argumento claro não garante respostas convincentes às questões difíceis, mas aumenta sem dúvida a probabilidade de que isso venha a acontecer.

Leitura complementar

Aesthetics: An Introduction to the Philosophy of Art, de Anne Sheppard (Oxford: Oxford University Press,

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Page 240: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

feito de Cézanne não é apenas a produção de um belo quadro isolado, mas também a forma como criou um estilo original e toda uma série de quadros. A sua ori-ginalidade faz parte do seu feito; e os diferentes qua-dros que produziu ao longo da sua vida contribuem para a nossa compreensão de cada imagem individual por ele pintada. Só podemos dar valor ao seu feito artístico se pudermos colocar cada quadro no contexto da sua produção completa.

Ora, apesar de um falsário poder possuir a mesma destreza mecânica de pintor que Cézanne tinha, não devemos reduzir o feito de Cézanne à sua destreza artesanal. O falsário, com a sua cópia barata, nunca pode esperar vir a ser um grande pintor porque não pode ser original como Cézanne.

No caso de um falsário que produza obras com o estilo de Cézanne (imitações do segundo tipo), em vez de fazer cópias efectivas de quadros específicos, pode haver mais razões para comparar o mérito artístico das imitações com o mérito dos quadros de Cézanne. Mas, mesmo nesse caso, o falsário estaria a copiar um estilo, e não a criar um novo — e nós temos tendência para dar mais valor à criatividade do artista original do que à destreza de um imitador. A criatividade é um aspecto importante do mérito artístico.

Isto mostra que não devemos realmente pôr o falsá-rio a par do artista original só porque é capaz de pro-duzir uma imitação convincente. Mas, apesar disso, no caso de uma cópia de um quadro original, poderíamos, mesmo assim, admirar o mérito artístico de Cézanne olhando para a cópia. Logo, isto não é um argumento contra o valor artístico das imitações, mas contra o mérito artístico dos falsários. A cópia permitiria detec-tar indícios do génio de Cézanne, e não do falsário.

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ARTE

O argumento moral O que as imitações têm realmente de errado é o

facto de, pela sua própria natureza, implicarem uma tentativa de enganar o público acerca das suas origens. Uma imitação não seria uma imitação sem o objectivo de enganar: seria uma cópia ou um ensaio de pintura com o estilo de outro artista — o que é conhecido como pasticho. E em parte devido à fraude envolvida — o equivalente a uma mentira — que as imitações são inferiores aos originais. Contudo, podem existir boas razões para separar por vezes as questões morais das artísticas: mesmo que uma imitação brilhante implique a fraude, pode ser tocante como obra de arte.

Conclusão

Neste capítulo examinei várias questões filosóficas relacionadas com a arte e a crítica de arte, desde ques-tões sobre a definição da arte até questões sobre o valor estético das imitações. Muitas das discussões sobre a arte conduzidas por artistas, críticos e público interes-sado são confusas e ilógicas. O uso de rigor filosófico e a insistência na clareza dos argumentos só pode me-lhorar a situação desta área. Como em todas as áreas da filosofia, o argumento claro não garante respostas convincentes às questões difíceis, mas aumenta sem dúvida a probabilidade de que isso venha a acontecer.

Leitura complementar

Aesthetics: An Introduction to the Philosophy of Art, de Anne Sheppard (Oxford: Oxford University Press,

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Page 242: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

1987), é uma útil introdução geral a esta área. Philosophi-cal Aesthetics: An Introduction, organizado por Oswald Hanfling (Oxford, Blackwell, 1992), cobre muitos dos tópicos deste capítulo com maior detalhe. Faz parte do curso de Filosofia da Arte da Universidade Aberta bri-tânica.

Arguing About Art, organizado por Alex Neill e Aaron Ridley (Nova Iorque, McGraw-Hill, 1995), é uma boa colecção de artigos sobre tópicos contemporâneos de filosofia da arte.

Literary Theory: An Introduction (Oxford, Blackwell, 1983), de Terry Eagleton, proporciona um estudo inte-ressante de alguns dos desenvolvimentos na filosofia da literatura, apesar de se centrar na tradição da crítica continental, e não na anglo-americana.

Sobre o tópico da autenticidade na música antiga, o livro organizado por Nicholas Kenyon, Authenticity in Early Music (Oxford, Oxford University Press, 1988), é muito bom. The Forger's Art, de Denis Dutton (Berkeley, Cal., University of California Press, 1983), é uma colec-ção fascinante de artigos sobre o estatuto das imitações.

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Page 243: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

índice analítico

alucinação 145-147; «cérebro numa cuba» 146-147; cientista perverso 146-147; idealismo e 156, ver também sonhar

analogia, argumento por: argumento do desígnio 32-34; mentes alheias 214-216

anti-intencionalismo na crítica 230-231; crítica ao 231-233; ironia e 232

antropologia: relativismo moral e 100 aposta de Pascal (argumento do apostador) 57-59; críticas à

59-61; o problema do mal e a 61 argumento a priori: significado de 41 argumento cosmológico ver argumento da primeira causa argumento da ilusão 141-142, 149, 150; críticas ao 142-143;

graus de certeza 142-143 argumento da linguagem privada 161-162 argumento da primeira causa 38; críticas ao 38-40 argumento da questão em aberto 97-98 argumento do desígnio 32-34; críticas ao 34-37; evolução e 35 argumento do jogador (aposta de Pascal) 57-59; críticas ao

59-61; problema do mal e 61 argumento ontológico 40-41; a existência não é uma proprie-

dade 42; consequências absurdas do 41-42; críticas ao 41-43; mal e 43

argumento teleológico ver argumento do desígnio

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Page 244: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Aristóteles 87-88,167; as virtudes 89-90, ver também teoria da virtude; emoções 89; prosperar 89

arte 218-242; autenticidade histórica na execução 233-236; crítica ver crítica de arte; definição 219-230; «efeito Sotheby» 237; imitações ver imitações; ironia na 232; mú-sica 233-236; perspectiva da parecença de família 220-221; preocupações financeiras 237; relíquias 237; teoria da forma significante 221-223; teoria idealista 223-224; teoria institucionalista 224-225; valor 236-241; valor artístico 236-241; valor snobe 237

autenticidade histórica na interpretação 234-235; críticas à 235-236

autoridade: verdade de 166-167 Ayer, A. ].: crítica ao cogito 149-150; emotivismo 101, ver

também emotivismo

Barthes, Roland: morte do autor 231 Beardsley, Monroe: falácia intencional 231 behaviourismo 205; crenças e 206-209; crítica ao 205-209; dor

dos paralíticos e 208; fingimento e 205-208; mentes alheias e 212-213; qualia 208

Bell, Clive: teoria da forma significante 221-223 hem e mal ver ética Bentham, Jeremy 81, 85; cálculo da felicidade 81; felicidade

81, ver também utilitarismo Berkeley, George: idealismo 155, 160, ver também idealismo Berlin, Isaiah 122; liberdade negativa 122-123; liberdade po-

sitiva 124-125 Bíblia 68, 70; Dez Mandamentos 60, 70, ver também ética

cristã; Deus

castigo 125; como dissuasão 128-129; como retribuição ver retributivismo; protecção da sociedade 129-130; reabilita-ção dos prevaricadores 131-132

cepticismo 140; alucinação 145-147; argumento da ilusão ver argumento da ilusão; «cérebro numa cuba» 146-147; cien-tista perverso 146-147; lógica e 149; memória e 147; sonhar 142-145

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Page 245: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ÍNDICE ANALÍTICO

ciência 166-185; dualismo e 192, ver também falsificacionismo; indução, problema da; método científico, perspectiva simples do

cogito 149; críticas ao cogito 149-159 Collingwood, R. G.: teoria idealista da arte 225-226 computadores: questões éticas 94; mente e 210-212; reali-

dade virtual 146 conhecimento: significado 43 consequencialismo 80-86; eutanásia e 92-94; utilitarismo ver

utilitarismo crítica de arte 230-233; anti-intencionalismo 230-233 Cupitt, Don 61-62

Darwin, Charles 35, ver também evolução defesa do livre arbítrio 48; críticas à 49-52 democracia 117-118; críticas à 119-120; democracia «burguesa»

119; democracia directa 118,119; democracia representativa 118-120; eleitores não especialistas 119-120; ilusão da 119; marxistas e 119; paradoxo da 120; Platão e a 119

democracia representativa ver democracia demonstração: significado 43 Descartes, René 21; argumento ontológico 41; cepticismo

140-150; cogito 149-150; dualismo 189-192 desobediência civil 132-135; críticas à 135-137; encoraja a vio-

lação da lei 137; Guerra do Vietname 133; movimento a favor dos direitos civis 132,135; movimento das sufragistas 132; não é democrática 135; objectivos da 134; terrorismo 135; violência e 135

Deus 31-66, 68-72; argumento da causa primeira; argumento do jogador; argumento ontológico; Bíblia 69, 70; bondade ver mal, problema do; como Relojoeiro Divino 32-37; co-nhecimento da existência de 43; crença em 43, 59-61, 64-65; Dez Mandamentos 68, 70; dilema de Eutifron 70-71; evolu-ção e 35; existência de ver argumento do desígnio; fé e 64-65; idealismo e 160; intervenção de 50; leis da natureza e 52; milagres ver milagres; não realismo acerca de 61-65; omnipotência de 37, 40, 45, 49, 52; omnisciência de 37, 40,

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Page 246: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

45; opinião de Hume 34, 65; perfeição de 41; prova da existência de 43; teísmo 31-32, ver também ética cristã

Dickie, George: teoria institucional da arte 225-230 dificuldade da filosofia 25-27 dinheiro: igual distribuição de 108-112 discriminação positiva 114-115; críticas à 115-117 dissuasão ver castigo distinção facto/valor 95-98, ver também naturalismo ético distribuição igualitária do dinheiro 109; críticas à 109-112;

direitos e 112, ver também igualdade; necessidades e 111; recompensas 111

Dostoievsky, Fyodor 70 dualismo 189-195; «fantasma na máquina» 204; ciência e 192;

críticas ao 189-192; dualismo não interactivo 193-195; epifenomenismo 193-195; evolução e 191; interacção men-te/corpo 192, 193-195; ocasionalismo 193; pampsiquismo 191; paralelismo mente/corpo 193; paralelismo psicofí-sico 193

emoções: Aristóteles e 89; ética kantiana e 73, 79-80 emotivismo 101-104; consequências perigosas do 104; críti-

cas ao 102-104; impossibilidade de discussão moral 102; ^ teoria abaixo/viva 102 empírico: definição de 38; ciência empírica ver ciência emprego, igualdade de oportunidades no 112-114, ver tam-

bém discriminação positiva engenharia genética: questões éticas acerca da 94 epifenomenismo 193-195, ver também dualismo epistemologia 139-165, ver também cepticismo; cogito; idea-

lismo; realismo causal; realismo de senso comum; rea-lismo representativo

escravatura: moralidade da 98 escrever: clareza 29; obscuridade 27 espécime/tipo, distinção 202 ética 67-105; baseada nos deveres ver teorias éticas baseadas

nos deveres; cristã ver ética cristã; dilema de Eutifron 70-71; escravatura 98; ética aplicada 91-95; eutanásia 91-95;

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Page 247: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ÍNDICE ANALÍTICO

kantiana ver ética kantiana; metaética ver metaética; natu-ralismo ver naturalismo ético; questões de segunda or-dem, significado 95; relativismo ver relativismo moral; teoria da virtude ver teoria da virtude; teorias de pri-meira ordem, significado 95; utilitarismo ver utilitarismo

ética aplicada 91-95; computadores 94; engenharia genética 94; eutanásia 91-95; fertilização in vitro 94, ver também ética; SIDA 94

ética cristã 69-70; Bíblia 69-70; críticas à 70-72; Dez Mandamen-tos 69, 70, ver também Deus; dilema de Eutifron 70-71; euta-násia 92; igualdade 107; Regra de Ouro do cristianismo 76

ética kantiana 71-77, 85; aplicações da 92; conflitos de deve-res 78; consequências das acções 80; críticas à 77-80; emo-ções e 73, 78-80; eutanásia 92; fins e meios 77, 78; igual-dade 107; imperativo categórico 73-77, 92; incompetência e 80; juízos morais são impessoais 105; máximas 73, 76-77; motivos 72-73; plausibilidade da 79-80; universa-lizabilidade 76-77, 79

eutanásia 91-95; definição 91; ética cristã e 92; ética kantiana e 92; utilitarismo e 92-93

evolução 177; argumento do desígnio e 35; dualismo e 191 experiência mental do quarto chinês ver quarto chinês experiências mentais 146-148; quarto chinês 210-212

falácia naturalista 97, ver também naturalismo ético falsificacionismo 171-182; historicamente incorrecto 183; crí-

ticas ao 182-183; erro humano e 182-183; falsificabilidade 172-182; papel da confirmação e 182; psicanálise e 181

«fantasma na máquina» 205, ver também dualismo fé em Deus 63; perigos do 64-65 fenomenismo 160-161; argumento da l inguagem privada

161-162; críticas ao 161-162; solipsismo e 161-162 fertilização in vitro: questões éticas acerca da 94 filosofia política 106-138, ver também castigo; democracia;

desobediência civil; igualdade; liberdade filosofia: definição 19-21; e a sua história 21-22; é difícil 25-

27; limites da 27; porquê estudar filosofia? 22-25

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Page 248: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

fisicalismo 189-191, 191, 195 et seq; teoria da identidade ver identidade-espécime, teoria da; identidade-tipo, teoria da

forma significante, teoria da 221-222; críticas à 222-223 funcionalismo 209-210; críticas ao 210-213; experiência men-

tal do quarto chinês 210-212; qualia 210-212

Gandi, M. K. (Mahatma): desobediência civil 132 génio/cientista maligno 146-149 Goodman, Nelson: «verdul» 175-176, 177 Guerra do Vietname: desobediência civil e 134

Hanson, R. N. 168 hedonismo 80 história da filosofia 21-22 Hume, David 21; críticas ao argumento do desígnio 34; des-

lumbramento 65; Deus 34, 65; indução 175; lei de H u m e 97; milagres 54-57

idealismo 154-155; alucinações 156; críticas ao 156-160; Deus e 160; solipsismo e 156-157; sonhos 157

identidade mente /corpo ver identidade-espécime, teoria da; identidade-tipo, teoria da

identidade-espécime, teoria da 202-203; críticas à 203, ver também fisicalismo

identidade-tipo, teoria da 196-198; criticas à 198-202; qualia 199, ver também fisicalismo

igualdade 108-114; discriminação positiva 114-117; distribui-ção de dinheiro 108-112; ética cristã e 107; ética kantiana e 107; opor tunidades de emprego 112-114; política ver democracia

igualdade de oportunidades no emprego 112-114, ver também igualdade; discriminação positiva

igualitarismo ver igualdade imitações 236-241; argumento moral 241; artista original e

240-241; perfe i tas 237-238; valor art íst ico e 236-241; Vermeer 236

imitações de Vermeer 236

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Page 249: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ÍNDICE ANALÍTICO

imperativo categórico 73-77; eutanásia e 92; máximas 73-77; meios e fins 77, 79; universalizabilidade 76-79, ver também ética kantiana

indução, problema da 172-176; «verdul» 175-176,177; evolu-ção e 177; falsificacionismo e ver falsificacionismo; proba-bilidade e 177-179; tentativas de solução 176-183

ironia: na arte 232

James, William: sobre a aposta de Pascal 61 Johnson, Samuel: ataque ao idealismo 160

Kant, Immanuel: crítica ao argumento ontológico 42; ética ver ética kantiana

King, Martin Luther: desobediência civil 132 liberdade 122-123; liberdade negativa 122-123; liberdade po-

sitiva 123-125; tirar a ver castigo limites da filosofia 27-28 Locke, John: distinção entre qualidades primárias e secundá-

rias 153 lógica 28; cepticismo e 149

mal, problema do 37, 40, 43, 45; analogia artística 46-48; argumento do apostador e 61; argumento ontológico e 43; defesa do livre arbítrio 48-52; mal natural 50; santi-dade 46; tentativas de solução do 46-52

Malcom, Norman: sobre os sonhos 145 Marx, Karl 119 marxismo: democracia e 119 memória: cepticismo e 147 mente, filosofia da 187-216; distinta da psicologia 187-188,

ver também mentes alheias; problema da m e n t e / c o r p o mentes alheias 156, 212-216; argumento por analogia 214-

216; behaviourismo e 212-213; críticas ao argumento por analogia 213-216

metaética: significado 95, ver também emotivismo; naturalis-mo ético, relativismo moral

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Page 250: Elementos basicos de filosofia por nigel warburton

ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

método científico, perspectiva simples do 167-168; críticas ao 168-172; observação 168-171; enunciados observacio-nais 171-172; selecção 172

milagres: argumento dos 52-54; definição 54; factores psico-lógicos 55-56; improbabilidade dos 55; leis da natureza e 53, 54; não realismo acerca de Deus e dos 62; opinião de Hume 54-57

Mill, John Stuart 80, 81-82, 92, 123; fenomenismo 160, ver também utilitarismo

Moore, G. E.: falácia naturalista 97; argumento da questão em aberto 97-98

moral ver ética mundo exterior ver epistemologia musical, autenticidade histórica na execução 233-235; críti-

cas à 235-236

não realismo acerca de Deus 61; críticas ao 62-64; milagres e 63

naturalismo ético 95-98; argumento da questão em aberto 97-98; críticas ao 97-98; distinção facto/valor 97-98; falá-cia naturalista 98; lei de Hume 98; natureza humana e 98; questão do ser/dever 98; utilitarismo e 98

natureza humana 91, 98 natureza, leis da 52, 54, ver também milagres Newton, Isaac 183 Nietzsche, Friedrich 22; opinião sobre os preconceitos dos

filósofos 67 Nozick, Robert: direitos de propriedade 112

observação ver método científico ocasionalismo 193, ver também dualismo

Paley, William: argumento do desígnio 32 pampsiquismo 191, ver também dualismo paralelismo psicofísico 193, ver também dualismo paralelismo, 193, ver também dualismo parecenças de família 219-221 Pascal, Blaise 57-61

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ÍNDICE ANALÍTICO

Platão 21; crítica à democracia 119; Êutifron 71 Popper, Karl: falsificacionismo 179-183 probabilidade: problema da indução e 177-179 problema da mente/corpo 188-212, ver também behaviou-

rismo; dualismo; funcionalismo; fisicalismo psicanálise: falsificacionismo e 181 psicologia: diferente da filosofia da mente 187-188

qualia 201, 206, 210-212 qualidades primárias/secundárias 153, ver também realismo

representativo quarto chinês 210-212

realismo causal 162-164; críticas ao 164; pressupõe o mundo real 164; visão 164

realismo de senso comum 141 realismo representativo 150-153; críticas ao 153-154; qualida-

des primárias/secundárias 153 realismo ver realismo causal; realismo de senso comum; rea-

lismo representativo relativismo moral 98-101; antropólogos e 100; críticas ao 100-

101; definição de sociedade e o 101; escravatura 98; in-consistência do 100; relativismo normativo 100; valores de uma sociedade 101

relativismo normativo 100 relativismo: moral ver relativismo moral; normativo 100 religião: filosofia da ver ética cristã; mal, problema do; Deus Relojoeiro Divino: Deus como 32-37 retributivismo 125-126; crítica ao 126; efeitos do castigo 126;

lex talionis 126; «olho por olho» 126 revolução copernicana 183 Russell, Bertrand: sobre a indução 175; memória 145 Ryle, Gilbert: behaviourismo 204

santidade: o mal e a 46 S.'° Anselmo: argumento ontológico 72 Sartre, Jean-Paul: crítica à ética naturalista 98; natureza hu-

mana 98; sobre a vergonha e o solipsismo 157

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

Searle, John: quarto chinês 210-212 ser/dever, questão do 97, 98, ver também naturalismo ético SIDA: questões éticas sobre a 94 solipsismo: idealismo e 156-157; argumento da linguagem

privada e 161-162; fenomenismo e 161-162; mentes alheias ver mentes alheias; vergonha e 157

sonhar 143-145; idealismo e 156; sonhos lúcidos 145, ver também alucinação

sufragistas, movimento das 132

teísmo 31-32 teoria abaixo/viva 102, ver também emotivismo teoria da virtude 87-91; as virtudes 89-90; críticas à 90-91;

natureza humana e 91; prosperar 88 teoria idealista da arte 223-225; críticas à 225 teoria institucional da arte 225-227; críticas à 227-230 teorias deontológicas ver teorias éticas baseadas nos direitos teorias éticas baseadas nos deveres 68 et seq, ver também ética

cristã; ética kantiana terrorismo 135

universalizabilidade ver ética kantiana utilitarismo 80-86, 95; casos problemáticos 82-85; críticas ao

81-85; definição de «bem» 80; dificuldades de cálculo 81-82; eutanásia 92-93; naturalismo ético e 97; negativo ver utilitarismo negativo; utilitarismo das regras 87

utilitarismo das regras 87 utilitarismo negativo 85-86; críticas ao 86; destruição de toda

a vida 86, ver também utilitarismo

Van Meegeren, Henricus: imitações de Vermeer 236 «verdul» 175-176, 177

Wimsatt, William: falácia intencional 231 Wittgenstein, Ludwig: argumento da l inguagem privada

161-162; parecenças de família 219-221 Wollheim, Richard: crítica à teoria institucional 230

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Glossário inglês-português

Neste glossário listam-se não apenas os termos cuja tra-dução portuguesa se procurou fixar, mas também outros que o leitor pode encontrar na literatura filosófica escrita em língua inglesa, sem que, no entanto, saiba o seu equivalente português. Trata-se de equivalências de vocabulário técnico, e não de equivalências linguísticas estritas. Na Internet encontra-se uma versão sempre actualizada deste glossário: http://www.terravista.pt/Nazare/1339.

acceptance — aceitação acquaintance — contacto acquaintance, knowledge by— contacto, conhecimento por acquaintance, principle of—contacto, princípio do acrolect — acrolecto actuality and potenciality — acto e potência act utilitarianism — utilitarismo dos actos aeviternity — eviternidade after-image — imagem residual agent-causation — causalidade do agente Al — IA akoluthic — acolutia Al-Farabi — Alfarrabi Al-Ghazali — Algazel

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

alienans — adjectivo pseudoqualificativo aliorelative relation — relação irreflexiva apodeitic — apodíctico apodosis — apódose aseity — asseidade assertability — assertibilidade assumption — pressuposto, premissa (lógica) avowals — exteriorização

backwards causation — causalidade invertida basiled — basilecto belief— crença bleen — azerde boolean algebra — álgebra de Boole bundle theory — teoria do feixe burden of proof— ónus da prova

cancel out — neutralizar cataphora — ca tá fora categorial grammar — gramática categorial causation — causalidade central state materialism — materialismo de estados centrais claim-right — exigência cognitive achievement word — termo de consecução cognitiva

•coherentism — coerentismo commensurable — comensurável commitment — comprometimento commonsense realism — realismo de senso comum compactness theorem — teorema da compacidade connectionism — conexionismo consent — consentimento conservantism — conservadorismo consilience — consiliência context-free grammar — gramática independente do contexto co-ordinative definitions — definições coordenadoras coreferential — co-referencial counterpart theory — teoria das contrapartes

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GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS

count-noun — termo contável covering law model — modelo da cobertura por leis crossing over — sobrecruzamento

deceit — dolo deconstruction — desconstrução defensible — revogável definist fallacy — falácia da definição delusion — delusão demonstration — prova denoting phrase — expressão denotativa descriptive meaning — significado descritivo desert — merecimento differentia — diferença específica disconfirmation — infirmação domain — domínio dominance (decision theory) — dominância (teoria da decisão) dyslogistic — dislogístico

economistn — economismo efective procedure — processo efectivo egocentric predicament — dificuldade egocêntrica eigenfunction — função própria eigenvalue — valor próprio eightfold path — caminho das oito vias eliminativism — elimina tivismo endurance/perdurance — permanência/persistência entailment — derivabilidade entrenchement — entrincheiramento equitiumerous sets — conjuntos equipotentes equivalence class — classe de equivalência erotetic — erotemática ESP — P E S eudaimonism — eudemonismo eulogistic — eu logístico evidence — dados, indícios (em probabilidades: informação) exaptation — exaptação

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

exchangeability — permutabilidade existential import — implicação existencial expected utility — utilidade esperada experience — experiência experiment — experiência científica explanation — explicação explication — explanação

/active — factivo felicific calculus — cálculo da felicidade field theory — teoria de campo finitary methods — métodos finitistas flourishing — prosperar folk psychology — psicologia popular follow — seguir-se foundationalism — fundacionalismo frame problem — problema do enquadramento framework — enquadramento frequency theory of probability — teoria frequencista das pro-

babilidades free will — livre arbítrio functional kind — categoria funcional fuzzy logic — lógica difusa

gambler's argument — argumento do apostador ghost in the machine — fantasma na máquina great circles — geodésicas greatest happiness principle — princípio da maior felicidade grue — verdul

haecceity — ecceidade halting problem — problema da paragem hardware — suporte físico high/low redefinition — redefinição forte/fraca horns of dilemma — alternativas do dilema Hume's fork — dilema de Hume hylozoism — hilozoismo

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GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS

ideational theory of meaning — teoria ideativa do significado identity theory of mind — teoria identitativa da mente ideolect — idiolecto idiographic methods — métodos idiográficos illocutionary act — acto ilocutório immunity right — imunidade implicature — implicatura incongruent counterparts — contrapartes incongruentes indexical — indexical inertial frame — referencial de inércia infirmation — desconfirmação intentional stance — postura intencional interval scale — escala de intervalos intuition pump — sonda de intuição inverse methods — métodos da inversão intensive magnitude — grandeza intensiva

knowledge by acquaintance — conhecimento por contacto

labour theory of value — teoria do valor-trabalho laiolike — legiforme least upper bound — supremo lect — lecto libertarianism (metaphysical) — libertismo libertarianism (political) — libertarismo liberty-right — liberdade locutionary act — acto locutório

many-one function — função de muitos para um many questions fallacy — falácia das várias perguntas many-sorted logic — lógica multi-espécie many-valued logic —- lógica polivalente mapping (function) — aplicação (função) mass-noun — termo de massa matter of fact — questão de facto maximin principie — princípio maximin

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

mean (ethical) — meio-termo meaning — significado means-ends reasoning — raciocínio instrumental measurement — medida mechanism — mecanic ismo median — mediana mereology — mereologia merit — mérito method of agreement — método da concordância method of doubt — dúvida metódica metric tensor — tensor métrico mind — mente mnemic causation — causalidade mnésica monophysite — monofis ismo monothetic — monotét ico moot — litigiosa motive of an action — motivação de uma acção multi-valued logic — lógica polivalente

narrow content — conteúdo restrito natural kind — categoria natural neural net — rede neuronal neustic — neustico no false lemmas principle — princípio da recusa de lemas fal-

sos nomic — nómico nomological dangler — conexão nomológica nonaptation — inaptação non-standard analysis — análise não standard no-ownership theory — teoria da despossessão noun phrase — sintagma nominal

observation statement — enunciado observacional one-one function — função injectiva one-to-one correspondence — correspondência biunívoca operation letter — símbolo funcional ordering relation — relação de ordem

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GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS

ordinal-interval scale — escala ordinal de intervalos other minds — mentes alheias other-regarding — hetero-relativa

Pascal's wager — aposta de Pascal performance — desempenho performative utterances — elocuções performativas peritrope — perítropo perlocutionary acts — actos perlocutórios perseity — perseidade phatic — fático phenomenalism — fenomenismo phoronomy — foronomia phrastic/neustic — frástico/nêustico picture theory of meaning — teoria pictórica do significado pleonotetic logic — lógica pliotética phirative logic — lógica plurativa power-right — poder point particles — pontos materiais posit — suposto posterior probability — probabilidade a posteriori power set — conjunto-potência pragmatics — pragmática pragmatism — pragmatismo prediction — previsão principle of acquaintance — princípio do contacto prior probability — probabilidade a priori procedural semantics — semântica procedimental projection function — função de projecção proof— demonstração protasis — prótase protocol statements — proposições protocolares proxy function — função de representação pseudo-statement — pseudoproposição

range (function) — imagem (função) range (interpretation) — domínio de variação

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

range theory of probability — teoria do âmbito da probabilidade ratio scale — escala de proporção reduction sentence—frase de redução relevance logics — lógicas relevantes reliabilism — fiabilismo reliability — fiabilidade representationalism — representacionalismo retrodiction — retroprevisão reverse discrimination — discriminação positiva

satisfiable — satisfazível scope — âmbito self-deception — auto-engano self-intirnating — auto-intimador self-knowledge — conhecimento de si self-regarding — auto-relativa self-respect — respeito-próprio semantic engine — dispositivo semântico sense and reference — sentido e referência sense-data — dados dos sentidos sensible knave — patife discreto sentence — frase sentenciai function — função frásica set-theoretic hierarchy — hierarquia cumulativa dos conjuntos Sheffer's stroke— traço de Sheffer sign — sinal, signo significant form theory—teoria da forma significante situation semantics — semântica de situações slingshot — catapulta

, slippery slope — situação escorregadia, derrapagem slippery slope argument — argumento da derrapagem soft determinism — determinismo moderado software — suporte lógico sortal — categorial soul — alma soundness (of a formal system) — adequação (de um sistema

formal)

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GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS

spirit — espírito state of mind — estado de espírito statement — af irmação, asserção, enunc iado sum set — conjunto união success word — termo factivo superstring theory — teoria das cordas supervenience — superveniência sure thing principle — princípio da coisa certa surjection — sobrejecção synderesis (synteresis) — sindérese

theory-laden — subordinação teórica thick terms — termos densos thisness — istidade thought experiment — experiência mental time-lag argument — argumento do lapso de t empo time-slice — corte no tempo tit for tat — pagar na m e s m a m o e d a tone — tom token — espécime token reflexive — espécime-reflexiva topic-neutral — tópico-neutral trademark argument — argumento da marca transcendental signified — transcendental assinalado trial (probability) — ensaio, lançamento trolley problem — problema do eléctrico truth-apt — susceptível de verdade two-way interactionism — interaccionismo reflexivo type/tokeyi — tipo/espécime

unbounded quantifiers — quantificadores ilimitados unit set — con junto s ingular universalizability — universalizabilidade upper bound — majorante utter — proferir utterance — elocução

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ELEMENTOS BÁSICOS DE FILOSOFIA

vagueness — vagueza variable realization — realização variável vindication — vindicação

warrant — garantia warranted assertability — assertibilidade garantida wave equation — equação de onda wave function — função de onda wave packet — pacote de ondas well-ordering — boa-ordem wickedness — perversidade

wide and narrow content — conteúdo lato e restrito

zoroastrianism — zoroastrismo

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