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  • 7/28/2019 Eric Voegelin - Evangelho e Cultura

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    ERIC VOEGELIN

    EVANGELHO E CULTURA

    in: The Collected Works of E. Voegelin.

    Vol. 12Published Essays, 1966-1985.

    Louisiana State University Press

    Baton Rouge/Londres, 1988, pp. 172-212

    Traduo Mendo Castro Henriques e Lus Salvador, M. Eduarda Barata, Mrio

    Jorge e Nuno Bettencourt

    A Comisso Directiva honrou-me com o convite de proferir uma conferncia

    acerca de "Evangelho e Cultura".1[1] Se bem compreendi a inteno dos membros da

    comisso queriam escutar o que um filsofo tem para dizer acerca da dificuldade do

    Verbo em se fazer ouvir no nosso tempo e, se ouvido, tornar-se inteligvel para aqueles

    que o querem escutar. Porque seria o evangelho vitorioso nas circunstncias

    helenistico-romanas da sua origem? Porque atraiu uma lite intelectual que elaborou o

    significado do Evangelho em termos de filosofia e, deste modo, criou uma doutrina

    Crist? Porque pde esta tornar-se religio do Imprio Romano? Como pde a Igreja,

    atravessado este processo de aculturao, sobreviver ao Imprio Romano e tornar-se a

    crislida, da civilizao Ocidental, como lhe chamou Toynbee ? E o que ofuscou esta

    fora cultural triunfante, de modo a que, hoje, as igrejas esto na defensiva contra os

    movimentos intelectuais dominantes do nosso tempo e abaladas por uma crescente

    inquietao no seu interior?

    Uma ordem de trabalhos impressionante, devo dizer. E, contudo, aceitei-a

    porque de que serviria a filosofia se nada tivesse para dizer acerca das grandes questes

    1[1] The Gospel and Culture o ttulo da conferncia editada em 1971em Jesus andMarys Hope, Pittsburgh Theological Seminary press, pp. 59-1 01.

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    que os homens do nosso tempo lhe podem, justificadamente, colocar? Mas se

    considerarmos a amplido do desafio, compreendereis que no posso prometer mais do

    que uma tentativa humilde para justificar a confiana da Comisso e para salvar a honra

    da filosofia.

    I

    Orientei as questes iniciais para o tema do evangelho e da filosofia e, comearei por

    apresentar uma instncia antiga e outra recente em que o tema se tornou tpico.

    Ao absorver a razo na forma da filosofia helenstica o evangelho da ekklesia

    tou theou primitiva tornou-se a Cristandade da Igreja. Se a comunidade do evangelho

    no tivesse penetrado na cultura do tempo ao entrar na sua vida da razo, teria

    permanecido uma seita obscura e provavelmente desapareceria da histria; conhecemos

    o destino do Judeo-Cristianismo. A cultura da razo, por sua vez, atingira uma fase em

    que era sentida como um impasse por jovens sedentos para os quais o evangelho parecia

    oferecer a resposta busca filosfica da verdade. A introduo aoDilogo de Justino

    documenta esta situao. Na concepo de Justino, o mrtir, (morto cerca de 165 d. C.),

    o evangelho e a filosofia no se apresentam ao pensador em alternativa, nem so

    aspectos complementares da verdade que o pensador tem de soldar numa verdade

    completa- na sua concepo, o Logos do evangelho o mesmo Deus que o fogos

    spermatkos da filosofia, embora numa fase posterior da sua manifestao na histria.

    O Logos opera no mundo desde a criao; todos os homens que viveram segundo a

    razo, quer gregos (Herclito, Scrates, Plato), ou brbaros (Abrao, Elias), foram num

    certo sentido Cristos (Apologia 1, 46). Donde, que a Cristandade no seja uma

    alternativa filosofia, mas a prpria filosofia no seu estado de perfeio; a histria do

    Logos cumpre-se atravs da incarnao do Verbo em Cristo. Para Justino a diferenaentre evangelho e filosofia uma questo de fases sucessivas na histria da razo.2[2]

    2[2] Na presente traduo, respeita-se o uso do autor em grafar termos significativos

    quer com maisculas quer com minsculas, conforme o contexto. Ex: evangelho,

    Evangelho.

    [3] Trata-se deDe Nieuwe Katechsmus. Geloofsver Kondiging voor voiwassenen.

    Obra redigida pelo Instituto Catequtico Superior de Nijmegen, em colaborao comdiversos, e por ordem dos Senhores Bispos da Holanda. Cf. trad. Port., Ed. Herder, S.

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    Tendo presente esta apresentao muito antiga do tema, iremos agora examinar

    um pronunciamento recente. Extra-o do Novo Catecsmo de 1966, encomendado pela

    hierarquia dos Pases-Baixos e convencionalmente chamado o Catcsmo Holands. O

    seu captulo de abertura tem o ttulo "O Homem Questionador"; e na primeira pgina

    encontramos a seguinte passagem:

    "Este livro ... comea por nos interrogar sobre qual o significado do facto de

    que ns existimos. Isto no significa que ns comeamos por tomar uma atitude no-

    Crist. Significa simplesmente que ns, tambm, como Cristos somos homens com

    mentes questionantes. Devemos estar sempre prontos e capazes de explicar como a

    nossa f d uma resposta questo da nossa existncia."3[3]

    A passagem, embora pouco polida, filosoficamente muito relevante. A sua

    rudeza bem-intencionada esclarece bastante as dificuldades em que as igrejas se

    encontram hoje. Note-se acima de tudo a dificuldade que a Igreja tem face aos seus

    prprios crentes que querem ser Cristos custa da prpria humanidade. Justino

    comeou como uma mente questionante e, depois de ter experimentado as escolas

    filosficas da poca, deixou que a sua busca se apaziguasse na verdade do evangelho.

    Hoje, a situao est invertida. Se os crentes esto em descanso num estado de f que

    no pe perguntas, o seu metabolismo intelectual tem de ser estimulado pela lembrana

    que o homem suposto questionar-se e, que um crente incapaz de explicar como a sua

    f uma resposta ao enigma da existncia, pode ser um "bom-Cristo", mas um

    homem questionvel. E podemos fortalecer a lembrana recordando, delicadamente,

    que nem Jesus nem os companheiros a quem Ele transmitiu a palavra sabiam ainda que

    eram Cristos; o evangelho oferecia a sua promessa, no a Cristos, mas aos pobres em

    esprito, ou seja, a mentes questionantes, embora situados num nvel culturalmente

    menos sofisticado que o de Justino. Por trs da passagem emerge o conflito, no entre o

    evangelho e a filosofia, mas antes entre o evangelho e a sua posse inquestionvel como

    doutrina. Os autores do catecismo no encaram este conflito com ligeireza; antecipam,

    Paulo, 1969, pg. 4.

    3

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    mesmo, resistncia sua tentativa de encontrar a humanidade comum dos homens no

    facto de questionar o significado da existncia; e protegem-se contra uma

    incompreenso precipitada assegurando o leitor que no pretendem "tomar uma atitude

    no-Crist". Assumindo que ponderaram rigorosamente cada afirmao que

    escreveram, esta clusula defensiva revela um ambiente onde no habitual pr

    questes, onde o carcter do evangelho como resposta foi to nocivamente obscurecido

    pelo seu endurecimento em doutrina estanque que o levantamento da questo, a que o

    evangelho responde, pode ser suspeito como "atitude no-Crist". Se esta a situao,

    contudo, os autores tm boas razes para estarem inquietos. Porque o evangelho como

    doutrina que se pode pegar e ser salvo, ou largar e ser condenado, letra morta;

    encontrar indiferena, se no mesmo desprezo, entre mentes questionantes fora da

    Igreja, bem como na inquietao do crente que ser insuficientemente pouco-Cristo por

    ser um homem que se interroga.

    A inteno do Catecismo, restaurar a mente questionante na posio que lhe '

    devida, o primeiro passo importante para restituir ao evangelho a realidade que ele

    perdeu atravs do endurecimento doutrinrio. Ademais, por muito hesitante e frgil que

    possa ser a execuo, esta tentativa um primeiro passo para readquirir a vida da razo

    representada pela filosofia. Tanto o chamado erotismo platnico da busca (zetess) e aatitude aportica de Aristteles, intelectualmente mais agressiva, reconhecem no

    "homem questionante" o homem movido por Deus a pr as questes que o conduziram

    causa do ser(arch). A prpria busca a evidncia da inquietao existencial; no acto

    de questionar, a experincia humana de tenso (tass) para o fundamento divino irrompe

    na palavra da interrogao como uma orao pelo Verbo da resposta. Questes e

    respostas esto intimamente relacionadas; a busca move-se no que Plato designou por

    metaxy, a realidade interina da pobreza e da riqueza, do humano e do divino; a questo conhecimento, mas este conhecimento ainda o tremor de uma questo que pode ou

    no alcanar a verdadeira resposta. Esta busca luminosa em que a procura da resposta

    verdadeira depende do colocar a verdadeira questo, e o pr da verdadeira questo

    depende da apreenso espiritual da verdadeira resposta, a vida da razo. Ao filsofo

    certamente que agrada o aviso do Catecismo para que a f se possa justificar como uma

    resposta a questes acerca do significado da existncia.

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    Questo e resposta so sustentadas conjuntamente e relacionadas entre si pelo

    acontecimento da busca. O homem, contudo, embora verdadeiramente questionador,

    tambm pode deformar a sua humanidade ao recusar pr questes ou ao carreg-las com

    premissas delineados para tornar a busca impossvel. O evangelho, para ser ouvido,

    exige ouvidos que possam ouvir-, a filosofia no ser a vida da razo se a razo do

    questionador estiver depravada (Rom. 1, 28). A resposta no ajudar o homem que

    perdeu a questo e as dificuldades da poca presente so caracterizadas pela perda da

    questo, mais do que da resposta, como bem viram os autores do Catecismo. Ser

    necessrio, portanto, recuperar a questo que o filsofo via respondida no evangelho na

    cultura helenstico-romana.

    Uma vez que a questo se refere humanidade do homem, permanece idnticaao que foi no passado; mas hoje est to distorcida pelo processo Ocidental de

    desculturao que deve ser, primeiro, desentranhada da linguagem intelectualmente

    desordenada em que ns falamos indiscriminadamente do significado da vida, ou do

    significado da existncia, ou do facto da existncia que no tem significado, ou do

    significado que deve ser atribudo ao facto da existncia, etc.... como se a vida fosse um

    facto e o significado uma propriedade que pode ou no possuir.

    Ora a existncia no um facto. Se alguma coisa , a existncia o nofacto de

    um movimento perturbante da realidade interina, da ignorncia e do conhecimento, do

    tempo e da intemporalidade, da imperfeio e perfeio, da esperana e do cumprimento

    e, enfim, da vida e da morte. Da experincia deste movimento, da ansiedade de perder a

    direco correcta nesta interinidade de escurido e luz, nasce o inqurito acerca do

    significado da vida. Mas nasce porque a vida experimentada como a participao

    humana num movimento cuja direco pode ser encontrada ou perdida. Se a existncia

    do homem no fosse um movimento mas um facto, no s no teria qualquer

    significado mas nem sequer se colocaria a questo do significado. A conexo entre o

    movimento e investigao torna-se mais compreensvel se considerarmos a sua

    deformao por alguns pensadores existencialistas. Um intelectual como Sartre, por

    exemplo, encontra-se envolvido no conflito sem sada entre assumir a facticidade sem

    sentido da existncia e a busca desesperada para lhe atribuir um significado a partir dos

    recursos do seu eu: pode separar-se da investigao do filsofo, ao assumir que a

    existncia um facto; mas no pode escapar sua inquietao existencial. Se a busca

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    fr proibida de se mover na realidade interina, e se, por consequncia, no puder ser

    dirigida ao fundamento divino do ser, deve ser dirigida para um significado imaginado

    por Sartre. A busca, pois, impe a sua forma mesmo quando perdeu substncia; o facto

    imaginado da existncia no pode permanecer sem significado, mas deve tornar-se a

    rampa de lanamento para o Ego do intelectual.

    Esta destruio imaginativa da razo e da realidade no uma idiossincrasia de

    Sartre; tem um carcter representativo na histria, porque , de facto, uma fase num

    processo de pensamento cuja modalidade foi instaurada por Descartes. AsMeditaes,

    certo, ainda pertencem cultura da busca, mas Descartes deformou o movimento, ao

    coisificar os parceiros como objectos de um observador, do gnero de Arquimedes,

    situado fora da busca. Sobre a concepo da nova metafsica doutrinria, o homem quese experimenta a si prprio como questionador, aparece como uma res cogitans cujo

    esse deve ser inferido do seu cogitare,- e o Deus por cuja resposta ns esperamos e

    aguardamos convertido no objecto de uma prova ontolgica da sua existncia.

    Ademais, o movimento da busca, o erotismo da existncia na realidade interina do

    divino e do humano, tornou-se um cogitare demonstrativo dos seus objectos; a

    luminosidade da vida da razo foi modificada na claridade do raisonnement. Assim, da

    realidade da busca desintegrada nasMeditaes, emergem os trs espectros que pairamno cenrio Ocidental at hoje. Primeiro, vem o Deus que foi desligado da busca e ao

    qual j no se permite que responda s questes: vivendo retirado da vida da razo, foi

    empurrado para objecto da f no razovel; de tempos a tempos declara-se que est

    morto. Existe, em segundo lugar, o cogitare do observador, tipo Arqumedes, exterior

    ao movimento: foi engolido no monstro da Conscincia de Hegel que produz um Deus,

    homem e histria prprias; este monstro ainda est empenhado em luta desesperada,

    para que o seu movimento dialctico seja aceite como real, no lugar do movimento realda busca na realidade interina. E, finalmente, existe o homem do cogito ergo sum

    cartesiano: este tem-se rebaixado consideravelmente no mundo, reduzido como est ao

    facto e figura dosum ergo cogito sartreano; o homem que em tempos podia demonstrar

    no s a si prprio mas mesmo a existncia de Deus, tornou-se o homem que est

    condenado a ser livre e que pretende ser preso por editar um jornal maosta.

    As reflexes acerca da busca e da sua deformao no nosso tempo, foram

    suficientemente longas para permitir algumas concluses acerca da questo e da sua

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    recuperao. Antes de mais, os males da desculturao afectaram a filosofia, pelo

    menos tanto como afectaram o evangelho. Uma aculturao atravs da introduo da

    filosofia contempornea na vida da Igreja, a faanha dospatres no ambiente helenstico-

    romano, seria hoje impossvel, porque nem as igrejas tm uso para a razo deformada

    nem os representantes da deformao pem as questes a que o evangelho ofereceria a

    resposta. Em segundo lugar, contudo, a situao no assim to desesperada como

    pode parecer, porque a questo est presente mesmo no tempo em que a razo

    deformada. A busca impe a sua forma mesmo quando a sua substncia rejeitada; os

    filosofemos dominantes do nosso tempo so, claramente, resduos da busca. A

    desculturao no constitui uma nova sociedade, ou uma nova idade na histria; um

    processo no interior da nossa sociedade, notrio na conscincia pblica e suscitando

    resistncia. De facto, nestas linhas, estou precisamente a analisar o fenmeno da razo

    deformada, reconhecendo-a como tal, segundo os critrios da razo no deformada; e

    consigo faz-lo porque a cultura Ocidental da razo ainda est suficientemente viva,

    apesar das aparncias, para fornecer os critrios para caracterizar a sua prpria

    deformao. Esta ltima observao permitir, em terceiro lugar, pr de parte a

    propagao ideolgica dos processos de desculturao como sendo uma "nova era".

    Ns no vivemos numa era "ps-Crist", "ps-filosfica", "ps-pag", ou na era de

    "novo-mito" ou do "utopismo", mas simplesmente num perodo de desculturao

    massia atravs da desculturao da razo. A deformao no uma alternativa ou um

    avano para alm da formao. Pode falar-se de um avano diferenciador, na

    luminosidade da busca, do mito para a filosofia, ou do mito para a revelao; mas no se

    pode falar de um padro de progresso diferenciador da razo para a desrazo. Em

    quarto lugar, contudo, a desculturao do Ocidente um fenmeno histrico persistente

    durante sculos- os destroos grotescos em que se apresenta, hoje, quebrada a imagem

    de Deus, no constituem uma opinio errada acerca da natureza do homem mas umresultado do processo secular da destruio. preciso compreender este aspecto da

    situao, se no quisermos ser encaminhados para variedades de aco que, embora

    sugestivas, dificilmente poderiam ser curativas. A questo da busca no pode ser

    recuperada nos destroos; a sua recuperao no uma questo de pequenas reparaes,

    de pr um remendo aqui ou acol, de criticar este ou aquele autor cuja obra uma

    sintoma de desculturao mais do que a sua causa, etc. Nem o conflito ser resolvido

    pelos famosos dilogos em que os parceiros s no trepam para cima dos dedos dos psuns dos outros, menos por causa de excesso de boas maneiras do que por ignorarem os

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    dedos que devem ser pisados. E, menos ainda se poder conseguir ao contrapor a

    doutrina certa doutrina errada, pois a endoutrinao precisamente o dano que foi

    infligido no movimento da busca. No existiriam doutrinas hoje da existncia

    deformada se a busca na filosofia e no evangelho no tivesse sido escondida pela

    endoutrinao radical da Idade-Mdia tardia, tanto na metafsica como na teologia.

    II

    Apenas a vida milenar da razo pode dissolver a sua deformao secular. No

    temos de permanecer noghetto dos problemas contemporneos ou modernos, prescritos

    pelos deformadores. Se a destruio remonta a sculos, ns podemos recuar milnios

    para restaurar a questo to vastamente danificado no nosso tempo.

    A questo de busca do significado da vida encontra a sua expresso clssica, na

    Grcia do sculo V, quando Eurpedes desenvolve o simbolismo do duplo significado

    da vida e da morte:

    "Quem sabe se viver estar morto,e estar modo viver. "

    Plato resume as linhas de Eurpedes no Grgas (492e) e elabora o simbolismo no

    mito do juizo dos mortos que conclui o dilogo. Jesus resume o simbolismo na

    afirmao: "Pois aquele que quiser salvar a sua vida, (psychen) vai perd-la, mas o que

    perder a sua vida por causa de mim, vai encontr-la. De facto, que aproveitar ao

    homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?" (Mat 16, 25-26). Paulo,

    finalmente, escreve: "Pois se viveres segundo a carne, morrereis, mas se pelo Esprito

    fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis" (Rom 8, 13). As variantes podiam ser

    multiplicadas. O mais antigo caso conhecido, embora ainda apresentado em linguagem

    do mito cosmolgico, encontra-se num poema egpcio do terceiro milnio tardio a.C.

    Mas deve-se recordar, devido sua proximidade ao evangelho, o aviso do Scrates

    platnico, que segue o mito do juizo dos mortos no final da Repblica (621 b-c): "O

    mito foi salvo ... e salvar-nos- se nos deixarmos persuadir ... e mantivermos a nossa

    alma (psychen) impoluta. Se vos deixardes persuadir por mim, acreditaremos que a

    alma imortal ... e seguiremos sempre o caminho para o alto, buscando a justia comsabedoria, de modo a tornarmo-nos caros a ns mesmos e aos deuses." Paul Shorey tem

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    razo, na sua traduo da Repblica, em acrescentar em nota de rodap frase

    "manteremos a nossa alma impoluta", passos paralelos de Tiago 1, 27 e 2 Pe. 3, 14.

    Existe uma orientao na existncia; e conforme a sigamos ou no, a vida pode

    ser morte, e a morte pode ser vida eterna. Os filsofos estavam conscientes de terem

    adquirido esta intuio de um modo representativo para a humanidade. A questo

    expressa pelo duplo significado da vida e da morte a questo da existncia de cada

    um, no apenas a dos filsofos. Por isso, na Repblica , o mito que foi salvo e que

    narrado por Scrates, atribudo a Er o Panflio, o homem de todas as tribos, ou da tribo

    de todos, que regressou da morte e contou aos seus companheiros o juizo que

    testemunhara no mundo infernal. Quem quer que seja pode perder-se no emaranhado da

    existncia e, tendo retomado da sua morte vida, contar o conto do seu significado.Alm de mais, por detrs do conto permanece a autoridade da morte representativa

    sofrida por Scrates em nome da verdade. AApologia conclui com as irnicas palavras

    de despedida ao juiz: "Mas agora chegou o tempo de partir. Eu parto para morrer, e vs

    para viver. Mas para quem est reservado o melhor lote desconhecido para todos,

    excepto para o Deus".

    Esta clebre intuio tornou-se socialmente efectiva atravs do monumento que Plato

    ergueu na sua obra. J no tempo de Cristo, quatro sculos mais tarde, tornara-se a

    autocompreenso do homem na cultura da ecmena helenstico-romana; e, de novo, a

    verdade universal da existncia teve de ser ligada a uma morte representativa: o

    dramtico episdio de Jo 12 o equivalente cristo Apologia do filsofo. O

    evangelista narra a entrada triunfante de Jesus em Jerusalm. A histria de Lzaro

    espalhou-se, e a multido acotovela-se para ver e saudar o homem que pode erguer os

    mortos vida. As autoridades judaicas querem tomar medidas contra quem lhes est a

    roubar o povo, mas de momento tm de ser cautelosas: "Vedes que nada podeis fazer;

    Vede: o mundo (kosmos) corre atrs dele!" O mundo das autoridades judaicas, contudo,

    no o mundo ecumnico que Jesus quer atrair para si. Apenas quando um grupo de

    Gregos se aproxima de Filipe e de Andr, e estes apstolos com nomes Gregos contam a

    Jesus acerca do desejo dos Gregos de o ver, que ele pode responder: "Chegou a hora

    para o Filho do Homem ser glorificado" (12, 23). "Vm a os Gregos" - a humanidade

    est pronta para ser representada pelo sacrifcio divino. O Jesus Joanino pode, por

    consequncia, continuar:

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    "Muito solenemente vos digo: a menos que uma semente de trigo cair na terra e

    morrer, permanece apenas uma semente de trigo; mas se morrer, trar muito fruto.

    Quem ama a sua vida (psychen) perd-la-; mas quem odeia a sua vida neste mundo

    (kosmos), mant-la- para a vida eterna. Se algum me servir, deve-me seguir, e onde

    eu estiver, o meu servo tambm estar. Se algum me servir, o meu Pai honra-lo-."4[4]

    Nos Evangelhos Sinpticos, tal como no Grgias e na Repblica, a questo da vida e

    da morte aparece, apenas, sob a forma de intuio, persuaso, e aviso (Mat 10, 39;

    16,25; Luc 14,26; 17,33); em Jo 12, tal como na Apologia, vivida atravs de um

    sofredor representativo, de modo que a intuio torna-se a verdade da existncia na

    realidade atravs da autoridade dos mortos. Mesmo o Damonion que sustivera

    Scrates na sua caminhada, na medida em que no ergue os seus avisos tem umequivalente na reflexo de Jesus:

    "Agora a minha alma est inquieta. Que deverei eu dizer Pai, salva-me desta hora?

    No, porque para este propsito, eu cheguei a esta hora. Pai, que o teu nome seja

    glorificado."5[5]

    A esta prece de submisso pela alma inquieta, o cu respondeu com um trovo - os

    historiadores ainda no esto seguros se o fazedor do trovo era Zeus ou Yahweh - e

    para aqueles que tinham ouvidos para ouvir, o trovo veio como uma voz: "Glorifiquei-

    o e hei-de glorific-lo de novo". Assegurado pela voz que clama, Jesus pde concluir:

    4Eric Voegelin traduziu directamente do original grego as passagens bblicas.

    Apresenta-se em nota de rodap a traduo da Bblia de Jerusalm devido sua

    acessibilidade e bom nvel exegtico.

    [4] "Em verdade, em verdade, vos digo: Se o gro de trigo que cai na terra no morrer,

    permanecer s; mas se morrer, produzir muito fruto. Quem ama sua vida a perde e

    quem odeia a sua vida neste mundo guard-la- para a vida eterna. Se algum quer

    servir-me, siga-me; e onde estou eu, a tambm estar o meu servo. Se algum me

    serve, meu Pai o honrar."

    5[5] "Minha alma est agora conturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas foiprecisamente ara esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome."

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    "Agora o juzo (krsis) chegou a este mundo (kosmos), e agora o governante deste

    mundo ser repelido. E eu, quando for elevado da terra, atrairei todos os homens a

    mim.,6[6]

    O aparecimento dos Gregos peculiar a Joo; no os encontramos nos Evangelhos

    Sinpticos. A interpretao que segui assenta na forma literria de Joo de permitir que

    uma narrativa de eventos, ou sinais, seja seguida pela exposio do seu significado

    atravs da resposta de Jesus; mas o leitor deve ter conscincia que a maior parte dos

    comentadores tende a diminuir o papel dos Gregos, de modo a assimilar a inteno de

    Jol2 tradio Sinptica. Contudo, no vejo razo pela qual ao autor se deveria negar a

    cortesia de ver a sua obra literria tomada a srio, segundo a letra do texto, s porque o

    seu trabalho um Evangelho. O episdio de Jol2 expressa uma concepo helenstico-ecumnica do drama da existncia, culminando na morte sacrificial de Cristo. Recebe a

    sua atmosfera peculiar do jogo pr-gnstico com os significados do termo kosmos. No

    uso das autoridades judaicas, o kosmos que corre atrs de Jesus (12, 19) no significa

    seno tout /e monde. Com o aparecimento dos Gregos (12, 20-22), o significado cresce

    para a humanidade ecummica. Com o dio vida de cada um (psyche) neste mundo

    (12, 25), o kosmos torna-se um habitat do qual esta vida deve ser salva para a

    eternidade. Nas palavras conclusivas (12, 31), o kosmos o domnio do prncipe destemundo de cujo reino Jesus, quando fr "elevado", atrair todos os homens para si,

    deixando o archon satnico como um governante sem povo. Jesus tornou-se o rival do

    6[6] " agora o julgamento deste mundo, agora o prncipe deste mundo ser lanado

    fora; e, quando eu fr elevado da terra, atrairei todos a mim."

    [7] "Eu, a luz, vim ao mundo para que aquele que cr em mim no permanea nas

    trevas. Se algum ouvir minhas palavras e no as guardar, eu no o julgo, pois no vimpara julgar o mundo, mas para salvar o mundo. Quem me rejeita e no acolhe minhas

    palavras tem seu juiz: a palavra que proferi que o julgar no ltimo dia."

    [8] "Eis que vou demolir o que constru, e o que plantei vou arrancar, e isto para toda a

    terra! Etu procuras para ti grandes coisas! No procures! Porque eis que vou trazer a

    desgraa sobre toda a carne, orculo de Iahweh. Mas a ti eu concederei a vida em

    recompensa, em todos os lugares para onde fores."

    [9] "Ningum pode vir a mim se o Pai, que me enviou, no o atrair."

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    archon numa luta csmica pelo governo dos homens. Mas no ser isto gnosticismo?

    Seria temeridade aceitar tal suposio, porque Joo conduz todo o episdio, incluindo

    tanto a narrativa como a sua exegese atravs da resposta de Jesus, para a posio

    literria de uma narrativa qual se sobrepe uma nova resposta exegtica de Jesus.

    Nesta resposta sobreimposta, Jesus declara (ekrazen), enfaticamente-.

    "Eu, a Luz, vim ao mundo (kosmos) para que quem acreditar em mim no permanea

    nas trevas. Se algum ouvir as minhas palavras e no as seguir, Eu no o julgo, porque

    eu no vim para julgar o mundo (kosmos), mas para salvar o mundo (kosmos). Quem me

    rejeitar, e no aceitar as minhas palavras, tem o que julga: A palavra que proferi ser a

    palavra que o julgar no ltimo dia."7[7]

    O significado de kosmos reverte do habitat para os habitantes que no so

    para ser evacuados mas sim salvos. Da luta csmica do archon e do Redentor

    regressamos ao drama da existncia - a luz da palavra penetrou nas trevas, salvando

    aqueles que acreditaram nela, e trouxe juzo para aqueles que lhe fecharam os olhos.

    Nesta fase da anlise, seria difcil encontrar grande diferena de funo entre o mito

    acerca do juizo final narrado por Er o Panflio em Plato ou o ltimo dia de Joo.

    A busca na realidade interina move-se da questo da vida e da morte para a resposta da

    narrativa salvfica. A questo, contudo, no nasce de um vcuo, mas de um campo de

    realidade, e aponta para respostas de um certo tipo; e a narrativa salvfica, seja ela o

    mito panflio de Plato ou o Evangelho de Joo, no uma resposta arbitrria, mas

    corresponde de um modo definido realidade da existncia em que a questo

    pressuposta como verdadeiramente experimentada. Questo e resposta relacionam-se

    intimamente entre si num movimento de um todo inteligvel. Esta relao, que constitui

    a verdade do conto, exige uma nova anlise.

    O significado duplo da vida e da morte o simbolismo gerado pela experincia

    humana de ser atrado em vrias direces, entre as quais tem de ser escolhida a

    correcta. Plato identificou a pluralidade de atraces, a necessidade de escolher entre

    elas, e a possibilidade de conhecer a correcta, como o complexo de experincias que

    resultam da questo da vida e da morte. De acordo com a variedade de atraces, pode-

    se distinguir uma variedade de modos existenciais e de hbitos conforme seguimos uma

    7

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    ou outra. "Quando a opinio conduz atravs da razo (fogos) para o melhor (ariston) e

    mais poderosa, o seu poder chamado prudncia (sophrosyne); mas quando o desejo

    (ephitymia) nos arrasta (helken) para os prazeres e governa entre ns, o seu poder

    chamado excesso (hybris)" (Fedro 238a). As foras que nos puxam esto em conflito,

    arrastando-nos para cima ou para baixo. Um jovem pode ser "atrado (helkein) para a

    filosofia" (Repblca 494e), mas a presso social pode desvi-lo para uma vida de

    prazer, ou de sucesso na poltica. Se seguirmos a segunda atraco, contudo, a questo

    do significado ainda no fica arrumada, porque a primeira atraco continua a ser

    experimentada como parte da existncia. Ao seguir a segunda atraco o jovem no

    transforma a sua existncia num facto isento de questes, mas num determinado

    percurso de vida, nitidamente questionvel. Sentir a vida que leva como no sendo "a

    sua vida prpria e verdadeira" (495c) viver num estado de alienao. O jogo das

    atraces, por consequncia, iluminado pela verdade. Quem seguir o percurso errneo

    no o converte por isso no correcto, mas desvia a sua existncia para a inverdade. Esta

    luminosidade da existncia, conferido pela verdade da razo, precede todas as opinies

    e decises acerca da atraco a ser seguida. Ademais, permanece viva como o juzo da

    verdade da existncia, sejam quais forem as opinies que possamos efectivamente

    formar acerca delas.

    Os termos buscar (zeten) e atrair (helken) no indicam dois movimentos

    diferentes mas simbolizam a dinmica na tenso da existncia, nos plos humano e

    divino. Num dos movimentos, experimenta-se uma busca do humano, um ser atrado

    pelo plo divino. Evito deliberadamente a linguagem de 'homem' e 'Deus' nesta fase da

    anlise, porque estes smbolos esto hoje carregados com os mais diversos contedos

    doutrinais que derivados de intuies que, por seu turno, resultam de um movimento

    existencial a que ns chamamos filosofia clssica. da aco deste movimento queemerge o homem como o questionador, aquele a quem Aristteles chama aporon e

    thaumazon (Metafsica 982b1 8), e Deus como o motor que atrai ou puxa o homem para

    si prprio, como se v no livro X das Leis de Plato ou na Metafsca de Aristteles.

    Estas novas intuies acerca da humanidade e da divindade de Deus, a assinalar a fase

    final da busca clssica, no devem ser projectadas para o seu comeo como premissas

    doutrinais; nesse caso, a realidade do processo, de que os smbolos de resposta derivam

    a sua verdade, seria eclipsada, seno mesmo destruido. H um longo caminho desde as

    experincias compactas que geram os mortais e os imortais de Homero at ao

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    movimento diferenciado da existncia na realidade interina e que Aristteles caracteriza

    como athanatzein, como um acto de imortalizaro (tica Nicomaqueia X.7, 8) - um

    tempo histrico quase to longo como o caminho da filosofia clssica at ao Evangelho.

    Ora, os dois componentes do movimento, nem sempre esto no equilbrio em que Plato

    os mantm na construo dos dilogos, onde demonstra, de acordo com a finalidade

    pedaggica da persuaso, o processo e os mtodos de buscar que conduzem resposta

    correcta. Por detrs dos dilogos, permanece o autor que encontrou a resposta antes de

    se empenhar no trabalho de composio literria-, e o seu modo de buscar, tal como o

    de Scrates, no necessariamente a via da persuaso dialgica. O que acontece na

    vida do homem que emerge do movimento da existncia como o padagogos dos seus

    companheiros, pode ser comprimido em episdios semelhantes aos da alegoria da

    caverna. A Plato permite que o homem, amarrado com o rosto virado para o muro,

    seja arrastado (helkein) fora para a luz (Repblica 515e). A tnica reincide na

    violncia sofrida pelo homem na caverna, na sua passividade e mesmo resistncia a ser

    convertido (periagog), de tal modo que a ascenso para a luz menos uma aco de

    buscar do que um destino infligido. Se aceitarmos este sofrimento de ser arrastado

    como descrio realstica do movimento, ento a alegoria evoca a paixo do Scrates

    que a narrou; o ser arrastado para a luz pelo Deus; o facto de sofrer a morte quando

    regressou para permitir que os seus companheiros partilhassem a luz; a sua ascenso dos

    mortos para viver como narrador da narrativa salvfica. Mais; esta paixo da alegoria

    evoca, se posso antecipar, a paixo da converso infligido pela viso de Cristo ao Paulo

    que resiste na estrada para Damasco.

    Na experincia de Plato, o sofrimento obscurece to fortemente a aco na

    busca que se torna difcil de traduzir este pathos no seu tauta ta pathe enhemin (Leis

    644e), "todos estes pathe (paixes) que em ns existem". Ser que este pathos exprimeapenas a experincia da atraco (helkein) que d orientao busca? Ou ser que

    Plato quer reconhecer este movimento como to fortemente marcado pelo sofrimento

    que os termos experincia e paixo so quase sinnimos? O contexto em que esta

    passagem aparece, o mito do apresentador dos fantoches, no deixa dvida que a

    incerteza causada pela pesquisa platnica do campo da tenso existencial, para alm

    do movimento da busca que se cumpre na narrativa salvfica. Porque quanto mais certo

    estamos de conhecer a verdadeira resposta questo da vida e da morte, tanto mais

    enigmtico haver a prpria questo. Por que razo est o prisioneiro amarrado

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    caverna, em primeiro lugar? Por que razo a fora que o prende tem de ser superada por

    uma contrafora que o converte? Porque deve o homem que ascende luz regressar

    caverna para sofrer a morte nas mos daqueles que o iro abandonar? Porque no a

    abandonam todos, de modo a que a caverna como local de existncia seja abandonada?

    Para alm da busca que recebe direco da atraco (helkein) da razo, estende-se o

    campo existencial mais vasto da "contra-atraco", da anthelken (Leis 644-45). Por

    detrs da questo a que a narrativa salvfica responde, emerge a questo mais sombria

    da questo da existncia que permanece mesmo depois da resposta ter sido encontrada.

    A estas questes que resultam da estrutura da "contra-atraco" na existncia, Plato

    deu a sua resposta no simbolismo do homem como fantoche criado pelos deuses,

    "possivelmente como um brinquedo, possivelmente com um propsito mais srio, mas

    que ns no podemos saber", e atrado por vrias cordas para aces opostas. Cabe ao

    homem seguir, sempre, o sagrado cordo de ouro do juizo (logismos) e no as outras

    cordas dos metais mais vis. Assim, a componente da aco humana no desapareceu do

    movimento mas tem de ser inserida no drama mais vasto da atraco e da contra-

    atraco. Como o puxo do cordo de ouro suave e sem violncia, precisa, para

    prevalecer na existncia, do apoio do homem que deve contrariar(anthelkein) o contra-

    puxo das cordas mais vis. O eu do homem (autos) introduzido como a fora que

    deve decidir no conflito das atraces, atravs da cooperao com a sagrada atraco da

    razo (fogos) e do juizo (logsmos). Em resumo: aos questionadores rebeldes que se

    querem queixar acerca da estrutura da existncia, cerca da caverna que persiste em

    exercer a sua atraco, mesmo quando se encontrou a narrativa salvfica, a esses dada

    a mesma resposta brusca que receberam de um grande realista anterior, Jeremias:

    "Ouvi! Aquilo que eu constru, deitarei abaixo; e aquilo que eu plantei , destruirei. E

    vs que buscais, ainda, grandes coisas para vs prprios, No as busqueis! Porque ouvi!Posso amaldioar toda a carne -diz Yahweh - Mas entrego-vos a vossa vida, como

    prmio de guerra, em qualquer lugar para onde fores."8[8] (45, 4-5)

    A vida oferecida como um despojo de guerra. Quem quer salvar a sua vida

    perd-la-. A narrativa salvfica no uma receita para a abolio do anthelkein na

    existncia mas a confirmao da vida atravs da morte nesta guerra. A morte de

    8

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    Scrates, que tal como a morte de Jesus, podia ter sido evitada fisicamente,

    representativa porque autentifica a verdade da realidade.

    Estas reflexes clarificaram o problema da verdade pelo que apenas falta uma

    afirmao explcita das intuies nelas implicados.

    Nem se trata de uma questo que em vo procura uma resposta, nem h uma

    verdade da narrativa salvfica, impondo-se a partir de nenhures no facto da existncia.

    O movimento na realidade interina , na verdade, um todo inteligvel de questo e de

    resposta, em que a experincia do movimento gera smbolos lingusticas para se

    exprimir. No que se refere s experincias, o movimento no tem outros "contedos"

    seno o seu questionamento, as paixes da atraco e da contra-atraco, os ndicesdireccionais das atraces, e a conscincia de si prprio a que chamamos a sua

    luminosidade. No que se refere aos smbolos, estes apenas tm de exprimir as

    experincias enumeradas, a situao da realidade experimentada no contexto mais

    amplo da realidade em que ocorre o movimento diferenciado, e o movimento auto-

    consciente, como um acontecimento da existncia humana na sociedade e na histria

    onde, at aqui, no ocorreu. As dificuldades de compreenso que estas intuies,

    frequentemente, suscitam no clima contemporneo da desculturao so causadas pelos

    hbitos de hipostasiao e dogmatizao. Quero, pois, sublinhar que os smbolos

    desenvolvidos no movimento no se referem a objectos na realidade externa, mas a

    fases do movimento medida que se articula no seu processo auto-iluminante. No

    existe outra realidade interina seno a metaxy experimentada na tenso existencial do

    homem para o fundo divino de ser; no h outra questo de vida e de morte seno a

    questo suscitada pelo puxo e pelo contra-puxo- no h outra narrativa salvfica seno

    a narrativa da divina atraco a ser seguida pelo homem; e no h articulao cognitiva

    da existncia seno a conscincia notica em que o movimento se torna luminoso para si

    prprio.

    Outra dificuldade de compreenso resulta da intuio de que tanto os smbolos

    como as experincias simbolizadas pertencem realidade interina. No comea por

    haver, primeiro, um movimento na realidade interina e, em segundo lugar, um

    observador humano, qui um filsofo, que registe as suas observaes do movimento.

    A realidade da existncia, tal como experimentada no movimento, uma participaomtua (methexis, metalepss) do humano e do divino; e os smbolos lingusticas que

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    exprimem o movimento no so inventados por um observador que no participa no

    movimento; so gerados no prprio acontecimento da participao. O estatuto

    ontolgico dos smbolos tanto humano como divino. Plato sublinha que o seu mito

    dos fantoches um alethes fogos, uma histria verdica, quer o fogos seja "recebido de

    um deus, ou de um homem que sabe" (Leis 645b); e o mesmo estatuto duplo da

    "palavra" reconhecido pelos profetas quando eles promulgam os seus ditos como

    "orculo" de Yahweh, tal como na passagem de Jeremias acima citada. Este estatuto

    duplo dos smbolos que exprimem o movimento na metaxy foi muito obscurecido na

    histria ocidental por telogos cristos que separavam as duas componentes da verdade

    simblica, monopolizando a componente divina para os smbolos cristos sob o ttulo de

    "revelao", enquanto atribuam o ttulo de "razo natural" componente humana de

    smbolos filosficos. Esta doutrina teolgica insustentvel empiricamente. Plato

    estava to consciente da componente revelatria na verdade do seu fogos, como os

    profetas de Israel ou os autores dos escritos do Novo Testamento. As diferenas entre

    profecia, filosofia clssica e evangelho devem ser, antes, procuradas nos degraus de

    diferenciao da verdade existencial.

    Finalmente, num clima de desculturao, existem as dificuldades de

    compreenso suscitadas pelos problemas da imaginao mtica. O mito no umaforma simblica primitiva, exclusiva das sociedades arcaicas e superado

    progressivamente pela cincia positiva; , antes, a linguagem em que se articula as

    experincias da participao humano-divina na realidade interina. Ora a simbolizaro

    da existncia participante evolui historicamente da forma mais compacta do mito

    cosmolgico para as formas mais diferenciadas da filosofia, profecia, e evangelho; mas

    as intuies diferenciantes, longe de abolirem a metaxy da existncia, acentuam um

    conhecimento mais articulado. Quando a existncia se torna noticamente luminosacomo o campo da atraco e da contra-atraco, da questo da vida e da morte, e da

    tenso entre a realidade humana e divina, tambm se torna luminosa para a realidade

    divina como o alm da metaxy que alcana a metaxy do acontecimento participatrio do

    movimento. No existe realidade interina da existncia como objecto estanque mas

    apenas existncia experimentada como parte de uma realidade que se estende para alm

    da realidade interina. Esta experincia do Alm (epekena) da existncia

    experimentada, esta conscincia do Alm da conscincia que constitui a conscincia ao

    alcan-la, a rea da realidade que se articula atravs dos smbolos da imaginao

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    mtica. O jogo imaginativo do alethes fogos a "palavra" com que o divino Alm da

    existncia se apresenta na existncia como a sua verdade. A narrativa salvfica pode ser

    diferenciada, alm da filosofia clssica, historicamente ocorrida, atravs de Cristo e do

    evangelho, mas no h outra alternativa simbolizaro da realidade interina da

    existncia e do seu Alm divino atravs da imaginao mtica. Os sistemas

    especulativos do tipo comtiano, hegeliano, e marxiano, alternativas hoje favorecidos,

    no so "cincia" mas deformaes da vida da razo atravs da prtica mgica da auto-

    divinizao e da auto-salvao.

    III

    O Deus que brinca com o homem como um fantoche no o Deus que se torna homempara salvar a vida, sofrendo a morte. O que gerou a narrativa salvfica da incarnao,

    morte e ressurreio divinas em resposta questo da vida e da morte,

    consideravelmente mais complexo do que a filosofia clssica; mais rico devido ao

    fervor missionrio do seu universalismo espiritual; mais pobre pela sua negligncia do

    controle notico; mais amplo pelo seu apelo humanidade inarticulada no homem

    comum, mais restrito devido tendncia contra a sabedoria articulada dos sbios; mais

    imponente atravs do seu tom imperial de autoridade divina; mais desequilibrado

    devido sua ferocidade apocalptica que conduz ao conflito com as condies da

    existncia humana em sociedade; mais compacto devido sua generosa absoro de

    extractos anteriores de imaginao mtica, especialmente devido recepo da

    historiognese Israelita e exuberncia dos milagres operados; mais diferenciado

    atravs da experincia intensamente articulada da aco amoroso-divina na iluminao

    da existncia pela verdade. A compreenso destas diferenas complexas entre o

    movimento evanglico e o movimento da filosofia clssica, contudo, no fica mais

    esclarecido por se usarem dicotomias tpicas tais como filosofia e religio, metafsica e

    teologia, razo e revelao, razo natural e sobrenatural, nacionalismo e irracionalismo,

    etc. Procederei do seguinte modo: primeiro, estabelecerei o cerne notico partilhado

    pelos dois movimentos e depois explorarei alguns problemas que resultam da

    diferenciao da aco divina no movimento evanglico, bem como da recepo dos

    estratos mais compactos de experincia e simbolizaro.

    A anlise comear pelo ponto em que o evangelho concorda com a filosofiaclssica ao simbolizar a existncia como um campo de atraces e contra-atraces. J

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    antes citei Jo 12:32 onde o autor faz Cristo dizer que, quando se elevar da terra atrair a

    si (helkein) todos os homens. Em Jo 6:44, este poder atractivo do Cristo identificado

    com o puxo exercido por Deus: "Ningum pode vir a mim a menos que o Pai, que me

    enviou, o puxe (helken)."9[9] Mais austero neste ponto do que os evangelistas

    sinpticos, Joo torna perfeitamente claro que no existe outra "mensagem" de Cristo

    seno o acontecimento do Logos divino que se torna presente no mundo atravs da vida

    e morte representativa de um homem. As palavras finais da grande orao antes da

    Paixo exprimem a substncia deste evento:

    "Pai justo, o mundo no te conheceu, mas eu conheci-te, e eles sabem que tu me

    enviaste. A eles dei a conhecer o teu nome eles torn-lo-o conhecido, a fim de que o

    amor pelo qual tu me amaste esteja neles e eu neles."10[10] 17:25-26)

    Seguir Cristo significa prosseguir o evento da presena divina na sociedade e na

    histria: "Tal como tu me enviaste ao mundo, assim eu os envio ao mundo" 11[11]

    (17:18). E finalmente, uma vez que no h outra doutrina a ensinar seno a histria a

    narrar da atraco divina que se torna efectiva no mundo atravs de Cristo, a narrativa

    salvfica que responde questo da vida e da morte pode ser reduzida a uma afirmao

    breve:

    "E isto a vida eterna: Conhecer-te, o nico verdadeiro Deus, e Jesus Cristo que tu

    enviaste."12[12] 17:3)

    Com uma extraordinria economia de meios, Joo simboliza a atraco do cordo de ouro, a

    sua ocorrncia como um acontecimento histrico no homem representativo, a iluminao da

    existncia atravs do movimento da questo da vida e da morte iniciada pela atraco resposta

    salvfica, a criao de um campo social atravs da transmisso da intuio aos seguidores e,

    910[10] "Pai justo o mundo no te conheceu, mas eu te conheci e estes reconheceram que

    tu me enviaste. Eu lhes dei a conhecer o teu nome e lhes darei a conhec-lo, a fim de

    que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles."

    11[11] "Como tu me enviaste ao mundo, tambm eu os enviei ao mundo."

    12[12] "Ora, a vida eterna esta: que eles te conheam a ti, o nico Deus verdadeiro, eaquele que enviaste, Jesus Cristo."

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    enfim, os deveres que incumbem a Joo de promulgar o acontecimento humanidade em geral,

    atravs da escrita do evangelho como um documento literrio: "Ora Jesus fez muitos outros

    sinais na presena dos discpulos que no esto registados neste livro. Os registados, contudo,

    foram escritos para que tu possas crer que Jesus o Cristo, o Filho de Deus, e que ao acredit-lo

    possas viver em seu nome',13[13] (20:30-31). Podemos imaginar como um jovem estudante de

    filosofia que quisesse trabalhar por si prprio, a partir dos vrios impasses doutrinais em que os

    filsofos das escolas do seu tempo se tinham enredado, poderia ficar fascinado pelo brilho

    destas afirmaes sucintas que lhe devem ter surgido como o aperfeioamento do movimento

    socrtico-piatnico na interinidade da existncia.

    O smbolo helken peculiar a Joo: no ocorre em mais nenhuma passagem do Novo

    Testamento. Nas epstolas de Paulo, de tal modo predomina a componente do conhecimento no

    movimento e a luminosidade da sua conscincia que o pathos da atraco simbolizado como

    um acto divino de conhecimento que agarra forosamente o homem e ilumina a sua existncia.

    Escreve Paulo em 2 Cor. 4-.6: "O Deus que disse 'deixai que a luz brilhe nas trevas' o Deus

    que brilhou nos nossos coraes para os tornar luminosos (ou resplandecentes, photismos) com

    o conhecimento (gnoss) da glria de Deus, a glria na face do Cristo.,, 14[14] A glria radiante

    na face do Cristo o photsmos na face do homem que viu a Deus. Moiss ainda tinha de a

    esconder com um vu at que ela desaparecesse; este vu, que cobria de letras escritas o Antigo

    Testamento, foi retirado do Novo Testamento, escrito pelo esprito (pneuma) no corao; "e ns,

    com os nossos rostos descobertos, reflectindo o brilho do Senhor, todos crescemos mais e mais

    brilhantes medida que nos voltamos para as imagens que reflectimos"15[15] (2 Cor. 3:18).

    Que a resplandecncia do conhecimento no corao tenha a sua origem na aco divina

    o que se afirma explicitamente em passagens como 1 Cor. 8:1-3:

    13[13] "Jesus fez, diante de seus discpulos, muitos outros sinais ainda, que no se

    acham escritos neste livro. Estes, porm, foram escritos para crerdes que Jesus o

    Cristo, o filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida e seu nome."

    14[14] "Porquanto Deus, que disse:Do meio das trevas brilhe a luz!, foi ele mesmo

    quem reluziu em nossos coraes, para fazer brilhar o conhecimento da glria de Deus,

    que resplandece na face de Cristo."

    15[15] "Ens todos que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glria

    do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente,pela aco do Senhor, que Esprito."

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    "Ns sabemos que "todos ns possumos conhecimento (gnosis)." O conhecimento

    (gnoss) incha, o amor (agape) edifica. Se algum imaginar que sabe alguma coisa,

    ainda no sabe como devia saber. Mas se algum amar a Deus, conhecido por

    Ele."16[16]

    As palavras so endereados a membros da comunidade Corntia que possuem o

    conhecimento" como doutrina mas que o aplicam sem sabedoria como 'regra de

    conduta; a tais possuidores da verdade, lembra-se que s o conhecimento que Deus tem

    do homem poder formar a existncia sem a deformar. Escreve Paulo em aviso

    semelhante aos Glatas: "Outrora, quando no conheceis a Deus, estveis encadeados a

    seres que no eram realmente deuses; mas agora que conheceis Deus - ou antes, que sois

    conhecidos por Deus, porque quereis regressar a esses espritos fracos e pobres,tornando-vos seus escravos?17[17] (Gal. 4:8-9)

    As ocasies que levam Paulo a clarificar a dinmica da gnosis na existncia,

    diferem muito da situao em que os filsofos clssicos executavam a sua obra

    diferenciadora. Na segunda epstola aos Corntios ele quer assinalar o brilho da aliana

    pneumtica inscrita no corao contra a verdade mais compacta e "velada" da Lei de

    Moiss, usando para tal fim um simbolismo recebido dos profetas; em 1 Corntios, tem

    de censurar os "idoltitos", homens que partilham de comida sacrificado a dolos, e que

    sentem segurana no seu conhecimento, porque afinal os dolos no so deuses; e em

    Giatas, tem de chamar ordem os crentes que regressaram ao seu culto anterior de

    espritos elementares. Esta diferena bvia de contexto cultural, contudo, no deve

    obscurecer o facto que Paulo tenta articular a dinmica do conhecimento existencial,

    comprimida por Aristteles na frmula que o pensamento humano (nous) em busca do

    16[16] "No tocante s carnes sacrificados aos dolos, inegvel que todos temos a

    cincia exacta. Mas a cincia exacta incha; a caridade que edifica. Se algum julga

    saber alguma coisa, ainda no sabe como deveria saber. Mas, se algum ama a Deus,

    conhecido por Deus."

    17[17] "Outrora, verdade, no conhecendo a Deus, servistes a deuses, que na realidade

    no o so. Mas agora. conhecendo a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por Deus,

    como possvel voltardes novamente a estes fracos e miserveis elementos aos quaisvos quereis escravizar outra vez?"

  • 7/28/2019 Eric Voegelin - Evangelho e Cultura

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    fundamento divino do ser movido (kineitai) pelo Nous divino que o objecto do

    pensamento (noeton) do nous humano (Metafsca 1072a 30ss.).

    O cerne notico, portanto, idntico tanto na filosofia clssica como no

    movimento do evangelho. Existe o mesmo campo de atraco e contra-atraco, o

    mesmo significado de salvar a vida seguindo a atraco do cordo de ouro, a mesma

    conscincia de existncia numa realidade interina de participao humano-divina, e a

    mesma experincia da divina realidade como o centro da aco no movimento da

    questo para a resposta. Ademais, existe a mesma conscincia de descobertas,

    novamente diferenciadas, sobre o significado da existncia; e, em ambos os casos, esta

    conscincia constitui um novo conjunto de tipos humanos histricos, descritos por

    Plato: primeiro, o homem espiritual (daimonos aner) no qual o movimento ocorre;segundo, o homem do tipo anterior e mais compacto de existncia, o mortal (thnetos) no

    sentido homrico; e terceiro, o homem que reage negativamente ao apelo do

    movimento, o homem ignorante ou insensato (amathes).

    Apesar do cerne notico, a dinmica espiritual do evangelho, modificou-se

    radicalmente atravs da experincia de uma irrupo divina extraordinria na existncia

    de Jesus. Esta irrupo em que Jesus se torna o Cristo, expressa pelo autor da Epstola

    aos Colossenses nas palavras: "Porque nele encarnou a plenitude da realidade divina

    (theotes)"18[18](2-.9). Na sua plenitude completa (pan toplerorha), a realidade divina

    s est presente em Cristo que, em virtude desta plenitude, " imagem (eikon) do Deus

    invisvel, o primognito de toda a criao"19[19] (1:15). Todos os outros homens no

    tm mais do que a parcela comum desta plenitude (pepleromenoi) ao aceitarem a

    verdade da sua presena completa no Cristo que, pela sua existncia icnica, "a cabea

    de todo o poder (arche) e autoridade (exousa),20[20] (2-10). Algo em Jesus deve ter

    impressionado os seus contemporneos como uma existncia to intensa na metaxy que

    a sua presena corprea, o somatikos da passagem, parecia j estar completamente

    permeada pela presena divina.

    18[18] "Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (... )"

    19[19] "Ele a imagem do Deus invisvel, o Primognito de toda a criatura, (...)

    20[20] "Ele a Cabea de todo o Principado e de toda a Autoridade."

  • 7/28/2019 Eric Voegelin - Evangelho e Cultura

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    A passagem preciosa, porque o autor conseguiu transmitir a sua impresso sem

    recurso a smbolos anteriores e mais compactos, tais como o "Filho de Deus", que no

    exprimiriam suficientemente a nova experincia diferenciada. Isto ter exigido um

    esforo consciente da sua parte, porque o termo theotes um neologismo forjado para

    esta ocasio. s vrias tradues do termo como divinidade, divindade ou deidade que

    transmitem a implicao de um deus pessoal, prefiro realidade divinaporque transmite

    melhor a inteno do autor em denotar uma realidade impessoal, que permite graus de

    participao na sua plenitude, embora permanea o Deus para alm da interinidade da

    existncia. Se o autor pertencesse "escola" Paulina, poderamos compreender o seu

    smbolo theotes como uma tentativa para ultrapassar algumas imperfeies no smbolo

    de Paulo - the6tes. Em Rom. 1:18 ss., Paulo fala dos homens que suprimem a verdade

    de Deus devido impiedade e injustia: "Porque o que pode ser conhecido sobre Deus

    (to gnoston tou theou) manifesto neles, porque Deus o tornou manifesto a eles.

    Porque sempre, desde que o cosmos foi criado, a realidade invisvel de Deus podia ser

    compreendida pela mente (nooumana) nas coisas que estavam criadas, ou seja, o seu

    poder eterno (dynamis) e divindade (the@tes)."21[21] Paulo um homem bastante

    impaciente. Quer ver imediatamente diferenciada a realidade divina da experincia

    primria do cosmos como a divindade transcendente ao mundo que encarnou em Cristo;

    considera indesculpvel que a humanidade tivesse que atravessar uma fase na histria

    em que o Deus imortal fosse representado por imagens de "homens mortais, aves,

    quadrpedes e rpteis"; e s pode explicar este horror mediante a supresso deliberada

    de uma verdade bem conhecida. Ademais, devido ao seu menosprezo judaico para com

    dolos pagos, considera o fenmeno histrico do mito cosmolgico como responsvel

    por casos de vida dissoluta que observa sua volta e entende que a continuao da

    adeso a esses mitos, com a consequente dissoluo moral, o castigo de Deus para os

    que anteriormente praticavam a idolatria (Rom. 1:26-32). Esta confuso zelosa deproblemas tinha de ser desemaranhada; de facto, o autor de Colossenses extraiu da

    passagem Paulina a distino entre os divinos "invisveis" e os "visveis" das

    experincias participativas; distinguiu entre o Deus invisvel, experimentado como real

    21[21] "Porque o que se pode conhecer de Deus manifesto entre eles, pois Deus lho

    revelou. Sua realidade invisvel - seu eterno poder e sua divindade - tornou - se

    inteligvel, desde a criao do mundo, atravs das criaturas, de sorte que no tmdesculpa."

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    para alm da metaxy da existncia, e o theotes, a realidade divina que penetra a metaxy

    no movimento da existncia.

    A distino, certo, fora j feita em Teeteto 176b, onde Plato descreve como

    propsito da fuga humana aos males do mundo, a aquisio da homoosis theo kata

    dynaton, um tornar-se semelhante a Deus tanto quanto possvel. Contudo, embora a

    homoioss theo de Plato seja o equivalente exacto penetrao do theotes no autor de

    Colossenses, o homem espiritual de Plato, o damonios aner, no o Cristo dos

    Colossenses, o ekon tou theou. Plato reserva a existncia icnica para o prprio

    cosmos: o cosmos a imagem (eikon) do Eterno; o Deus visvel (theos asthetos) na

    imagem do Inteligvel (eikon tou noetou); existe um nico cu nascido (monogenes)

    cujo pai divino to recndito que seria impossvel manifest-lo a todos os homens(Tmeu 28-29,92 c). Na contraposio entre o monogenes theos do Timeu de Plato a

    Joo 1: 1 8, torna-se visvel o muro que o movimento da filosofia clssica no consegue

    quebrar, para alcanar as intuies peculiares do evangelho.

    O obstculo a uma nova diferenciao no um defeito peculiar do movimento

    clssico, tal como uma limitao da razo natural sem a ajuda da revelao, tpico por

    vezes ainda explorado por telogos que deveriam conhecer melhor o que se passa; o

    obstculo o modo cosmolgico de experincia de e simbolizaro, dominante na

    cultura em que o movimento ocorre. A experincia do movimento tende a dissociar a

    realidade csmico-divina da experincia primria, no ser contingente das coisas e no

    ser necessrio do Deus transcendente ao mundo; e uma cultura em que a sacralidade da

    ordem, tanto pessoal como social, simbolizada por deuses intra-csmicos, no

    facilmente ceder o lugar ao movimento do theotes cuja vitria implica a

    dessacralizao da ordem tradicional. Ademais, a rearticulao e re-simbolizao da

    realidade em geral de acordo com a verdade do movimento, uma tarefa espantosa que

    exige sculos de esforo sustentado. possvel discernir um forte movimento

    existencial que impele compreenso da divindade escondida, o agnostos theos, dos

    deuses intracsmicos, por exemplo, nos Hinos Egpcios a Amon no sculo XIII a.C.,

    aproximadamente na mesma poca em que Moiss quebrou com a mediao faranica

    da ordem divina na sociedade, mediante o esforo de constituir um povo na presena

    imediata de Deus; e, contudo, foram precisos treze sculos de histria, e os

    acontecimentos abafadores de sucessivas conquistas imperiais, para tornar o povo

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    receptivo verdade do evangelho. Depois, o movimento poderia abortar social e

    historicamente, se o movimento clssico, continuado pelos pensadores helensticos no

    fornecesse o instrumento notico para a resimbolizao da realidade, para alm da rea

    restrita do prprio movimento conforme verdade do evangelho; e mesmo quando, o

    evangelho se tornou socialmente eficaz, favorecido por esta constelao cultural, foram

    precisos outros doze sculos para que o problema do ser contingente e do ser

    necessrio fosse articulado pelos pensadores escolsticos. Se a "revelao" deve ser

    levada a srio; se tal smbolo pretende exprimir a dinmica da presena divina no

    movimento, o mistrio do seu processo na histria assumir propores mais

    formidveis do que teve em Paulo que lutava, em Romanos 9-1 1, com o mistrio da

    resistncia de Israel ao evangelho.

    A dinmica do processo ainda est imperfeitamente compreendida devido s

    espectaculares roturas histricas que deixam, na sua esteira, uma sedimentao de

    smbolos do Antes-e-Depos que distorcem gravemente a realidade, quando utilizados

    na interpretao da histria cultural: antes da filosofia, houve o mito; antes do

    Cristianismo, os dolos pagos e a Lei Judaica; antes do monotesmo, houve o

    politesmo e antes da cincia moderna, claro, houve supersties primitivas tais como

    filosofia e evangelho, metafsica e teologia, que, hoje em dia, nenhuma pessoa que serespeite deveria repetir. Nem todos so to tolerantes e inteligentes como o Jesus que

    afirmou: "No penseis que eu vim para dissolver a lei e os profetas; eu no vim para

    dissolver(katalysal) mas para cumprir (plerosai)"22[22] (Mat. 5:17). Esta sedimentao

    de fentipos ignora que, em termos de registos histricos, a verdade da realidade est

    sempre totalmente presente na experincia humana e o que muda so os graus de

    diferenciao. As culturas cosmolgicas no so um domnio de idolatria primitiva,

    politesmo ou paganismo, mas campos muito sofisticados de imaginao mitica, capazesde encontrar os smbolos prprios para os casos tpicos ou concretos da presena divina

    num cosmos em que a realidade divina omnipresente. Ademais, os casos

    simbolizados no so experimentados como raridades sem relao entre si, formando

    cada um uma espcie de realidade por si s, mas so decididamente experimentados

    como "os deuses", ou seja: manifestaes da realidade nica que constitui e envolve o

    cosmos. Esta conscincia da unicidade divina por detrs da multido dos deuses,

    22[22] "No penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. No vim revog-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, (... )"

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    exprime-se em construes mito-especulativas de teogonias e cosmogonias que

    simbolizam compactamente tanto a unidade da divindade como a unidade do mundo

    que ele criou. Podemos dizer que os deuses da cultura cosmolgica tm uma forma de

    presena divina universal especfica e um fundo da mesma presena universaldivina;

    so divindades especficas que partilham da realidade divina universal.

    Irei agora situar o movimento do evangelho no contexto do processo revelatrio

    em que o Deus Desconhecido se separa das divindades cosmolgicas.

    Nos j mencionados Hinos a Amon da XIX Dinastia, Amon "surgiu no

    princpio, de modo que a sua natureza misteriosa desconhecida.". Nem sequer os

    outros deuses lhe conhecem a forma de "deus maravilhoso e multiforme." "Todos osoutros deuses o celebram para se enaltecerem a si prprios atravs da sua beleza, porque

    ele divino. O prprio R est unido com o seu corpo. " demasiado misterioso para

    que a sua majestade se possa manifestar, demasiado grande para que o homem se

    possa interrogar sobre ele, demasiado poderoso para que possa ser conhecido".23[23]

    Por trs dos deuses conhecidos emerge, assim, o deus desconhecido de que eles derivam

    a respectiva realidade divina. Este Amon desconhecido, contudo, embora em vias de se

    diferenciar do Amon especfico de Tebas, no um deus a mais no panteo

    cosmolgico, mas o theotes do movimento que, no processo posterior de revelao,

    pode ser diferenciado at revelao culminante em Cristo. Ademais, uma vez que o

    deus desconhecido no o novo deus mas a realidade divina experimentada como j

    presente nos deuses conhecidos, o processo revelatrio necessariamente se tornar uma

    fonte de conflitos culturais, medida que progride a diferenciao da sua verdade.

    "Guerra e batalha," so as palavras de abertura do Grgias, provocados pelo

    aparecimento de Scrates; e Jesus diz: "Eu vim para incendiar a terra... Pensais que eu

    vim para trazer a paz terra? No, digo-vos, mas antes a espada"24[24] (Lucas

    12:49,51). Os homens empenhados no movimento tendem a elevar a realidade divina

    23[23]Ancient Near Eatem Texts related to the Bible (ANET), ed. Pritchard, 1950, p.

    368.

    24[24] "Eu vim trazer fogo terra, e como desejaria que j estivesse aceso! Pensais que

    vim para estabelecer a paz sobre a terra? No, eu vos digo, mas a diviso."

    [25] "No o sabeis? No o ouvistes? No vos foi anunciado desde o princpio? Nocompreendestes os fundamentos da terra?"

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    experimentado ao nvel de um deus imagem dos deuses conhecidos e a opr este deus

    verdadeiro aos deuses especficos, demovidos do estatuto de falsos deuses; por outro

    lado, os crentes cosmolgicos, certos da verdadeira divindade dos respectivos deuses,

    acusaro de atesmo os portadores do movimento ou, pelo menos, de subveno da

    ordem sacral da sociedade atravs da introduo de novos deuses. este conflito que

    fundamentalmente ope Celso, no seu ataque ao Cristianismo, e Orgenes no seu

    Contra Celsum.

    Os Hinos de Amon so o documento representativo do movimento na fase em

    que o esplendor dos deuses cosmolgi'cos j se tornou derivado, muito embora os

    prprios deuses no se tenham, ainda, tornado falsos. Setecentos anos mais tarde, no

    equivalente do Deutero-lsaas aos Hinos de Amon (Is. 40-1225), os deuses tornaram-sedolos feitos pelo homem que j no partilham da realidade divina; entretanto, o deus

    desconhecido adquiriu o monoplio da divindade. O autor luta nitidamente com a

    dinmica da nova situao. Por um lado, o seu deus est sozinho consigo prprio e com

    o seu ruach desde o princpio (40-.12-14), tal como Amon desconhecido; por outro

    lado, um deus conhecido que admoesta os homens por o no conhecerem como

    deviam, muito maneira de Paulo, admoestando os pagos por no conhecerem Deus,

    j revelado na sua criao:

    "No conhecestes? No ouvistes?

    No vos disseram desde o princpio? No compreendestes desde a criao

    da terra?25[25] (40:21)

    Tanto os autores dos Hinos a Amon como o Deutero-isaas reconhecem o "No-

    Princpio" como o verdadeiro critrio da realidade divina; neste ponto no existe, de

    facto, diferena entre os documentos aqui debatidos e o prote arche de Aristteles, na

    especulao sobre a cadeia etiolgica na Metafsica; mas se nos Hinos de Amon a

    tnica recai sobre a causa sui no Princpio divino, no Deutero-isaas recai sobre a causa

    rerum, embora nenhum dos casos negligencie o outro componente do Princpio. A

    causa sui o que torna em agnostos theos a realidade divina diferenciada do

    25

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    movimento; a causa rerum o que a torna em deus conhecido atravs da criao.

    Quando a realidade divina emerge do movimento, na profecia do Deutero-lsaas, o

    Yahweh de Israel regressa como o Deus de toda a humanidade:

    "Que criou os cus e que os alargou, Que estendeu a terra e o que dela vem, Que d o

    esprito ao povo (am),e esprito queles que se movem."26[26] (42:5)

    E o profeta, confundindo-se com o prprio Israel, tornou-se o Servo Sofredor,

    enviado por Deus:

    "Como aliana para o povo (am), uma luz para as naes, para abrir os olhos que esto

    cegos, para trazer os prisioneiros da caverna, da priso em que esto sentados na

    escurido.27[27] (42:6-7)

    O tesoureiro da rainha da Etipia viajara at Jerusalm para prestar culto. No episdio

    de Actos 8:26-40 encontramo-lo no caminho de regresso, na estrada de Gaza, sentado

    na sua carruagem, reflectindo no passo do Deutero-isaas: " Tal como um cordeiro ele

    foi levado ao sacrifcio...28[28] Um anjo do Senhor enviou o apstolo Filipe para o

    encontrar: "Compreendes o que ests a ler?',29[29] ,COMO posso" replicou o etope,

    "sem algum que me guie?... Acerca de quem, por favor diz-me, fala o profeta: acercadele ou de outra pessoa?',30[30] Ento, Filipe comea por falar da histria dos apstolos

    26[26] "Assim diz Deus, Iahweh que criou os cus e os estendeu, e fez a imensido da

    terra e tudo quanto dela brota, que deu o alento aos que a povoam e o sopro da vida aos

    que se movem sobre ela."

    27[27] "(... ) eu te pus como aliana do povo, como luz das naes, a fim de abrir os

    olhos dos cegos, a fim de soltar do crcere os presos, e da priso os que habitam nas

    trevas."

    28[28] "Como ovelha foi levado ao matadouro;"

    29[29] "Entendes o que ests lendo?"

    [30] Como o poderia, disse ele, se algum no me explicar? Dirigindo-se a Filipe,

    disse o

    Eunuco: "Eu te pergunto, de quem diz isto o profeta? De si mesmo ou de outro?"

    30

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    e a partir desta passagem explica-lhe a Boa Nova (evangelisato) de Jesus. A revelao

    do Deus Desconhecido, atravs de Cristo, em continuidade consciente com o processo

    milenar de revelao que esbocei, de tal modo o centro do movimento do evangelho

    que pode ser chamado o prprio evangelho. O Deus de Joo 1:1 ss. que no princpio

    est a ss com o seuLogos, o Deus do Deutero-isaas (40:13), que no princpio est a

    ss com o seu ruach; o Verbo que brilha omo uma luz nas trevas (Joo 1:5, 9:5) o

    Servo Sofredor que dado como uma luz s naes, para extrair da priso aqueles que

    se sentam na escurido (isaas 42-.6-7); e em 1 Joo 1, a luz que estava com o Pai,

    manifestando-se a si atravs do Cristo seu Filho, constitui a comunidade daqueles que

    querem andar na luz. O prprio Deus Desconhecido, ento, tematizado em Actos

    17:16-34, no discurso do Arepago atribudo por Lucas a Paulo. Ao louvar os

    Atenienses por terem dedicado um altar ao Agnostos Theos, o Paulo dos discursos

    assegura-lhes que o deus que eles cultuam, sem saber quem , o prprio deus que ele

    lhes veio proclamar (Katangello). Em termos do Deutero-lsaas, descreve-o como o

    deus que criou o mundo e tudo o que nele est e, portanto, em nada igual aos deuses dos

    altares feitos mo; (Isaas 40:12,18-20) , sobretudo, Deus da humanidade a quem deu

    vida e esprito (isaas 42:5). Est suficientemente perto de ns para ser encontrado,

    porqu "nele vivemos e nos movemos e temos o nosso ser." Perdoar a ignorncia com

    que o representmos, no passado, com dolos feitos pelo homem mas, agora, ordena

    (apangellei) a todos que se arrependam (metanoein); todos so chamados a conhec-lo

    como o verdadeiro deus que julgar os homens atravs do homem que ele ressuscitou

    dos mortos. Mais poderia ser acrescentado, tal como Nunc dimittis de Lucas 2:29-32,

    mas a passagem citada suficiente para estabelecer o Deus Desconhecido como o deus

    que revelado atravs de Cristo.

    IV

    No drama histrico da revelao, o Deus Desconhecido acabou por se tornar o

    Deus Conhecido atravs da sua presena em Cristo. Este drama, embora estivesse vivo

    na conscincia dos autores do Novo Testamento, est muito longe de estar vivo na

    Cristandade das igrejas contemporneas porque a histria da Cristandade caracterizada

    pelo que habitualmente se chama a separao entre teologia escolar e teologia mstica,

    ou experiencial, que formava uma unidade ainda aparentemente inseparvel na obra de

    Orgenes. O Deus Desconhecido, cujo theotes estava presente na existncia de Jesus,

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    foi eclipsado pelo Deus revelado da doutrina Crist. Mesmo hoje, contudo, quando se

    reconhece que esta separao infeliz uma das grandes causas da crise espiritual

    moderna; quando se fazem tentativas enrgicas para lidar com o problema atravs de

    vrias teologias existenciais e crticas; e quando no falta informao histrica quer

    acerca do processo revelatrio que conduz epifania de Cristo, quer acerca da perda da

    realidade experiencial atravs da endoutrinao; a anlise filosfica destes vrios

    aspectos continua a estar muito aqum da nossa conscincia pranaltica. Torna-se

    necessrio, portanto, reflectir no perigo que deu mau nome ao Deus Desconhecido no

    Cristianismo e que induziu determinados desenvolvimentos doutrinrios como medida

    protectora contia o perigo de o movimento do evangelho descarrilar para gnosticismo.

    No seu livro Agnostos Theos (1913- rpr. 1956, pp. 73ss.) Eduard Nordencolocou o problema no seu contexto histrico e refere-se, nessa ocasio, sua primeira

    apresentao por Ireneu noAdversus Haereses (ca. 180). Ireneu faz assentar o conflito

    doutrinal entre gnosticismo e Cristandade ortodoxa na interpretao de uma passagem

    de Mat. 11, 25-27:

    "Nesse tempo, Jesus disse: Reconheo humildemente, Pai, Senhor do cu e

    da terra, que escondeste estas coisas dos sbios e entendidos e as revelaste

    aos simples; foi assim Pai, porque assim pareceu bom tua vista. E estas

    coisas so-me entregues a mim pelo meu Pai, e ningum conhece o Filho

    excepto o Pai, e ningum conhece o Pai excepto o Filho e aqueles a quem o

    Filho escolher para o revelar."31[31]

    ,Na doutrina de ortodoxia, o Deus revelado por Jesus o mesmo deus que o deus

    criador revelado pelos profetas de Israel; na doutrina gnstica, o Deus Desconhecido de

    Jesus e o demiurgo israelita so dois deuses diferentes. Contra os Gnsticos, lreneuprope-se provar, com a sua obra, que o deus que eles distinguem como o Bythos, o

    31[31] "Por esse tempo, ps-se Jesus a dizer: Eu te louvo, Pai, Senhor do cu e da

    terra, porque ocultaste estas coisas aos sbios e doutores e as revelaste aos pequeninos.

    Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ningum

    conhece o Filho seno o Pai, e ningum conhece o Pai seno o Filho e aquele a quem o

    Filho o quiser revelar."

    [32] "Tu s o Cristo, o Filho do Deus vivo."

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    Profundo, na verdade " a grandeza invisvel desconhecida de todos" e, ao mesmo

    tempo, o criador do mundo descrito pelos profetas (1.19.12). Eles tornam o logon

    absurdo quando interpretam as palavras "ningum conhece o Pai seno o Filho" como

    referente a um Deus absolutamente Desconhecido (ncogntus deus), porque "como

    poderia ser desconhecido se eles prprios sabem algo acerca dele?" Estaria o logon,

    realmente, a dar o conselho absurdo: "No procureis a Deus; ele desconhecido e no o

    encontrareis"? Cristo no veio para deixar a humanidade saber que o Pai e o Filho so

    incognoscveis, seno a sua vinda terra sido suprflua (IV.6).

    Nem a apresentao do debate por lreneu, nem o seu argumento em prol da

    ortodoxia so uma obra prima de anlise. Se o Pai e o Filho, no logon em causa, forem

    conceptualizados como duas pessoas que se conhecem a si com excluso dos demais,ento a afirmao no seria mais do que uma pea informativa em que podemos ou no

    acreditar. Nada se extrairia dela, nem para a ortodoxia nem para o gnosticismo.

    Ademais, se Jesus pode introduzir esta informao conceptualizada sobre si prprio,

    qualquer um o pode tambm fazer; e poderamos esperar que os filhos do Pai se

    tornassem muito numerosos. De facto, foi algo deste gnero que parece ter acontecido,

    porque lreneu enumera como Gnsticos "Marcio, Valentino, Baslides, Carpcrates,

    Simo e os outros", sugerindo que eles se reclamavam do referido estatuto, e acrescenta:" mas nenhum deles foi o Filho de Deus, mas apenas Jesus Cristo, nosso Senhor"

    (IV.6.4). A situao assemelha-se moderna i'rrupao de novos Crstos nas pessoas de

    Fichte, Hegei, Fourier e Comte. Pelo menos, uma causa importante de confuso, a

    deformao proposicional e conceptual de smbolos que apenas tm sentido luz da

    experincia que os engendrou. Por isso, comearei por situar o logon no contexto

    experiencial de Mateus, lembrando, para este propsito, apenas as passagens mais

    importantes; depois, analisarei a estrutura do problema que pode conduzir aos vriosdescarrilamentos doutrinrios.

    Numa poca em que a realidade do evangelho ameaa dividir-se entre

    construes de um Jesus histrico e de um Cristo doutrinar, no demais enfatizar o

    estatuto dos evangelhos como simbolismos gerados na metaxy da existncia pela

    resposta de um discpulo ao drama do Filho de Deus. O drama do Deus Desconhecido,

    que revela o seu Reino atravs da sua presena num homem, e do homem que revela o

    que lhe foi entregue, entregando-o aos seus companheiros, prosseguido pelo discpulo,

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    existencialmente responsvel, no drama do evangelho, onde desenvolve o trabalho de

    transmitir estas coisas, de Deus para o homem. O prprio evangelho um

    acontecimento no drama da revelao. O drama histrico na metaxy, portanto, uma

    unidade atravs da presena comum do Deus Desconhecido nos homens que respondem

    ao seu glapelo" e uns aos outros. Atravs de Deus e dos homens como dramats

    personae, a presena do drama partilha tanto do tempo humano como da

    intemporalidade divina; mas rasgar o drama da participao na biografia de um Jesus

    num mundo espcio-temporal e em verdades eternas lanadas do alm, tornar absurda

    a realidade existencial que foi experimentada e simbolizada como o drama do Filho de

    Deus.

    O episdio do caminho para Cesareia de Filipo (Mat. 16,13-20) pode serconsiderado uma chave de compreenso para o contexto existencial em que se deve

    colocar a passagem 11,27. A, Jesus pergunta aos discpulos quem dizem os homens

    que o Filho do homem e recebe a resposta que diversamente entendido como um

    apocaliptico do tipo de Joo Baptista, como o profeta Elias, um Jeremias ou outro dos

    profetas. O questionamento de Jesus move-se para quem os discpulos pensam que ele

    , recebendo ento a resposta de Simo Pedro: "Tu s o Cristo, o Filho do Deus vivo"

    (16,16)32

    [32]. Jesus responde: "Abenoado s tu, Simo Bar-Jonas, porque no foram acarne e o sangue que te revelaram isso, mas o meu Pai que est no Cu. 33[33] OJesus

    Mateano concorda, portanto, com o Jesus Joanino (Jo. 6,44) em que ningum poder

    reconhecer o movimento da presena divina no Filho, a menos que esteja preparado

    para esse reconhecimento atravs da presena do Pai divino nele prprio. A filiao

    divina no revelada atravs de uma informao prestada por Jesus, mas atravs da

    resposta de um homem presena completa em Jesus do mesmo Deus Desconhecido

    por cuja presena ele incoativamente movido na sua prpria existncia. O DeusDesconhecido penetra o drama do reconhecimento de Pedro como a terceira pessoa.

    Em ordem a traar a distino entre revelao e informao, bem como para evitar o

    descarrilamento de uma para outra, o episdio termina com a ordem de Jesus aos

    discpulos "no digais a ningum que eu sou o Cristo" (Mat. 16,20).34[34]

    32

    33[33] "Jesus respondeu-lhe: Bem-aventurado s tu, Simo, filho deJonas, porque nofoi a carne e o sangue que te revelaram isso e sim o meu Pai que est nos cus."

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    O motivo do silncio que guardar a verdade da revelao contra a sua

    degradao como uma pea de conhecimento disponvel para o pblico em geral,

    repetido com particular cuidado por Mateus na histria da Paixo. No julgamento

    perante o Sindrio, Jesus nada responde s acusaes perifricas (26,13); acusao

    central de se ter proclamado o Filho de Deus, replica: "Assim o disseste", no se

    comprometendo nem negativa nem afirmativamente; mas, depois, falando de Judeu para

    Judeus, recorda-os do Filho do homem apocalptico que vir nas nuvens do cu. J no

    julgamento perante Pilatos, a ameaa apocalptica seria insensata; quando os

    representantes do Sindrio repetem as suas acusaes, Jesus permanece completamente

    silencioso, "de tal modo que o governador muito se espantou" (27,11-14) 35[35] . Na

    cena de troa perante o crucificado, a resistncia viciosa parece vencer: "Se tu s o Filho

    de Deus, desce dessa cruz" (27,40)36[36] . Mas, por fim, quando Jesus se afunda no

    silncio da morte enquanto o cosmos se rompe em prodgios, a resposta emerge dos

    guardas romanos: "Este realmente era o Filho de Deus!" (27,54).37[37]

    'Na poca da Paixo, segundo parece, o grande segredo de Cesareia de Filipo, o

    chamado Messiasgehemnis, tornara-se, afinal, um assunto do conhecimento pblico.

    Para explicar esta peculiariedade, contudo, no devemos acusar os discpulos de desdm

    loquaz perante a ordem de silncio; entre este episdio e a Paixo, Mateus permite queJesus seja muito generoso em aluses pouco mais que veladas ao seu estatuto como o

    Messias e o Filho de Deus. A acusao do Sindrio de que Jesus se proclamara a si

    mesmo o Filho de Deus estava bem fundada. Ademais, mesmo perante o

    reconhecimento enftico por Pedro, na ocasio em que Jesus caminha sobre as guas, o

    evangelista permite que os discpulos como grupo o reconheam: "Tu realmente s o

    Filho de Deus!" (14,33).38[38] Mais atrs no evangelho, o smbolo aparece no logon

    11,25-27 como uma auto-declarao de Jesus seguida por um apelo:

    34[34] "Em seguida proibiu severamente os discpulos de falarem a algum que ele era

    o Cristo."

    35[35] ...de tal sorte que o governador ficou muito impressionado."

    36[36] ...se s o Filho de Deus desce da cruz.

    37[37] ..De fato, este era filho de Deus!"

    [38] "Verdadeiramente, tu s o Filho de Deus!"

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    "Vinde a mim todos os que trabalhais e que estais carregados e eu dar- vos-ei repouso.

    Tomai o meu jugo sobre vs e aprendei comigo porque eu sou suave e humilde de

    corao e encontrareis repouso para a vossa alma Pois o meu jugo brando e o meu

    fardo leve...39[39] (11,28-30)

    Toda a percope de 11,25-30 aparentemente endereada, no aos discpulos, mas s

    multides mencionadas em 11,7. E, um pouco mais atrs (8,29), os demonacos de

    Gadara reconhecem Jesus como o Filho de Deus, conforme o ouvem os circunstantes.

    Assim, o segredo era conhecido de todos, incluindo aqueles que resistiam, um ponto a

    reter se quisermos compreender a converso de Paulo. E contudo, Mateus no est a

    fazer confuses na construo do seu Evangelho tal como os discpulos no esto a ser

    loquazes. Um evangelho no uma obra de arte feita por um poeta, nem uma biografiade Jesus feita por um historiador, mas a simbolizaro de um movimento divino que

    passa da pessoa de Jesus para a sociedade e a histria. O movimento revelatrio, por

    conseguinte, prossegue em mais de um plano. Primeiro, vem o drama pessoal de Jesus

    desde a constituio da sua conscincia como o Filho de Deus nos encontros com Deus

    (3,16-17) e com o demnio (4, 1-1 1), at realizao completa do que significa ser o

    Filho de Deus (16,21-23), submisso Paixo e ltima palavra:" Meu Deus, meu

    Deus porque me abandonaste?" (27,46)40

    [40] . Existe, depois, o drama social dos seuscompatriotas que nele reconhecem a autoridade divina, a exousia, atravs das suas

    palavras e milagres, distinguindo-se a resposta positiva do povo simples da resistncia

    dos sbios e autoridades pblicas. E finalmente, o drama social torna-se histrico ',

    porque sem a preparatio evanglica do movimento milenar que criou a disponibilidade

    da resposta experiencial e da imaginao mtica para com o Filho de Deus no seria

    possvel o reconhecimento da filiao divina, no tempo de Jesus, nem a compreenso

    pstuma de que o Deus Desconhecido sofrera a morte num homem para o trazer vida.O mistrio da presena divina na existncia cresceu na conscincia do movimento,

    muito antes de comear o drama do Evangelho e os smbolos que o evangelista usa para

    o exprimir -Filho de Deus, Messias, Filho do homem, Reino de Deus- estavam

    3839[39] "Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso.

    Tomai sobre vs o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de corao e encontrareis

    descanso para as vossas almas, pois o meu jugo suave e o meu fardo leve.

    40[40] "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?"

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    historicamente disponveis atravs dos simbolismos do Faro egpcio, da realeza de

    David, dos profetas e dos apocalipses, atravs de tradies iranianas e de mistrios

    helensticos. Donde que, o "segredo" do Evangelho no nem o mistrio da presena

    divina na existncia, nem a sua articulao atravs de novos smbolos, mas o acontecimento

    da sua compreenso completa e do seu cumprimento atravs da vida e morte de Jesus. As

    contradies aparentes dissolvem-se no uso dos mesmos smbolos em vrios nveis de

    compreenso , bem como em vrios nveis de cumprimento, at que o Cristo revelado no

    numa doutrina plena, mas na plenitude da Paixo e da ressurreio.

    O que aqui significa 'plenitude', em contraposio com graus menores de compreenso,

    pode ser esclarecido pelo processo de diferenciao progressiva em captulos como 11; 16.

    No Captulo 11, Joo Baptista envia os seus discpulos a inquirir de Jesus se ele o malak, o

    mensageiro de Deus, profetizado em Mal. 3,1, que preceder a vinda de Yahweh ao seu templo.

    Evitando uma resposta directa, Jesus pede aos discpulos que relatem ao seu mestre os milagres

    e as curas de Jesus, sabendo muito bem que tais factos no so o que se espera do malak de

    Malaquias; deixa-os livres para extrair as suas prprias concluses e despede-os com o aviso a

    Joo e aos seus seguidores que bem-aventurado apenas quem no se ofende com Jesus (11,2-

    6). Depois, vira-se para as "multides" e explicalhes