espetáculo do mundo: pessoa, saramago, portugal
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Estudo sobre o romance O ano da morte de Ricardo Reis, de José SaramagoTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
O ESPETCULO DO MUNDO: PESSOA, SARAMAGO,
PORTUGAL
Aline Alves de Carvalho
2014
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O ESPETCULO DO MUNDO: PESSOA, SARAMAGO,
PORTUGAL
Aline Alves de Carvalho
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Cincia da Literatura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obteno
do Ttulo de Doutor em Cincia da Literatura (Teoria
Literria)
Orientador: Prof. Doutor Andr Luiz da Lima Bueno
Rio de Janeiro
Maro de 2014
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O espetculo do mundo: Pessoa, Saramago, Portugal Aline Alves de Carvalho
Orientador: Professor Doutor Andr Luiz de Lima Bueno
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da
Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Doutor em Cincia da Literatura
(Teoria Literria).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente Prof. Doutor Andr Luiz de Lima Bueno
_________________________________________________
Profa. Doutora Carmem Lucia Negreiros de Figueiredo UERJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Eleonora Ziller Camenietzki UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Flvia Trocoli Xavier da Silva UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Vctor Manuel Ramos Lemus UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Joo Roberto Maia da Cruz Fiocruz, suplente
_________________________________________________
Prof. Doutor Ricardo Pinto de Souza UFRJ, suplente
Rio de Janeiro
Maro de 2014
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Carvalho, Aline Alves de
S696an O espetculo do mundo: Pessoa, Saramago, Portugal / Aline
Alves de Carvalho - Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.
281 f. ; 30 cm.
Orientador: Andr Luiz de Lima Bueno.
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Ps-Graduao em Cincia
da Literatura, 2014
Bibliografia: f. 275-281.
1. Saramago, Jos 1922-2010. O ano da morte de Ricardo
Reis - Crtica e interpretao. 2. Saramago, Jos 1922-2010. O
ano da morte de Ricardo Reis Personagens. 3. Pessoa, Fernando 1888-1935 Crtica e interpretao. 4. Cames, Lus de 1524-1580. Crtica e interpretao. 5. Portugal Histria Sc. XX. 6. Literatura e histria. I. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade de Letras. II. Ttulo.
CDD B869.25
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O ESPETCULO DO MUNDO: PESSOA, SARAMAGO, PORTUGAL
Aline Alves de Carvalho
Orientador: Andr Luiz de Lima Bueno
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em Cincia da
Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como
parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Teoria Literria.
Fernando Pessoa cria a biografia de seu heternimo Ricardo Reis, que se exila no
Brasil em 1919. Em 1935, Fernando Pessoa morre, e a partir desse evento, Jos Saramago
decide dar a continuidade biografia de Ricardo Reis que Fernando Pessoa no deu, e traz de
volta a Portugal o heternimo hedonista e distanciado da realidade. Essa apropriao de
Ricardo Reis o leitmotiv para a construo do romance O ano da morte de Ricardo Reis,
escrito em 1984. O romance se desenvolve a partir de um narrador que persegue seu
protagonista, que passa seu ltimo ano de morte observando o presente histrico do ano de
1936, quando o salazarismo, o nazismo, o fascismo, a crise econmica compunham o cenrio
daquele real que Ricardo Reis chama de espetculo. Neste trabalho, analiso as relaes entre
fico e histria que o romance apresenta.
Palavras-chave: Pessoa, Cames, salazarismo, histria, fico.
Rio de Janeiro
Maro de 2014
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THE SPECTACLE OF THE WORD: PESSOA, SARAMAGO, PORTUGAL
Aline Alves de Carvalho
Orientador: Andr Luiz de Lima Bueno
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em Cincia da
Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como
parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Teoria Literria.
Fernando Pessoa creates a biography of his heteronym Ricardo Reis, who exiles
himself in Brazil in 1919. In 1935, Fernando Pessoa dies, and from that event, Jos Saramago
decides to give continuity to the biography of Ricardo Reis that Fernando Pessoa did not, and
brings back to Portugal the hedonistic and alienated heteronym. This appropriation of Ricardo
Reis is the leitmotiv for the construction of the novel The Year of the Death of Ricardo Reis,
written in 1984. The novel develops from a narrator who pursues his protagonist, who spends
his final year watching the historical present of the year 1936, when Salazar, Nazism, fascism,
the economic crisis that made up the real scenario that Ricardo Reis calls spectacle. In this
work, I analyze the interaction between fiction and history that the novel presents.
Key-words: Pessoa, Cames, salazarism, history, fiction.
Rio de Janeiro
Maro de 2014
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DEDICATRIA
Dedico este trabalho a Thassa Ferreira Costa (1982 2013).
In memorian.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador e amigo, Andr Luiz de Lima Bueno, por acreditar em mim, por
me ensinar o que ser um mestre e por toda a sua generosidade.
minha querida professora do ensino mdio, Jackeline Lima Farbiarz, que me
inspirou a estudar literatura e fazer disso minha profisso.
Aos professores da banca, Carmem Lucia Negreiros de Figueiredo, Eleonora Ziller
Camenietzki, Flvia Trocoli Xavier E Vctor Manuel Ramus Lemos, pelos comentrios e
interferncias to produtivas para este trabalho.
Ao meu marido, meu parceiro, Rafael Ferreira, por me inspirar, por se aventurar
comigo em todos os meus sonhos e por ser minha famlia.
A Tatiana Gandelman, pela amizade, pela compreenso, pela cumplicidade, pelas
tantas afinidades que nos unem.
A Lilian Alves Moreira e Elisngela Abrantes, minhas irms.
A Hermnia Marins, pelo cuidado e pela amizade.
A Tita, minha filha, meu tesouro, minha companheira mais fiel, o maior amor que h
no mundo.
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SUMRIO
1. INTRODUO ................................................................................................................... 10
2. RICARDO E OS REIS ............................................................................................................................ 20
2.1. RICARDO REIS, O HETERNIMO DE FERNANDO PESSOA ............................................................ 20
2.2. O MESTRE ......................................................................................................................... 25
2.3. O RICARDO REIS HELENISTA ............................................................................................ 30
2.4. O RICARDO REIS PERTURBADO ........................................................................................ 40
2.5. O ESPETCULO DO MUNDO ............................................................................................... 52
2.6. O EXLIO NO BRASIL ......................................................................................................... 62
2.7. APROXIMAO DA MORTE ................................................................................................ 83
3. A MARGEM DO TEJO ...................................................................................................... 90
3.1. O RIO ................................................................................................................................. 90
3.2. O ESPETCULO DO MUNDO ......................................................................................... 103
3.3. O ESPETCULO DO INFERNO ........................................................................................... 128
3.4. ESTADO DE EXCEO .............................................................................................................. 145
4. RICARDO REIS DE SARAMAGO: DA PLATEIA AO PALCO. ................................ 148
4.1. DAS ODES PARA O ROMANCE .......................................................................................... 148
4.2. DAS ODES PARA A CRISE ................................................................................................. 148
4.3. O NARCISO INVERTIDO .................................................................................................... 153
4.4. O CADVER ANTECIPADO ............................................................................................... 181
5. O FANTASMA DE FERNANDO PESSOA .................................................................... 192
5.1. UM VISITANTE ................................................................................................................. 192
5.2. UM HABITANTE ............................................................................................................... 211
6. CONCLUSO ................................................................................................................... 236
6.1. AOS HOMENS VIVOS .......................................................................................................................... 236
6.2. CAMES E ADAMASTOR.................................................................................................. 236
6.3. PESSOA ............................................................................................................................ 262
6.4. REMEMORAO E CONSTRUO DO PRESENTE .............................................................. 266
6.5. O ESTILO NARRATIVO ..................................................................................................... 270
7. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 278
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1. INTRODUO
Aqui onde o mar acabou, e a terra espera. (Jos Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis)
A epgrafe se constitui da frase que encerra o romance O ano da morte de Ricardo
Reis1, do escritor portugus Jos Saramago, publicado em Portugal em 1984. A construo do
romance parte da iniciativa de se refletir sobre o momento histrico do ano de 1936. No
entanto, persigo a proposta de leitura do romance como o resgate do passado para a reflexo
sobre o tempo da confeco do romance o ano de 1984 , o tempo que leva o sujeito do
agora s perguntas do presente de 1936. No digo com isso que no existe no romance
estudado reflexo sobre o passado, mas que tal reflexo parte do exerccio de crtica sobre o
presente, e de uma forma bastante especfica: Saramago parte do pressuposto de que toda
histria deve ser revisitada, e da questo sobre at que ponto o fim de um regime totalitrio
implica necessariamente o incio de uma democracia.
No incio de sua carreira literria, Saramago parece estar completamente voltado para
a reviso histrica como leitmotiv da problematizao esttica. O primeiro romance do
chamado ciclo histrico de Saramago Levantado do Cho2, de 1980, cujo objeto histrico
a luta de classes situada no Portugal das primeiras dcadas do sculo XX, chegando aos
tempos do salazarismo. A leitura desse romance demonstra a evidente concordncia com o
Manifesto Comunista3, segundo o qual a revoluo ser promovida pelo levante do operariado
e pelo campesinato, o que promover a apropriao do poder pela classe operria, que ser o
novo gestor da sociedade socialista, substituindo as relaes capitalistas por um sistema sem
desigualdade e explorao. Destaco que, no caso do romance de Saramago, a classe
1 SARAMAGO, Jos. O ano da morte de Ricardo Reis. So Paulo: Companhia das Letras, 1984.
2 Idem. Levantado do cho. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003.
3 ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. So Paulo: Global, 2006.
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trabalhadora explorada a do trabalhador rural ou arteso, e o poder acumulador de riqueza
est representado pelos latifundirios, os responsveis pela lgica comercial e econmica em
Portugal, onde a indstria forma mais moderna de explorao do trabalhador mal havia
chegado, e demoraria ainda muito para se estabelecer no pas. Do mesmo ano de Levantado
do cho, a composio dramtica intitulada Que farei com este livro?4 conta com o
personagem histrico Lus Vaz de Cames, e seu empenho em publicar Os Lusadas5. Nessa
pea, Saramago inicia um recurso que voltar a explorar em outras obras: a recriao de uma
biografia cannica, o que colabora com a validao da reviso histrica atravs da fico.
Nesse caso, Saramago vale-se de Cames pela forma como ele se cristaliza no pensamento
geral como smbolo da defesa da f e do imprio. A pea aborda as dificuldades de Cames
para publicar o poema pico, que passa pela avaliao e interferncia do Santo Ofcio, o que
sugere que jamais se tenha conhecido na ntegra o texto que consagra essa figura simblica
nacionalista do poeta, o que imediatamente desmonta a leitura de Os Lusadas como
glorificao do imprio portugus e do reinado colonialista e mercantilista de D. Manuel.
Memorial do Convento6, de 1982, o prximo trabalho desse ciclo histrico. A
epgrafe uma citao de Almeida Garret:
Eu pergunto aos economistas polticos, aos moralistas, se j calcularam o
nmero de indivduos que foroso condenar misria, ao trabalho
desproporcionado, desmoralizao, (...) ignorncia crapulosa, desgraa
invencvel, penria absoluta para produzir um rico?7
No caso de Memorial do convento, o perodo histrico resgatado o do sculo XVIII,
momento do reinado de D. Joo V, o mais rico da histria de Portugal8, aqui revisto pelo
ponto de vista da populao pobre e oprimida do pas, qual a riqueza do reino no alcana.
A coexistncia entre civilizao e barbrie se torna ntida nesse contraste entre o luxo
4 SARAMAGO, Jos. Que farei com este livro?. 2
a ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.
5 CAMES, Lus de. Os Lusadas. Porto: Porto Editora, 1997.
6 SARAMAGO, Jos. Memorial do convento. 30
a ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2004.
7 Idem, 2004.
8 Conferir www.myguide.iol.pt/profiles/blogs/cultura-convento-de-mafra (consulta em 12.nov.2012)
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ostentado pela nobreza e ilustrado pelo exagero do palcio-convento de Mafra e as vidas
sacrificadas e negligenciadas para que aquela obra pudesse ser realizada. A ideia presente nos
dizeres de Benjamin Nunca houve um monumento de cultura que no fosse tambm um
monumento de barbrie.9 pode ser identificada nessa obra. Esse romance exemplifica o
projeto esttico de Saramago de se recuperar a histria dos vencidos, que vm sendo
esquecidos por narrativas histricas que registram a civilizao como uma marcha evolutiva,
sem considerar os danos implicados e perpetuados nesse processo.
O materialismo histrico o mtodo em 1986, no romance Histria do cerco de
Lisboa10
, em que o protagonista, Raimundo Silva, cujo ofcio de revisor de textos, atreve-se
a interferir no texto que est revisando um livro de histria, o veculo que oficializa a verso
histrica do vencedor recriando a histria e assumindo a posio de autor, que pode ser
considerada, nesse caso, a posio de agente histrico. No caso, o livro transgredido trata do
episdio em que os cristos, sob o comando de D. Afonso Henriques, fundador de Portugal,
reconquistam a Pennsula Ibrica tomando-a dos mouros, em uma batalha no ano de 1147. O
romance construdo a partir da reflexo crtica sobre a gnese do pas.
Em O evangelho segundo Jesus Cristo11
, de 1991, Saramago explora a reviso
histrica para questionar um cnone da civilizao ocidental o cristianismo , que pelos
ltimos 2000 anos vem determinando a organizao do mundo em favor do poder,
subjugando os povos ocidentais, que, no geral, aceitam suas leis movidas pela f, ou,
sobretudo, pelo desamparo que imanente condio humana. O recurso de Saramago ,
mais uma vez, a apropriao de um personagem histrico considerando-se que, como
alicerce da cultura, independentemente de ter ou no existido, passa a existir de fato,
exercendo um papel de autoridade absoluta como se houvesse mesmo existido e recriao
9 BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de histria. In: Magia e tcnica, arte e poltica. Obras
escolhidas I. trad. Srgio Paulo Rouanet. 7 ed. So Paulo: Brasiliense, 1994. p. 225. 10
SARAMAGO, Jos. Histria do cerco de Lisboa. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. 11
Idem, O evangelho segundo Jesus Cristo. Companhia das Letras, 1991.
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13
de sua biografia, com o fim de desmistific-lo. O Jesus de Saramago caracteriza-se por sua
condio de homem comum e por estar destacado da figura do Deus monotesta da tradio
judaica, ou seja, esse Jesus no parte da Santssima Trindade Pai, Filho e Esprito Santo
mas um homem comum, sem propriedades divinas ou extra-materiais, ao qual Saramago no
atribui a fundao do cristianismo que, aqui, mostra-se absolutamente arbitrria apesar de
se tratar do prprio Cristo. Nesse sentido, Saramago recria a histria de Jesus como quem
quer dar ao homem Jesus sujeito histrico anterior sua canonizao a oportunidade de
contar a histria por trs da sua sacralizao, produzindo, assim, o testemunho de quem
sequestrado pela histria em favor do poder.
A histria conduz o trabalho de sua prpria refutao, visto que o presente aponta para
ela como seu pior resultado. Cito aqui alguns exemplos dos trabalhos que compem o ciclo
histrico da obra de Saramago, que promove a reflexo tambm sobre os elementos
fundadores da civilizao ocidental e da sociedade portuguesa desde seus primrdios como
objetos de crtica e motivadores de questionamento, para defender que o recurso esttico de
Saramago transita em torno da leitura dialtica da histria, adotando como ponto de partida
fragmentos histricos especficos. A obra de Saramago se desdobra como produto do trabalho
de um homem ocidental empenhado em perseguir as fissuras do discurso histrico oficial a
cada novo projeto literrio. Cabe, inclusive, dizer que o ofcio de Saramago constitui-se da
prtica poltica de um sujeito histrico lcido sobre seu tempo e sobre o mundo em que vive,
e que dedica sua arte construo do pensamento crtico. O fio condutor de suas obras esse
pensamento crtico, e situa-se entre aqueles que criticam a incapacidade do sistema
capitalista para, considerando-se que as circunstncias formam o homem, formar de maneira
humana as circunstncias (...), para citar um de seus crticos, Andr Bueno12, segundo o qual,
12
BUENO, Andr. Formas da crise. Estudos de literatura, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.
p. 44.
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se essas so as crticas do cidado Jos Saramago ao mundo em que vive, vai um bom
caminho entre essas posies pblicas e a elaborao formal de seus relatos13.
No caso de O ano da morte de Ricardo Reis, o salazarismo o epicentro, ao qual a
narrativa conduz depois de aberta pela inverso do verso dOs Lusadas, de Lus de Cames14
Onde a terra acaba e o mar comea presente na terceira estrofe do canto III do poema
pico sobre a aventura dos portugueses mercantilistas em busca do Novo Mundo. A verso
parodiada de Saramago Aqui, onde o mar acabou e a terra principia aponta para o foco
do olhar do narrador: a ptria, linha de chegada qual o mar percorrido conduz quem vem de
fora. O narrador est retornando a Portugal, e assim inicia o romance. Um retorno, no entanto,
pressupe uma partida, e nesse caso, deve-se lembrar que Portugal o pas deixado para trs
em muitos momentos de sua histria, dentre os quais se destaca a expanso martima do
sculo XV. Desde ento, observa-se a busca pela vida fora de Portugal, desde os
colonizadores, que deixam o pas atrados por novas formas de predomnio econmico e
poltico em terras distantes, passando pelo episdio da famlia real que, em 1808, foge de
Portugal, deixando-o merc da invaso de Napoleo III, at as famlias portuguesas que
imigraram para as colnias e ex-colnias em especial, o Brasil quando viram nisso a
chance de estabelecerem uma vida mais estvel longe da crise portuguesa. Considerando-se,
portanto, que Portugal o pas abandonado por excelncia, Saramago se dispe a retornar ao
pas dos autoexilados.
Para tal, o recurso utilizado como guia da narrativa a apropriao de Ricardo Reis,
heternimo de Fernando Pessoa, que transformado em personagem de romance por
Saramago, de modo que apresenta uma existncia que extrapola a criao de Fernando
Pessoa. Como heternimo, Ricardo Reis criado por Pessoa como um mdico educado em
um colgio de jesutas e que vai viver no Brasil em 1919, pois se expatriou expontaneamente
13
Ibidem, p. 44. 14
CAMES, Lus de. Os lusadas. Porto: Porto Editora, 1997. p. 134.
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15
por ser monrquico15. Desde ento, no h na obra de Pessoa, referncia ao que teria
acontecido a Ricardo Reis depois de decidir por seu autoexlio, e essa lacuna se apresenta a
Saramago como a tela em branco ao pintor. Na verdade, essa lacuna no preenchida; mas o
dilogo entre ortnimo e heternimo restitudo, o que se promove por ocasio mesmo que
parea paradoxal da morte real de Fernando Pessoa, em 1935.
Para a compreenso do personagem Ricardo Reis ser necessrio retornar ao
heternimo Ricardo Reis e analisar o seu conjunto de odes. A descrio de Fernando Pessoa
sobre seu heternimo, presente na conhecida carta a Adolfo Casais Monteiro servir tambm
de amparo para a anlise. Esta se inicia pela identificao das linhas filosficas de Ricardo
Reis, que partem da influncia exercida pela cultura helnica e pela literatura clssica.
Considerando-se que Alberto Caeiro o mestre de todos os heternimos, e por ser pago,
assim como Ricardo Reis, tambm ser brevemente analisado. Em seguida, procurarei
descrever a oscilao emocional e moral presente no conjunto das odes, que se iniciam pelos
princpios helenistas, mas declinam inconstncia emocional que Ricardo Reis identifica no
cristianismo. Essa oscilao ser lida em paralelo ao contexto histrico reconhecvel a partir
das datas das odes, que demonstram no apenas acompanhar o espetculo do mundo, como
tambm deixam evidente que o sujeito potico se contagia pela realidade vivida. Essa
realidade histrica ser compreendida a partir dos estudos de Eric Hobsbawm16
, no contexto
internacional, e a partir das anlises de Oliveira Marques17
e Fernando Rosas18
, no contexto
portugus do incio do sculo. Em seguida, ser o momento de ler o Ricardo Reis que compe
suas odes do exlio no Brasil, onde a crise tambm est presente. Para a compreenso desse
15
PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 98. 16
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve sculo XX. 1914-1991. 2a ed. Trad. Marcos Santarrita. So
Paulo: Companhia das Letras, 1995. 17
MARQUES, A. H. de Oliveira. A Primeira Repblica Portuguesa. Para uma viso estrutural. Lisboa: Livros
Horizonte, 1970. 18
ROSAS, Fernando. O Estado Novo nos anos trinta. Lisboa: Editorial Estampa, 1986.
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16
perodo, valerei do estudo de Edgar Carone19
. Por fim, apontarei versos escritos a partir de um
sentimento de aproximao da morte, ou da morte como tema central.
J que Ricardo Reis testemunha, ao longo do romance, o mundo do tempo da narrativa
1935 a 1936 , o terceiro captulo deste trabalho ter como matria a investigao do tempo
histrico que o protagonista do romance observa, trazendo de volta a esse tempo o narrador de
1984, que quer voltar-se para o passado, promovendo, assim, um novo testemunho sobre
aquele tempo. Assim como o narrador persegue as andanas de Ricardo Reis e suas
observaes do cotidiano, perseguirei esse narrador, e o que ele quer mostrar sobre aquele
contexto histrico narrado. Comearei pela apresentao de Lisboa como a cidade fantasma,
como uma representao do Hades e do mundo dos mortos. Pensarei no lugar que Ricardo
Reis habita como a margem do rio, o que implica uma inverso da imagem simblica da
realidade construda em suas odes: enquanto antes a margem era o espao da vida idealizada,
que se mantm distncia da vida real, agora a realidade est margem do rio, que
representa, desta vez, a vida imaginada, tanto pelo indivduo, quanto pela histria oficial. Isso
ser relacionado com a ideia de que o estado de exceo a margem tem se tornado a regra,
como bem percebe Walter Benjamin20
. Procurarei montar um panorama histrico a partir do
que o romance oferece: as narrativas extradas diretamente do real as notcias de jornal e o
romance pr-regime, Conspirao e os elementos histricos ficcionalizados a intimao
de Ricardo Reis pela polcia e o estado de exceo se embrenha e alcana o domnio privado,
a peregrinao em Ftima, o moralismo vigilante, os movimentos subversivos representados
pelo marinheiro Daniel, a populao miservel e analfabeta, tudo isso servindo para
confrontar a realidade apresentada pela verso do regime. Para a compreenso da verso
histrica oposta a essa que Saramago quer desmontar, consultarei historiadores orientados por
19
CARONE, Edgar. Revolues do Brasil contemporneo. 2a ed. So Paulo: Difel, 1975.
20 BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de histria. In: Magia e tcnica, arte e poltica. Obras
escolhidas I. trad. Srgio Paulo Rouanet. 7 ed. So Paulo: Brasiliense, 1994.
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17
uma metodologia de esquerda, como Antnio de Figueiredo21
, Fernando Rosas22
, Oliveira
Marques23
e Luis Reis Torgal24
. Para a compreenso do Portugal anterior ao sculo XX,
serviro de apoio os estudos de Oliveira Martins25
.
O quarto captulo consistir no estudo sobre o Ricardo Reis construdo por Saramago.
O protagonista ser descrito, em um primeiro momento, a partir de como est apresentado no
incio do romance: homem pertencente classe dominante, apegado a cdigos de conduta e
filosofia helenista assumida pelo sujeito potico das odes. Em seguida, ele ser estudado
conforme as caractersticas apresentadas no romance: estrangeirismo do viajante, do homem
em trnsito; os elementos que compem o sujeito em crise, como o labirinto e o espelho; e a
condio humana aqui representada pela morte em vida. A mudana do personagem como
resultado do contato com o caos da realidade ser tambm analisada. Como parte dos fatores
que servem para desestabilizar o personagem, sero identificados os elementos retirados das
odes e igualmente ficcionalizados: as musas Ldia e Marcenda, e os velhos jogadores de
xadrez do Alto de Santa Catarina.
Em seguida, chegar o momento de se estudar o personagem criado com base em
Fernando Pessoa. Inicialmente, sero percebidas as caractersticas dos heternimos que se
reproduzem no romance, como por exemplo, as discordncias entre eles, o que serve, no
romance, para delinear as divergncias ideolgicas entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa.
Para a compreenso de alguns traos da poesia pessoana, como o fingimento, usarei os
estudos de Jorge de Sena26
, Eduardo Loureno27
e Jacinto do Prado Coelho28
. O prximo
21
FIGUEIREDO, Antnio de. Portugal: 50 anos de ditadura. Trad. de J.M. Martins Dias e Maria Manuela
Palmerin. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1976. 22
ROSAS, Fernando. O Estado Novo nos anos trinta (1928-1938). Lisboa: Editorial Estampa, 1986. 23
MARQUES, A. H. de Oliveira. A Primeira Repblica Portuguesa. Para uma viso estrutural. Lisboa: Livros
Horizonte, 1970. 24
TORGAL, Lus Reis. Estados novos, estado novo: ensaios de histria poltica e cultural. vol. 1. 2 ed.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009. 25
MARTINS, J.P. de Oliveira, 1908. 26
SENA, Jorge de. Fernando Pessoa & Cia heteronmia. (Estudos coligidos 1940-1978). 3 edio. Lisboa:
Edies 70, 2000.
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18
aspecto a se considerar sobre o Fernando Pessoa personagem de Saramago sua veia crtica.
Esse Fernando Pessoa, ento, ser considerado um personagem que Saramago constri com
base em sua leitura do poeta, que vai de encontro com a imagem que o regime salazarista
oferece do poeta, e que se apresenta como a tentativa de Saramago de resgatar Fernando
Pessoa da sua apropriao pelo poder.
O sexto captulo trar a anlise sobre Fernando Pessoa e Cames sendo citados por
Saramago. Primeiro farei uma leitura sobre a forma como Cames trazido ao romance: est
representado por sua esttua e pela esttua do Adamastor. Por essa razo, retornarei ao poema
mais clebre entre os portugueses, Os Lusadas, e identificarei a forma como Cames se
imprime na epopeia, isto , farei uma breve leitura sobre o Velho do Restelo e o Adamastor,
j que esses personagens manifestam as reflexes do prprio poeta. Cames e o Adamastor
so os nicos elementos da epopeia citados por Saramago, porque so os elementos dialticos
da epopeia, que marcam a crtica s navegaes, assim como so os elementos distorcidos
pelo discurso do regime salazarista. Para a compreenso da epopeia portuguesa, recorrerei a
camonistas como Cleonice Berardinelli29
, Jorge de Sena30
e Eduardo Loureno31
. Em seguida,
procurarei refletir sobre a citao como recurso encontrado por Saramago para resgatar esses
poetas que se encontram assimilados pelo poder, ocasionando uma leitura distorcida de suas
obras. A citao ser considerada um meio de reviso histrica, assim como exerccio de
compreenso do presente: a citao alerta para o desconhecimento de elementos que so
enterrados pela verso histrica dominante. Isso ser relacionado morte simblica de
27
LOURENO, Eduardo. Fernando Pessoa, o rei da nossa Baviera. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1986. 28
COELHO, Jacinto do Prado. Diversidade e unidade em Fernando Pessoa. 5 edio. So Paulo:
Verbo/EDUSP, 1977. 29
BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Ctedra Padre
Antnio Vieira, Instituto Cames, 2000. 30
SENA, Jorge de. A estrutura de e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do
sculo XVI. Lisboa: Portuglia Editora, 1970. Trinta anos de Cames. 1948-1978 (Estudos camonianos e
correlatos). Volume I. Lisboa: Edies 70, 1980. 31
LOURENO, Eduardo. Poesia e Metafsica. Cames, Antero, Pessoa. Lisboa: S da Costa Editora, 1983;
Labirinto da Saudade. Psicanlise mtica do destino portugus. 8 ed. Lisboa: Gradiva, 2012.
-
19
Ricardo Reis, e a necessidade da reviso histrica ser amparada pelas reflexes de Walter
Benjamin32, em suas Teses sobre o conceito de histria. Para citar o texto direto de
Benjamin, utilizarei a traduo presente no estudo de Michael Lwy33
, assim como para
compreender melhor o trabalho de Benjamin. Por fim, analisarei o estilo narrativo de
Saramago a partir de alguns trechos do prprio O ano da morte de Ricardo Reis, e de que
forma esse estilo desenvolvido.
32
BENJAMIN, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica. Obras escolhidas I. trad. Srgio Paulo Rouanet. 7 ed.
So Paulo: Brasiliense, 1994. 33
LWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incndio. Uma leitura das teses Sobre o conceito de histria. Trad, Wanda Nogueira Caldeira Brant. So Paulo: Boitempo, 2005.
-
20
2. RICARDO E OS REIS
2.1. RICARDO REIS, O HETERNIMO DE FERNANDO PESSOA
Ricardo Reis o heternimo pessoano cuja obra potica manifesta a mais profunda
necessidade de se distanciar do mundo e seu cotidiano. Sua poesia construda a partir de uma
retomada da filosofia e da literatura clssicas, inclusive da adoo da ode como forma, da
mitologia greco-romana e das musas inacessveis que caracterizam aquela cultura remota.
Horcio e Epicuro so os filsofos que o influenciam, e dos quais adota os preceitos apnicos e
atarxicos, apresentando um pensamento da busca pela vida livre de grandes emoes e
compromissos, distanciando-se de tudo o que pode causar sofrimento. Reconhece a brevidade
da vida e a efemeridade das experincias. O heternimo pessoano em questo um homem
culto, latinista por educao alheia, e semi-helenista por educao prpria34, que adota a
indiferena como princpio. Nas odes, fala como quem quer escapar aos acontecimentos, como
quem quer tornar-se imune a eles35
. No poema que abre sua obra possvel perceber um louvor
absteno:
[310]
Mestre, so plcidas
Todas as horas
Que ns perdemos
Se no perd-las,
Qual numa jarra,
Ns pomos flores.
No h tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sbios incautos,
No a viver,
Mas decorr-la,
Tranquilos, plcidos,
Tendo as crianas
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De natureza...
34
PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998. p. 98. 35
PESSOA, Fernando. Obra potica. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2003.
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21
beira-rio,
beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
No nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
No vale a pena
Fazer um gesto.
No se resiste
Ao deus atroz
Que os prprios filhos
Devora sempre.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma tambm.
Girassis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.36
A vida , aqui, concebida como a jarra em que so postas as flores, que ali ficam
imveis, apenas esperando para murchar, visto que, cortadas de seus caules, no lhes resta
mais nada; as flores so os homens, aos quais o nico destino reservado a morte, desde o
momento em que so separados do tero pelo corte do cordo umbilical. A vida a espera
pela morte, que j um grande assombro para quem vive, portanto, que essa espera seja
calma, plcida, e esttica, sem grandes ou bruscos movimentos. A vida deve ser vivida em
uma zona de conforto que se mantm em uma faixa neutra entre tristezas e alegrias,
invulnervel; nenhum desses estados deve fazer parte da vida, portanto, o sujeito deve conter
as emoes, mantendo-se imperturbvel. Ou melhor, a vida no deve ser vivida, mas
36
PESSOA, 2003, p. 254, grifos meus.
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22
decorrida. A vida um longo repouso, em que no se faz nada alm de v-la passar beira-
rio ou beira-estrada, margem, em isolamento, em uma autoexcluso dos
acontecimentos do mundo. Sempre no mesmo leve descanso de estar vivendo, porque viver
trabalhoso at mesmo para quem apenas decorre a vida. Deixar a vida passar ir se
desintegrando aos poucos, o que j cansativo demais para Ricardo Reis, j agir o
suficiente, portanto, Saibamos, quase/ Maliciosos,/ Sentir-nos ir, porque No vale a pena/
fazer um gesto. Qualquer ao intil, porque no pode evitar a morte. O homem visto por
Ricardo Reis tanto como Cronos37
, quanto como seus filhos deuses, porque oscila entre aquele
que age no caso de Cronos, o homem que devora os filhos para evitar ser destronado por um
deles e aquele que est submetido a uma vontade superior que no pode ser evitada. A
imagem que Ricardo Reis rejeita a do homem que age. A condio humana que Ricardo
Reis concebe a existncia submetida ao destino fatal, do qual no est livre nem o homem
ativo, nem o homem inerte. Por isso, Cronos, ou Saturno para os romanos, o Senhor do
Tempo, supremo e implacvel, No se resiste/ Ao deus atroz/ Que os prprios filhos/ Devora
sempre. Por isso viver deve significar restringir-se a aprender com as crianas e com a
natureza, ou seja, sem se integrar ao mundo dos adultos e dos homens civilizados, a urbe, o
mundo criado pelo homem onde se perdem os valores ancestrais. Em vez de entrar na gua do
rio, Ricardo Reis prope que apenas se molhem as mos levemente e em rios calmos,
mantendo-se na margem e a salvo da corrente de gua, cujo fluxo capaz de transportar quem
mergulha nele para direes que no se escolhem. A corrente do rio to implacvel quanto
Cronos.
O rio metfora da civilizao, o mundo no natural criado pelo homem assim que
deixa o jardim do den e obrigado a encontrar seu novo lar. importante lembrar que no
poema citado h um interlocutor, representado pelo vocativo Mestre, que no contexto dos
37
KURY, Mrio da Gama. Dicionrio de Mitologia grega e romana. 6 ed. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.
-
23
heternimos Alberto Caeiro, o mais velho de todos, do qual os outros heternimos so
discpulos. Alberto Caeiro o pastor, o guardador de rebanhos, que vive no alto de uma
colina, de onde v, distanciado, a cidade, enquanto cultiva seu estilo de vida campons e
arcaico, pr-capitalista, pr-cristo e pr-civilizado, mesmo que esteja situado no tempo da
civilizao ocidental e crist. Mas ele se isola da vida social, mantendo a alma do homem
natural, ou a idealizao do homem ainda harmonizado com a natureza. Observa-se em
Alberto Caeiro uma aproximao com o prprio Cristo, pastor e mestre, mas distinto do resto
da humanidade, homem supra-humano, pela nobreza, virtude, e pela natureza divina, sendo
que Alberto Caeiro pastor pago, no h nele inclinao ao cristianismo, ele representa
exatamente o elemento exterior cultura fundada pelos seguidores de Cristo. Suas iniciais
A.C. remetem marca do calendrio ocidental para os anos anteriores a Cristo, o que
associa ainda mais Alberto Caeiro ao perodo anterior sociedade crist. Sua aproximao ao
Cordeiro de Deus se restringe imagem que ambos tm em comum do lder destitudo do
poder e respeitado pela comunidade arcaica: Caeiro exatamente a corrupo do Mestre dos
Cristos, porque possui a sabedoria inalcanvel ao homem civilizado. A distncia entre
Caeiro e o homem social admirada por Ricardo Reis, enquanto revela a impassibilidade e
falta de envolvimento com o mundo pretendidas por Reis. Mas o prprio Ricardo Reis
tambm tem restries poesia de seu mestre, reprovando a emoo presente em seus
escritos, j que se trata de um trao marcantemente cristo, em oposio pretendida
imperturbabilidade pag, orientada fundamentalmente pela razo. Segundo Ricardo Reis,
falta, nos poemas de Caeiro, aquilo que devia complet-los: a disciplina exterior, pela qual a
fora tomasse a coerncia e a ordem que reina no ntimo da obra38, apesar de apresentar uma
coerncia intelectual desconcertante, coerncia da qual, como veremos, Ricardo Reis no
ser capaz de apresentar em sua poesia. A admirao de Reis por Caeiro se sustenta sobretudo
38
Ibidem, p. 201-202.
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24
no paganismo dessa poesia, do qual Ricardo Reis se serve, pelas razes j mencionadas: o
paganismo no cultiva a emoo, priorizando, ao contrrio, a ndole racional.
preciso destacar, no entanto, que o paganismo de Ricardo Reis e tambm de
Caeiro no diz respeito a opo religiosa, mas, trata-se de afinidade ideolgica. Ricardo
Reis, pelo menos, no se atm a compromissos, sendo, portanto, invivel o entendimento de
seu paganismo como seu credo. Na verdade, ele est voltado para a Antiguidade Clssica,
perodo do qual resgata muitos dos valores e padres estticos e morais, a comear pela
aproximao entre deuses e homens, to presente em Homero, cujas epopeias mantm o
homem no centro da trama, enquanto os deuses interferem coadjuvantes na vida terrena.
Na ode 311, essa aproximao evidente, j que os deuses so apresentados como ex-
homens:
Os deuses desterrados,
Os irmos de Saturno,
s vezes, no crepsculo
Vm espreitar a vida.
Vm ento ter conosco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
a presena deles,
Deuses que o destron-los
Tornou espirituais,
De matria vencida,
Longnqua e inativa.
Vm, inteis foras,
Solicitar em ns
As dores e os cansaos,
Que nos tiram da mo,
Como a um bbedo mole,
A taa da alegria.
Vm fazer-nos crer,
Despeitadas runas
De primitivas foras,
Que o mundo mais extenso
Que o que se v e palpa,
Para que ofendamos
A Jpiter e Apolo.
Assim at beira
Terrena do horizonte
Hiperion no crepsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.
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25
E o poente tem cores
Da dor num deus longnquo,
E ouve-se soluar
Para alm das esferas...
Assim choram os deuses.39
O processo aqui inverso: enquanto o cristianismo apresenta sua concepo do
homem como aquele que perdeu sua condio semi-divina, a da criatura anterior ao pecado
original, e por isso foi expulso do paraso, Ricardo Reis fala de deuses que foram expulsos da
terra e por isso deixaram de ser homens e tornaram-se deuses. Eles interferem na vida
humana; no porque querem proteg-lo, mas porque sentem saudades dos sentimentos
humanos. So seres desterrados, feitos de matria vencida/ longnqua e inativa, so
inteis foras, despeitadas runas de foras primitivas. Pode-se at notar uma
identificao entre deuses e homens por sua natureza imperfeita e sua ndole duvidosa. Os
deuses provocam eventos para que possam viver, atravs dos homens, os sentimentos de que
foram destitudos.
2.2. O MESTRE
Voltando-se ao princpio de Ricardo Reis de conter as emoes, nota-se que os deuses
representam o que ele deseja ser: ex-homem. Nisso se observa mais uma lio que Ricardo
Reis tenta aprender com Alberto Caeiro, especificamente em O guardador de rebanhos, o
pastor que nunca guardou rebanhos, mas como se os guardasse:
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas como se os guardasse.
Minha alma como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mo das Estaes
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pr de sol
Para a nossa imaginao,
39
Ibidem, p. 254-255.
-
26
Quando esfria no fundo da plancie
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza sossego
Porque natural e justa
E o que deve estar na alma
Quando j pensa que existe
E as mos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um rudo de chocalhos
Para alm da curva da estrada,
Os meus pensamentos so contentes.
S tenho pena de saber que eles so contentes,
Porque, se o no soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
No tenho ambies nem desejos
Ser poeta no uma ambio minha
a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo s vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
s porque sinto o que escrevo ao pr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mo por cima da luz
E corre um silncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que est no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem no compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Sado todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapu largo
Quando me veem minha porta
Mal a diligncia levanta no cimo do outeiro.
Sado-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva precisa,
E que as suas casas tenham
Ao p duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural Por exemplo, a rvore antiga
sombra da qual quando crianas
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
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27
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.40
Alberto Caeiro est, entre os heternimos, no patamar de mestre, no qual se mantm a
figura idealizada. Ele como os orculos das culturas antigas, ou como um paj, que tem o
maior conhecimento, mas que no aprendeu, porque inato. Pertence a um universo paralelo
e anticultural, no qual os outros heternimos procuram um modelo, e onde Toda a paz da
Natureza sem gente/ Vem sentar-se ao meu lado. Nesse lugar destacado, est em sossego e
longe de precisar das experincias dos homens socializados: como os deuses descritos por
Ricardo Reis. Ao contrrio dos homens, est destitudo de emoes o que no se deve
confundir com as sensaes , mantendo exatamente a racionalidade que Ricardo Reis diz
faltar-lhe, porque os heternimos nunca esto em acordo. No se devem dar crditos ao que os
heternimos dizem uns dos outros, a no ser que isso sirva para a compreenso do heternimo
que est desenvolvendo a anlise, mas nunca para o analisado. Mas, no caso da emotividade
de Caeiro, qual Ricardo Reis se refere, possivelmente, deve-se ao fato de que o mestre se
guia por seus sentidos, o que ainda o mantm prximo natureza primria e instintiva do
homem. Caeiro pastoreia suas sensaes, enquanto Ricardo Reis procura descart-las
orientando-se pela razo.
II
O meu olhar ntido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda.
E de vez em quando olhando para trs...
E o que vejo a cada momento
aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criana se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade no Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas no penso nele
Porque pensar no compreender...
O mundo no se faz para pensarmos nele
40
Ibidem, p. 203-204.
-
28
(Pensar estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu no tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza no porque saiba o que ela ,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que amar...
Amar a eterna inocncia,
E a nica inocncia no pensar...41
Caeiro v com nitidez; mas cada viso nova, com a qual no se deslumbra. No h
tdio, mas tambm no h surpresa. Na verdade, o princpio de Caeiro est em uma zona
neutra e estvel: ele confia em suas sensaes, apesar de no pensar sobre elas; o sentido se
agua e simplesmente existe, e Caeiro no pensa sobre ele. Pensar, para Caeiro, como uma
doena dos olhos, uma fonte de perturbao que embaa a viso Caeiro, ao contrrio v
com nitidez e preciso: O meu olhar ntido como um girassol. guiado pelo que v, e no
pelo que escolhe, porque escolher pensar. O girassol acompanha a luz do sol, seu nico
movimento depende do astro central. O universo restritamente natural do poeta mantm sua
ateno fixa, e pensa por ele. o sol, o vento, a relva, a paisagem que o orientam. Essa
capacidade de acompanhar o entorno O mundo no se fez para pensarmos nele/ (Pensar
estar doente dos olhos)/ Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... sem se
comover ser o ideal de existncia tanto do Ricardo Reis personagem de Saramago quanto do
heternimo pessoano, mas que ambos sero incapazes de sustentar, enquanto Caeiro se
mantm de acordo com seu princpio, ao menos enquanto est longe da morte. Quando ela se
aproxima, nota-se um teor de angstia, at que ele declara: Estou doente42. Como, para
Caeiro, pensar a doena, aqui, ele admite, ou se d conta de que pensa, como em Tambm
sei fazer conjecturas43. Retornando-se ao incio, quando ele diz que guarda rebanhos, trata-
se, na verdade, de guardar suas ideias (Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas
41
Ibidem, p. 204-205. 42
Ibidem, p. 201-202. 43
Ibidem, p. 245.
-
29
ideias,/ Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,/ E sorrindo vagamente
como quem no compreende o que se diz/ E quer fingir que compreende.), e que, de fato, seu
universo to exterior dimenso cultural, que se restringe exatamente poesia:
VII
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia to grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E no do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o cu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-se pobres porque a nossa nica riqueza ver.44
Caeiro despreza o mundo e volta-se para si; e por estar demasiadamente voltado para
si mesmo, reencontra seu estado natural, sua prpria natureza, origem de suas ideias, e onde
seu eu infantil ainda se surpreende a cada novidade, mas sem se extasiar, apenas a sensao
motivada pelo indito o xtase no natural, um estado de torpor. dentro de si que
Caeiro pastoreia e de onde seus sentidos se manifestam em ideias, incluindo-se a viso: ele
no um observador da realidade, mas de si mesmo. Caeiro um campons distanciado da
realidade urbana, tanto no tempo quanto no espao; seu lirismo no diz respeito a um sujeito
poetizado, mas a um conjunto de ideias, seu rebanho, o pensamento que apenas ele conduz,
sem interveno cultural, e que faz dele um ser abstrato. A natureza o habitat original que
atrai sobre si as ideias desse sujeito abstrado do mundo, e que por sua vez, volta-se sobre si
para pastorear suas ideias. Desse modo, localiza-se em uma dimenso que somente existe na
poesia, a que ele chama de aldeia, e onde ele pode viver num cimo de outeiro, sabendo que
o mundo existe, mas sem participar dele, e pode ser to grande quanto ele prprio o . O
mundo das ideias de Alberto Caeiro como o platnico, porque deste o homem comum e
urbano empobrecido em sua viso se mantm afastado, um mundo acessvel a poucos.
Ao mesmo tempo, o pensamento presente naquele mundo das ideias que inaugura a razo
44
Ibidem, p. 208.
-
30
ocidental, atravs da herana helnica; e a razo ocidental a base da cultura da qual Alberto
Caeiro quer se manter abstrado. O mundo das ideias de Caeiro aquela onde ele se insere e
vive, e dele pastor: o guia do rebanho de ideias seu senhor. Com a dialtica, Plato
inaugura no pensamento ocidental a ideia da razo como atividade intelectual ou cincia45:
enquanto, para Caeiro, a cincia nem sequer chega a ser concebida, fica em sua fase
preliminar, na deambulao dos pensamentos, como as ovelhas que pastam, a cincia do
mundo ocidental se torna um bem cultural que domina o homem e o escraviza obrigando-lhe a
decifr-la. A razo [platnica] conquista a cincia examinando uma a uma (...). Separando e
unindo qualidades, a dialtica purifica a essncia, liberando-a de toda contradio interna,
para apreend-la em sua identidade real.46 Essa crena na apreensibilidade da cincia no
uma iluso de Caeiro, que no se incumbe de resolver contradies nem de desvendar o saber,
nem os mistrios do mundo, convencido de que pensar estar doente. Ele se conforma em
existir e ter sensaes, as que Plato no inclui no campo do intelecto, mas que so
exatamente as ideias pastoreadas por Caeiro. Plato e Caeiro tm em comum apenas a
concepo do mundo das ideias como no pertencente ao domnio da vida humana. Caeiro se
mantm exclusivo existncia em poesia ou ficcional e distante da vida social e oprimida.
Sua condio de pastor de ideias a expresso de sua racionalidade.
2.3. O RICARDO REIS HELENISTA
A figura imperturbvel de Alberto Caeiro, assim como os ex-humanos despojados de
sentimentos representados pelos deuses, so modelos para Ricardo Reis, e constituem o que
ele almeja ser. Os deuses identificados com os homens, dessa maneira, esto tambm
destitudos de sua autoridade, o que demonstra novamente que a orientao pag de Ricardo
45
CHAU, Marilena. Introduo histria da filosofia. Vol I. 2a ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.
284. 46
Ibidem, p. 284.
-
31
Reis no se caracteriza como hbito religioso, mas como ausncia de religio, reforando,
portanto, seu descompromisso perante a vida. Na ode 312, ele assume a representao do que
Cristo no . Todo martrio e santidade so rejeitados pelo sujeito potico que, em vez da
coroa de espinhos, pede a coroa de rosas. Aqui, o sujeito o prprio jarro que recebe as flores
cortadas do caule, presente na ode 310, aceitando guardar isso que representa a vida que se
esvai, mas sem sofrimento.
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
To cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.47
E na ode 313, onde o deus P est vivo, o deus cujo nome tem origem na palavra
grega pan, que significa tudo, a quem os deuses do esse nome por P agradar a todos48.
Enquanto Nietzsche afirma que Deus est morto49, falando sobre o deus do monotesmo,
Ricardo Reis alega que P no est, porque simboliza o universal, rebaixando todas as
religies irrelevncia. P no morreu porque sua morte seria a morte de tudo, e exatamente
a existncia de tudo em que tudo o que existe se anula. Cristo um deus a mais, Ricardo
Reis assim aceita, porque aceita tudo sem ter compromisso com nada: os deuses so os
mesmos.
O deus P no morreu,
Cada campo que mostra
Aos sorrisos de Apolo
Os peitos nus de Ceres
Cedo ou tarde vereis
Por l aparecer
O deus P, o imortal.
No matou outros deuses
O triste deus cristo.
47
PESSOA, 2003, p. 255. 48
KURY, Mrio da Gama. Dicionrio de Mitologia Grega e Romana. 6a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001, p. 301.
49 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia cincia. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2012.
-
32
Cristo um deus a mais,
Talvez um que faltava.
P continua a dar
Os sons da sua flauta
Aos ouvidos de Ceres
Recumbente nos campos.
Os deuses so os mesmos,
Sempre claros e calmos,
Cheios de eternidade
E desprezo por ns,
Trazendo o dia e a noite
E as colheitas douradas
Sem ser para nos dar
O dia e a noite e o trigo
Mas por outro e divino
Propsito casual.50
Como pde ser visto na ode 315, Ricardo Reis tem uma interlocutora, Ldia. Ela uma
de suas musas, dentre as quais tambm se incluem Neera, Chloe e Marcenda. Diferentemente
dos trovadores medievais, Ricardo Reis no tem apenas uma amada, assim como tambm no
tem um nico deus; ele disperso: antes de ser um heri amoral, o heri da afirmao,
porque sua moral pancntrica. A afirmao de tudo sua maneira de neutralizar tudo, e
reduzir tudo a pequenas irrelevncias. Na ode 316, ele chama Neera para que vivam o
momento enquanto esperam pela j conhecida morte. O que se deve fazer ir sentindo a vida
passar, sem estreitarem-se as relaes, e murchar aos poucos, assim como as flores, que vo
murchando longe de suas razes, e estticas em seus vasos. Em 318, Epicuro mencionado
como aquele que tem a postura de um deus, Tendo para os deuses uma atitude tambm de
deus,/ Sereno e vendo a vida / distncia a que est51, a postura de deus a da indiferena
em relao vida, a da serenidade e a de quem decorre a vida, mais um modelo para Ricardo
Reis, enquanto est Desterrado da ptria antiqussima da minha/ Crena, consolado s por
pensar nos deuses52. A antiqussima ptria a Grcia, origem dos deuses pagos; enquanto
Ricardo Reis est desterrado da terra dos deuses, os deuses esto desterrados da terra dos
homens, para a qual sempre voltam para espreitar a vida humana. Apesar do elogio epicurista,
50
PESSOA, 2003, p. 255. 51
Ibidem, p. 258. 52
Ibidem, p. 258.
-
33
percebe-se nessa ode a manifestao da melancolia do desterrado, do Ado expulso do
paraso, sem lar, sem ptria, sem abrigo; do sujeito que vive longe da Grcia de Aristteles e
da Idade de Ouro, no mundo onde o frio leve treme. No se trata do pastor Alberto Caeiro,
que se distingue no mundo pr-ocidental, e l quer permanecer; mas do Ricardo Reis do
mundo ocidental, mundo herdeiro dos gregos, mas de onde os deuses foram expulsos. O
elogio de Ricardo Reis , sim, ao ideal de felicidade helnico a alcanada atravs da
impassibilidade que seria possvel pela autoexcluso em um domnio marginal, assim como
a atitude de Epicuro que v a vida distncia a que est. Sendo assim, Ricardo Reis a
personificao do desterrado, o que mistura a melancolia do homem sem lugar, mas tambm a
conformidade em no estar fixo, em no ter que se comprometer nem com o lugar que habita.
De qualquer jeito, no se trata absolutamente de um sujeito feliz, como ele pretende, ao
abandonar a reflexo sobre o que acontece sua volta. Ricardo Reis indiferente, encontra
um modo de existncia em que ele pensa estar seguro, mas no est: o tempo todo passvel
de mudanas emocionais e crises melanclicas, e essa oscilao est bastante presente em sua
poesia.
O modelo filosfico tomado por Ricardo Reis identifica-se com as correntes
desenvolvidas no perodo do helenismo53
, que o pensamento em voga no imprio
alexandrino, desde 332 a.c., momentos de conquistas de Alexandre, at cerca de 30 a.c..
Desse pensamento, o Epicurismo, o estoicismo e o ceticismo destacam-se como correntes
manifestas na poesia de Ricardo Reis. O estoicismo caracterizado pela concepo do
homem como um microcosmo subordinado ao macrocosmo, parte do universo e da
natureza. O que se deve lembrar, portanto, que o homem no capaz de evitar as
determinaes do universo; disso o estoico constri sua tica fatalista. O destino o princpio
do estoico, que age conforme o que o destino lhe apresenta, resigna-se perante os
53
MARCONDES, Danilo. Iniciao histria da filosofia. 9a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p.
84-100.
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34
acontecimentos, que so implacveis. Sendo assim, a ndole estoicista apresenta um rigoroso
autocontrole, conteno e austeridade. Danilo Marcondes54
destaca, inclusive, que o
desenvolvimento do cristianismo ter grande influncia do carter determinista e a
valorizao do autocontrole, da submisso e da austeridade afirmados pelo pensamento
estoico. O pensamento epicurista tem equivalncia com o estoicismo, visto que ambos
postulam como princpio bsico a felicidade obtida atravs da tranquilidade ou
imperturbabilidade (ataraxia). No entanto, o caminho para a felicidade a valorizao do
prazer como algo natural e que deve ser satisfeito, mas com moderao e pragmatismo. A
apatia como meio de se alcanar a felicidade tambm est presente na corrente ctica, cujo
principal expoente Pirro, para quem as coisas no so possveis de serem apreendidas, e
tentar conhec-las uma iniciativa fadada ao fracasso. Esse pressuposto leva concluso de
que no se deve assumir qualquer posio acerca das coisas, frente do que a melhor atitude
manter o distanciamento e a inao. Esses princpios de apatia orientam o desejo de Ricardo
Reis de no ter nada:
[319]
No tenha nada nas mos
Nem uma memria na alma,
Que quando te puserem
Nas mos o bolo ltimo,
Ao abrirem-te as mos
Nada te cair.
Que trono te querem dar
Que tropos to no tire?
Que louros que no fanem
Nos arbtrios de Minos?
Que horas que te no tornem
Da estatura da sombra
Que sers quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mos mal as olhaste.
54
MARCONDES, 2005.
-
35
Senta-te ao sol. Abdica
E s rei de ti prprio.55
O determinismo estoicista manifesta-se: Que trono te querem dar/ Que tropos to
no tire?. No importa o que se faa, nada pode evitar o destino final, que a morte; por isso,
o melhor caminho colher as flores e larg-las logo em seguida, evitando o envolvimento,
realizando, dessa maneira, a satisfao moderada do prazer. Essa postura permite que o
sujeito se resguarde e tenha controle sobre si, como Ricardo Reis aconselha: Abdica e s rei
de ti prprio. Como qualquer ambio, o trabalho rejeitado, porque nunca ser
recompensado: Pouco usamos do pouco que mal temos./ A obra cansa, o ouro no nosso./
De ns a mesma fama/ Ri-se, que no a veremos56 quando estivermos mortos. A abdicao e
a inao acompanham-se, portanto, da aceitao, porque ela impede que se tenham ambies
e que se queira mudar o que pode no estar de acordo. Por isso, a prxima ode um conselho
sobre como se pode alcanar a abdicao:
[320]
Sbio o que se contenta com o espetculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que j bebeu na vida,
Para quem tudo novo
E imarcescvel sempre.
Coroem-no pmpanos, ou heras, ou rosas volteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta flor como a ele
De tropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgaco
Apague o gosto s horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase e bebedor tranqilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominvel onda
O no molhe to cedo.57
55
PESSOA, 2003, p. 258. 56
Ibidem, p. 260. 57
Ibidem, p. 259.
-
36
Aqui, a real sabedoria epicurista, e consiste na autoexcluso da vida comum, estado
que se situa margem do mundo, de onde se assiste ao seu movimento seu espetculo sem
que se faa parte dele. Trata a vida no como o presente ou a realidade, mas como uma
recordao, que mantm em uma espcie de universo paralelo, do qual mantm-se distncia
atravs da embriaguez ou do sonho. Entretanto, preciso destacar que a noo da vida como
lembrana deixa implcito o fato de que essa vida j fora vivida e experimentada, da qual se
formou a lembrana dela. Sendo assim, aquele que se converte em espectador do mundo
aquele que um dia fora o prprio espetculo. Mesmo assim, h de se notar algo surpreendente:
o espectador referido na ode na terceira pessoa ele isto , o sujeito potico, supostamente,
no est falando de si. Considerando-se o processo da heteronmia, sabe-se que o sujeito
potico pode assumir diferentes vozes, reconhecendo-se em um eu que conhece como outro;
porm, ao falar de algum como se no se tratasse de si mesmo, define esse outro como um eu
reconhecvel, mas no como um eu permanente. No est falando de si. O sbio da ode no o
sujeito potico, apesar de no ser exatamente exterior a ele; no se reconhece nele, o que
caracteriza o falar sobre outra pessoa. Portanto, aquele que consegue manter a vida somente
como uma lembrana sem se perturbar por ela no o eu; a existncia que almeja, no aquela
de que dispe. E, mesmo quando alcanar esse bem, ser apenas um contente quase, a
plenitude jamais ser completa.
Nessa ode, define-se a sabedoria do espectador: o mundo e a realidade devem ser
considerados como um grande espetculo ao qual se deve assistir, sem participar do que nele
ocorre. Exatamente como o pblico que assiste a uma pea teatral ou concerto, contempla e
acompanha, mas da pea s participam efetivamente os atores. Aquele que se envolve com os
acontecimentos trgicos do mundo, mesmo que seja s em ter notcia deles, sem experiment-
los, est sujeito a sofrer; a postura contemplativa e distanciada de Ricardo Reis sua manobra
para evitar o sofrimento, ou qualquer outro sentimento intenso, que agite a estabilidade de sua
-
37
existncia. Na ode citada, qualquer ambio se mostra evitada, o desejo mal tido o desejo
que no se tem, a falta de desejo assim como a memria, porque tudo deve ser sempre
novo e imarcescvel. O vinho no a bebida da alucinao, mas da letargia, e sua cor, assim
como a orgia dionisaca, deve esconder qualquer conscincia da realidade e do tempo.
Dionsio, aqui, no estimula as sensaes e vises, o xtase mximo, mas a ausncia de tudo
isso, da verdade dura da vida, assim como da felicidade, que faz sofrer quem a perde. Fala um
sujeito que no quer nada, no tem projetos, sonhos, ambies, nem saudades: a onda pela
qual no quer ser atingido a morte, destino inevitvel e determinado por tropos e sua
tesoura; mas tambm a gua do rio, metfora do mundo e seu fluxo de acontecimentos, que
aparece em uma ode anterior, e talvez a mais conhecida de Ricardo Reis:
[315]
Vem sentar-te comigo, Ldia, beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e no estamos de mos enlaadas.
(Enlacemos as mos)
Depois pensemos, crianas adultas, que a vida
Passa e no fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o p do fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mos, porque no vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer no gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem dios, nem paixes que levantam a voz,
Nem invejas que do movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podamos,
Se quisssemos, trocar beijos e abraos e carcias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao p um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento Este momento em que sossegadamente no cremos em nada,
Pagos inocentes da decadncia.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-s de mim depois
Sem que a minha lembrana te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaamos as mos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianas.
-
38
E se antes do que eu levares o bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-s suave memria lembrando-te assim beira-rio. Pag triste e com flores no regao.
58
O distanciamento que Ricardo Reis quer manter da realidade est representado, nessa
ode, na imagem do indivduo sentado margem do rio, observando a corrente de gua,
enquanto aproveita tambm a companhia da musa Ldia, com a qual no tem envolvimento
maior do que o de estar ao seu lado, como duas linhas retas que, paralelas, no se intercedem.
Ele quer olhar o rio sem entrar nele, assim como a plateia no participa do espetculo. A gua
do rio representa os acontecimentos do mundo, o que significa que se molhar nela o mesmo
que estar envolvido com os fatos correntes. A abominvel onda, presente na outra ode,
tanto a morte, maior medo de Ricardo Reis, porque o desconhecido que o perturba, quanto a
prpria vida que existe no mundo, pelo qual ele no quer ser atingido, e do qual se sente
resguardado mantendo-se margem do rio. Resgatando o imaginrio portugus, pode-se,
inclusive pensar no rio Tejo, o smbolo histrico que colocou Portugal em um trnsito
absolutamente oposto imobilidade de Ricardo Reis. Nesse sentido, estar margem do Tejo
estar destacado de todo o fluxo histrico de Portugal, parte do que se pode considerar tudo o
que constitui a histria de Portugal. Ser atingido pela abominvel onda do Tejo significaria
tanto ser um sujeito ativamente histrico, quanto um daqueles atores que esto registrados na
histria oficial como heris. Est claro que Ricardo Reis no quer ser nem um, nem outro.
Assim como o envolvimento amoroso evitado, visto que constitui uma ameaa de frustrao,
dor e saudade, a ao poltica apresenta a possibilidade de derrota. A nica ambio aqui no
ser mais do que crianas, no sair dessa condio assexuada e excluda da vida social. As
crianas brincam, fazem jogos, vivem fices, iluses, contos de fadas. Sendo assim, Ricardo
Reis recorre a tudo o que garante-lhe estar alienado e alado do real, porque nisso consiste ser
sbio.
58
Ibidem, p. 256, grifos meus.
-
39
[323]
No consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespirveis pncaros,
Perenes sem ter flores.
S de aceitar tenhamos a cincia,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha conosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, s luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
S mornos ao sol quente,
E refletindo um pouco.59
O fatalismo permite a aceitao, que , na verdade, conformismo mascarado pela
frustrao. Leva apatia e impede o movimento; no entanto, isso no significa que o sujeito
esteja imperturbvel: o mesmo fatalismo que diz que ningum pode escapar morte mantm
presente esse fantasma onipresente. Tambm diz respeito liberdade como algo inalcanvel.
Como foi dito aqui, Ricardo Reis aproxima, muito alm da maneira grega, os homens e os
deuses. Quando diz que S esta liberdade nos concedem/ Os deuses: submetermo-nos/ Ao
seu domnio por vontade nossa./ Mais vale assim fazermos/ Porque s na iluso da liberdade/
A liberdade existe60, est lamentando a impotncia diante da subordinao dos homens aos
prprios homens. Em seguida observa que nem os deuses so livres: Nem outro jeito os
deuses, sobre quem/ O eterno fado pesa,/ Usam para seu calmo e possudo/ Convencimento
antigo/ De que divina e livre a sua vida. Os deuses tambm se resignam perante sua
condio. E nesse ciclo de dependncias entre homens e deuses, no h nada que possa ser
evitado. Ns, imitando deuses,/ To pouco livres como eles no Olimpo(...) estamos
confinados nessa condio, na vida e no mundo construdo pelos homens, de onde Ricardo
Reis no consegue ver sada, construindo uma poesia que muito mais um lamento do que o
elogio tpico da ode. O paganismo de Ricardo Reis assume, ento, uma projeo de si na
imagem dos deuses; Ricardo Reis, ao falar dos deuses, fala, na verdade, de si mesmo: um
sujeito com complexo de superioridade, que se v distante do mundo real, e no aceita
59
Ibidem, p. 260. 60
Ibidem, ode 326, p. 262.
-
40
pertencer mesma condio que a dos outros homens. Os deuses so mais do que modelo: so
mitos com os quais Ricardo Reis se identifica, por estarem acima dos homens. A resignao
dos deuses perante o destino , na verdade, a aceitao de quem vive em uma zona estvel e
imune misria do mundo ordinrio, a mesma imunidade que se atribui ao mundo da classe
dominante qual Ricardo Reis, abastado que , pertence que mantm para si o controle da
ordem. Mas, no entanto, o que a prpria obra de Ricardo Reis provar que, apesar de se
encontrar em uma posio privilegiada, e poder se dar ao luxo de se distanciar da realidade, a
suposta imunidade da classe rica mostrar-se- uma iluso alimentada apenas pela cultura
dessa classe. A impassibilidade de Ricardo Reis entrar em declnio, como observar-se- mais
frente, colocando prova a segurana que se imagina ser inerente vida da classe
dominante.
2.4. O RICARDO REIS PERTURBADO
A condio humana acaba impondo que Ricardo Reis assimile o fatalismo estoico
menos por estar consciente de que ele no tem domnio sobre a prpria vida do que por aceitar
pacificamente a zona de conforto proporcionada pelo privilgio de classe. Ele contempla o rio
que corre, porque nada do que venha a fazer pode impedir que o rio corra. E ele vive a
existncia civilizada, a condio humana, da qual no pode escapar. No h outra opo alm
de viver ou morrer. Por isso tenta aliviar o fardo da vida reservando-se ao direito de ser seu
espectador. Em seguida, na ode 327, Ricardo Reis est se dirigindo a uma de suas musas,
Neera, do lugar imaginado, a margem do rio, onde parece alcanar a desejada distncia do
presente. onde afirma poder fingir que livre e onde pode ter a iluso de ser igual aos
deuses:
Aqui, Neera, longe
De homens e de cidades,
Por ningum nos tolher
O passo, nem vedarem
-
41
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres.
Bem sei, flava, que inda
Nos tolhe a vida o corpo,
E no temos a mo
Onde temos a alma;
Bem sei que mesmo aqui
Se nos gasta esta carne
Que os deuses concederam
Ao estado antes de Averno.
Mas aqui no nos prendem
Mais coisas do que a vida,
Mos alheias no tomam
Do nosso brao, ou passos
Humanos se atravessam
Pelo nosso caminho.
No nos sentimos presos
Seno com pensarmos nisso,
Por isso no pensemos
E deixemo-nos crer
Na inteira liberdade
Que a iluso que agora
Nos torna iguais dos deuses.61
O lugar de onde Ricardo Reis fala em absteno, obviamente, no o real, mas o
espao aberto pela poesia e pela fico. o lugar onde a existncia dos heternimos
possvel. A margem do rio a metfora desse lugar que no existe; o poeta real, o sujeito do
presente histrico cuja certido de nascimento registra a existncia apenas de Fernando
Pessoa que se encontra no mundo real, em Lisboa, mais especificamente, no ano de 1924.
Ricardo Reis consegue visualizar o lugar descrito na poesia, e pode at mesmo dizer que vive
nele; mas, na verdade, no vive. preciso lembrar que, a leitura de versos escritos por
Fernando Pessoa, e que a aparncia da poesia vela o sentimento vivido por um sujeito real,
a criao desse sujeito e seu fingimento. Ricardo Reis o Fernando Pessoa quando este sabe
que nem a morte e nem o curso do rio podem ser evitados, por isso se guarda resignao.
Mas Fernando Pessoa no apenas Ricardo Reis, apesar de no querer que ns, seus leitores,
lembremo-nos disso. Mas, o fato que est tudo afirmado e construdo pelos versos, o que
nos leva a pensar, depois de ler o que est escrito, por que est escrito. O que est escrito a
61
Ibidem, p. 262-263.
-
42
impotncia diante da inevitabilidade da vida; o porqu de estar escrito , na verdade, o
fundamento da heteronmia.
Da lmpada noturna
A chama estremece
E o quarto alto ondeia.
Os deuses concedem
Aos seus calmos crentes
Que nunca lhes trema
A chama da vida
Perturbando o aspecto
Do que est em roda,
Mas firme e esguiada
Como preciosa
E antiga pedra,
Guarde a sua calma
Beleza contnua.62
A margem do rio no o cenrio dessa ode, mas o quarto alto. O que no se pode
precisar se Ricardo Reis est dentro ou fora dele. Mas o que se sabe que a combusto da
chama provoca um efeito ilusrio, como se o quarto ondulasse. Trata-se da iluminao
artesanal, anterior luz eltrica, conseguida atravs de lamparinas, ou candeias, dentro das
quais algum material inflamvel boia em leo, produzindo a chama. A lmpada da ode
noturna e ambienta o leitor na escurido da noite. A luz remete ao saber e lucidez, ao
esclarecimento platnico, que, na ode, se confunde com o seu oposto, a iluso: a chama,
smbolo do conhecimento, com a qual Prometeu63
presenteou o homem, sua criao, tambm
obscurece o recinto por conta de seu contnuo movimento. A ondulao provocada pela luz da
chama confunde a viso, tal qual a luz projetada dentro da caverna de Plato64
, e que forma as
sombras que os homens acorrentados pensam ser a nica realidade existente; s que na ode de
Ricardo Reis, a luz no vem de fora, est dentro do quarto, limitando ainda mais a
possibilidade de o sujeito desejar descobrir o que h fora do lugar que habita, do seu universo
particular: a luz de que precisa fraca, oscilante e mantm o sujeito voltado para dentro do
62
Ibidem, p. 263. 63
KURY, 2001, p. 340. 64
CHAU, 2002, p.257-260.
-
43
quarto, ou mais especificamente, para dentro de si. A ddiva de Prometeu escassa e est em
posse do habitante do quarto, o sujeito da ode o guardador do fogo, o nico responsvel por
ele, e o nico iluminado por ele. O saber, representado pelo fogo, assume aqui tanto a forma
da ddiva quanto a da maldio: uma virtude, merecida pelo habitante do quarto alto, da
torre onde o saber se encontra a salvo do resto do mundo; um privilgio para o escolhido
como seu guardador, mas tambm aprisiona quem o possui, confinando-o ao reduzido espao
que a chama ilumina, e obscurecendo tudo volta. Alm disso, o saber tambm desestabiliza
a existncia do sbio, que se inquieta com a movimentao crnica das sombras projetadas a
partir da luz. Assim como Alberto Caeiro considera que pensar uma doena, Ricardo Reis
est percebendo a instabilidade do solo do esclarecimento, e deseja, portanto, o saber calmo e
esttico concedido pelos deuses, que no permite que lhes trema/ A chama da vida/
Perturbando o aspecto/ Do que est em roda, ele quer ver o mundo ao seu redor parado, e
imperturbvel, quer a chama da vida firme e esguiada/ Como preciosa/ E antiga pedra. As
paredes ondulantes so uma lembrana permanente do quanto o conhecimento inquietante.
A sabedoria torna possvel tanto a filosofia que Ricardo Reis toma para si a da indiferena ,
quanto evidencia que a vida firme e esguiada que ele almeja no possvel. A sabedoria do
espectador indiferente no evita que ele se perturbe com sua prpria sabedoria.
A f rejeitada tambm pela perturbao que provoca, assim como a perturbao pela
sabedoria, apesar de f e sabedoria serem apresentadas como elementos opostos e
excludentes. Na ode 330
Vs que, crentes em Cristos e Marias,
Turvais da minha fonte as claras guas
S para me dizerdes
Que h guas de outra espcie
Banhando prados com melhores horas Dessas outras regies pra que falar-me
Se estas guas e prados
So de aqui e me agradam?
Esta realidade os deuses deram
E para bem real a deram externa.
-
44
Que sero os meus sonhos
Mais que a obra dos deuses?
Deixai-me a realidade do momento
E os meus deuses tranquilos e imediatos
Que no moram no Vago
Mas nos campos e rios.
Deixai-me a vida ir-se pagmente
Acompanhada pelas avenas tnues
Com que os juncos das margens
Se confessam de P.
Vivei nos vossos sonhos e deixai-me
O altar imortal onde meu culto
E a visvel presena
Dos meus prximos deuses.
Inteis procos do melhor que a vida,
Deixai a vida aos crentes mais antigos
Que a Cristo e a sua cruz
E Maria chorando.
Ceres, dona dos campos, me console
E Apolo e Vnus, e Urano antigo
E os troves, com o interesse
De irem da mo de Jove.65
Ricardo Reis desdenha a vida crist porque est satisfeito com a vida que tem sob a proteo
dos deuses pagos. O cristianismo apresentado por Ricardo Reis como a doutrina da dor e
do autossacrifcio, do martrio e da eterna penitncia. Assim como tambm a f das massas,
cujos homens so sacrificados em prol da civilizao e da dominao. a f imposta pelo
dominador e que garante a submisso da massa, que, dominada, aceita sofrer a culpa por seus
pecados. Tudo isso representa a emoo que Ricardo Reis no quer vivenciar. Ele quer a vida
das guas claras, nas quais a superfcie e o fundo no se separam, a certeza do que se v
garante segurana para quem deseja permanecer impassvel. Mas a vida sem emoo e as
guas claras so e Ricardo Reis bem sabe a realidade que os deuses deram e para bem
real a deram externa: est l fora e no aqui onde Ricardo Reis se petrifica. Que sero os
meus sonhos/ Mais que a obra dos deuses? Ricardo Reis est plenamente ciente de que a
vida calma no a vida real, so seus sonhos, dos quais o cristianismo ou seja, a experincia
65
PESSOA, 2003, p. 263-264.
-
45
do sofrimento o despertaria. A vida calma uma vida exterior, ou seja, irreal. O que torna
evidente que o mundo margem, imperturbvel, sem sofrimento, o lugar imaginado, do
sonho, e onde Ricardo Reis no est. Por isso que, retornando-se imagem de Ricardo Reis
escrevendo pela mo de Pessoa, pode-se lembrar que Ricardo Reis afirma pelos versos
exatamente aquilo que Fernando Pessoa no vive, mas, talvez, gostaria, e, por hora, apenas
finge. Ou, Ricardo Reis apenas representa um tipo de sujeito, que o homem moderno pode
assimilar, e que a personalidade do homem da classe dominante daquele tempo. um tipo
de homem que Fernando Pessoa percebe na sociedade em que est inserido. Ricardo Reis
que escreve tambm que est resignado, porque no possvel evitar a morte, nem os
acontecimentos, mas que se angustia exatamente porque gostaria de poder evit-los, angstia
que , na verdade, a do homem Fernando Pessoa, que compartilha com esse tipo de homem
representado por Ricardo Reis o desejo de no sofrer, e a desistncia de agir em face da
impotncia em que se encontra. Alis, o desejo de no sofrer est presente em todos os
heternimos, em cada um de uma forma particular, porque cada um deles a representao de
um tipo de homem moderno acometido pela angstia tpica de seu tempo, e cada um um
tipo assimilvel pelo homem comum de que Fernando Pessoa exemplo , est disponvel
ao sujeito em seu processo de socializao. Nisto parece consistir o fundamento da
heteronmia: o sujeito parece pluralizado porque tem sua disposio uma vasta gama de
possibilidades de ser, o que d uma falsa impresso da liberdade que desmentida pela
angstia presente em cada um dos heternimos. Uma das consequncias dessa falsa
multiplicidade do sujeito moderno a despersonificao, a falncia da subjetividade, alm dos
quadros de neurose identificados por Freud e outros psicanalistas. A questo da heteronmia
ser retomada mais adiante.
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46
A realidade externa est representada na ode 336 na imagem do quadro, onde est
Ricardo Reis e sua musa Ldia, e que no a vida, mas uma obra de arte a qual se contempla
sem se envolver com ela:
Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraos
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Ldia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na conscincia dos deuses.
Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.
S os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.66