este mundo tenebroso

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  • 8/12/2019 Este Mundo Tenebroso

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    EEsstteeMMuunnddooTTeenneebbrroossoo--PPaarrttee22

    Frank E. Peretti

    Categoria: Fico espiritualTtulo original em ingls: Piercing the Darkness

    Traduo: Wanda Assumpo 1992, por Editora Vida.

    ISBN 0-8297-1664-5Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap

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    Poderia ter comeado em qualquer cidade. Baskon no era nada especial, apenas uma dessas cidadezinhasrurais afastada da rodovia interestadual, nada mais do que um pontinho vazio no mapa rodovirio, comindicadores de sadas que ofereciam gasolina, nenhuma acomodao, talvez algum alimento se o lugar

    estivesse aberto, e pouca coisa mais.Mas comeou em Baskon.Era uma noite normal de tera-feira. O dia de trabalho havia chegado ao fim, o jantar estava pronto namaioria das casas, as lojas fechavam-se, o botequim se enchia. Todos os empregados da Fbrica de PortasBergen haviam batido o ponto de sada, e o guarda-noturno examinava as fechaduras. O filho do Sr. Myersrecolhia na Casa Myers de Sementes e de Agricultura todos os cortadores de grama e as enxadas rotativas.As luzes piscavam pela ltima vez na mercearia local. Dois senhores aposentados, sentados em frente dabarbearia, passavam suas horas ociosas.Os campos e stios bem em frente estrada de Toe Springs-Claytonville tornavam-se mais quentes e verdesa cada dia, e agora a brisa vespertina trazia os odores prprios de meados de abril flores de macieiras ecerejeiras, terra arada, um pouco de lama, algum gado, um pouco de estreo.

    Era uma noite normal de tera-feira. Ningum esperava nada extraordinrio. Ningum viu ou ouviu coisaalguma. Nem poderia.Mas o rebulio comeou atrs de uma sombria casinha de aluguel logo ao sul da sede do stio de Fred Potter um adejar, um alvoroo, uma confuso, e depois um brado, um guincho comprido, sinistro, um lamentoecoante, lacrimoso, que penetrou desabalado a floresta como um apito de trem percorre a cidade, alto,abafado, movendo-se por aqui e por ali atravs das rvores como um animal caado; a seguir o brilho deuma luz, uma bola de fogo piscando e ardendo atravs da floresta, movendo-se com velocidade ofuscante,logo atrs daquela sirene, quase em cima dela.Mais gritos e berros, mais luzes relampejantes! De sbito, a floresta se encheu delas.A floresta findava abruptamente onde o Laticnio Amhurst comeava. A caada saiu a campo aberto.O primeiro a sair foi um inseto, um morcego, uma coisa negra, olhos saltados, as asas escuras rodando, ohlito despejando para fora como uma longa fita amarela. Ele simplesmente no conseguia voar com rapidezsuficiente, mas arranhava o ar com os braos fininhos e compridos, desesperado em busca de velocidade, eberrando em pnico total.Logo atrs dele, muito perto, perigosamente perto, o prprio sol explodiu para fora da floresta, um cometabrilhante, com asas de fogo traando uma trilha reluzente e uma espada de relmpago estirada em maciasmos de bronze.A coisa negra e o cometa arremeteram ao cu sobre Baskon, ziguezagueando, atirando-se para c e para lcomo desenfreados fogos de artifcio.Ento a floresta, como uma fila de canhes, vomitou mais das horrendas criaturas, pelo menos vinte, cadaqual fugindo em puro pnico, com um vulto ofuscante e flamejante a persegui-las tenazmente, espalhando-

    se em todas as direes como louca chuva de meteoros em reverso.O primeiro demnio chegava ao fim de seus truques e manobras; j podia sentir o calor da lmina doguerreiro nos calcanhares.Com violncia, ele proferiu por sobre o ombro: No, volte, j estou indo!A lmina chamejante cortou um arco atravs do ar. O demnio rebateu-a com a sua e o golpe o fez sairrodopiando. Ele corrigiu com as asas, voltou-se e enfrentou o atacante, berrando, xingando, aparando golpeaps golpe, fitando os olhos ardentes de mais poder, mais glria, mais santidade que jamais havia temidoantes. E podia ver naqueles olhos que o guerreiro jamais retrocederia. Jamais.O demnio murchou antes mesmo que a lmina desse o ltimo golpe; deslizou da terra, do mundo dahumanidade, para dentro das trevas exteriores, sumindo num tufo revoluteante de fumaa rubra.

    O guerreiro voltou-se e ganhou maiores alturas, revolvendo sua longa espada acima da cabea, traando umcrculo de luz. Ele ardia com o calor da batalha, o fervor da retido.O mesmo fervor consumia seus companheiros, que derrubavam demnios do cu como insetos ptridos,abatendo-os com fortes espadas, perseguindo-os obstinadamente, sem dar ouvidos a nenhum apelo.

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    direita, um esprito comprido, coleante, lanou mais um golpe violento ao seu assaltante celestial antes decrispar-se fortemente em agonia e desaparecer. esquerda, um diabrete fanfarro, gabola, maldizia e provocava seu oponente, enchendo o ar comblasfmias. Era rpido e confiante, e comeava a achar que poderia prevalecer. A cabea rodopiante deixou-lhe o corpo enquanto a risada orgulhosa ainda lhe retorcia a cara, e ento ele desapareceu.Havia sobrado um. Esse rodopiava, revirando sobre uma asa boa. Irei embora, irei embora rogou ele.

    Seu nome? ordenou o anjo. Desespero.O guerreiro mandou o demnio pelos ares com a parte chata de sua lmina, e ele fugiu, se foi, porm aindacapaz de operar maldade.E ento terminou. Os demnios se haviam ido. Mas no cedo o bastante. Ela est bem? perguntou Nat, o rabe, embainhando a espada.Armoth, o africano, havia verificado. Est viva, se isso o que voc quer saber.O poderoso polinsio, Mota, acrescentou: Ferida e assustada. Ela quer ir embora. No esperara. E agora Desespero est livre para atorment-la disse Signa, o oriental.Armoth replicou: Ento a coisa comeou, e no haver como det-la.

    ***

    Sally Roe, cada na grama, agarrava o pescoo, arquejante, inspirando longas, deliberadas golfadas de ar,tentando desanuviar a cabea, tentando pensar. Uma esfoladura formava um vergo que se erguia em seupescoo; a blusa xadrez se ia avermelhando como resultado de um ferimento no ombro. Ela no parava deolhar na direo do cercado das cabras, mas nada se movia l. No havia sinal de vida, nada sobrara paraferi-la.

    Com esforo, ela se ps de p e imediatamente recostou-se contra a casa do stio, seu mundo rodopiando.

    Ainda sentia nusea, embora j houvesse vomitado tudo duas vezes.

    Cambaleante, ela subiu os degraus da varanda dos fundos, tropeou uma vez, mas continuou em frente. Nolevaria muita coisa consigo. No podia. No havia tempo.Ed e Mose passavam muito bem, obrigado, simplesmente sentados l na frente da Barbearia do Max na Ruada Frente, que o nome que davam estrada Toe-Springs-Claytonville quando esta atravessava a cidade. Edtinha sessenta e oito anos, e Mose no contava a quem quer que fosse quantos anos tinha, de forma queningum lhe perguntava mais. Ambas as esposas j haviam partido a essa altura que Deus as tivesse ,os dois homens tinham bons planos de aposentadoria, e a vida para eles se reduzira a um arrastarconfortvel. No "to" mordendo a isca, Ed. Voc devia ter descido mais no rio, Mose. Mais abaixo. Eles ficam ranzinzas tendo de "nad" at voc.Precisa "peg" eles de bom humor.Mose ouviu a primeira parte, mas no a segunda. Mantinha os olhos fixos num carro verde que cruzavadepressa a cidade, com duas crianas transtornadas no banco de trs. Ed, ser que no conhecemos aquelas crianas? Onde? Ora, por que no olha para onde estou apontando?Ed olhou, mas tudo o que pde ver foi a traseira do carro e apenas a parte de cima de duas cabeas loiras. Bem disse ele, protegendo os olhos voc me deixou intrigado. Oh, voc nunca olha quando lhe digo. Sei quem eram. Eram os filhos daquele professor, aquele... uh...

    como o nome dele...***

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    Irene Bledsoe dirigia toda pela estrada Toe Springs-Claytonville, trazendo uma carranca que acrescentavapelo menos dez anos ao seu rosto j enrugado. Mantinha as mos fechadas com fora em torno do volante, eo p no acelerador, impulsionando o carro para diante, quer Rute e Josias Harris gostassem, quer no. Vocs dois, fiquem quietos agora! berrou ela por sobre o ombro. Podem crer que fazemos isto parao seu prprio bem!As palavras da mulher no trouxeram o menor conforto a Rute, de seis anos, e Josias, de nove.Rute continuou a chorar Quero o papai!

    Josias apenas se deixava sentar ali, entorpecido pelo choque.Bledsoe pisou forte no acelerador. Ela apenas queria sair da cidade antes que houvesse mais encrenca, maisateno.No gostava dessa incumbncia. "As coisas que eu fao por essa gente!"

    ***

    Sally saiu para a varanda dos fundos, ainda tremendo, olhando desconfiada ao redor. Ela havia trocado ablusa e vestia agora uma jaqueta azul. Uma das mos agarrava a blusa xadrez ensangentada, embolada, e aoutra uma toalha de papel encharcada de leo de cozinha.Tudo era silncio, como se nada tivesse acontecido. Sua velha caminhonete esperava. Mas ainda havia mais

    uma coisa a fazer.Ela olhou na direo do cercado das cabras, o porto totalmente aberto e as cabras j bem longe dali.Respirou fundo diversas vezes para evitar que a nusea retornasse. Precisava entrar uma vez mais nocercadinho. Simplesmente precisava.No demorou. Com o corao disparado, as mos agora vazias e os bolsos estufados, ela saiu de l e correupara a caminhonete, entrando desajeitada na cabine. O motor deu uma volta, gemeu, ps-se a funcionar, ecom uma exploso de potncia e uma chuvarada de pedriscos, o veculo saiu roncando estrada a fora, rumo rodovia.Irene Bledsoe vinha toda, mas no havia nenhum guarda por perto. Os limites de velocidade eraminadequados de qualquer forma, simplesmente nada prticos.Ela se aproximava de um cruzamento com sinal de pare nas duas direes, outra idia idiota para um lugar

    como aquele, no fim do mundo. Ela tirou um pouco o p do acelerador e achou que conseguiria atravessarsorrateiramente.O que! De onde?Ela meteu o p no freio, as rodas travaram, os pneus guincharam, a traseira do carro derrapou. Uma idiotanuma caminhonete azul atravessou a interseco dando guinadas violentas para evitar atingi-la.A pequenina Rute no usava o cinto de segurana; ela bateu com fora a cabea e ps-se a berrar.O carro verde derrapou at parar, quase de frente para a direo da qual tinha vindo. Fique quieta! berrou Bledsoe para a garotinha. Fique quieta agora. Voc est bem!A essa altura Josias tambm chorava, morrendo de medo. Ele tambm no havia posto o cinto, e por issorevirou-se l atrs. Vocs dois calem a boca! berrou Bledsoe. Tratem de calar a boca agora mesmo!Josias pde ver uma mulher sair da caminhonete. Tinha ela cabelo vermelho e um leno xadrez na cabea;parecia prestes a chorar, e segurava o ombro. Bledsoe enfiou a cabea para fora da janela e soltou uma fieirade improprios moa. Esta no disse nada, mas Bledsoe devia t-la assustado. A outra motorista entrounovamente no seu veculo e foi embora sem dizer palavra. A idiota! disse Bledsoe. - Ser que no me viu? Mas a senhora no parou - disse Josias. No me venha dizer como dirigir, mocinho! E por que seu cinto de segurana no est preso?Rute ainda berrava, segurando a cabea. Quando viu sangue na mo, ficou histrica.Quando a mulher viu aquilo, disse: Oh, que timo! Oh, mesmo formidvel!

    ***

    Ceclia Potter, esposa de Fred, achava bom que uma daquelas cabras bobas usasse sininho. Pelo menosassim ela poderia ouvir algo e correr para o jardim antes que elas comessem todas as suas flores.

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    Guilo trovejou sua aprovao do ato. Como est Sally agora? - perguntou Tal. Armoth relatou: Um pequenino ferimento na garganta, um vergo no pescoo, um ferimento raso de faca no ombro.Nenhum perigo fsico imediato.Tal suspirou s um tantinho. No, no imediato, pelo menos. E o que me dizem da quase-coliso com Irene Bledsoe?Nat e Armoth olharam na direo de Signa e o gil oriental sorriu.

    Escapou, mas por um triz. Rute Harris sofreu pequeno ferimento na testa, mas Sally foi vista claramentepor todos no carro, e ela os viu com igual clareza.Armoth se incumbiu de continuar. E agora Ceclia encontrou a assassina morta e est chamando a polcia.Tal precisou de um momento apenas para menear a cabea ante a imensido de tudo aquilo. S isso j notcia o suficiente. Capito Guilo expressou sua ansiedade com uma risada spera - nunca antes tivemos a esperana dever tantas coisas darem certo... quando elas podem dar to erradas!Tal olhou para os Cus e sorriu um sorriso cauteloso. Podemos esperar que todas dem certo enquanto os santos estiverem orando, e eles esto.Houve murmrios de aprovao por parte de todos. Eles podiam sentir isso.

    Assim continuou Tal se tudo der certo, desta vez ns avanamos, ns conquistamos, ns fazemos oinimigo retroceder...Ns conseguiremos pelo menos mais uma temporada de refreamento da ao deles. Mais uma temporada todos ecoaram. Sally deve chegar a Claytonville em segurana tendo Chimon e Scion como acompanhantes. O demnioTerga tem muito por qu responder agora; garanto que enviar alguns espritos atrs dela para acabar comela. Mesmo assim, Chimon e Scion tm ordens de no interferir a menos que seja absolutamente necessrio.

    Mais dor, capito?Mais destruio? explodiu Guilo com raiva. A gente acaba pensando que essesespritos desgraados nunca conseguem infligir sofrimento o suficiente!Tal olhou dentro daqueles olhos escuros, to cheios do fogo da batalha, e contudo to ternos para com oseleitos de Deus. Bom amigo, todos sofremos por ela. Mas o sofrimento dela trar a realizao dopropsito de Deus, e voc o ver. Que venha logo disse Guilo, agarrando com fora o cabo da espada. Ele olhou para Nat e incitou-osarcasticamente: Voc tem notcias mais alegres? Sim respondeu Nat. De Tom Harris. Ele est na delegacia de polcia agora, tentando ter os filhosde volta, argumentando com o Sargento Mulligan. meno do nome de Mulligan, Guilo soltou uma risada retumbante, malvola, e os outros fizeram cara derepugnncia. Nat apenas acenou afirmativamente com a cabea, resignado. Eles tinham razo. Portanto, agora chegou o momento de testar a confiana de Tom, a verdadeira prova da sua dedicao disse Tal. Eu estarei observando os santos - disse Guilo. -Verei como eles enfrentam essa situao.Tal tocou Guilo no ombro. Essa ser uma dessas coisas que esperamos dem certo.

    Oh, que possa dar certo, que possa dar certo. Pelo bem de Tom disse Nat. Pelo bem de todos acrescentou Armoth. O que nos traz a Ben Cole instigou Tal. Ele est prestes a entrar nessa histria agora mesmo respondeu Nat.

    O agente Ben Cole encostou o carro de radiopatrulha no estacionamento atrs da delegacia e permaneceu

    sentado ao volante por um momento depois que o motor parou. Tinha sido um longo dia, e ele estavacansado. Baskon no gerava tanta atividade pesada assim, mas hoje o dia tinha sido um pouquinho maisdifcil. O caminhoneiro que ele havia detido por excesso de velocidade dava dois dele e no gostou de ter dese haver com um policial to jovem, muito menos um que era preto; Bill Schultz ainda no havia prendido

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    aquele seu co, e agora outra pessoa tinha sido mordida; ele havia apanhado o garoto Krantz com maconhade novo, e os pais do rapazinho ainda no queriam acreditar.Era essa a dificuldade do trabalho policial - a gente sempre tinha de ver o lado mau das pessoas, quando elasestavam bravas, na defensiva, justificando a prpria conduta, bbadas, drogadas... Oh, deixe disso, Ben. Odia terminou. Existem algumas pessoas boas no mundo, de verdade. Voc simplesmente precisa ir paracasa, jantar, ver Bev. Sim, isso botar tudo em ordem.Ele saiu do carro; escreveria uns relatrios rpidos e iria para casa assim que... Ora, de quem so esses

    carros? Dois carros estranhos ocupavam as vagas reservadas do estacionamento, e no era aquela a pequenaperua de Tom Harris? A essa altura, a delegacia estava fechada; era tarde demais para visitas. Era melhoraveriguar quando estivesse Ia dentro.Ele entrou pela porta dos fundos e comeou a percorrer o longo corredor que ligava os escritrios dosfundos e o bloco de celas com a rea do escritrio da frente.Ih, credo, com quem o Mulligan est berrando agora?Ele podia ouvir a voz do sargento Mulligan l da outra ponta do corredor, trovejando atravs da porta abertado escritrio. Ento, est bem, no precisa me contar nada! Pode mentir! Gente como voc est semprementindo mesmo, e ficarei feliz em ouvir, porque assim poderei usar o que disser contra voc! Sargento, no estou mentindo...Ben deteve-se no corredor para ouvir. Aquela outra voz parecia conhecida.

    Ento, diga-me a verdade, est bem? pediu Mulligan. Voc tem feito uma verdadeira festa comaqueles garotinhos, no tem? Sargento, repito, no h nada de mais ocorrendo na escola, ou na minha casa, ou em parte alguma! Estacoisa toda um terrvel engano!, era mesmo o carro de Tom Harris l fora, e aqui estava Tom se sentindo por baixo na conversa com osargento.Ben teve de espiar. Essa conversa parecia cada vez pior. Senhor, por favor, no deixe que seja o que pareceser. Eu comeava a me sentir melhor pensando nas pessoas boas do mundo.Ele seguiu pelo corredor desguarnecido at a porta de Mulligan, e enfiou a cabea por ela. J voltei, Harold. Nada de mais, estou simplesmente avisando que cheguei, apenas tentando descobriro que est acontecendo.Ben permaneceu ali, rgido, olhando o homem abalado, nervoso, sentado frente da amassada escrivaninhade metal verde do grandalho que era o sargento Mulligan.Mulligan estava no auge de sua feira gorda, e realmente gostando daquilo. Ele sempre se divertia comtodas as coisas erradas. Ei, Cole, veja o que apanhei hoje! Outro cristo! Aposto que vocs dois seconhecem!Ben parecia confuso. Ei, Tom. O que h? Abuso de crianas!Mulligan estava orgulhoso do fato, orgulhoso do que apanhara. Tenho um caso de verdade cozinhandoaqui.

    Ento o senhor sabe muito mais a respeito do que eu! exclamou Tom. Com olhos avermelhados porlgrimas, ele ergueu o olhar para Ben. O sargento a simplesmente.... simplesmente postou-se alienquanto uma assistente social veio e levou Rute e Josias, simplesmente os arrastou de casa, e... a voz deTom elevou-se com medo e raiva. Quero saber onde eles esto.Mulligan, insensvel como uma pedra, deu uma risadinha desdenhosa para Ben. Espere at ouvir o que este nojento tem estado a fazer com algumas crianas da escola crist.Tom ergueu-se de sua cadeira. No estive fazendo nadai Ser que no consegue meter isso na cabea? Trate de sentar-se, amigo! Mulligan era muito maior do que Tom e fazia tudo o que podia paramostr-lo.O corao de Ben se contorceu no peito. A escola crist? Baskon s tinha uma a Academia do Bom

    Pastor, um pequeno ministrio com sries que iam da primeira sexta, tocado pela... Eu diria que sua igreja est em grandes apuros! - avisou Mulligan a Ben.Ben baixou o olhar a Tom Harris, um dos homens mais gentis, mais santos que ele j conhecera. Tom tinhauns trinta e tantos anos de idade, cabelos crespos e ondulados, e um rosto jovem. Ben sabia que o sujeito era

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    Ben sentia-se bastante abalado a respeito de outro assunto. O que fao com o John Ziegler l fora?Mulligan olhou para os jornalistas e comeou a praguejar, olhando de um lado e de outro. Harris, venhaaqui fora! Tom saiu do gabinete, tentando cooperar. Mulligan empurrou-o na direo da entrada. Sente-se l com aquela gente simptica... eles querem conversar com voc! Leonardo, usaremos o seucarro-patrulha.Tom olhou para Ben pedindo ajuda.

    Eles estiveram l em casa hoje quando aquela senhora levou as crianas. Tiraram fotos do que aconteceu!Ben sentiu sua irritao crescendo. Tom, voc no precisa lhes dizer nada. Simplesmente passe por eles e v para a casa!Mulligan deve ter visto algo de que no gostou. Cole, venha voc tambm!Leonardo estava pronto para rodar. Mulligan agarrou seu chapu e jaqueta. Os jornalistas, de p, dirigiam-sea Tom. O Tom pode ir embora? perguntou Ben. Mulligan revirou os olhos ante tal pergunta. Cole, ele veio aqui por conta prpria... pode ir embora da mesma forma. Est ouvindo, Harris? Tom, d o fora daqui aconselhou Ben, baixinho. Voc no precisa falar com ningum.Mulligan rosnou para ele:

    Est pronto agora, Cole? Vamos, depressa!Ben no gostava nada daquilo, mas ordens eram ordens. Ele se dirigiu novamente porta dos fundos. Fiquem vontade disse Mulligan inclinando o chapu para John Ziegler e para a mulher da cmara. Estaremos de volta dentro de mais ou menos uma hora, e terei uma declarao para vocs. Ligarei para voc disse Ben a Tom, e acompanhou Mulligan e Leonardo. No vou deixar voc ali dentro com aquele seu amigo cristo, de forma alguma resmungou Mulliganpor sobre o ombro enquanto eles se dirigiam aos carros: Se vai estar a servio, vai trabalhar e vai fazer oque eu lhe disser sem chiar. No precisamos de vocs dois fanticos trocando idias l dentro, no senhor!Tom voltou ao gabinete de Mulligan para apanhar o palet e em seguida saiu para o corredor.John Ziegler estava plantado bem sua frente, bloqueando o caminho. Com licena disse Tom, tentando passar por ele. John insistia em ter uma conversa. John Ziegler, do jornal Estrela do Condado de Hampton...

    Sim, eu o vi l na minha casa respondeu Tom secamente. Sr. Harris, qual a sua resposta a essas alegaes? perguntou Ziegler. Que alegaes? Nem sei porque isto est acontecendo comigo! O senhor acha que isso prejudicar a escola crist? No sei. O senhor nega quaisquer abusos s crianas na escola crist?Esta pergunta mexeu com Tom ao ponto de faz-lo estacar abruptamente. E Ziegler havia percebido. O senhor nega as alegaes? No sei de nenhuma alegao respondeu Tom, mal encontrando a voz. Ziegler anotou apressado.

    Houve alguma reao por parte da sua famlia? Alm do fato de meus filhos ficarem apavorados? A mulher ps-se a bater fotos dele. Ei, o que isso, ora...A cmara continuou estalando. Ziegler ergueu uma sobrancelha. Pelo que sei, o senhor vivo. Mora em casa sozinho com os filhos? Chega! Tom indignou-se. Estou indo. Boa noite.Ziegler atirou perguntas s costas de Tom enquanto o seguia de perto na direo da porta da frente. O estado est considerando seus filhos tambm como possveis vtimas?Tom abriu a porta com um safano e olhou-os furioso por um momento. A cmara registrou sua expressode raiva. Ziegler estava satisfeito. Muito obrigado, Sr. Harris.

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    Logo do outro lado da rua, Desespero estava sentado no teto da Biblioteca e Loja de Presentes de Baskon,um lastimvel monturo de sujeira melanclica, choramingando por causa dos ferimentos e observando osdois carros de patrulha sarem na disparada. Oh, l vo eles, l vo eles. E agora?Diversos outros espritos escuros faziam-lhe companhia, escondidos, resmungando, chiando, babando deagitao. Constituam um bando heterogneo de tentadores, perturbadores e enganadores, subitamentereduzidos metade da fora, metade do seu nmero, e cheios de angstia pela derrota, recente e terrvel, de

    seus camaradas.Desespero fazia jus ao seu nome. Perdido, perdido, perdido, est tudo perdido! Os melhores de ns seforam, todos conquistados, menos eu!Um forte tapa jogou-lhe a cabea redonda contra o ombro. Pare com essa choramingao! Voc me deixa doente! Terga, meu prncipe, o senhor no estava l!Terga, o prncipe de Baskon, mais parecia um sapo limboso com uma medonha peruca de arame preto e doisolhos amarelos, que rolavam de c para l. Ele, indignado, coava a cabea retorcida por pura coceira defrustrao. Fracasso, isso o que aconteceu. Uma demonstrao abominvel de incapacidade!Homicdio foi pronto em objetar.

    Se a misso tivesse sido bem sucedida, sem dvida o senhor teria sido o primeiro a elogi-la. Ela no foi, e eu no o fao!Engano tentou avaliar objetivamente o desastre. Nossas foras eram poderosas, e estou certo de quelutaram com valentia, mas... as oraes dos santos so mais fortes. O Exercito Celestial mais forte. Elesesperavam por nossos guerreiros e estavam prontos. Subestimamos seriamente o seu nmero e poderio.Apenas isso.Terga voltou-se bruscamente e fixou um olhar enraivecido em Engano, detestando-lhe as palavras, massabendo que o astuto demnio tinha razo.Ele caminhou de um lado para o outro, moveu-se irrequieto, esforou-se por compreender o que ocorria. Atacamos Tom Harris e a escola! O Plano do Homem Forte desenrola-se neste exato momento. Cumpre-se agorinha mesmo! Mas aqui esto vocs, lamentando uma derrota fragorosa e dizendo-me que o Planopode estar marchando precipitadamente rumo destruio, e tudo por causa dessa... dessa... mulher?Engano pensou a respeito da pergunta, e ento confirmou com a cabea. Essa seria uma avaliao justa.Terga rolou os olhos na direo do cu e soltou um berro de medo e frustrao. Destruidor tirar o nosso couro por causa disto! Os que no caram nesta derrota certamente cairodebaixo da espada dele!Ele contou os demnios sua volta e concluiu com um nmero menor do que desejava. Onde est dio? Foi-se responderam todos. Um dos primeiros a cair. E Violncia? Acorrentado no Abismo, imagino sugeriu Engano.

    Cobia? Luxria? Estupro?Apenas recebeu olhares desanimados. Ele correu os olhos sobre a cidade, e sua cabea apenas contorceu-sede um lado para outro. No conseguia admitir o acontecido. Uma tarefa to fcil... um simples assassinatozinho... Todos ns j fizemos isso antes... Quando o Homem Forte descobrir... gemeu Desespero. VAPT! Terga jogou a cabea de Desesperocontra o outro ombro. Ele precisa saber! salientou Adivinhao. Ento diga-lhe! respondeu Terga. V voc dizer-lhe! Adivinhao silenciou-se, esperando quealgum outro demnio falasse.Terga fechou a mo cheia do couro empapuado de Desespero c segurou-o como um trofu. O nosso mensageiro!

    Eles se puseram a dar vivas, as garras batendo seu aplauso. No... no o Homem Forte! choramingou Desespero. J no basta uma sova? V agora ordenou Terga ou a sova do Homem Forte ser a terceira que levar hoje!Desespero adejou loucamente no ar. Uma asa ainda estava contundida e torta.

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    V! continuou Terga. E no demore!Desespero saiu s pressas, choramingando e berrando ao ir. E quando tiver dado conta do recado - gritou Terga - volte para junto da mulher c continue a cumpriraquilo que a sua obrigao!Algumas risadinhas fizeram com que Terga rodopiasse. Alguns espritos pequenos se encolheram, erguendoos olhos para ele haviam sido apanhados. Ah esbravejou Terga, e eles podiam ver o limbo no cu da sua boca. Medo, Morte c Loucura, trs

    dos bichinhos de estimao favoritos da mulher! Vocs parecem estar bem desocupados no momento.Os trs demnios se entreolharam estupidamente. De volta a seus postos! Sigam a mulher!Eles adejaram no ar como pombas assustadas, arranhando para ganhar altura.Terga no estava satisfeito. Depois de esbofetear diversos outros demnios, ele berrou: Vocs tambm! Todos vocs! Encontrem-na! Torturem-na! Aterrorizem-na! Querem que Destruidorpense que so os pelotes insignificantes que so? Corrijam a asneira que fizeram! Destruam a mulher!O ar encheu-se de asas estrondejantes, esvoaantes. Terga cobriu a cabea, protegendo-a de alguma ponta deasa desgovernada. Eles desapareceram em segundos. Terga olhou para a rua, para a estrada que levaria oscarros-patrulha ao stio dos Potters. O nosso sargento no vai encontrar o que esperava resmungou ele.

    J escurecia quando os dois carros-patrulha desceram rugindo pela entrada de pedriscos da casa dos Potters.O carro de socorro j se encontrava l, as portas escancaradas, as luzes piscando. Fred e Ceclia estavamfora na larga varanda da frente esperando a polcia, um agarrado ao outro. Eram pessoas fortes, vigorosas,mas essa noite se sentiam obviamente abaladas.Mulligan travou as rodas e deslizou numa impressionante brecada, derrapando de leve para o lado nospedriscos soltos, e ento saltou do carro a tempo de emergir como um deus da nuvem de poeira que havialevantado. Leonardo esperou que a poeira assentasse antes de sair no queria p por todo o banco quandovoltasse ao carro.Ben encostou cuidadosamente atrs do primeiro carro e saiu de maneira calma, eficiente. Agia com extremacautela, ciente de que suas emoes estavam flor da pele.Mulligan j falava com um dos paramdicos, obtendo os fatos. O paramdico havia acabado de chegar deuma casinha rural do outro lado do campo. Ben podia ver duas ou mais lanternas varrendo a escurido l.Fora isso, no havia outras luzes. Falecida disse o paramdico. Morta h pelo menos uma hora. Est bem disse Mulligan, acendendo com um estalido sua grande lanterna prateada vamos l.Ele dirigiu-se ao campo, cortando a grama alta com longas e poderosas passadas, o cassetete balanando no

    quadril, a barriga pulando acima da cinta. Leonardo e Ben o seguiram de perto. Deve ser aquela mulher Roe disse Mulligan. Sally Roe. Voc sabe alguma coisa a respeito dela?Leonardo deduziu que a pergunta lhe fora dirigida. Muito pouco, Haroldo. Acho que um desses tipos esquisitos, uma espcie de sobra dos hippies, uma derrotada. Acho queresolveu acabar com tudo.Ben dava tratos bola enquanto eles continuavam rumo casa escura. Sally Roe. O nome no lhe dizianada. Muito bem disse Mulligan. Ali est o cercado das cabras. Espalhem-se um pouco, gente. Nada dese esconder atrs de mim.Eles saram do campo, cruzaram uma estradinha abandonada, coberta de mato, e chegaram ao cercado dascabras. A cerca era rstica e velha, feita de arame enferrujado pregado a moures de dormentes partidos,

    com um porto rangedor pendurado torto por uma dobradia boa e uma que estava solta. O porto ainda seencontrava aberto; todas as cabras estavam fechadas agora no stio dos Potters. Dois tcnicos de emergnciamdica estavam em p do lado de fora do cercado, guardando seu equipamento. Ela toda sua disse um deles.

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    Ben correu os olhos volta do cercado, iluminando aqui e ali com a sua luz, apenas verificando se haviaalgo incomum, no querendo mexer em nada. Seu olho percebeu um balde de rao das cabras cado pertoda porta do barraco dos animais. Ei, verifique aquilo - disse ele, apontando com a sua luz. Mulligan ignorou-o e investiu atravs docercado, entrando no barraco velho, coberto de zinco, deixando uma grande pegada de estreo no meio darao derramada. Ento, ele estacou. Havia encontrado alguma coisa. Leonardo e Ben chegaram por trsdele e olharam para dentro pelo vo da porta.

    L estava ela. A morta. Ben no conseguia ver-lhe o rosto; Mulligan estava na frente. Mas ela estava todavestida de preto, e deitada de costas na palha, o corpo e membros retorcidos e flcidos como se algum ativesse embolado e atirado ali.Ben correu sua luz pela parte de dentro do barraco. O facho luminoso recaiu sobre uma blusa xadrez ao ladodo corpo. Aparentemente, Mulligan no a tinha visto. Ele estendeu a mo e apanhou-a. Estava manchada desangue. Ei, Haroldo, veja isto.Mulligan rodopiou como que rudemente surpreendido. Cole! Volte aos Potters e obtenha uma declaraodeles! Sim, senhor, mas d uma olhada nisto.Mulligan no a pegou ele a agarrou. Ande, v at l. Podemos cuidar das coisas por aqui.

    Leonardo dirigia a sua luz ao rosto da mulher e Ben conseguiu v-lo de relance pela primeira vez. Ela erajovem e bela, mas morta - violentamente morta. A expresso do rosto era vazia, os olhos secos e fixos, oscabelos negros que chegavam altura dos ombros como uma sombra emaranhada sobre a palha.Ben no sabia que olhava fixamente at que Mulligan berrou com ele. Cole! Viu o suficiente? V andando!Ben saiu de l e apressou-se a voltar pelo campo casa dos Potters. Sua mente estava disparada. Ia ser umcaso maior do que havia esperado. A aparncia daquele corpo, a blusa ensangentada, a rao derramada, aviolncia bvia...No era nenhum suicdio.O pessoal de socorro foi embora no seu veculo, seu trabalho terminara. Ben revestiu-se de uma aparnciacalma enquanto subia os degraus da varanda. Os Potters ouviram-no chegando e imediatamente vieram porta. Al. Sou o Agente Ben Cole.Ben estendeu a mo e Fred a tomou.Fred encarou Ben um pouquinho s. No nos vimos antes? No, senhor. Faz pouco tempo que cheguei a Baskon. Estou aqui h mais ou menos quatro meses. Oh... bem, seja bem-vindo vizinhana. As coisas geralmente no so assim to emocionantes por aqui. Claro, senhor. Uh, com a sua permisso, gostaria de obter uma declarao.Ceclia abriu a porta. Por favor, entre... Ben, no ? Sim, senhora. Obrigado.Fred e Ceclia tomaram seus lugares no sof e ofereceram a Ben uma cadeira que ficava de frente para eles.

    Ele tirou seu bloco de anotaes. Como esto passando? perguntou o policial. Oh... mais ou menos respondeu Fred.Ceclia apenas meneou a cabea. Pobre Sally. Lgrimas retornaram aos seus olhos. Isso simplesmente horrvel. apavorante.Ben falou gentilmente. Eu... pelo que sei foi a senhora quem a viu primeiro?Ela acenou que sim com a cabea. A senhora a tocou ou mexeu com ela de alguma forma? Ceclia sentiu-se repelida pela simples idia. No. No cheguei nem perto dela. Nem mesmo olhei o seu rosto. Cerca de que horas eram? Mais ou menos 6.

    Ben rabiscou esses itens no papel. Bem, por que simplesmente no me conta tudo o que aconteceu?Ela ps-se a contar-lhe a respeito das cabras terem escapado, e sobre a me-cabra ter tentado atac-la, edepois procurou lembrar-se do que tinha feito para conseguir levar aquela cabra de volta ao cercado, e entouma forte opinio assumiu precedncia sobre a narrativa e ela no se conteve:

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    Acho que algum a matou!Fred ficou chocado com isso, naturalmente. O qu? O que lhe d essa idia?Ben tinha de controlar a situao. Uh... trataremos disso quando chegar a hora. Mas agora a senhoraprecisa me contar o que viu... apenas o que viu.Ela lhe disse, e no era muito diferente do que ele mesmo havia visto. Eu no queria v-la daquela forma. Simplesmente no fiquei por l. Tudo bem. A senhora pode dizer-me o nome completo da vtima?

    Sally Roe. Ela era um tipo muito quieto disse Ceclia, o rosto cheio de sofrimento e perplexidade. Ela nunca falava muito, mantinha-se afastada. Gostvamos de t-la como inquilina. Era limpa, responsvel,nunca tivemos nenhum problema com ela. Por que haveria algum de querer machuc-la? Ento a senhora no consegue pensar em ningum que pudesse... ter algum tipo de queixa ou rancorcontra ela? No. Ela era um tipo muito reservado. No me lembro de jamais t-la visto recebendo algum ou comvisitas.A senhora pode pensar em alguma outra coisa que possa ter parecido fora do normal? Voc viu a rao derramada no cho? Sim, senhora. Algum pode ter pulado e agarrado a Sally.

    Uh-huh. Alguma outra coisa? Vi um longo pedao de corda na mo dela. Talvez fosse para amarrar as cabras, no sei.Ben anotou aquilo.Ouviram-se fortes pisadas na varanda. Era o sargento Mulligan. Ele abriu a porta e entrou, e tirou o chapu. Bem, pessoal, foi uma noite e tanto. Vimos uma verdadeira tragdia aqui. Conseguiu uma declaraodeles, Cole?Ben ergueu-se e correu os olhos pelas anotaes. Apenas o que a Sra. Potter viu inicialmente. Suponho...Mulligan tomou as notas da mo de Ben e correu os olhos por elas.Ben terminou seu pensamento. Suponho que assim que examinarmos a casa e dermos uma busca na reateremos mais com o que trabalhar.Mulligan no pareceu ouvi-lo. Umm. Est bem, farei com que elas sejam includas quando o relatrio fordatilografado. Ele enfiou as notas de Ben no bolso e disse aos Potters: Acho que ela se enforcou noscaibros do barraco, sabe l porqu. Enforcou-se? disse Ceclia, surpresa. H algum bilhete de suicdio? A senhora encontrou qualquer coisa parecida por a?Ceclia ainda estava confusa. No... no, eu... Bem, a gente estar examinando toda a rea esta noite e talvez descubra alguma coisa. Ele se dirigiu porta de novo. Cole, pode ir e dar o dia por encerrado. Eu e o Leonardo examinaremos a rea e espera-remos pelo mdico legista. Est dizendo que foi suicdio? perguntou Ben, seguindo-o porta afora. Nada mais, nada menos respondeu Mulligan.

    Bem... talvez. O que voc quer dizer com "talvez"? retrucou Mulligan impaciente com esse tipo de resposta. Bem, o senhor viu como que estavam as coisas l dentro... , eu vi tudo, e voc no. Mas a Sra. Potter viu. O corpo no estava dependurado quando ela o encontrou, mas cado na palha domesmo jeito em que o vimos quando chegamos l. V para a casa, Cole sugeriu Mulligan voltando-se para a casa alugada. No se preocupe comcoisas que no so de sua responsabilidade.Mulligan dirigiu-se ao outro lado do campo, dando por encerrada a conversa. Ben voltou ao seu carro esentou-se dentro com a porta aberta, virando as folhas de seu bloco de anotaes. Ele fez sair a ponta dacaneta e ps-se a rabiscar algumas notas para si mesmo, coisas de que desejava lembrar-se: "blusa xadrez

    com sangue... posio do corpo sugere violncia... rao derramada... corda na mo, no em volta dopescoo... vtima no dependurada..."

    ***

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    Logo antes de chegar a Claytonville, Sally saiu da rodovia para uma estrada obscura, cheia de mato esulcada por marcas de rodas que serpenteavam profundamente na floresta, curvando em torno de rvores etocos, passando sob galhos baixos, afundando dentro de negros buracos de barro, e fazendo a velhacaminhonete corcovear e balanar a cada novo buraco, sulco, ressalto e curva. Essa estrada ou talvezfosse uma trilha provavelmente fora usada por agrimensores e construtores, mas agora era utilizadaapenas pela molecada em bicicletas sujas e talvez por um ou outro cavaleiro. Talvez nalgum canto ali dentroela pudesse encontrar um bom lugar para abandonar a caminhonete.

    Enfim encontrou ela o que parecia ser um retorno ou um beco sem sada, uma curta seo de uma rea quej fora limpa e que os ciclistas das bicicletas sujas ainda no haviam descoberto, e que depressa estavasendo retomada pela espessa galharia. Ela virou o volante com fora e deixou que a caminhonetecontinuasse em frente, fendendo a vegetao e achatando os matinhos que se erguiam frente dos farisdianteiros.J chegava. Desligou as luzes e o motor.E ento ficou sentada ali, os cotovelos no volante e a cabea nas mos. Precisava manter-se imvel porapenas um minuto. Tinha de pensar, de avaliar a situao, de separar pensamento de sentimento. No semoveu por um minuto, e depois outro, e depois outro. O nico som era o de sua prpria respirao elaestava consciente de cada movimento respiratrio e o tique, tique, tique cada vez mais vagaroso do motoresfriando. Percebeu o quanto tudo permanecia imvel nesse mato, e como estava escuro, e especialmente

    quanto o lugar era solitrio. Estava sozinha na escurido, e ningum sabia.Muito potico, pensou. Muito apropriado.Mas quanto ao negcio mo: Como vai ser, Sally? Voc continua em frente ou desiste? Pode semprecham-los, ou mandar-lhes uma carta, e simplesmente contar-lhes onde est afim de que possam vireterminar o servicinho. Pelo menos ento estar tudo terminado e voc no ter de esperar tanto tempo paramorrer.Puxou um flego longo, cansado, e ergueu a cabea do volante recostando-se para trs. Que pensamentos,Sally, que pensamentos!No, finalmente admitiu ela a si mesma, no eu quero viver. No sei porqu, mas quero. No sei porquanto tempo mais, mas viverei. E tudo o que sei por enquanto.Isso tudo o que sei. Mas gostaria de saber mais. Gostaria de saber como foi que me encontraram... eporque querem me matar.Acendeu a luz do teto seria apenas por um segundo e enfiou a mo no bolso da jaqueta procura deum objeto pequeno. Era um anel, enfeitado, provavelmente ouro puro. Ela olhou-o de perto e com cuidado,virando-o para todos os lados em seus dedos, tentando entender o estranho desenho na parte de cima. Nofazia nenhum sentido para ela, por mais que tentasse compreender o que poderia significar. No momento,sabia apenas uma coisa ao certo a respeito desse anel j o havia visto antes, e as lembranas eram aspiores que tinha.Desligou a luz do teto. J ficara sentada o suficiente. Colocou o anel de volta no bolso, tirou as chaves daignio e abriu a porta. Nessa quietude profunda que a cercava, as dobradias secas, sujas, pareciam gritarem vez de gemer. O som assustou-a.

    A luz do teto acendeu-se de novo, mas a seguir piscou e se apagou quando ela fechou a porta tosilenciosamente quanto possvel, o que ainda assim chegava a ser uma batida bem alta. Agora a nica luz nomeio daquela floresta densa, abandonada, se fora. Ela mal podia ver, mas estava determinada a sair daquelemato mesmo que tivesse de ir apalpando para achar o caminho. Tinha de mexer-se, chegar a algum lugarseguro. Ela continuou em frente, lutando contra a galharia que lhe agarrava as pernas, arranhava-a comespinhos, espetava-a do escuro. Em algum lugar adiante encontrava-se o antigo caminho onde o cho aindaestava limpo e passvel. Precisava apenas encontr-lo.Debaixo de um tronco cado, bem no fundo de um bolso escuro e podre, dois olhos amarelos aobservavam, duas mos guarnecidas de garras crispadas de dio. A coisa deixou escapar uma risadinha deescrnio quando ela passou cambaleando.No galho baixo e saliente de uma rvore, outro esprito se agachava como uma coruja grotesca, as asas

    negras cadas dos lados como longas cortinas pendentes, sua cabea no mais do que uma maaneta acimados ombros. Os olhos amarelos acompanhavam cada movimento da mulher.Eles estavam ali para satisfazer os desejos de Terga; esperavam aplacar Destruidor.

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    Ela conseguiu chegar ao velho caminho; podia sentir cho firme e limpo debaixo dos ps, e distinguir umtantinho mais de luz adiante de si. Apertou o passo. Comeava de novo a se sentir como uma garotinha, commedo do escuro, com medo de horrores invisveis, andando por alguma luz que espantasse todos osfantasmas.Dois vultos negros pairando logo acima do caminho esperavam que ela passasse debaixo deles. Elesvagueavam em pequenas idas e vindas, flutuando em espectrais asas desfraldadas, os braos e pernas finos ecompridos pendendo como pernas de aranha, cada membro arrematado por longas garras afiadas que se

    fechavam e crispavam em antecipao.Sally estacou. A estrada fazia uma curva aqui? Vamos, garota, no se perca. Era s o que faltava.Trs outros espritos, dos piores de Terga, velejaram adentro e atravs das rvores, como trs urubusreunindo-se para um banquete. Eles vieram por trs dela, babando e cacarejando, empurrando uns aos outrospara chegar mais perto.Sally pensou ter visto o caminho de novo, seguindo sua esquerda.Tentou aquela direo. Sim, ela o havia encontrado. Mas suas pernas se enfraqueciam. O corao lhe batiacontra as costelas como se quisesse sair. So, por favor, no de novo, no mais...Mas era medo mesmo, daquele tipo antigo o tipo de medo com o qual vivera por anos. Justo quandopensou haver-se livrado dele, escapado, esquecido, aqui estava, de volta, com a mesma ferocidade desempre, afundando-se nela, confundindo-lhe os pensamentos, fazendo-a tremer, suar, cambalear.

    Seus velhos amigos estavam de volta.Ela passou debaixo dos dois demnios flutuantes. IAAAC! berraram eles, envolvendo-a em enxofre.Os espritos seguindo atrs estapearam-lhe a alma com suas asas negras.UPA! A moa caiu de rijo para a frente, atingindo o cho, um grito abafado na garganta. Ela lutou para fazercom que as pernas a sustentassem de novo, para continuar andando. Onde estava aquela estrada?Os espritos pousaram-lhe nas costas e enterraram as garras profundamente.Ela tapou fortemente a boca com as mos, tentando manter dentro de si um grito, tentando manter-se quieta.No conseguia equilibrar-se. Havia algo perseguindo-a. Tinha de escapar. Ainda tentava erguer-se.Os demnios deram-lhe uma espetadela e um pontap, cacarejando e gritando de prazer, e ento a soltaram.Ela estava em p novamente. Conseguindo ver o caminho, correu, os braos frente do rosto a fim debloquear os galhos da floresta que a feriam e agarravam. Comeava a ouvir alguns veculos na rodovia.Quanto ainda faltava?Os espritos sombrios adejavam e se agitavam atrs dela, tagarelando e cuspindo. Era um jogo maravilhoso,cruel.Mas havia guerreiros observando. Afundados na textura da floresta, aqui e ali no meio das rvores, dostroncos, da galharia espessa, havia profundos olhos dourados observando tudo, e braos fortes sobre espadasprontas.

    ***

    A Igreja Comunitria do Bom Pastor tinha uma corrente de oraes, um sistema simples de espalhar pedidosde orao por toda a igreja via telefone. Cada participante tinha uma lista de todos os demais participantes eos nmeros de seus telefones. Quando algum precisava de orao por algum motivo, ligava para a prximapessoa na lista depois do seu nome, que por sua vez ligava para a prxima pessoa na lista, que entochamava a prxima, e assim por diante. A igreja toda podia estar orando por um pedido em questo de horasa qualquer dia da semana.O pedido de orao de Tom fez as linhas zunirem com a novidade acerca de Rute e Josias, c a cadatelefonema, mais santos punham-se a orar. No topo da lista encontrava-se Donna Hemphile, umasupervisora na Fbrica de Portas Bergen; a seguir, na lista, vinha a famlia Waring, depois os Jessups,seguidos por Lester Sutter e a esposa Dolly, depois os Farmers, depois os Ryans, depois a viva AliceBuckmeier, depois os presbteros no conselho da igreja Jack Parmenter e seu filho Doug, Bob Heely e

    Vic Savan. E se continuava pela lista at que todos os nmeros tivessem sido chamados.Aquilo deu inicio a um alvoroo de preces, naturalmente, mas tambm a um alvoroo de telefonemas a Tompara saber mais notcias. Para grande tristeza sua, Tom nada mais tinha a lhes contar; e, para sua frustrao,muitas das informaes passadas atravs da corrente estavam erradas..

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    Ele tentou telefonar ao Departamento de Proteo Criana, mas estava fechado.Tentou encontrar o nmero do telefone da casa de Irene Bledsoe; no constava da lista telefnica.Tentou o gabinete do Investigador Estadual. A mulher l lhe disse que chamasse o DPC ou que tentasse oDepartamento de Servios Sociais e Sanitrios.Ligou para o DSSS e eles lhe disseram para entrar em contato com o DPC pela manh. Eles no tinhamnenhum nmero para contato com Irene Bledsoe, mas tambm no estavam autorizados a fornecer osnmeros nem que tivessem.

    O pastor Mark Howard e Cathy, sua esposa, no estavam na cidade, mas estariam de volta a qualquer horano dia seguinte.Ben Cole cumpriu o que prometera e ligou, mas a essa altura nada havia que ele pudesse fazer at a manhseguinte.Aps uma ltima ligao a um deputado estadual que no atendeu, Tom deixou o telefone cair no gancho eocultou o rosto nas mos. Ele tinha de parar, respirar, acalmar-se. No podia ser to horrvel quanto parecia.Em algum lugar, em algum momento, ele tinha de encontrar Rute e Josias. Simplesmente no podia ser todifcil.O silncio, o vazio de sua casinha era estranho, quase insultante. Nesse exato momento, ele deveria estaracomodando Rute e Josias para dormir. Mas ele estava sozinho, e muito cansado. Senhor Deus orou ele Senhor Deus, por favor, proteja os meus filhos. Traga-os de volta para mim.

    Por favor, faa terminar este pesadelo!

    ***

    Manh de quarta-feira.A Escola de Primeiro Grau de Baskon fedia a demnios. Enquanto Nat e Armoth voavam bem alto acimadela, podiam senti-los, perceb-los, muitas vezes v-los, zumbindo e rodopiando para dentro e para foradaquela novssima estrutura de tijolos e concreto de que a comunidade tanto se orgulhava. O ptio dorecreio fervilhava de crianas, cerca de duzentas, correndo, brincando, e gritando antes que o primeiro sinalindicasse o incio das aulas. Ento elas se reuniriam em todas aquelas classes onde os espritos estariamocupados, mais do que nunca.

    Os dois guerreiros passaram sobre a escola, continuaram em frente por mais de um quilmetro, entoinclinaram-se bruscamente e deslizaram de lado rumo terra, caindo como pedras, rolando devagar atficarem de frente para a direo de onde tinham vindo. A seguir, diminuindo a velocidade, voaram rente aoscampos de feno e milho novo, atravs de estradas secundrias cobertas de pedregulhos, bem pelo meio deuns esguichos, chegando por fim ao velho galinheiro de um stio prximo escola.Suas asas se abriram como pra-quedas, e eles passaram pelas velhas paredes de ripas do galinheiro com osps frente do corpo. Ali dentro, um coro cacarejante de oitocentas galinhas brancas continuou soando,bicando a rao, soltando ovos, alheio sua presena.Eles se apressaram na direo de uma das pontas da longa construo, movendo-se atravs de penas brancasflutuantes, fina poeira marrom, e galinhas, galinhas por toda a parte.Tal encontrava-se postado a uma janela, olhando rumo escola.Armoth gracejou: A gente poderia questionar porque o senhor escolheu este lugar. Por causa da vista disse Tal. Em seguida, ele olhou na direo da escola novamente. Eles estolevando a efeito um projeto e tanto l, bem estabelecido. Os santos esto alvoroados com a notcia dos filhos de Tom. Esto orando disse Nat. E o Senhor est respondendo, por isso estamos bem cobertos por enquanto. Mas o verdadeiro ataqueainda est por chegar hoje de manh. Coloque uma guarda volta de Tom. J vai ser bastante duro para ele;no quero saber de maiores amolaes contra ele enquanto estiver mal. Certo. Onde est Sally agora? Ela conseguiu chegar a Claytonville, e arrumou um quarto de hotel. Chimon e Scion a esto vigiando,

    mas os espritos de Terga a esto atormentando na esperana de reaver a aprovao de Destruidor.Tal encolerizou-se ao ouvi-lo. Que espritos?Armoth tinha uma lista mental:

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    Medo, Morte, Loucura. Eles, e alguns outros a atormentaram na noite passada, e a seguiram hojetambm, tentando abater seu estado de nimo. E o que me diz de Desespero? Terga o enviou para informar o Homem Forte. Como corajoso! exclamou Tal, achando graa. Ele olhou na direo da escola novamente. Queroque Signa e Mota abram caminho naquela escola, criem certa proteo, algumas distraes. Precisamosentrar e sair de l sem que toda a rede demonaca descubra. Quanto a Cree e Si, eles tero de fazer a mesma

    coisa em mega, o que significa que precisaro do dobro de guerreiros apenas para fazer Sally entrar e sairde l viva.Armoth puxou um flego longo, profundo. Um negcio arriscado, capito. E ficando cada vez mais arriscado a cada passo que damos. E o quarto no Hotel Schrader em Fairwood? Temos guerreiros l agora, mantendo-o aberto relatou Nathan. E o antigo esconderijo do anel aindaest intacto.Tal tirou um momento para pensar. Ento essas frentes esto cobertas. Agora tudo o que podemos fazer tocar o jogo para diante, uma

    jogada cuidadosa de cada vez. Ento ele sorriu divertido suponho que o Homem Forte deva estarsendo informado por Desespero a qualquer momento agora.

    E quem est aquartelado l? Guilo.Nat e Armoth assentiram com a cabea. Isso no era surpresa.

    Guilo muitas vezes havia observado como a mais horrvel, mais negra maldade parecia escolher os lugaresmais belos para construir um ninho, e era o que acontecia novamente. As montanhas sua volta eramaltaneiras, escarpadas, os picos coroados de neve, pitorescas. O ar matutino era lmpido, a visibilidadeilimitada, o vento constante e suave, o cu azul profundo. Altos exrcitos de pinheiros postavam-se emposio de sentido a cada encosta, e ribeiros cristalinos vertiam, espadanavam e cascateavam do brancopuro das geleiras. Abaixo dele, a cidadezinha de Summit aninhava-se pacificamente no vale verde, cheio deflores silvestres, cercada por um silncio tranqilo, perceptvel.Ele assobiou quando pensou: todas aquelas pessoazinhas l em baixo, cercadas por toda essa beleza, nopodiam ver o horror que as cercava por todos os lados, a tempestade iminente que estava por engolf-las, astrevas cancerosas que primeiro cegam, depois consomem.Ele e cerca de uma dzia de guerreiros evitavam ser vistos, mantendo-se rente aos pinheiros, sem mostrarnem um pouco da luz da glria. Ele no desejava ser detectado pelos poderes malficos que apenas osespritos podem ver uma nuvem de demnios que enxameava e rodopiava como um tufo to negro

    quanto fumaa na encosta da montanha, a menos de dois quilmetros da cidade. Abaixo do tufo que oguardava, quase Invisvel no meio das rvores, havia gracioso vilarejo alpino, um campus pitoresco deprdios adornados, passagens imaculadas, trilhas fascinantes, belssimos jardins. O lugar todo gritavaconvite, exalando agradvel e envolvente senso de paz, beleza e fraternidade.Era a casa do Homem Forte, seu posto avanado, o eixo de um mal que se alastrava cada vez mais. Osespritos fuliginosos eram audaciosos e turbulentos, deleitando-se com uma lista cada vez mais longa devitrias sobre almas humanas.Guilo se deteve imvel, observando-lhes os movimentos, avaliando lhes a fora, calculando-lhes o nmero.Sim, era bom v-los to atrevidos; era sempre mais fcil apanhar desprevenidos os demnios nesse estadode esprito. Mas eles no estariam to atrevidos assim por muito tempo ele e seus guerreiros tinham vistoa recente chegada de um demoniozinho choraminguento, um pequenino mensageiro de insignificante

    cidadezinha rural, e a notcia que o esprito trazia com certeza mudaria as coisas por todo aquelesupostamente encantador vilarejo. Um ataque teria sido suficientemente difcil antes. Agora ia ser nadamenos do que um verdadeiro pesadelo.

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    Um grito! Um berro agudo, um tremor perpassou o tufo. As fileiras de demnios comearam a comprimir-se, encolhendo-se cada vez mais, fechando-se, cada vez mais escuras, mais espessas. Oh... exclamou Guilo. Parece que o Homem Forte recebeu a notcia.

    ***

    RUUUUUGIIIIDOOOOOO!!

    O disforme bulbozinho que era o corpo de Desespero espichou-se, retorceu-se e abaulou-se de um jeito e deoutro, como uma grande bolha negra acabada de sair do canudo, enquanto ele explodia pelo chal e emseguida caa ao cho, choramingando alto, seu corpo negro frouxo e chato como um soluante e trmulotapete de pele de urso. Em toda a sua volta, os demnios prncipes e generais estavam em uma confusoexplosiva, babosa, sulfurosa, berrando e soltando maldies e vapor amarelo to denso quanto fumaa decharuto. O chal se enchia de uma neblina pesada, ptrida que quase obscurecia seus vultos espectrais.Eles tambm no apreciaram a notcia de Desespero.Na ponta da sala de estar, o Homem Forte fitava furioso o demoniozinho desprezvel, seus enormes eamarelos olhos de gato quase explodindo da cabea, as narinas alargadas, o enxofre exalando delas emnuvens revoltas.O imenso e volumoso esprito tentava decidir se se sentia melhor agora, ou se precisava de novo atirar

    Desespero ao outro lado do chal.Os prncipes e generais quase um cento deles comeavam a voltar-se uns contra os outros, abanandoos braos, atirando suas asas negras nas caras uns dos outros, gritando e chiando; alguns exigiamexplicaes, alguns comeavam a passar adiante a culpa, alguns queriam saber o que fariam a seguir, ealguns simplesmente se deixavam ficar ali, praguejando.O Homem Forte encheu a sua ponta do cmodo com as asas e estendeu os braos abertos. Silncio! Fez-se silncio.Ele deu uma enorme passada rumo ao centro da sala, e todos os demnios recuaram um passo, curvando-se,fechando as asas. Ele deu mais alguns passos, e a sala ecoou com o som deles.Ento ele se dirigiu ao pequenino tapete no cho: Voc tem mais alguma coisa para me contar?

    No, meu Ba-al. Alguma outra perda? No, meu Ba-al. Nenhuma outra asneira? No, meu Ba-al.O demnio senhor considerou o que ouvira por apenas um momento. Em seguida a ordem explodiu de suaboca escancarada como se de um canho: Ento d o fora daqui!A fora do hlito do Homem Forte foi mais do que suficiente para fazer Desespero por-se a caminho. Eleestava fora do chal e no cu mesmo antes de abrir as asas.O Homem Forte caminhou de volta sua ponta da sala e afundou em seu trono o buraco da lareira com uma profunda carranca. As fileiras demonacas que o ladeavam aprumaram-se, mantendo-se empinadase altas contra as paredes. A ordem voltou sala cheia de trevas, sombras, fumaa amarela e um mau cheirode morte. Ela est viva cismou amargamente. Estvamos livres dela, achamos que de vez, e ento ela surgiunovamente. Tentamos mat-la, mas agora ela ainda est viva e... debaixo da proteo deles.Os prncipes se postavam como esttuas, esperando silenciosamente sua prxima palavra. RRROOOOOOUUUULLLLLL!As fileiras demonacas tiveram de se aprumar em filas novamente. O Vidoeiro Quebrado... continuou ele cismando. Um bando de gente to agradvel, to indmita eto franca. To pronta a matar. To... to DESAJEITADA! Ele fervilhou, fez seus enormes dedos

    tamborilaram, olhou furioso a nada em particular. Esses humanos... esses adoradores de nosso senhor somaravilhosamente malficos, mas s vezes... s vezes eles tropeam nossa frente. Nenhuma sutileza,nenhuma cautela. Por isso, agora temos um erro crasso, e uma almazinha escorregadia escapou de nossopunho, uma ameaa para ns pior agora do que nunca!

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    Um prncipe adiantou-se e curvou-se. O meu senhor pensar em abortar o Plano?O Homem Forte aprumou-se, e seus punhos fechados ribombaram sobre as pedras da lareira. NO!O prncipe recuou at as fileiras sob os olhares condenatrios dos companheiros. No rosnou o Homem Forte no este Plano. H coisas demais em jogo, um excesso de coisas jforam estabelecidas e preparadas. H coisas demais a serem ganhas para permitir que uma mulherzinha,uma almazinha miservel, estrague tudo.

    O odioso esprito tentou descontrair-se, inclinando a cabea para trs e deixando que sua lngua cor dembar rolasse pelos beios. A cidade era to perfeita cismou ele. Os santos de Deus to poucos, to pobretes... e o nossopessoal, oh, to forte, to numeroso, to... to pioneiro! Trabalhamos com tanto afinco para estabelecer abase que temos naquela cidade. Ah... quem sabe quanto tempo demorou...? Vinte e trs anos, Ba-al disse um auxiliar bem intencionado. O Homem Forte fitou-o furioso. Obrigado. Eu sei.O auxiliar curvou-se e recuou.O Homem Forte continuou sua reviso mental. E os insignificantes santinhos da cidade eram... obscuros,no percebem, longe de ajuda, longe dos principais recursos, isolados no meio de ondulantes lavouras...desconhecidos. Era o lugar perfeito para comearmos o processo. A cara bestial ficou mais fechada e

    amarga. At que comearam a orar. At que deixaram de estar to confortveis e puseram-se a chorardiante de Deus! At que comearam a de novo reivindicar o poder da... O Homem Forte selou os lbios. Da Cruz? ofereceu o auxiliar.IAAAAA!! A espada do Homem Forte zuniu atravs do ar e por uns centmetros no atingiu o auxiliar.Tanto fazia. Diversos prncipes agarraram aquele vassalo boca-suja e o expulsaram.O Homem Forte acomodou-se na lareira com um baque. Destruidor!Os prncipes olharam para a outra ponta da sala. Um murmrio percorreu-lhes as fileiras. Alguns recuaram.Uma sombra adiantou-se, uma silhueta. Era alta, envolta em asas ondulantes. Ela se movia to suavemente,to silenciosamente, que parecia flutuar. Os outros demnios no se atreviam a toc-la. Alguns se curvavamde leve.A sombra atravessou a sala e ento postou-se diante do Homem Forte, a cabea abaixada em deferncia. Elapermaneceu absolutamente imvel.O Homem Forte estudou aquela forma escura e silenciosa por um momento. Voc tem estadoperceptivelmente quieto durante estas discusses.A coisa ergueu a cabea e fitou seu senhor com olhos estreitos, calculistas. A cara no era inteiramenteodiosa; era quase humana. Mas era m; era fria e cheia de dio. Fale, meu Ba-al disse ele e responderei.Os olhos do Homem Forte se estreitaram. Seus lacaios fracassaram, Destruidor. Ela est viva e livre. Oque me diz disso?A cara de Destruidor era ptrea, sua espinha aprumada. Ela ainda minha?Havia um tom estranho, cortante na voz do Homem Forte. Voc ainda a merece, Destruidor?

    O Homem Forte falou claramente, ameaadoramente. Quero que d um sumio nela, de modo que jamaisreaparea de novo. Havia uma leve sombra de dvida na voz do Homem Forte ao perguntar Vocconsegue dar conta disso?A coisa no se moveu por um momento.GOLPE CORTANTE! Relmpago vermelho! Uma espada crepitante cortou o ar e dividiu o espao em doissegmentos ardentes. Negras asas encheram o aposento como fumaa e ribombaram como trovo. Osprncipes caram para trs de encontro s paredes; o Homem Forte chegou a se encolher.A coisa postou-se ali, novamente imvel, os olhos ardendo de ira, as asas negras acalmando-se lentamente, acandente espada vermelha firme em sua mo.A voz, baixa e sinistra, fervilhava de ressentimento. D-me alguns guerreiros de verdade, no Terga eseus desajeitados e choraminguentos diabretes de Baskon! Coloque seus melhores guerreiros sob meu

    comando e deixe que eles energizem o Vidoeiro Quebrado, e ver o que seu servo pode fazer!O Homem Forte estudou a cara de Destruidor e sem o menor sorriso perguntou: E o que me diz dosboatos que tenho ouvido?

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    envelope e dobrou-lhe a aba. Ela se desligou sozinha e agora nosso trabalho plant-la silenciosamente econtinuar com a vida. No suponho que vai haver um relatrio do legista, vai?Ben sabia que havia avanado demais. Mulligan comeava a ferver. Claro que vai haver. E da?Ben queria recuar, mas agora tinha de responder pergunta de Mulligan. Bem... com todo o devido respeito... o legista poderia encontrar alguma evidncia que sugira outra causada morte.

    Mulligan no tinha tempo para isso. Oua, Cole, se apenas ser um tira comum, trabalhador, limpo, no chega para voc... se simplesmenteno acha que tem responsabilidade o bastante... tenho a certeza de que encontrarei alguns trabalhos maisimportantes para voc fazer, algo de que realmente possa se orgulhar. O lugar bem que est precisando deuma varrida, e sei que voc seria muito meticuloso; meteria a vassoura em todos os cantos, limparia todas asteias de aranha, no?Ben sabia que estava encarando Mulligan furiosamente, mas no fez o menor esforo para suavizar aexpresso. E ento lhe disse: Eu poderia ser muito meticuloso ao examinar se a investigao da noite passada foi ou no correta.Mulligan abriu com fora a gaveta do arquivo e jogou o envelope ali dentro. Concentre-se em fazer o seu servio, Cole. No lhe estou pagando para ser a minha conscincia.

    A agente do correio, Lucy Brandon, no conseguia concentrar-se no servio. Debbie, a moa do balco, jlhe havia feito trs perguntas uma acerca do carteiro da Rota 2, uma acerca das bandejas decorrespondncia rachadas, e uma acerca... ora, ela no conseguia lembrar-se da terceira pergunta. No podiaresponder a nenhuma delas; no conseguia lembrar-se da informao; simplesmente no conseguia pensar. Ei gritou Debbie, por fim est-se sentindo bem?Lucy tirou os culos e esfregou os olhos. Era geralmente uma pessoa forte, suficientemente durona. Morenaalta de trinta e tantos anos, ela j havia passado por nmero mais do que suficiente das provaezinhas davida a essa altura: pobreza, a morte precoce dos pais, uma juventude desmiolada e rebelde, um casamentoabalado, a tarefa de apanhar os pedaos aps amargo divrcio e de criar uma filha pequena sozinha nototal, um pacote bem completo de apuros. Por isso, aprendera a enfrentar as lutas, de modo geral; a maioriadas dificuldades nunca realmente a preocupava contanto que no lhe tocasse a famlia.Ela correu os olhos pelo pequeno Correio, e felizmente ele estava tranqilo nesse instante. A correria domeio do dia distava ainda algumas horas, todos os carteiros haviam sado para as suas rotas, e a pilha deservio sobre sua escrivaninha aumentava, mas ela poderia dar conta.Lucy estava determinada a responder a pelo menos uma pergunta. Bem, no, no muito.

    Debbie era jovem, bonita e compassiva. Talvez no tivesse vivido o bastante para criar um exterior duro.Ela tocou o ombro de Lucy ternamente. Alguma coisa que eu possa fazer? Bem... Lucy examinou o relgio na parede. Tenho um compromisso para daqui a apenas algunsminutos. Acha que voc e Tim podem dar conta do recado at eu voltar? Oh, claro.Um coruscar da luz do sol refletida danou ao longo da parede. Um carro esportivo encostou do lado defora. Oh, a est a minha carona. Pode ir. No se preocupe conosco.

    ***

    A motorista do carro era Claire, uma amiga maravilhosa e conselheira no apenas para Lucy como tambmpara muitas pessoas de todas as posies sociais na cidade. Era uma bela mulher, com cabelos loiros

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    arranjados cuidadosamente em torno da cabea e adornados com pentes e grampos que piscavam ebrilhavam. Sua blusa e longa saia, ambas de fibras naturais lindamente tecidas, drapeavam sua volta comovestes reais, e, aos olhos de Lucy, Claire era uma verdadeira rainha. Ela e seu amigo, arquiteto Jon,formavam o casal perfeito, crescendo constantemente em auto-realizao e harmonia e tornando-se exemploduradouro para todos os seus amigos.Quando Lucy entrou, Claire inclinou-se e abraou-a. E como vai voc, Lucy? Oh... levando respondeu ela, procurando o cinto de segurana. Claire deixou o estacionamento do

    Correio e desceu a Rua da Frente. E como est Amber? perguntou. Vai indo bem. No lhe contei que iramos hoje. No queria causar nenhum alarme antes que fossenecessrio. Bom, bom. Vou lev-la de volta escola de primeiro grau na segunda-feira e ver se consigo encaix-la novamentenas classes que tinha l. A Srta. Brewer no acha que ela ter muita dificuldade em pr em dia as matrias eapenas terminar o ano. Oh, no, no a Amber, e ela est muito perto do fim do ano de qualquer forma.Elas atravessaram a cidade e depois viraram na rua 187, normalmente chamada Estrada da Lagoa, porquepassava por uma lagoa grande e conhecida, cercada de juncos, uns trs quilmetros a oeste. Junto com a

    placa da rua que indicava o nome da estrada havia outra placa apontando a direo da Igreja Comunitria doBom Pastor e da Academia do Bom Pastor. Penso que John e Paula estaro l hoje disse Claire. Espero que no se incomode. Acho que no. Nem os conheo ainda. Bem, ver que so pessoas maravilhosas. Alegro-me por trabalharmos com eles neste negcio. Os

    jornalistas geralmente no so to bem educados quanto eles.Lucy aquietou-se por um momento, apenas vendo as lavouras e bosques passarem. Finalmente, disse: Por que precisamos envolver a imprensa nisto? Oh, muito simples. Num caso como este, a opinio pblica importante. a mente do pblico queacaba criando as leis pelas quais todos temos de viver. Veja voc, lutamos nossas batalhas em dois nveis:nos tribunais e na arena pblica. Uma poro dos casos que vencemos hoje surgiram porque a opiniopblica foi moldada muitos anos atrs. O que fazemos agora para moldar a opinio pblica ter efeitopositivo nos casos legais que surgirem no futuro. um processo. S no sei se Amber conseguir passar por isso.Claire sorriu confiante. Oh, Amber um soldadozinho forte. Ela consegue. Fiquei impressionada com aforma como ela se manifestou e contou tudo nossa equipe, e ao Dr. Mandanhi, e at Sra. Bledsoe.Lucy parecia amargurada.Amber? Voc quer dizer "Ametista", no ? Claire sorriu e fez que sim com a cabea. Sim, voc tem razo. Mas isso no importa. Ainda Amber, de verdade. Ametista uma boa amiga paraAmber porque ela carrega o peso do que aconteceu e fala livremente, algo que Amber jamais poderia fazerconsigo mesma.

    Lucy sorriu um sorriso nervoso. Mas, sabe uma coisa... acho que no gosto de Ametista.Claire riu.Lucy riu tambm, esperando que a declarao no fosse levada to a srio quanto era sua inteno. Querodizer... Ametista to impertinente e desrespeitosa... E acho que Amber se livra de muita coisa jogando aculpa em Ametista. Bem, precisamos dar um jeito de parar com isso, naturalmente. Mas est vendo o que me preocupa? Acho que eu confiaria em Amber para dizer a verdade... e eu saberiao que ela estava pensando e sentindo. Mas eu no saberia dizer isso a respeito de Ametista. Nunca sei o queela vai acabar falando! Lucy sacudiu a cabea ao pensar que estava mesmo tendo uma conversa daquelas. Preciso de umas rdeas para aquela bichinha!Claire riu outra vez. Oh, no tenha medo de Ametista. Os guias ntimos so sempre dignos de confiana,

    e Amber precisa desse apoio e comunho para o que vem a. Oh, posso ver isso.Mas Lucy no se sentia nada melhor, e Claire percebeu. O que mais? perguntou Claire. J que falamos de Ametista...

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    Sim? Voc viu aquele outro artigo no jornal, acerca de Sally Roe? Claire sabia a respeito. Lucy, vocrealmente no tem nada a ver com isso. Nem mesmo deveria pensar uma coisa dessas!Lucy estava quase em lgrimas. Mas como posso evitar?Claire deu diversas olhadelas disfaradas a Lucy enquanto dirigia. Escute bem. No culpa de Amber.Pedi que alguns amigos meus fossem atrs de Sally Roe assim que voc me contou o que aconteceu noCorreio. Pelo que pude saber, Sally Roe era uma pessoa profundamente perturbada. Era atormentada por

    dvidas a seu prprio respeito e culpa, e nunca conseguiu sair dessa... Era uma embrulhada crmica! Ambernada teve a ver com ela se matar. Era o que teria feito de qualquer forma.Lucy sacudiu a cabea e fixou os olhos fora da janela. Mas se voc pudesse ter estado l... se tivesse visto o rosto daquela mulher quando... quando Ametistasimplesmente atacou-a. E eu no conseguia fazer com que ela parasse. Amber simplesmente no voltava asi. Esquea isso disse Claire batendo de leve na mo de Lucy. Sally Roe se foi, cumprindo seu prpriocaminho onde quer que ele a conduza. Voc tem o seu, e Amber tambm. Precisa pensar a respeito disso.Enfim, Lucy assentiu. Aproximavam-se da escola crist, e ela se sentia nervosa. S espero que todo esse negcio saia bem. Espero que a gente saiba o que est fazendo. Acho que algo que precisamos fazer respondeu Claire, firme. Intolerncia religiosa inimiga de

    todos. Acho que nos estaramos furtando nossa responsabilidade se no fizssemos nada.No havia tempo para dizer mais nada. Claire diminua a velocidade e indicava que ia virar. Ali, esquerda,estava a Igreja Comunitria do Bom Pastor, um prdio simples de tijolos com telhado de duas guas, janelastradicionais em arco, e uma torre de sino. Era um marco em Baskon, abrigando diversas congregaesdiferentes com o passar dos anos; algumas tinham-se extinguido, algumas tinham-se mudado e novosgrupos haviam chegado, mas ela permanecia atravs disso tudo por quase um sculo, slido monumento aum cristianismo tenaz. Essa ltima congregao parecia estabelecer novo recorde de permanncia; estava alih quase quinze anos, e o pastor atual a pastoreava pelo menos h oito.Claire estacionou entre a igreja e a Academia do Bom Pastor, um prdio porttil simples, com teto debarraco, apoiado sobre estacas e pilastras. Havia quatro veculos estacionados naquele momento. Doisdeviam pertencer ao pessoal da escola; a perua pertencia a John Ziegler e a Paula, a fotgrafa, e o grandefurgo branco estava claramente marcado: "KBZT Noticirio do Canal Sete". Uma equipe de televiso? perguntou Lucy surpresa. Oh, certo disse Claire. No lhe contei acerca disso. O pessoal do Canal Sete achou que esta seriauma boa histria para o noticirio.Os dois homens do Canal Sete j estavam preparados para a chegada de Claire e Lucy, e pularam do furgoassim que o carro delas encostou. O operador da cmara colocou-a sobre o ombro, e comeou a observar asnotcias com um olho. O outro homem, jovem, tipo atltico com terno e gravata acima da cintura e cala debrim abaixo dela, adiantou-se e saudou Claire quando esta saiu do carro. Ei, bem na hora! disse ele, apertando-lhe a mo. Oi, Chad. Prazer em v-lo novamente.

    Este o Roberto. Oi.Roberto devolveu-lhe o sorriso, olhando-a atravs da cmara. Lucy saiu do carro um tanto hesitante.Claire apresentou-a. Chad e Roberto, esta Lucy Brandon, a me. Oi. Chad Davis. Este Roberto Gutierrez. Vo me filmar? Voc se importa? perguntou Chad. Vai ficar tudo bem assegurou-lhe Claire. Lucy simplesmente deu de ombros.John Ziegler e Paula estavam l, prontos para prosseguir. Claire cumprimentou-os, e Lucy apenas sorriu.A porta da escola se abriu, e um homem olhou para fora. Ao avistar aquele bando de gente reunido noestacionamento, seu rosto ficou plido; ele pareceu doente.Era, naturalmente, Tom Harris.

    Claire, erguendo a mo em saudao, gritou: Oh, al e ps-se a caminhar na direo da construo porttil, os outros seguindo-a de perto.No, Senhor, no...

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    Se eu pudesse fechar esta porta e nunca sair, pensou Tom. Se eu pudesse somente fazer cair fogo dos cuspara limpar essa gente da minha vida, para faz-los ir embora... J no fizeram o bastante comigo?Tom havia estado no telefone a maior parte da manh, dando voltas no carrossel da burocraciagovernamental enquanto tentava dar as suas aulas, e ainda no havia encontrado os filhos. A ltima palavraque ele havia recebido era do DPC, e eles se recusavam terminantemente a contar-lhe onde as crianas seencontravam. O pastor Howard ainda no voltara, todos os outros trabalhavam, e nada acontecia com anecessria rapidez.

    Senhor, apenas queria que essa gente se fosse. Gostaria que este dia chegasse ao fim.Tom olhou de volta para o lado de dentro. Duas crianas, uma da terceira srie e uma da quarta, semostravam curiosas. Olhe... TV! disse a garotinha.Tom estava sendo filmado pela cmara naquele exato momento. Pelo menos dirigir-se criana deu-lhe aoportunidade de voltar as costas. Sammie, v sentar-se... isto nada tem a ver com voc. Clay, voc terminou? Bem, coloque-o sobre aminha mesa e comece a pgina seguinte. Examinarei o que fez logo depois do almoo, est bem? Sr. Harris? disse Claire, subindo os degraus de madeira. Sim? Meu nome Claire Johanson. Sou assistente legal com a firma Ames, Jefferson e Morris. Estou aquicomo representante da Sra. Lucy Brandon, a quem o senhor j conhece. Podemos conversar brevemente?

    Este est sendo um dia muito difcil para mim, Sra. Johanson... Srta. Johanson. Nada tenho a dizer a outros jornalistas. Para mim, j basta. Este um problema legal, Sr. Harris.Oh, formidvel. O que mais podia dar errado? Tom sabia que no devia embarcar em qualquer conversa napresena de jornalistas orelhudos e uma cmara de televiso. Por que no entram? Ento, ele deixou claro. A senhorita e a Sra. Brandon. Esses outros podemesperar aqui fora.Ele se afastou para o lado para que as duas mulheres entrassem, depois fechou a porta na cara dos

    jornalistas.Encontravam-se numa sala comum que servia de refeitrio, guarda-agasalhos e biblioteca, entre duas salasde aula. Tom enfiou a cabea dentro de sua sala de aula direita. Uma classe de primeira e segunda sriesde cerca de dez crianas trabalhava indolentemente numas mesinhas baixas, colorindo, colando e mantendoo nvel de barulho apenas abaixo do limite estabelecido pelo professor. Sra. Fields?Uma senhora gorduchinha de meia-idade saiu da sala de aula. Tinha as faces rosadas e os cabelos empermanente muito crespa. Seus olhos imediatamente demonstraram alarme ao darem com Lucy Brandon eaquela mulher de aparncia intrometida ao seu lado. Temos umas visitas importantes explicou Tom em voz baixa. Pode ficar de olho na minha classepor alguns minutos? Certamente disse a Sra. Fields, incapaz de tirar os olhos das duas mulheres.

    Eles fazem as lies de leitura agora, e devem terminar at s 10. Clay faz um projeto especial que lhedei; apenas certifique-se de que ele o ponha sobre a minha mesa.Ela assentiu com a cabea e atravessou a sala para espiar a classe da terceira a sexta sries. Vamos ao meu escritrio disse Tom, e foi frente at um diminuto cubculo na parte de trs doprdio, que continha uma escrivaninha, um computador, uma copiadora, e dois arquivos. Mal havia lugarpara trs pessoas se sentarem. Tom ofereceu s senhoras as nicas duas cadeiras e preferiu manter-se em p,recostado contra os arquivos.Claire no perdeu tempo: Sr. Harris, estamos aqui para tirar Amber da escola. Gostaramos que nos desse todo o seu histricoescolar. Falarei com a nossa secretria e terei esses papis preparados para a senhora respondeu Tom

    mantendo-se calmo e srio. A senhora compreende que todos os pagamentos mensais devem estarquitados antes que a papelada possa ser liberada.Claire olhou para Lucy enquanto dizia: Todos os pagamentos sero efetuados. Gostaramos de processar isso o mais cedo possvel.

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    Certamente Tom olhava para Lucy. Sinto muito no termos podido discutir isso...Claire interps: No h nada a discutir. Dito isso, ela se ergueu e Lucy fez o mesmo. Agora, se o senhor puderavisar Amber que estamos aqui. . .As duas mulheres saram para a sala comum e Tom seguiu-as. Ele simplesmente no estava satisfeito. Uh, isto nos pegou um tanto de surpresa. Pelo que entendo, no conseguimos resolver as coisas acontento para a senhora?

    Claire comeou a responder No, Sr. Harris... A pergunta foi dirigida Sra. Brandon atalhou Tom educada mas firmemente. Ele olhou para Lucy. J faz um ms que tivemos aquele probleminha. Conversamos a respeito, e pensei que estivesse tudoresolvido. Se a senhora ainda tinha dvidas ou receios, eu certamente teria de boa vontade feito outrareunio com a senhora. Quer fazer o favor de chamar Amber? solicitou Claire.Tom enfiou a cabea dentro da porta da sala de aula e chamou baixinho: Amber? Sua me est aqui. melhor apanhar seu casaco e suas coisas. Havia dezoito alunos da terceira asexta sries na sala de aula, cada qual sentado numa pequena carteira, e todas as carteiras estavam colocadasem filas alinhadas. Cartazes de natureza, astronomia, do alfabeto e conselhos sobre higiene adornavam as

    paredes. Encostado numa parede, um grande aqurio borbulhava, e ali perto encontrava-se um telescpiodoado, posicionado para sondar os cus. Sobre uma mesa havia vasinhos de ervilhas plantadas, todosenfileirados e rotulados, e, a seu lado, uma famlia de hamsters em grande gaiola movimentada.Na antepenltima carteira, quarta fileira, encontrava-se Amber Brandon, aluna da quarta srie, vivaz,esperta, um tantinho travessa, com farta cabeleira de fios loiros muitas vezes desordenados, e grandes olhosazuis. Ela trazia um macaco roxo e tnis cor-de-rosa, e ao ombro, um brochinho de um cavalo debrinquedo.A menina ficou surpresa ao saber que sua me havia vindo, mas tambm um tanto excitada. Ela fechoudepressa o caderno, ajuntou seus livros e o estojo de lpis, e veio porta.Lucy abaixou-se e deu-lhe um abrao. V buscar seu casado, meu bem, e sua lancheira.Aquelas foram as primeiras palavras que Tom ouviu da parte dela nesse dia.Assim que Amber ficou pronta, Tom acompanhou-as porta, escancarando-a para elas passarem. Os

    jornalistas ainda esperavam do lado de fora, claro, e Tom quase podia sentir o olhar fixo do olho nicodaquela cmara de televiso. Ei, escutem disse ele aos jornalistas vocs esto em propriedade particular, e acho que seria melhorse fossem embora, est bem? Oh, Sr. Harris disse Claire, voltando e juntando-se a ele no vo da porta. A cmara pegou umaperfeita cena dupla. Tambm estou aqui para entregar-lhe isto.Ela tirou um envelope do bolso do casaco e colocou-o na mo dele. A lente Zoomar da cmara focalizou-onum close-up. A cmara de Paula deu um estalido e bateu diversas fotos.

    V-lo-ei no tribunal, senhor. Bom dia.Ela desceu a escada e caminhou com Lucy e Amber de volta ao carro.Tom ficou petrificado no lugar por um momento, o que Paula e Roberto acharam timo. Ele fitou oenvelope, o estmago dando n, o corao batendo to forte que ele podia sentir. O envelope comeava atremer-lhe na mo. Olhou para o pessoal da imprensa. Eles tiraram mais alguns instantneos. Por favor, vo embora disse ele, a voz quase inaudvel. Obrigado, Sr. Harris disse John Ziegler.Tom fechou a porta e ento reclinou-se contra ela, completamente sozinho na sala comum. Sentiu que aspernas iriam dobrar debaixo de si e ele afundaria ao cho a qualquer instante. Oh, Deus orou ele num sussurro. Oh, Deus, o que est acontecendo?Das duas salas de aula, a quieta atividade e os estudos continuavam. Subitamente, esse som lhe foi muito

    precioso. Ele olhou volta da sala comum e reconheceu os casacos e as lancheiras de todas as crianas, todaa sua querida tribozinha. No demoraria muito e eles estariam fazendo uma orao e saindo para o recreioda manh, enchendo os balanos e o ptio como sempre faziam. Essas preciosas rotinas dirias agorapareciam to inestimveis por causa do envelope em sua mo, esse invasor, esse cncer, esse inimigo

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    rancoroso, importuno! Ele queria mui ardentemente pic-lo em um milho de pedaos, mas sabia que nopodia.Agora tudo se encaixava. Agora as coisas comeavam a fazer sentido. Seus olhos enuviaram-se comlgrimas.Ento foi por isso que eles levaram Rute e Josias!

    ***

    Tal estava ali, a espada desembainhada, mantendo-se perto da construo, sem ser visto, observando o carroe o furgo do noticirio indo embora. Apenas alguns espritos sombrios acompanhavam os visitantes, e nohouve escaramuas, pelo menos por ora. O fato de Tom estar bem guardado por dois guerreiros muito altosajudava a manter as coisas quietas, alm do fato de Nat e Armoth estarem no topo da igreja bem vista. No quero que ele sofra outra hostilidade pelo resto do dia instruiu Tal aos guardas. Deixem-nosarar desta aqui primeiro.Em seguida ele estendeu as asas e alcanou o teto da igreja num salto suave. Ento, eles resolveram levar o negcio adiante! comentou Nat. O Homem Forte pode ser inflexvel avisou Tal. Acho que esta ser uma luta at o fim. ...FUUUM! Uma exploso sbita de asas! Os trs guerreiros formaram imediatamente um feixe apertado,

    cada qual olhando para fora, espada desembainhada, posicionada para a peleja. L! berrou Tal, e todos voltaram-se para a velha torre do sino. Era Destruidor, ereto e imponente, asasas expandidas comeando a acomodar-se, a fulgurante espada vermelha desembainhada. Uma dzia deguerreiros o acompanhavam, seis de cada lado, quase to monstruosos quanto ele. O quente vapor amarelosaindo das narinas de cada demnio formava uma fita contorcida que flutuava sobre o estacionamento comouma serpente lenta, curiosa. Se no me engano, voc Tal, o Capito dos Exrcitos! gritou o demnio.Tal, Nat e Armoth analisavam aquele bando. Era melhor evitar uma luta. Sim, sou disse Tal.Os beios negros, hirsutos, arreganharam para trs numa careta zombeteira, pondo mostra longas presascor-de-mbar.

    Ento os boatos nas fileiras eram verdadeiros! E quem seria voc? Chame-me de Destruidor por enquanto. A seguir, ele proclamou orgulhosamente: Sou aquele quefoi designado para a mulher!Tal no se mexeu. Zombaria nunca o incomodava. Ele nunca lutava antes de estar pronto.O demnio continuou, a espada de prontido: Achei que antes que a batalha comece, os dois comandantes deveriam encontrar-se. Eu queria conhec-lopara ver se toda a conversa arrogante que ouvi verdadeira. Destruidor observou Tal cuidadosamente. Talvez no. Ele brandiu a espada ao redor. Mas, por favor, olhe para este lugar, esta escolinha! Serque realmente um prmio que valha todos os seus exrcitos? Pode estar certo, no queremos ter maisproblemas para tom-la do que vocs desejam ter para salv-la. Capito dos Exrcitos, poderamos resolveressa questo mais cedo ao invs de mais tarde.Tal respondeu: A escola nossa. Os santos so nossos.Destruidor abriu os braos com um floreio e fez um pronunciamento. O Homem Forte autorizou-me a dar-lhe as escolas crists de Westhaven, de Claytonville, de ToeSprings. Pode ficar com todas elas! Deixaremos aquelas escolas em paz!Tal permaneceu completamente firme. No.Destruidor apenas riu. Oh, deve ser a mulher. Talvez voc ainda esteja animado por sua recente vitria em salv-la. Considere

    isso um presente, capito, nosso ltimo erro. Sim, voc a salvou, mas ela vive para ns. Sua alma nospertence!Tal nada disse.

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    E no apenas a mulher, como tambm todo o poder, os recursos, as pessoas, as mentes, o dinheiro... tudode que jamais precisaremos para calcar voc e seu rebanhozinho heterogneo de santos na poeira! Vocchegou tarde demais, Capito do Exrcito! O tempo j passou para voc e seus santos. Ns temos o poderagora! Renda-se, corte suas perdas, e contente-se com isso! Veremos voc na batalha avisou Tal.Destruidor olhou Tal por um longo momento, meneando a cabea devagar, admirado da teimosia desseguerreiro angelical. Por fim, assentiu.

    Na batalha, ento.Com outra exploso de asas rpidas, secas, os demnios ergueram-se no cu, ululando e berrando,zombando e cuspindo at desaparecerem. Somente ento Tal guardou a espada. Foi essa uma tentativa de nos amedrontar? perguntou Armoth. Uma jogada estratgica respondeu Tal. Ele tentava roubar nossa coragem no inicio. E agora, que pensa das nossas probabilidades? perguntou Nat. Iguais s deles informou Tal. Talvez somente iguais.

    Chimon e Scion permaneciam escondidos em lados opostos do Quarto 12 no Hotel Repouso Tranqilo emClaytonville. Havia espritos sombrios por perto, aparentemente os batedores de Destruidor limbosos,covardes atormentadores, precipitando-se para baixo atravs das rvores e cabos de eletricidade, movendo-se animados de um lado para outro da rua, olhando dentro das casas, pelas janelas, chamins abaixo, procura da pobre e enlameada fugitiva. Os dois anjos davam duro a fim de manter uma barreira em torno damulher, de ocult-la da vista deles, e at ento tinham conseguido manter o seu esconderijo em segredo dequaisquer espritos enviados a atorment-la .Mas quatro espritos ainda acompanhavam Sally Roe aonde quer que ela fosse, e tinham sido seuscompanheiros ntimos por tanto tempo que no podiam ser separados no presente. Chimon e Scion morriamde vontade de postar-se sua frente, de despachar Desespero, Medo, Morte e Loucura a golpes cortantespara longe desde mundo, de amenizar a dor daquela alma amedrontada, castigada. Mas a vida dela era talque eles tinham o direito de estar ali; alm disso, a dor era necessria. Os dois guerreiros tinham de conterseu poder.

    ***

    Sally deu boa esfregadela na cabea com a toalha, e depois endireitou-se para uma olhada no espelho dobanheiro. Os cabelos, que antes eram ruivos, agora cascateavam-lhe pelos ombros, descendo pelas costas emmechas molhadas, pretas. Bem, talvez funcionasse, se eles procurassem apenas cabelos ruivos. Mas seurosto ainda era muito diferente; mesmo com o cabelo tingido de preto e todo preso, ela ainda parecia SallyRoe. Se pudesse esconder todas aquelas sardas talvez ajudasse. Talvez conseguisse disfarar os olhoscastanhos com um par de culos, daqueles estilosos, de lentes coloridas. Talvez pudesse usar bastantepintura.O corao afundou. Era tudo to ftil, to infantil! Ela sonhava, tateando busca de esperana, e sabiadisso. Se eles jamais a vissem, a reconheceriam. Ela estava acabada, liquidada, o mesmo que morta.Apoiou-se pia, deixou pender a cabea, e ficou ali um tempo enorme, a mente deixando-a miseravelmentena mo; simplesmente no funcionava. Era uma mente cansada, esgotada, desanimada. Tudo o que podiafazer era ficar ali, inspirando um flego de cada vez. Pelo menos podia respirar; pelo menos alguma coisaainda funcionava.Mas por que isso a alegrava tanto? Aquilo a incomodava.

    Sally, voc est cansada demais para pensar a respeito. Deixe para l.Mas ento sua mente se ligou, apenas um pouquinho, e novamente, pela milionsima vez, ela atacou amesma pergunta exasperante: Se a vida era to fora de propsito, to ftil, to sem sentido, to vazia, porque ela fazia tanta fora para no perd-la? Por que desejava continuar em frente? Talvez tivesse algo a ver

  • 8/12/2019 Este Mundo Tenebroso

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    com a maneira pela qual a vida evolua; nada potico ou elevado, com certeza, apenas aquele misteriosoinstinto inexplicvel de autopreservao, o nico motivo pelo qual nos mantnhamos vivos o temposuficiente para vencer as dificuldades a fim de podermos caminhar eretos e matar uns aos outros...Ela voltou a si. Era perda de tempo tentar compreender. Era um carrossel, um labirinto sem fim. Mantenha acoisa simples, Sally: algum quer matar voc, mas voc quer continuar viva. Essas duas proposies bastampor enquanto.Ela inclinou-se para a frente a fim de examinar o corte no ombro. Pelo menos, no havia infeco; isso era

    bom. No momento, havia cessado de sangrar e a ferida estava fechada, embora precariamente. Ela atou-acuidadosamente com fita adesiva e gaze simples tarefa manual, nada que puxasse pelo crebro e aseguir deslizou cuidadosamente dentro da camisa.Ela saiu do banheiro, sentou-se na cama, e ps-se a remexer no fecho de uma correntinha barata. Havia sidoboa compra na loja local de armarinhos, contanto que no lhe manchasse de azul o pescoo, e lhe servisse.Tinha ela feito compras aquela manha, to rpida e silenciosamente quanto possvel, esperando o tempotodo no ser vista por ningum que pudesse saber quem ela era, ou que se importasse com isso. Masprecisava arrumar aquela fita adesiva e a gaze, a rinsagem para o cabelo, essa correntinha, algumas roupaslimpas... e o Jornal matutino.O jornal Estrela do Condado de Hampton ainda estava espalhado sobre a cama. Ela o havia folheado assimque voltara ao quarto. A primeira pgina trazia algumas histrias acerca de uma estao para tratamento de

    esgoto, um escndalo poltico local, e o