l. canfora. critica da retórica democrática

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Crtica da retrica democrtica

Luciano Canfora

Crtica da retrica democrtica

Traduo do italiano

Valria Silva

Ttulo original italiano: Critica della retorica democratica 2002, Gius. Laterza & Figli S.p.a., Roma-Bari. Edio brasileira por acordo com a agncia literria Eulama, Roma Editora Estao Liberdade, 2007, para esta traduo Preparao de original Reviso Composio Capa Imagem da capa Editores Adilson Jos Miguel Estao Liberdade Johannes C. Bergmann / Estao Liberdade Nuno Bittencourt / Letra & Imagem Hiroji Kubota: Siderrgica de Anshan, Liaoning, China, 1981. Magnum Photos Angel Bojadsen e Edilberto Fernando Verza

CIP-BRASIL CATALOGAO NA FONTE Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C225c Canfora, Luciano, 1942Crtica da retrica democrtica / Luciano Canfora ; traduo do italiano Valria Silva. So Paulo : Estao Liberdade, 2007 120 p. Traduo de: Critica della retorica democratica ISBN 978-85-7448-118-0 1. Democracia I. Ttulo. 06-2606. CDD 321.8 CDU 321.7

Todos os direitos reservados Editora Estao Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116 | 01155-030 | So Paulo-SP Tel.: (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 [email protected] www.estacaoliberdade.com.br

SumrioPrlogo. Pode a maioria estar errada? 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. Iuxta propria principia Vencer as eleies Perder as eleies O plebiscito dos mercados O paradoxo democrtico Luttwak, Hobsbawm, Aron: as democracias oligrquicas Os novos ricos no vieram de Marte O sistema misto: os corretivos da democracia Antonio Gramsci, elitista integral O papa e o professor Por uma crtica da retrica democrtica Da elite mfia A parbola da esquerda: fim da utopia? Novos explorados, novas crises De um setembro a outro Algumas idias sobre o novo sculo guisa de concluso ndice onomstico 11 23 27 31 37 39 43 49 57 65 71 75 83 87 97 101 103 109 113

Imperium, quod inane est, nec datur umquam [O poder, coisa v, jamais (nos) dado] Lucrcio De rerum natura, III, 998

Prlogo Pode a maioria estar errada?

O

s quinhentos juzes que condenaram Scrates constituam uma amostra significativa da cidadania ateniense. No deixa de ser til relembrar o mecanismo por meio do qual eles eram escolhidos. O ponto de partida para a formao de um tribunal era uma lista de seis mil cidados, provavelmente voluntrios, redigida anualmente: tratava-se de simples cidados e no de peritos em direito. Eram cerca de um quarto do corpo cvico, se considerarmos que, num censo realizado mais ou menos oitenta anos aps esse processo, os cidados atenienses somavam ao todo 21 mil.1 O nmero de jurados que compunha cada um dos tribunais variava de acordo com a importncia da causa: de qualquer modo, tratava-se sempre de algumas centenas. No caso do processo contra Scrates, podemos presumir com facilidade que houvesse quinhentos juzes, nmero provavelmente habitual. Cada jri gozava de plena autoridade e competncia. Os cidadosjuzes recebiam um salrio de trs bolos dirios, ou seja, o necessrio para viver. Por isso, principalmente aqueles menos favorecidos desejavam ser sorteados. Era um trabalho muito satisfatrio, mesmo com o modesto pagamento. Grande parte dos negcios pblicos terminava no tribunal e, assim sendo, os seis mil cidados-juzes deliberavam sobre a vida da comunidade no tribunal tanto quanto, ou talvez at mais, que nas sesses da assemblia popular. Chegava-se ao veredicto aps uma seqncia de etapas: num primeiro momento, era discutida a culpa ou a inocncia; em seguida,1. Ateneu, 272 B-D.

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se o ru fosse considerado culpado, discutia-se o carter da pena. Tanto na primeira como na segunda discusso, o acusado tinha permisso para falar. O processo contra Scrates (399 a.C.), acusado de impiedade, tratou-se na verdade de um processo poltico. Poltico no sentido especfico, porque atravs de sua figura atacava-se o inspirador (ou o presumido inspirador) dos homens que se mostraram mais nocivos cidade (Alcibades e Crtias), mas tambm poltico numa acepo mais ampla, medida que o processo contra as idias era, de fato, uma forma um tanto quanto terrorista de exercer o controle sobre os desvios de conduta. E Scrates foi processado justamente como mestre do desvio. Os quinhentos cidados sorteados que o julgaram viam-no como um crtico perturbador do sistema poltico vigente e, ao mesmo tempo, como um mpio contestador dos deuses, logo, das bases ticas sobre as quais se apoiava a vida da comunidade. No temos nem o texto nem o relato do que Scrates disse em sua prpria defesa durante o processo. Em toda a sua vida, Scrates jamais deixou nada escrito, evidentemente por uma escolha definida, que buscava privilegiar o dilogo sobre a assero, a pesquisa sobre a certeza; tambm no se preocupou, como haviam feito outros rus, em escrever a sua autodefesa pronunciada no tribunal. Foi Plato quem escreveu a Apologia de Scrates, inspirando-se, muito provavelmente, naquilo que fora de fato dito por Scrates. improvvel que Plato tenha colocado em circulao um discurso totalmente diverso das palavras proferidas por Scrates teria sido considerado, entre outras coisas, um gesto arrogante contra o mestre. Plato conhecia bem a prxis da oratria tica, que se preocupava em conservar um vnculo entre a palavra falada e a palavra escrita. Na Apologia que Plato lhe atribuiu, Scrates retoma todo o caso da ao persecutria da qual tinha sido alvo no decorrer dos anos. Remonta a um passado distante, quase um quarto de sculo. O nico nome que pronuncia um grande nome, o de Aristfanes:12

prlogo

Esta a acusao. Haveis visto algo de smile na comdia de Aristfanes: um Scrates que diz caminhar suspenso nos ares e passear sobre as nuvens, e alardeia uma infinidade de outras tolices. Refere-se comdia As nuvens, de 423 a.C., cuja desagradvel cena final representava um incndio na casa de Scrates. Mas Aristfanes no foi o nico a atac-lo usando essa tribuna de enorme eficcia, que era a cena cmica. Uma outra comdia que competiu no mesmo ano e que esteve entre as trs vencedoras tambm era dirigida contra Scrates: Connos, de Amipsias. J significativo por si s o fato de que vrios autores cmicos, independentes entre si, tenham atacado Scrates para obter sucesso no palco. ainda mais intrigante que dois concorrentes de uma mesma competio tenham feito a mesma escolha. E ambos terem sido vencedores indica que o pblico no era indiferente ao tema. No por acaso que Plato, na Apologia, inclua Aristfanes e os outros comedigrafos no rol dos antigos acusadores, aqueles que prepararam o terreno e tornaram possvel que, num dado momento, a acusao contra Scrates, apresentada ao tribunal por Meleto, nito e Lcon, tivesse credibilidade. Em linguagem moderna, poder-se-ia dizer que o teatro cmico influenciou fortemente a opinio pblica contra Scrates, ou seja, assumiu a funo da mdia atual, que orienta o pensamento de uma maneira ou de outra exceo feita, claro, a todas as diferenas entre uma sociedade pr-moderna, como a ateniense do sculo V a.C., e uma complexa sociedade moderna. De qualquer modo, indiscutvel que o teatro exercia uma poderosa funo de orientao e influncia, mesmo naquele mundo pr-moderno, ainda mais considerando a vigilncia estatal sobre as representaes, da qual fala Plato nas Leis: ele chega a definir a democracia ateniense como teatrocracia.2 Mais adiante na Apologia, Scrates deixa bem claro que sua crtica da poltica tinha sido uma das principais razes que o isolaram2. Plato, em Leis, 701 A.

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da opinio pblica. Relembra seus encontros com vrios polticos, com os quais tinha procurado examinar a natureza especfica de seu conhecimento, esforo que levou sempre constatao da inexistncia de tal saber. Esse um assunto que Plato tratar insistentemente e de forma central em seus dilogos, nos quais os ensinamentos de Scrates e a reflexo original platnica se misturam, mas que, de qualquer modo, demonstra-nos, sem nenhuma dvida, a importncia dessa reflexo acerca da poltica no mbito da investigao socrtica. Uma confirmao disso nos dada pelos dilogos que Xenofonte, outro discpulo de Scrates, menos amado pelos modernos, reconstruiu em seus Comentrios socrticos. Tambm nesta obra, Scrates representado no ato de interrogar estrategos, hiparcas, oradores e polticos sobre a especificidade de sua cincia. Questionar acerca do que seja propriamente a poltica como sucede, por exemplo, no Protgoras, no qual Scrates importuna Protgoras sobre o problema , se a poltica algo que possa ser ensinado, assim como a arte de pintar ou de tocar a flauta (e, portanto, se existem pessoas capazes de ensin-la como pretende Protgoras da mesma forma que se ensinam as outras artes), e se essa pretensa especificidade no contraria o fato de que no campo da msica, da geometria ou da astronomia fala quem competente, enquanto que sobre os interesses gerais da cidade, todos se atrevem a falar, artfices e marinheiros, ricos e pobres, sapateiros e comerciantes (o que acaba contradizendo a premissa segundo a qual a poltica seria algo a ser ensinado); perseguir com essas perguntas no s os atenienses comuns, propensos naturalmente conversao, mas tambm e sobretudo os detentores do saber poltico, na prtica os mestres da palavra, mestres daquela oratria que de fato determinava na prxis da assemblia o elemento discriminante entre quem fala e quem escuta, entre quem guia e quem guiado, era, por parte de Scrates, a forma mais antidemaggica possvel de estimular a autocrtica do sistema poltico vigente, ou, em outras palavras, de tornar-se abominvel aos beneficirios lderes14

prlogo

ou gregrios daquele sistema. Daqui deriva, muito mais do que da amizade com Alcibades ou da convivncia com Crtias, o consenso disseminado que se coagulou em torno da condenao do inabalvel antidemagogo. Certamente, o fato de ter permanecido na cidade, como foi dito ento, durante os meses do governo dos Trinta3 (do qual o prprio Crtias tinha sido o chefe), agora se voltava contra ele. Era um assunto polmico que os defensores da condenao utilizavam de forma consciente, sabendo da eficcia sedutora de tal recriminao. Argumento sedutor, sim, porm refutvel: sem assumir o papel de heri, antes com tom pacatamente descuidado, Scrates relembra, na Apologia de Plato, que muito cedo entrara em atrito com os chefes dos Trinta e que, se o regime no tivesse cado, teria sido liquidado fisicamente bem antes de isso ser providenciado pela democracia restaurada. Eu j teria sido morto se esse governo no fosse derrubado pouco depois.4 Esse argumento se tornava ainda mais frgil ao ser aproximado de uma outra acusao: a de ter educado Alcibades, poltico considerado nocivo para a cidade (embora naquele tempo tal parecer no fosse unnime), mas tambm ele vtima dos Trinta e, portanto, de certa maneira, antpoda deste mau governo. Incriminar Scrates por causa de ambos tanto Alcibades quanto Crtias significava, na realidade, inutilizar a acusao, ou melhor, no entender que, em sua ininterrupta indagao dialgica, Scrates podia encontrar tanto Alcibades como Crtias sem ser o educador de nenhum deles. Ininterrupta indagao dialgica que deve ter incomodado a opinio pblica satisfeita com seus valores e suas certezas e pronta para defend-los com a fora do prprio fato de ser maioria. isso que Scrates zombeteiramente deixa3. Sob proteo dos espartanos, que haviam vencido Atenas na batalha Egos Ptamos, em 405 a.C., forma-se em 404 a.C. uma comisso administrativa de trinta membros para governar a cidade: eram os trinta tiranos, oligarquia feroz, que aterrorizou a populao e foi deposta em 403 a.C. por Trasbulo. [N.E.] 4. Plato, em Apologia, 32 D.

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entrever quando diz, fingindo querer ser cativante: Digo, pois, cidados, que outro parecido no tereis com tanta facilidade; mas, se me ouvsseis, me poupareis. Logo, porm, acrescenta: Mas vs talvez estejais irritados comigo como aqueles que so despertados no melhor do sono. E, assim, obedecendo a nito, me condenareis morte tranqilamente e depois, por todo o resto de vossas vidas, continuareis a dormir, caso o deus no se preocupe em mandar-vos qualquer outro em meu lugar.5 A acusao que Scrates enfrentou diante dos juzes, porm, no punha em causa diretamente a poltica. Esse elemento estava no ar, esvoaava, por assim dizer, em torno do processo. Por isso Scrates no hesita em falar a esse respeito, deixando claro a sua prpria postura intrinsecamente impoltica, ao relembrar os riscos mortais que havia enfrentado tanto na democracia, quando refutara como ilegal a condenao dos generais vencedores em Arginusa (e em seguida todos haveis concordado comigo), como sob a ditadura dos Trinta. Sobre o fundamento essencialmente poltico da condenao falaram, mais tarde, escritores como Polcrates, a quem, no por acaso, Xenofonte, que tinha participado da experincia dos Trinta, contestou. A acusao apresentada ao tribunal era, pelo contrrio, capciosamente religiosa e obscurantista: Scrates no acreditava nos deuses cultuados pela cidade e, alm disso, corrompia a juventude. Quem apresentou a acusao pode ter seguido a norma (j ento multiplamente violada) da anistia, que, recomposta aps o trmino da guerra civil6, proibia que fossem efetuados procedimentos judicirios motivados explicitamente pelas escolhas do acusado poca daquela guerra. Seja como for, evitava-se o caminho sempre5. Ibidem, 31 A. 6. Durante a tirania dos Trinta, exilados atenienses democratas, liderados por Trasmaco, lutavam contra os oligarcas na tentativa de reinstaurar o regime democrtico. [N.E.]

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prlogo

escorregadio do processo poltico. Preferia-se a via do processo por delito de opinio, na convico (bem fundada) de que esta seria a forma destinada a obter a aprovao da maioria. No era a primeira vez. Anaxgoras, amigo de Pricles, j tinha escapado de uma condenao segura, preferindo deixar Atenas, acusado de atesmo. O prprio Pricles pde ser atingido por uma acusao do gnero na pessoa de sua querida Aspsia. Esse era um assunto que aproximava a maioria dos atenienses; e de fato os aproximou, em 399 a.C., quando do veredicto que condenou Scrates. Voltaire tenta se consolar de forma um tanto esquemtica, no captulo VII do Tratado sobre a tolerncia, quando escreve: Sabemos que no incio obteve 220 votos favorveis. O tribunal dos Quinhentos contava, pois, com 220 filsofos: muito. Anaxgoras livrou-se da morte, Scrates quis enfrent-la no porque estivesse cansado da vida, como Xenofonte afirmou de forma tola em sua Apologia de Scrates. Anaxgoras no se tornou, nos sculos seguintes, um smbolo; Scrates, sim, justamente por causa de sua deciso de sofrer at as ltimas conseqncias o erro de seus condenadores. Aristteles tambm se deparou, dcadas mais tarde, com a mesma ameaa, e preferiu agir como Anaxgoras, e no como Scrates, para evitar como disse que os atenienses pecassem mais uma vez contra a filosofia. Os atenienses eram assim mesmo, e Aristteles, que alm de tudo era meteco, no tinha a menor inteno de oferecer-se como vtima sacrifical ao obscurantismo vigente (e s vezes predominante) na cidade que Tucdides definiu, pela boca de Pricles, em seu clebre epitfio, como escola da Hlade. No era incomum, durante a ditadura fascista [da Itlia], referir-se a Scrates como vtima de uma maioria que erra, significando que o fato de ser maioria no implica, por si s, ter a razo do seu lado. A Histria dos gregos, de Gaetano de Sanctis7, um dos7. Gaetano de Sanctis (1870-1957): historiador especialista em Antigidade, nascido e falecido em Roma. [N.T.]

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pouqussimos professores universitrios italianos que se recusou a prestar o juramento de fidelidade ao regime fascista, terminava com um captulo sobre Scrates e, creio, apresentava uma oculta auto-identificao entre o prprio autor e o filsofo. A aventura de um pequeno livro publicado no momento em que o fascismo se tornava, com o consenso popular, uma ditadura aberta sendo logo esquecido, republicado apenas cinqenta anos depois (em 1976, pela editora Adelphi), e desde o princpio posto em um silncio desconcertante , bastante instrutiva em relao ao que vnhamos dizendo. Trata-se de Princpio majoritrio, de Edoardo Ruffini8, contemporneo e amigo de Gobetti9, ele tambm um dos pouqussimos docentes universitrios italianos que no jurou fidelidade ao regime fascista; uma minoria realmente nfima (doze num total de 1.213), e nem por isso errada. A regra comunssima, assim comeava Ruffini, segundo a qual numa comunidade deve prevalecer o que quer a maioria, e no a minoria, encerra um dos problemas mais singulares que a mente humana j afrontou. Em seguida, no incio de seu escrito significativamente colocado sob o signo da pergunta de Louis Blanc, Le droit est-ce un chiffre? [O direito um algarismo?], indicava um equvoco fundamental. Ou seja: O princpio majoritrio natural e bvio at que seja contraposto ao seu absurdo inverso, o princpio minoritrio. Porm, se refletirmos sobre o quo numerosos e variados podem ser os meios para conceder a um grupo uma vontade unitria (grifos meus), podemos nos perguntar se no teria razo Sumner Maine10, que considera ser o princpio da maioria justamente o mais artificial de todos. Alm disso, observa ainda Ruffini no captulo introdutrio, se o nmero estivesse tambm do lado da minoria, como8. Edoardo Ruffini (1901-1982): historiador do direito. [N.T.] 9. Piero Gobetti (1901-1926): importante intelectual liberal e antifascista. [N.T.] 10. H. J. Sumner Maine, tude sur lhistoire des institutions primitives, Paris: 1880. [Ed. ing.: Lectures on the Early History of Institutions, Londres: John Murray, 1875.]

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prlogo

no caso de uma deliberao tomada com pequeno descarte de votos, deixa de vingar o argumento que reconhece como prova de maior discernimento o prevalecer de uma maioria. Assim, para retornar ao caso de Scrates do qual partimos, devemos recordar que, dentre os jurados, se 280 votaram pela condenao, 220 votaram pela absolvio: os 220 filsofos de Voltaire. O prprio Scrates, no segundo discurso a ele atribudo por Plato, que teria sido pronunciado aps o veredicto de culpado, visando agora definir a pena, alude, sempre ironicamente, ao embarao dos seus acusadores, motivado pela modesta diferena de votos. E declara a prpria admirao pelo nmero de votos expressos a seu favor, pois j contava com a condenao: Antes me surpreendo com o nmero de votos dos dois partidos. Por mim, no imaginava que a diferena fosse to pequena, e sim muito maior, pois, se somente trinta votos fossem da outra parte, eu teria sido absolvido. Ou seja, um grande nmero (geralmente considerado um pressuposto da justia intrnseca de uma deciso tomada pela maioria) havia se expressado tanto por uma como pela outra tese. E ento? Ruffini, que considerava a questo sob uma perspectiva muito geral, tambm observou (captulo XV) que a maior parte dos estudiosos considera o princpio majoritrio exclusivamente um problema de poltica eleitoral, como se esse fosse o nico aspecto digno de relevo. Para ns, porm, objetava, apenas um de seus inmeros aspectos, e declarava, gracejando, no querer se perder no labirinto legislativo e doutrinrio do parlamentarismo moderno. Com maior liberdade de pensamento, atingia, por essa razo, o ponto crtico, isto , o nexo entre o princpio majoritrio e o princpio igualitrio. E buscava uma soluo extraindo do pensamento grego uma correo ao mero critrio numrico, repetindo a expresso de Gramsci, na famosa pgina dos Cadernos do crcere 11,11. A. Gramsci, Quaderni del carcere, org. V. Gerratana, Torino: Einaudi, 1979, p. 1625. [Ed. bras.: Cadernos do crcere, org. C. N. Coutinho, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999/2002, 6 vols.]

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intitulada O nmero e a qualidade nos regimes representativos, qual voltaremos. O enunciado preciso obedecer aos decretos da maioria , notava Ruffini, poderia ser incorporado a outro de Tucdides12, quando afirma que a maioria, depois de ouvidos os oradores, a mais capaz de julgar . E comentava a frase de Tucdides da seguinte forma: questo sobre se o princpio majoritrio no seria apenas um princpio justo e til, mas tambm um bom princpio, os gregos no deram uma resposta direta. Todavia, foram os primeiros a tratar de um problema cujas resolues tm, em relao quela questo, um certo valor: o problema da capacidade intelectual da multido. Problema delicado e declive escorregadio. Citando os Cavaleiros, de Aristfanes no qual o Coro se dirige ao Povo e o repreende: Escutas sempre os oradores boquiaberto: mesmo que estejas presente, teu esprito est ausente. E o Povo responde: de propsito que me finjo de idiota. Ruffini conclua: Eis aqui todo o dilema. Ruffini, de resto, no escondia que o ataque ao princpio majoritrio implica, freqentemente, o propsito de atacar as instituies democrticas. E carregando, talvez, de significados a frase de Tucdides, indicava no aumento da capacidade de julgamento uma possvel soluo do dilema, isto diramos hoje por meio de uma educao poltica cada vez mais difundida e eficaz. Ele tinha razo, mesmo que o propsito seja rduo. Nesse ponto h um retorno a Scrates: a poltica como educao. A contraprova da justeza dessa intuio pode ser vista na difuso e no impetuoso e primeira vista inesperado xito dos atuais movimentos obscurantistas e antiigualitrios, que conquistam a maioria (e s vezes at mesmo chegam ao poder), mediante uma vasta, sutil e eficaz deseducao de massa, tornada possvel nas sociedades ditas avanadas ou complexas pela fora, hoje ilimitada, dos instrumentos de comunicao e de manipulao das mentes. (E nas sociedades sob12. Tucdides, VI, 39.

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a forte influncia do obscurantismo arcaico de base religiosa, em movimentos at eleitoralmente irresistveis, como por exemplo, a Frente Islmica na atual Arglia13). A numerao dos votos, escreveu Gramsci com eficincia e perspiccia na pgina j citada dos Cadernos, a manifestao terminal de um longo processo, no qual a influncia mxima pertence justamente queles que dedicam ao Estado e Nao seus melhores esforos [a expresso irnica]. Se esse pretenso grupo de optimates, apesar das imensas foras materiais que possui, no obtm o consenso da maioria, dever ser considerado inepto! Parece que nem Ruffini nem Gramsci refletiram sobre o uso, no italiano do sculo XIV, de maioria no sentido de opresso, salientado h alguns anos atrs por Roberto Ridolfi14. Em Tumulto dei Ciompi 15, de autoria de Capponi, um sapateiro agarrou Carlo Strozzi pelo peito dizendo: Carlo, Carlo, as coisas correro de modo diferente do que imaginas, e as vossas maiorias, convm a todos que sejam extintas. interessante lembrar que Ridolfi recolheu esse belo exemplo nas fichas compiladas por Gino Capponi, o cndido Gino da leopardiana Palinodia 16, para a quinta impresso do Vocabolario della Crusca 17, e que o usava como um reforo irnico a uma frase (fortemente desaprovada por ele) do escritor sovitico Konstantin Zarodov, que escreveu no Pravda, polemizando contra13. Frente Islmica de Salvao (FIS). [N.T.] 14. R. Ridolfi, Maggioranza, Corriere della Sera, Roma, 1 de setembro de 1975. 15. Ciompi eram os trabalhadores assalariados de condio nfima, na Florena do sculo XIV, empregados nos trabalhos com a l. [N.T.] 16. G. Leopardi (1798-1837), I Canti n xxxII Palinodia al marchese Gino Capponi. [N.T.] 17. Vocabulrio da lngua italiana publicado pela primeira vez em 1612, pela Accademia della Crusca, a mais prestigiada instituio lingstica italiana, fundada em Florena em 1583. [N.T.]

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os defensores de uma democracia meramente eleitoralista: A maioria no um conceito aritmtico, mas poltico. Zarodov estava muito mais prximo do liberal Ruffini do que Ridolfi podia suspeitar. Uma vez que, ao contrrio de Ridolfi, Ruffini sentia no por acaso, no momento da consolidao do regime fascista na Itlia a insuficincia do princpio aritmtico da maioria, enquanto assumido como valor absoluto e capaz de conduzir em si mesmo as razes da prpria legitimao.

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1 Iuxta propria principia*

U

m dos legados mais repulsivos da propaganda difundida no tempo da guerra fria o fundamentalismo democrtico. A expresso, no muito feliz, embora substancialmente clara, de Garca Mrquez. Indica o uso arrogante de uma palavra (democracia), que, em sua conotao atual, inclui e abrange o contrrio daquilo que expressa etimologicamente, e, ao mesmo tempo, a intolerncia com relao a qualquer outra forma de organizao poltica que no seja o parlamentarismo, a compra e venda do voto, o mercado poltico. Um corolrio desse fundamentalismo a avaliao esquemtica generalizada, de todas as outras ordens polticas. O que difere do modelo parlamentar o totalitrio, o mal. Esse modo de ver ou, melhor dizendo, de no ver a realidade, tem repercutido em todas as direes, impedindo de compreender a multiplicidade do mundo, como este vinha se articulando nos cinqenta anos que se seguiram Segunda Guerra Mundial. Tem sido um dano antes de tudo cultural e, portanto, tambm poltico. Encastelados no reino do bem, os formadores de opinio observam o resto do mundo enrolando-se na prpria cauda, como o Minos dantesco, para indicar o crculo (metafrico, e s vezes no apenas metafrico, se considerarmos os massacres da CIA no Chile e na Indonsia) no qual deve cair esse ou aquele adversrio.* Conforme os prprios princpios. [N.E.]

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crtica da retrica democrtica

Depois do fim da Unio Sovitica, tem sido a China, em particular aps Tienanmen, e apesar dos galanteios instrumentais da poca de Nixon, o objeto privilegiado desse esforo de no-compreenso. Uma voz sensata e crtica levantou-se h alguns anos. a voz de um estudioso que no viajou apenas com Ptolomeu1, para repetirmos Ariosto, mas que talvez tenha errado, aos olhos dos fundamentalistas, ao escrever, no incio dos anos 1980, Os gigantes enfermos 2, livro no-alinhado, como se pretendia, poca. De fato, esse livro colocava no mesmo plano, como objeto de anlise, o reino do bem e o reino do mal! E no estamos falando de um bolchevique, e sim de Alberto Ronchey 3. Ronchey escrevia, pois, sobre a China ps-Deng-Xiaoping, procurando compreender em vez de sentenciar: Mais do que propriamente comunista, o regime aparece hoje como uma espcie de coletivismo confuciano modernizado. (Quando consideramos que Confcio era um dos alvos prioritrios da Revoluo Cultural maosta, vemos que a estrada percorrida no foi curta.) um hbrido de estatismo totalitrio e mercantilismo, entre fechamento poltico interno e abertura econmica rumo aos empreendimentos privados nacionais ou estrangeiros. (Intil dizer que a receita no nova, e em alguns pontos se assemelha NEP, de boa memria.) Em Pequim perduram no poder os herdeiros do dogmtico Mao junto aos do pragmtico Deng. Por qu? A resposta parte justamente do evento de propaganda mais explorado no Ocidente e o encara, de modo significativo, a partir de um aforismo de Deng: Em qualquer nao, em qualquer poca, h pelo menos um por cento de cidados rebeldes a qualquer autoridade. Aqui, porm, entre um bilho e duzentos milhes de chineses, um por cento significa doze milhes de rebeldes nas praas.1. Citao de passagem de uma das stiras de Ludovico Ariosto, cujo significado, neste caso, o de viajar o mundo sem sair de casa. [N.T.] 2. A. Ronchey, USAURSS: i giganti malati, Milo: Rizzoli, 1981. 3. Alberto Ronchey: escritor e jornalista, nascido em Roma, em 1926; foi ministro de Bens Culturais e Ambientais de junho de 1992 a maio de 1994. [N.T.]

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iuxta propria principia

Da a pergunta: Como governar, ento, uma nao imensa, com a perspectiva de doze praas Tienanmen rebeladas? No h um termo de comparao com os pressupostos das civilizaes liberais surgidas na Gr-Bretanha, nos Estados Unidos e na Frana. E no seria possvel nem mesmo uma comparao com Cuba. Os ocidentais tm freqentemente interpretado os eventos na China com os sistemas de julgamento e os parmetros histricos de seu prprio mundo, em vez de estudar a China iuxta propria principia. [...] Aquela remota entidade existe tal como fizeram-na a histria mais antiga, a demografia moderna mais acelerada em suas taxas de crescimento, a hidrografia mais catastrfica e a dominao colonial mais dolorosa. Talvez antecipe, sem que seja previsvel em outro lugar uma tal estabilidade de governo, ainda que desptica, o futuro do Terceiro Mundo investido pela bomba demogrfica.4 Voltaremos, ao final destas pginas, a esse ponto capital. Por ora nos limitaremos a recordar que j Herdoto, quando relatou durante uma leitura pblica em Atenas que aps a morte de Cambises e com o fim do usurpador que o sucedera, algum props instaurar a democracia na Prsia, ele no foi acreditado. E que, no dilogo de George Cornewall Lewis5 sobre a melhor forma de governo (1863), uma das objees recorrentes que o sistema parlamentar (por fundamentalismo depois definido tout court democrtico) no adequado para ser implantado indiscriminadamente em qualquer civilizao ou qualquer terreno, sem que isso implique, nas palavras do poltico e historiador ingls, a arrogncia dos liberais racistas moda de Julius Schwarcz (1873), para quem a democracia seria uma prerrogativa exclusiva da raa branca.4. A. Ronchey, Lultima Cina nellera di Jiang [A ltima China na era de Jiang], Corriere della Sera, 26 de setembro de 1999, p. 1. 5. Sir George Cornewall Lewis (1806-1863): poltico, estadista e letrado britnico. [N.T.]

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crtica da retrica democrtica

Enfim, no so esses mesmos fundamentalistas democrticos que repetem, quase sem cessar, que liberismo e liberalismo (eles dizem de forma mais tosca: capitalismo e democracia) so indissolveis? O quanto, na realidade, era mera propaganda a indignatio da qual o regime poltico chins fora objeto por to longo tempo, algo que se pde ver em outubro de 2001, quando o presidente dos Estados Unidos despencou na China para cortejar a cpula do partido oficial, de modo a conseguir neutralidade na insensata guerra contra o terrorismo, desencadeada pelos EUA nas fronteiras chinesas. A China transformou-se a partir daquele momento num parceiro digno, estimado e confivel. Tienanmen no existe mais.

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