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A iconografia de Sant’Ana, entre signos e olhares Dr. Marcial Maçaneiro Faculdade Dehoniana Com uma biografia incerta, mais devida aos textos apócrifos do que à verifica- ção histórica, Sant’Ana foi além do sotaque galileu e da cor palestinense que lhe seriam originais e tornou-se figura feminina inserida no horizonte da devoção, das reformas eclesiásticas e dos reveses da sociedade colonial. Após séculos de percurso, ela se apresenta como tela viva da devoção e das expectativas, receptáculo de olhares e in- terpretações. Sant’Ana é religiosidade, arte, promessa e registro d’alma. No presente estudo, recordo o patrocínio de santa Ana para, depois, pousar três olhares sobre sua iconografia: o olhar devoto – que desvela a “ratio imaginis” da figura de Sant’Ana; o olhar decifrador – que lê os signos; e o olhar marrano – que busca as reminiscências judaicas contidas nas representações. 1. O “patrocínio” de Sant’Ana O patrocínio comporta as realidades das quais Ana é considerada padroeira e decorre geralmente da vida exemplar dela, por similitude. Sempre que se verificam si- tuações semelhantes àquelas vividas pela personagem Ana, tais situações se colocam sob o seu patrocínio. Assim, esta mulher graciosa e agraciada (Hanna) se transforma em padroeira das mães, esposas, donas de casa, avós e educadoras de moças. Ela roga, junto de Deus, o patrocínio para seus devotos. O latim patrocinium equivale a “inter- cessão” ou “ajuda” e se liga às palavras patrona, padroeira e patrocinadora. Esta variedade de patrocínios, por si mesma, já seria um tópico interessante para a pesquisa histórica. Mas, aqui, prefiro apenas tratar de sua lógica. Em primei- ra instância, como disse acima, a lógica do patrocínio segue o viés da similitude: a Ana avó = padroeira das avós; a Ana educadora = padroeira das educadoras, etc. Em segunda instância, encontramos as variadas situações nas quais os aconteci- mentos locais conduziram o patrocínio de santa Ana pelo viés dos cenários. Assim, Ana é padroeira da liberdade comunal na cidade de Florença (Itália), enquanto

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A iconografia de Sant’Ana, entre signos e olhares

Dr. Marcial Maçaneiro Faculdade Dehoniana

Com uma biografia incerta, mais devida aos textos apócrifos do que à verifica-ção histórica, Sant’Ana foi além do sotaque galileu e da cor palestinense que lhe seriam originais e tornou-se figura feminina inserida no horizonte da devoção, das reformas eclesiásticas e dos reveses da sociedade colonial. Após séculos de percurso, ela se apresenta como tela viva da devoção e das expectativas, receptáculo de olhares e in-terpretações. Sant’Ana é religiosidade, arte, promessa e registro d’alma.

No presente estudo, recordo o patrocínio de santa Ana para, depois, pousar três olhares sobre sua iconografia: o olhar devoto – que desvela a “ratio imaginis” da figura de Sant’Ana; o olhar decifrador – que lê os signos; e o olhar marrano – que busca as reminiscências judaicas contidas nas representações.

1. O “patrocínio” de Sant’Ana

O patrocínio comporta as realidades das quais Ana é considerada padroeira e decorre geralmente da vida exemplar dela, por similitude. Sempre que se verificam si-tuações semelhantes àquelas vividas pela personagem Ana, tais situações se colocam sob o seu patrocínio. Assim, esta mulher graciosa e agraciada (Hanna) se transforma em padroeira das mães, esposas, donas de casa, avós e educadoras de moças. Ela roga, junto de Deus, o patrocínio para seus devotos. O latim patrocinium equivale a “inter-cessão” ou “ajuda” e se liga às palavras patrona, padroeira e patrocinadora.

Esta variedade de patrocínios, por si mesma, já seria um tópico interessante para a pesquisa histórica. Mas, aqui, prefiro apenas tratar de sua lógica. Em primei-ra instância, como disse acima, a lógica do patrocínio segue o viés da similitude: a Ana avó = padroeira das avós; a Ana educadora = padroeira das educadoras, etc. Em segunda instância, encontramos as variadas situações nas quais os aconteci-mentos locais conduziram o patrocínio de santa Ana pelo viés dos cenários. Assim, Ana é padroeira da liberdade comunal na cidade de Florença (Itália), enquanto

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que, em Minas Gerais, é invocada como protetora dos mineradores. Há ainda a possibilidade de outros patrocínios, pois o trânsito da personagem do mundo me-diterrâneo ao ibérico e, posteriormente, ao sul-americano e brasileiro pode ter des-locado sua figura para cenários novos, reelaborando papéis e significados.

Um exemplo é a associação entre Ana e o tesouro ou moeda: parece um co-rolário do seu patrocínio entre os mineradores, de cujo ouro eram feitas as moedas mais valiosas. A analogia Ana-tesouro é sugerida pela passagem de Mateus 13,1-9 (parábola do homem que encontra um tesouro escondido num campo; vende tudo o que possui para adquirir o campo e, nele, o tesouro) que é o Evangelho procla-mado na missa de 26 de julho, memória de Ana. Logo santa Ana se tornou padro-eira dos moedeiros. Se, de um lado, a figura de Sant’Ana irradia a exemplaridade da esposa-mãe virtuosa, por outro lado ela recebe significados que os muitos olha-res lhe conferem, a cada tempo e lugar, com patrocínios objetivamente evocados e subjetivamente sentidos.

2. Do patrocínio à iconografia

A iconografia de Sant’Ana é coerente com o seu patrocínio e tem uma tipolo-gia conhecida1. Vejamos uma breve caracterização:

Sant’Ana Raiz – mostra Jessé, pai de Davi, deitado ao chão, como que em sono, de cujo corpo (ventre e costelas) emerge um tronco. Deste provêm ramos com frutos: Davi, Joaquim, Ana e, por vezes, Maria. A intenção é reproduzir a ascendência daví-dica de Jesus, conforme anunciado pelo profeta Isaías: “Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará das suas raízes” (11,1). É uma alegoria da genealogia mes-siânica: a figura nos transporta ao futuro, antevendo o salvador como fruto definitivo da árvore que brota de Jessé, o tronco primordial. Chamada justamente de Árvore de Jessé, há um tipo cristológico dessa representação, que aponta para o Messias como foco interpretativo principal, com os demais personagens num nível anterior e teolo-gicamente inferior2. Algumas variantes (desde o séc. XII) trazem profetas e reis que foram ancestrais de Cristo, segundo as genealogias neo-testamentárias do Messias (cf. Mateus 1,1-17; Lucas 3,23-38). Com o passar do tempo, surgiu um tipo mariológico, que destaca os avós de Jesus e sua mãe, Maria. “Apesar de restringida pela Contra-Reforma, a iconografia da Árvore de Jessé ainda inspirou obras em Portugal. No Brasil, no entanto, ela é muito mais rara”3.

1 Cf. MELLO E SOUZA, Maria Beatriz de. “Mãe, mestra e guia: uma análise da iconografia de sant’Ana”. In Topoi dez.(2002), p. 232-250. Disponível em < www.ppghis.ifcs.ufrj.br >. Acesso: 16 mar. 2006. 2 Por exemplo, a pintura Visão do Carmelo do mestre de Flemalle, hoje no Museu Lázaro Galdiano, Madrid: Jesus é o fruto mais elevado, que brota de Emerenciana e Sant’Ana Raiz.3 MELLO E SOUZA, Maria Beatriz, op. cit., p. 235.

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Santas Mães – com Ana ao fundo (anciã), Maria em seu colo (jovem mãe) e Jesus (menino) ao colo de Maria. Nesta figuração Maria e Ana se conectam, na linha das santas mães bíblicas. A Espanha chama esta representação de Sant’Ana Tríplice. Na Alemanha se diz St. Anna Selbdritt. Na Itália, Santanna Metterza, da contração do florentino sant’Anna mi è terza ou m’è terza: Jesus é o primeiro, Maria é a segunda, santa Ana me é terceira (na ordem do patrocínio). São muito apreciadas as pinturas de Santanna Metterza de Masolino-Masaccio e de Leonardo da Vinci. Em Masolino-Masaccio, silente, estática e hierática. Em Leonardo, mais expressiva, dinâmica e com toques lúdicos. Há também casos de Santas Mães esculpidas (algumas já no séc. XIII), resultando numa obra de considerável volume e peculiar jogo de simetrias, devido à posição dos corpos. Encontram-se ainda variações: Ana e Maria de pé, com o menino Jesus ao centro; Emerenciana (suposta mãe de santa Ana) antes de Ana, Maria e Jesus – tipo apreciado pelos carmelitas, cuja tradição ligava Emerenciana à Ordem do Carmelo. Aliás, na pintura Visão do Carmelo de mestre Flemalle a ascen-dência de Jesus parte de Emerenciana, prostrada ao chão como prima radix (primeira raiz). Outro detalhe é a presença do pombo que paira sobre o conjunto dos persona-gens ou exclusivamente sobre Jesus, quando este se encontra no centro, entre Ana e Maria. Neste caso, a figura do pombo tem uma denotação cristológica, sinalizando a identidade messiânica do “Cristo” – em grego, “aquele que é Ungido” (mashiah) pelo Espírito Santo desde a concepção�.

Sant’Ana Guia – representa Ana com Maria, geralmente de pé, sugerindo ca-minhada. Indica a função pedagógica de Ana e, muitas vezes, os olhares desta e de sua filha se cruzam. Em alguns casos, Maria leva um livro. Noutros, Ana estende um pergaminho que se desenrola até as mãos de Maria. Às vezes, no pergaminho traz a frase Et egredietur virga de radice Jesse (da raiz de Jessé um ramo brotará: Isaías 11,1). Outras vezes, aparecem os algarismos romanos de I a X, sinalizando o decálogo (cf. Êxodo 20,1-17). Exemplos dessa representação são recorrentes na Itália, Portugal, Espanha e Brasil.

Sant’Ana Mestra – de composição mais complexa, há um conjunto sugestivo de elementos e posições corporais. Geralmente, santa Ana está sentada numa cátedra, com Maria menina a seu lado ou próxima de seus joelhos, como que seguindo as lições da mãe. Embora menina, Maria tem traços adultos: um sinal anacrônico de seu futuro papel de mãe de Jesus ou, talvez, de sua capacidade de aprender a fé e as virtudes – o que valorizaria a educação5. Imagem originária do séc. XIII, o barroco posterior preservou o livro que Ana oferece a Maria, sugerindo alfabetização, apren-dizado, leitura e sabedoria. A cátedra, às vezes em estilo manuelino, lembra o sim-bolismo bíblico do trono. Em certas variantes, Ana é encimada por um pombo de dupla denotação: a primeira, indicando que a Escritura que ela ensina foi inspirada pelo Espírito Santo; a segunda, indicando que a maternidade de Ana é similar - em-bora não igualável - àquela de Maria, por serem gerações agraciadas (conforme Han-na, graça), ocorridas sob a custódia do Espírito divino. Esta segunda denotação é

� Por ex. Sankt Anna Selbdritt do mestre de Frankfurt (1�60), Museu do Palatinado, Heidelberg.5 Cf. MELLO E SOUZA, Maria Beatriz de, op. cit., p. 2�1-2�3.

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perceptível nas muitas imagens da maternidade de Ana e de Maria, ambas represen-tadas sob a pomba do Paráclito. Afinal, seu quase pararelismo é uma herança das narrativas apócrifas e da idéia bíblica de gerações providenciais, de Jessé até Jesus.

3. Sob o olhar devoto, a “ratio imaginis”

Ainda que Régis Debray classifique certas imagens sacras como imagens-íco-ne, o sentido estrito de ícone na arte litúrgica está longe de ser aplicado à represen-tação de Sant’Ana Mestra. Neste caso, o olhar é um dos critérios de distinção6. Diante do ícone, o fiel cerra os olhos e inclina a cabeça. Pois antes de “ver” o íco-ne, o devoto “é visto” por ele: é do ícone que dimana a luz gloriosa do Verbo, em cujo Corpo se encerra toda a divindade. O ícone goza da luminosidade e da elo-qüência do Verbo, convidando o fiel ao silêncio de quem é visto e amado pelo Divino. Já a imagem sacra ocidental (sobretudo a escultura) não goza da mesma luminosidade ou eloqüência: é muda, na mudez cromática de sua plasticidade; não ilumina, mas necessita ser iluminada. Eloqüente, neste caso, é o olhar devoto que - carregado de sentido - mais vê a imagem, do que é visto por ela. O devoto circunda a imagem de velas e candeias votivas. Daí a enorme diferença de pers-pectiva, profundidade e jogo de dimensões que distingue o ícone bizantino e a escultura sacra ocidental.

Em termos estético-teológicos, podemos dizer que a ratio imaginis do ícone é o splendor gloriae (esplendor da glória divina) na linha da shekiná bíblica assimila-da pela teologia da encarnação do Verbo. A proclamação joanina de que “o Verbo se fez carne e armou entre nós a sua shekiná (tenda, morada)” indica o evento es-tético da Palavra que assume forma e visibilidade humana (cf. João 1,1�). O Deus inefável faz tenda (shekiná) na carne humana. Por isso Paulo diz que em Cristo “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Colossenses 2,9). Jesus Cris-to é o retrato divino pintado pelo Espírito Santo na tela da carne, tornando-se “íco-ne visível do Deus invisível” (Colossenses 1,15). Notemos que este versículo grego diz exatamente “ícone” (eikon) e não imagem (eidon) ou figura (typos).

Então, qual seria a ratio imaginis das representações sacras ocidentais, como a imagem de Sant’Ana mestra ou guia? Poderíamos encontrar resposta na arte deco-rativa ou no argumento da Biblia pauperum, que considerava a representação em relevo ou vitral a Bíblia dos pobres iletrados. Mas ainda estaríamos na esfera segun-da do funcional, enquanto que a ratio imaginis busca a esfera primeira do Sagrado. Creio que a ratio imaginis das representações visuais – e particularmente da estatu-ária sacra – seja a memoria promissionum: a memória das promessas. Se o ícone bizantino é splendor gloriae (esplendor da glória divina) enraizada na manifestação carnal da shekiná, a escultura sacra ocidental é memoria promissionum (memória

6 Cf. DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no Ocidente. Petrópo-lis: Vozes, 199�, p. 5�-60.

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das promessas divinas) enraizada na História da Salvação visivelmente celebrada nos sacramentos católicos. O ícone nos insere no kairós: o tempo definitivo da graça, que ilumina o presente com os raios da eternidade. A imagem ocidental, por sua vez, nos insere no kronos: o tempo fugaz, que atravessamos com fortaleza e esperança, amparados na promessa do céu futuro. Diante do ícone, o fiel – ilumi-nado pelo esplendor divino – fecha os olhos e se sente participante do tempo da graça (kairós). Diante da imagem ocidental, o fiel – amparado pela promessa divina – abre os olhos e acende velas para caminhar sem tropeços, num peregrinar cheio de reveses (kronos). Ambos buscam o futuro, mas por vias diferentes: o bizantino-oriental, parte da glória que transfigura a história; o latino-ocidental, parte da histó-ria que se transfigurará futuramente na glória.

Mas, voltemos à imagem de Sant’Ana, sobre a qual o devoto ocidental pousa seu olhar. Figura que rememora gerações, monumento cromático à Providência divina que dirige os eventos do kronos (tempo histórico), Sant’Ana é receptáculo do olhar esperançoso do fiel, cujo presente se vê amparado pela promessa futura do céu. Essa memória das promessas deu à luz a Sant’Ana ocidental. O constante re-curso a Isaías 11,1 o demonstra: o tempo vindouro proclamado pelo profeta não diz respeito só a Cristo, mas dá sentido a todas as gerações que o antecederam (a geração pela carne) e também àquelas que nascerão dele pela redenção (a regene-ração pela graça).

É este olhar devoto que rompe o mutismo plástico das imagens, carentes de voz e de luz. Pois sua voz e luz não são outras, senão a voz e a luz do Verbo sal-vador, que ressoa no coração do fiel. Um decorador vê Sant’Ana como decorador; um artesão, como artesão; um curador de acervo, como curador de acervo; um li-turgista, como liturgista. Somente o devoto a vê com devoção genuína, fazendo-a falar. É o olhar devoto que nos ajuda a decifrar a ratio imaginis dessa representa-ção, atingindo o ponto de toque entre sua forma (exterior-objetiva) e sua inteligibi-lidade (interior-subjetiva).

Praticamente todos os devotos que se confiam ao patrocínio de santa Ana estão vinculados, pelo labor e pela esperança, ao futuro. Tanto o seu futuro pessoal, quan-to o citadino. Mães, avós e educadores; mineradores e moedeiros – todos pousam em Sant’Ana o olhar das promessas vindouras que amparam o presente e rumam para o futuro. Sant’Ana é atestado mudo e estático desse futuro promissor que Deus provin-dencia, vencendo os limites de kronos, como a velhice e a esterilidade. Não por acaso, a devoção à avó de Jesus se ambienta em contextos de esperança e expectati-va, de produção e geração, sendo homenageada por quem trabalha e sonha, gera e educa, sofre e festeja, com olhar no amanhã pessoal, familiar e social. Do séc. XII ao XVIII a história se viu repleta de arautos do futuro: os cruzados e o sonho de conquis-tar a Cidade Santa; o gótico de arco quebrado apontando para o céu; as visões de Elisabete de Schönau e Hildegarda de Bingen; Joaquim de Fiore e a “era do espírito”; os navegadores e a busca da “Ilha Brazil”; Colombo e sua visão do novo mundo; os cristãos-novos e a esperança da nova Terra Prometida; os cristãos-velhos e o peregri-nar para a Jerusalém Celeste; a espera da volta de Dom Sebastião; Antônio Vieira e o destino messiânico do Reino de Portugal. Pela devoção, os fiéis esperam ativamente

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o tempo vindouro que se concretiza pelo devir das gerações, pelo trabalho produti-vo, pelo comércio e pela educação. O patrocínio de santa Ana o demonstra: mães e avós = devir de gerações; mineradores e esposas = o trabalho e a produção; moedei-ros = comércio e circulação da produção; avós, mães e religiosas = a educação das moças, futuras mães, esposas e freiras.

4. Sob o olhar decifrador, os “signos”

a) A cadeira ou trono: Na representação das Santas Mães temos uma entroni-zação corporal, com Jesus no colo de Maria e esta no colo de Ana. Neste sentido, Maria é o trono messiânico de Jesus, como Ana é o trono profético de Maria. A Vir-gem se assenta nas profecias. O Filho se assenta no trono de Davi, ascendente régio do messias. A cadeira, por vezes em estilo manuelino na estatuária colonial, é sím-bolo de posição magistral: abades, juízes, reitores, bispos e mestres ensinam ou sen-tenciam ex cathedra. A Virgem Maria igualmente, sob o título de Sedes sapientiae (sede da sabedoria) é representada numa cátedra. Título, porém, de núcleo cristo-lógico: Jesus é a sabedoria divina assentada ou entronizada no seio da Virgem Maria. O latim sedes significa “cadeira” e originou os termos Sé (português), Sedia (italiano) e Siège (francês). Evangelistas, doutores e doutoras da Igreja também são representados “in cathedra” – similarmente à imagem de Ana mestra e Maria sedes sapientiae. Teólogos e historiadores concordam ao observar certa imitação da figu-ra de Ana em relação a Maria: a santidade de Ana imita a de Maria; a concepção agraciada de Ana imita a concepção extraordinária de Maria; a Ana sábia e mestra imita a Virgem Sede-da-sabedoria. Uma é como que o retrato da outra, na linha da exemplaridade7. Isto é visível na imagem de Sant’Ana Mestra, sobre sua cátedra espaldada, decorada e proeminente, semelhante à figura da Virgem sedes sapien-tiae presente em estampas, pinturas e inclusive na chancela de prestigiosas univer-sidades católicas, como a Universidade Católica de Lovaina (Bélgica) ou a Pontifí-cia Universidade Gregoriana (Itália) – ambientada na reforma tridentina. Ainda a respeito do trono, observo que é um emblema messiânico caro ao judaísmo: não podemos esquecer que Ana é uma figura judaica agraciada por ser fiel à Aliança, honrando a sua linhagem davídica (segundo alguns) ou levítica (segundo outros). A cátedra recorda discretamente a promessa do messias régio, que deverá assentar-se sobre o trono de Davi: “Sentado no trono, com o poder real de Davi, fortalece e firma esse poder com a prática do direito e da justiça” (Isaías 9,6); “Haverá um dia em que farei brotar para Davi um rebento justo: ele reinará de verdade e com sabe-doria, porá em prática a justiça e o direito” (Jeremias 23,5). Em Lucas, a concepção de Jesus realiza essa profecia: “o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai. Ele reinará para sempre sobre a descendência de Jacó, e o seu reino não terá fim” (Luca 1,32-33). Ainda hoje, as famílias israelitas reservam um assento para o futuro mes-sias, como se deduz do simbolismo da cadeira de Elias no Rito do Séder (páscoa judaica) ou na figura do trono vazio presente em alguns templos, como a Sinagoga

7 Cf. MELLO E SOUZA, Maria Beatriz de, op. cit., p. 237.

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de Carpentras, França, construída no início do séc. XVIII – contemporânea de mui-tas imagens de Sant’Ana Mestra em Portugal e no Brasil.

b) O livro: Santa Ana é a santa do livro e da instrução das moças. No período colonial, esta era uma função matriarcal (coincidência ou não, acontece o mesmo na família judaica tradicional). Os conventos e internatos preparavam a moça para o casamento e zelavam por sua virgindade. Mas eram as mães que iniciavam as meninas no aprendizado da religião e das virtudes. Embora as moças aprendessem a ler e escrever, a fazer as quatro operações aritméticas, a bordar e costurar, a edu-cação religiosa e moral valia mais do que os conhecimentos intelectuais8. E isso se dava preferencialmente no lar, em contraste com a educação dos rapazes, mais expostos à sociedade. Portanto, o livro que Ana apresenta à filha não indica apenas educação literária, mas educação religiosa e moral.

c) A inscrição: É curioso examinar a inscrição presente no livro, nas imagens de Sant’Ana Mestra. As inscrições mais recorrentes são:

Isaías 11,1 – Frase já citada: “Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento bro-tará de suas raízes”.

Salmo 24 – Salmo acróstico, que desfia seus versos a partir das 22 letras do alfabeto hebraico. Corresponde à situação acadêmica da escola judaica (Yeshivá), com aplicação ao ensino da oração e dos valores israelitas. As expressões caminho, vereda, preceito; bondade, direito, retidão; temor divino, piedade e aliança – pre-sentes no texto – evidenciam a força pedagógica deste Salmo.

Salmo 118 – outro salmo alfabético, com 176 versículos bem ordenados. O texto insiste na excelência dos preceitos judaicos e sua utilidade para a educação do fiel, incluindo o jovem. Destaca a devoção à Torah, a docilidade à instrução, a bondade e a fidelidade divinas.

Provérbios 4 – Capítulo da literatura sapiencial que exorta os filhos a recebe-rem docilmente a instrução dos pais. O verbo “escutar” encabeça as exortações, remetendo ao Shemá Israel – prece máxima e atitude fundamental do fiel israelita: “Escuta Israel! O Senhor é nosso Deus. O Senhor é único!” (Deuteronômio 6,�).

“Deus” – Simplesmente o Nome: ha-Shem, em hebraico; Deus, em latim. Ins-crição complexiva que guarda todo o horizonte religioso das santas mães, de seu percurso fiel e virtuoso e, como remate final, do filho Jesus. Além da brevidade do Nome, os personagens é que se tornam uma “escritura viva” de Deus pela sua fé, esperança e caridade exemplares.

I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X – Algarismos romanos de 1 a 10, remetendo ao decálogo de Êxodo 20,17. Neste caso, os algarismos resumem as cláusulas da Alian-ça selada entre Deus e a humanidade no primeiro Israel, depois consumada por Je-sus, no novo Israel. Não importa tanto a grafia dos algarismos, mas a realidade à qual eles remetem: a Aliança, registrada nas Escrituras e transmitida pela educação.

8 Cf. Idem, p. 2�2.

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Magnificat anima mea Dominum – “Minh’alma engrandece o Senhor”, em algumas representações, exclamação do louvor de Maria em Lucas 1,�6.

d) O pombo: Figura presente, sobretudo na pintura, como dissemos acima. Denota a geração abençoada de Maria e de Jesus, ao homenagear a maternidade de Ana e Maria como dom (embora em graus diversos, pois somente Jesus é o Ver-bo humanado). Denota também a origem divina da sabedoria contida no livro (as Escrituras judaicas) com o qual Maria é educada por Ana. Quando pousa sobre o menino figurado entre as santas mães, o pombo representa a origem divina e a unção messiânica de Jesus. Na base dessa representação está a passagem sinótica do batismo de Jesus nas águas do rio Jordão, quando o céu se abriu, Deus Pai se pronunciou e o Espírito Santo manifestou-se na figura de um pombo, que vem e pousa sobre o Ungido de Deus (cf. Mateus 3,16; Marcos 1,10; Lucas 3,22).

e) Mão e dedos: Embora mais evidente nos ícones bizantinos, a mão com de-dos delicados, às vezes longos, é um signo importante no cânon estético da Bíblia. Por que? Porque indica as habilidades artesanais do oleiro, do tecelão e do escriba – cuja caligrafia é considerada arte sagrada, dada a importância da letra como re-gistro escrito da Palavra divina em hebraico. Sobre o simbolismo dos dedos na Bí-blia, indico alguns textos: Êxodo 31,18; Salmo 8,�; Lucas 11,20; 2Coríntios 3,3. Nesses textos, os dedos e a habilidade digital significam o Espírito Santo com seu agir preciso e delicado nos corações e na inteira História da Salvação: ele é Digitus paternae dexterae9. No que se refere aos artistas que retratam Sant’Ana, precisaría-mos investigar seu nível de familiaridade com o simbolismo bíblico em geral e o grau de intenção no uso desse signo. Apesar disso, em muitas representações temos a figura expressiva da mão, com dedos delicados ou em posição emblemática. É o caso da Santanna Metterza de Masolino e Masaccio – atualmente na Galleria degli Uffizi (Florença). Ana encontra-se guarnecida por anjos que estendem um manto de damasco, ao fundo. Com rosto sereno e hierático, volta os olhos para o menino Jesus e sobre ele pousa sua mão esquerda, sem, contudo, tocá-lo. A imagem sugere bênção, mais que proteção, com os dedos estendidos. Não é difícil associar a mão benedicente de Ana com a figura do pombo que paira sobre o menino em outras representações. Além disso, Masolino abre um significativo espaço para a mão de Ana, em face da Virgem e sobre a cabeça do bambin Gesù. Trata-se de uma posi-ção de honra que destaca a mão e os dedos, além de valorizar a presença de santa Ana. Há um resquício de gótico no quadro, pois Masolino era cultor desse estilo. As cores são puras e os rostos têm perfil definido. Há corpos volumétricos de hu-manidade viva e pensativa, e a luz se concentra na madonna com o menino – con-junto executado por Masaccio. Quem acha que eu esteja supervalorizando o signo da mão e dedos emblemáticos, recorde o lugar da bênção no protocolo familiar mediterrâneo e ibérico e perceba, para espanto do admirador, a ausência intencio-nal das mãos de Ana na versão de Leonardo da Vinci – hoje no Museu do Louvre (Paris). Ele literalmente esconde as mãos benedicenti de Ana, para concentrar a

9 “Dedo da destra do Pai”: como diz o hino Veni Creator, síntese poética de pneumatologia bíblico-patrística, composto por Rábano Mauro no séc. IX e cantado até os dias de hoje.

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atenção nos rostos sorridentes e focar o olhar do admirador na anatomia (sobretudo da Virgem), cujo semblante esfumado colhe a luz com grande expressividade. Leo-nardo prefere destacar a simetria dos olhares, compondo uma linha em triângulo no conjunto da pintura: uma composição em pirâmide, preenchida pelos corpos. E no lugar dos dedos ou do pombo que paira (símbolos do Espírito Santo) ele propõe o ambiente amplo e arejado de uma paisagem natural, ao fundo. Não há resquícios de gótico. Longe de Donatello, Masolino e Masaccio, Leonardo joga luz nos semblantes sorridentes e substitui o Espírito de Deus pelo espírito da Natureza. A meu ver, Leo-nardo ensaiou – com sucesso formal e cromático – uma versão mais lúdica e menos sacra da Metterza. Além de não haver anjos nem auréolas ao redor das cabeças, Le-onardo preteriu os signos sagrados comuns ao cânon estético da Bíblia, como o pombo, os dedos delicados e a mão benedicente de Ana. É uma versão renascentista e, em certa medida, secularizada da Sant’Anna Metterza venerada até então.

5. Sob o olhar marrano, a “cena iniciática”

Quero ressaltar o quanto a figura de Sant’Ana tem registrado a memória e manu-tenção da Aliança do povo israelita. Mesmo com uma devoção desenvolvida após a vinda de Cristo, sua imagem é a da mulher fiel à Aliança dos ancestrais, que aguarda o advento do messias e dele participa de modo direto, pois nela se cumprem as anti-gas profecias bíblicas. Pergunto-me se isso teria repercutido no cenário colonial, marcado pelo messianismo lusitano e a presença dos cristãos-novos. Afinal, o subs-trato cultural de Sant’Ana preserva elementos judaicos: o nome Hanna (graça), a afirmação das estirpes levítica ou davídica do casal, as referências à Galiléia e a Bet-Lehem, a função matriarcal da educação moral e religiosa, o apelo explícito à profe-cia de Isaías e, sobretudo, a participação na geração do messias Jesus, nascido da fi-lha Mariam (o texto apócrifo cita esta forma aramaica do nome Maria). O que a imagem de Sant’Ana Mestra nos revela, se considerada sob o olhar marrano?

Em primeiro lugar, o olhar marrano reconhece na imagem a cena insólita do que seria um bar-mitzva feminino (a rigor, um bat-mitzva). Pois a presença de uma mestra, em posição de ensino, oferecendo o livro a uma mulher (adolescente ou jovem) não só recorda a educação familiar, mas compõe o cenário celebrativo do bar-mitzva, prescrito aos meninos israelitas quando completados doze anos de ida-de. No caso de um cenário judaico (como se supõe para Ana e Maria, aliás, Hanna e Mariam) o que sugere o deslocamento da educação doméstica à celebração sina-gogal? Justamente a presença do livro, cuja preciosidade o faz raro nas casas e, conforme as regras, quase inacessível às meninas. O livro seria a própria Lei (Torah) ou pelo menos uma das outras duas partes da Bíblia hebraica, os Profetas (Nebiim) ou os Escritos sapienciais (Ketuvim). A estatuária barroca indica justamente os três casos: o livro seria a Lei (indicada pelo decálogo), os Profetas (passagem de Isaías 11,1) ou os Escritos (citação de Provérbios e Salmos). Se o olhar devoto luso-brasi-leiro vê na cena a educação religiosa e moral das moças no lar, o olhar marrano reconhecerá, sobretudo na presença do livro, os sinais de uma iniciação à Aliança mediante o conhecimento das Escrituras.

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No bar-mitzva (“filho do mandamento”) os meninos celebram a maioridade legal e mostram possuir o conhecimento positivo das Escrituras, cujo centro é a observância dos mandamentos (mitzvot). A cena em que Jesus, ao doze anos, discorre sobre a Lei entre os doutores do Templo sugere um bar-mitzva de sucesso, no caso de um adoles-cente pobre e galileu. Mas as meninas eram excluídas dessa cerimônia, em decorrência da norma que as dispensa do conhecimento positivo da Torah. Assim, elas seguiam as leis judaicas referentes ao seu gênero e estado (solteira ou casada, mão ou estéril), ob-servando apenas alguns dos 613 mandamentos expostos no Talmud e na Mishná. Com esta dispensa legal, as mulheres tinham mais disponibilidade para os afazeres conjugais e domésticos10. Considerado isto, uma iniciação sinagogal no conhecimento da Lei para a jovem Mariam está fora de questão11. Portanto, a cena iniciática de Sant’Ana Mestra registra o valor crescente que a educação das moças adquiriu nos países ibéri-cos e, posteriormente, na colônia Brasil. Ou será que algum cristão-novo, psicologica-mente familiarizado com sua herança judaica, nos teria deixado sinais de um bar-mit-zva na escultura, numa manifestação velada de amor à Aliança? – Nesta direção, a estatuária barroca de Sant’Ana Mestra apresenta três detalhes interessantes:

a) O texto de Provérbios � (indicado no livro) é um k’tub (escrito judaico) que transcreve a filosofia de educação desenvolvida pelos mestres rabínicos ao longo de séculos, prevendo situações em que a família israelita fosse habitar fora de Isra-el – como é o caso dos exilados e cristãos-novos. Os rabinos diziam: “Abençoado é o filho que estudou a Torah com o pai, e abençoado é o pai que instruiu o filho”. E ainda: “Treina uma criança no caminho que ela deve seguir; e quando ela enve-lhecer, não se afastará dele”12. Esta filosofia apela à responsabilidade dos pais e seu estabelecimento nas comunidades judaicas ocorreu em �50 a.C., após o exílio babilônico, quando o livro de Provérbios tomou sua forma definitiva. A mesma exortação reaparece nas imagens de Sant’Ana Mestra que remetem ao capítulo � de Provérbios – livro apreciado pela educação judaica.

b) Maria está de pé, na posição típica do discípulo durante o bar-mitzva. Pois quando o discípulo estuda na yeshivá (escola) ele fica sentado. Mas quando adquire maioridade legal e proclama os versos da Escritura na sinagoga, ele o faz de pé. A postura indica disposição para seguir o Caminho da Vida, que é o caminho dos man-damentos prescritos na Torah. É certo que, no Quarto Evangelho, João diz que Maria estava “de pé” diante da cruz, em sinal de fé e fortaleza (cf. João 19,25). Mas o cená-rio da paixão é outro, bem distante do cenário da instrução representado nas imagens de Sant’Ana Mestra. Em todo caso, Maria que lê ou aprende de pé as Escrituras coin-cide com a postura do estudante em bar-mitzva.

10 Segundo Adin Steinsaltz esta “distinção entre os sexos baseia-se numa divisão funcional de tarefas, que são vistas como de orientação diferente, mas iguais em valor” (O Talmud essencial. Rio de Janeiro: A. Koogan, 1989, p. 199). 11 Com o desenvolvimento do Judaísmo Reformista no século XX, algumas sinagogas passa-ram a admitir meninas para o bat-mitzva (“filha do mandamento”). Apesar disso, tal prática não é consensual no mundo judaico. 12 Ditos rabínicos apud AUSUBEL, Nathan. Conhecimento judaico, vol. II. Rio de Janeiro: A. Koogan, 1989, p. 709-710.

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c) O dedo indicador sobre o livro não é um gesto corriqueiro, mas expressão do aprendizado e aplicação às lições contidas na Escritura Sagrada. Em qualquer idioma, a iniciação à prática da leitura sempre exige cuidado e atenção. É interessante notar que, no método de leitura das escolas israelitas (yeshivot) e sinagogas (bet-midrash) os dedos eram úteis para que os olhos não perdessem o rumo das letras, já que a escrita hebraica é um código complexo do ponto de vista gráfico e gramatical. Nas celebra-ções, o dedo indicador poderia ser envolto no “manto de orações” (talit) a fim de seguir as letras sem macular os rolos em pergaminho das Escrituras Sagradas. Por necessidade de exatidão na leitura e pela preciosidade dos pergaminhos, a sinagoga criou um ins-trumento auxiliar para os leitores da Torah: uma varinha, em madeira ou metal, com cerca de 20 cm, cuja extremidade termina na forma de uma pequena mão com o dedo indicador estendido. Este bastonete se chama exatamente yad – dedo, em hebraico. O yad é encontrado nas escolas e sinagogas. É interessante notar que algumas imagens de Sant’Ana Mestra mostram a pequena Maria em ato de leitura, com o dedo indicador seguindo a inscrição. Em Santa Catarina, uma imagem portuguesa de Sant’Ana Mestra do séc. XVIII, dourada e cromada, apresenta Maria lendo o livro: sua mão direita tem o indicador estendido na direção do texto, sem, contudo, tocá-lo. A posição é idêntica ao yad das sinagogas. Além disso, o observador atento percebe um efeito de luz todo particular: a sombra projetada no livro desenha um perfeito yad sobre suas páginas abertas13. Algo muito sugestivo, se considerarmos o fato de que este tipo de imagem era esculpido para ser visto e interpretado pelos fiéis, com o propósito de instrução e edifi-cação espiritual1�. Outra imagem, em Minas Gerais, é bastante expressiva. Trata-se de pequenina Sant’Ana Mestra para oratório, também do séc. XVIII, guardada em Dia-mantina: o escultor optou por uma representação nada simples, com Maria à esquerda de Sant’Ana, numa posição quase desconfortável, de maneira que Ana possa guiar o braço direito da menina – novamente com o dedo indicador estendido – para conduzir sua leitura. Observando o ato na perspectiva das personagens, vê-se claramente o yad que toca o livro, garantindo exatidão e aprendizado. O indicador estendido da peque-na Maria configura um perfeito yad, regido pela mão educadora de Ana15.

Considerações finais:

a) Exemplaridade feminina – O primado da mulher nas representações de Sant’Ana é inegável. Testemunha a vigência do feminino no universo patriarcal judaico-cristão. O fato de Joaquim e José estarem em segundo plano ou ausentes na maioria das pinturas e esculturas, exalta ainda mais a exemplaridade da mulher virtuosa. Exemplaridade firmemente alicerçada em mulheres bíblicas, como Sara (mãe de Jacó), Ana (mãe de Samuel), Isabel (mãe de João Batista) e Maria (mãe de

13 Sant’Ana Mestra (autor anônimo), Museu Histórico Municipal de Urussanga, SC.1� Como acontece com certas simbologias doutrinais e alegorias de instrução moral, figura-das para serem “lidas” pelo olhar devoto. Cf. ÁVILA, Affonso (org.). Barroco: teoria e análise. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1997, p. 181. 15 Sant’Ana Mestra (autor anônimo), Museu do Diamante (n. 165 do Inventário), Diamantina, MG.

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Jesus). O aparecimento de Emerenciana em algumas representações particulares é instigante: na mencionada pintura Visão do Carmelo (de Flemalle) ela ocupa o lu-gar tradicionalmente atribuído a Jessé, na qualidade de prima radix (primeira raiz) e altera, deste modo, o referencial masculino da Sant’Ana Raiz. Vê-se, portanto, a força arquetípica e mística da santidade matriarcal. O Concílio de Trento aplicou-se à correção de perspectivas que a soteriologia (sempre cristocêntrica) exige no pensar, celebrar e expor a fé – sobretudo ao considerar o culto das relíquias, dos santos e de suas imagens16. Contudo, isto não apaga os séculos de hermenêutica patrística e inclusive medieval, que consolidou as “santas mães” bíblicas como prefigurações da Nova Aliança e da própria Igreja Cristã17.

b) Educação às virtudes – Sem restringir-se à educação acadêmica ou escolar, a imaginária de Sant’Ana Guia e, mais ainda, Sant’Ana Mestra, registra a importân-cia que a educação religiosa e moral das moças atingiu na sociedade, especialmen-te dos séc. XVI a XVIII. A função pedagógica da mãe no lar se reflete claramente nas representações, inspirada nas narrativas bíblicas e construída pela Moral das Virtu-des, tão preciosa ao cristianismo ocidental. A Moral das Virtudes é uma evolução da Teologia da Graça: ela mapeia o desenvolvimento das virtudes teologais (fé, esperança, caridade) e cardeais (prudência, justiça, fortaleza, equilíbrio) na vida do fiel. É minuciosamente tratada na Academia teológica e se traduz nos sermões, na orientação espiritual e na instrução religiosa com todos os seus meios edificantes, incluída a imaginária sacra. Assim, a figura de Sant’Ana como mulher virtuosa en-contra base teórica na Moral das Virtudes e adquire plasticidade nas representa-ções artísticas.

c) Dialética entre o verbo e a carne – O olhar atento localiza uma dialética entre o verbo e a carne, especialmente na representação das Santas Mães e Sant’Ana Mestra. O verbo procede do pai e denota o masculino. A carne procede da mãe e denota o feminino. O verbo fala, instrui, narra, poetiza e cria realidades ao se pro-nunciar. Na doutrina cristã, é tipicamente Palavra do Pai. A carne, por sua vez, engendra, forma, confere plasticidade, visibiliza e gera ao ser fecundada. Na dou-trina cristã, é tipicamente atributo materno. Do lado do verbo temos Jesus Cristo, o Verbo divino por excelência. Do lado da carne temos as mães Ana, Isabel e parti-cularmente Maria, que dá corpo ao Verbo. Assim, as representações mantêm uma extraordinária coerência com a afirmação joanina: “A palavra se fez carne” (João 1,1�). Na imaginária que analisamos, a carne é representada pelas mães, com par-ticular destaque para Maria, corolário místico e artístico da devoção a santa Ana. Já o verbo é representado por Jesus menino (no caso das Santas Mães) ou pelo livro (no caso de Sant’Ana Mestra). A figura do menino Jesus comunica o Verbo encar-nado de modo explícito: ele é o “bendito fruto do ventre” de Maria, oferecido por ela ao olhar devoto (cf. Lucas 1,�2 e Gálatas �,�). O livro, por sua vez, o comunica de modo implícito: pois a palavra divina que as Sagradas Escrituras registram se faz

16 Cf. CONCÍLIO DE TRENTO, Sessão 25, de � de dezembro de 1563.17 É o caso de Agostinho, que interpreta Ana (mãe de Samuel) como símbolo prefigurativo da Igreja Cristã: Cidade de Deus, livro 17, capítulo �.

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pessoa viva em Jesus, o Verbo encarnado. Nos dois casos – oferta de Jesus menino ou das Escrituras, pelas mãos de Ana e Maria – a carne torna presente o verbo. Assim, se perpetua a dinâmica da encarnação que, no cristianismo, é a norma es-tético-doutrinal da arte sacra, na linha de Colossenses1,15: “Ele (o Verbo encarna-do) é o ícone visível do Deus Invisível”18.

d) A visão de futuro – A visão de futuro (ou o futuro como visão) é o horizonte vislumbrado pelo olhar devoto ante as representações de Sant’Ana. No caso anali-sado, as pessoas que se confiam ao patrocínio de Sant’Ana convergem, cada qual por caminhos próprios, ao amanhã pacífico, feliz e promissor: avós e mães; esposas e educadoras; mineradores e moedeiros; cidadãos livres (no caso de Florença). E não poderia ser diferente: acaso uma imagem, símbolo ou emblema que não reme-ta a um horizonte de esperança seria suportável ao olhar devoto, imerso nos limites do tempo e do espaço? Penso que não. Sobretudo nos quadros do catolicismo me-diterrâneo e ibérico, onde até o Crucificado irradia a esperança longínqua de assu-mir em si as dores humanas para trazer-lhes, de algum modo, redenção. Que o observador apressado não se engane: a devoção ocidental à Paixão não termina na corrupção da carne, mas é passagem dolorosa para a sua redenção: no kronos, re-denção ainda esperada pelo fiel sofredor; no kairós, já realizada em Cristo, que nos aguarda na eternidade feliz. Em parte, a falta de conhecimento sobre escatologia limita a análise de qualquer perito que se dedique ao fenômeno religioso e seus registros artísticos e cultuais. E isso se complica ainda mais, quando nos deparamos com os messianismos entranhados na cultura brasileira em geral, e barroca em particular. O devoto de Sant’Ana a olha padecente, mas esperançoso quanto ao futuro que dá sentido à sua prole, ao seu trabalho e à sua prece. O amanhã invade seu presente na forma de esperança devota. É esta esperança que dá voz e luz ao mutismo da imagem sacra ocidental: eis porque os devotos a olham tanto, se co-movem diante dela e lhe acendem velas.

e) Substrato judaico – Há um substrato judaico admissível nas representações de Sant’Ana, enquanto componente histórico e simbólico que o cristianismo her-dou do judaísmo e reelaborou, sem destruir. Porém, os indícios que indiquei ao analisar detalhes pedem ulteriores verificações. Estudar o substrato judaico-messi-ânico da devoção a Sant’Ana, vista pelos marranos que esperavam prosperar em terras brasileiras, é sugestão que partilho com os historiadores.

18 A encarnação do Verbo é norma doutrinal e estética da arte sacra, sobretudo do ícone, como lemos em P. Evdokimov, H. U. von Balthasar, S. Dianich e I. Rupnik. Cf. “Ratio imagi-nis: expérience théologique, expérience artistique”. In Vivens homo Jan-Jun(2001) – Simpó-sio internacional “Experiência teológica & experiência artística” (Firenze, 16-28/09/2000).