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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SEMIÓTICA E LINGUÍSTICA GERAL JULIANA MENDES DE OLIVEIRA Um estudo de marcadores culturais nas traduções do conto The Gold Bug de Edgar Allan Poe Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. (Área de concentração: Estudos Tradutológicos) Orientador: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert São Paulo 2012

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LINGUSTICA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SEMITICA E LINGUSTICA

    GERAL

    JULIANA MENDES DE OLIVEIRA

    Um estudo de marcadores culturais nas tradues do conto The Gold Bug de Edgar Allan Poe

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Semitica e Lingustica Geral do Departamento de Lingustica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras. (rea de concentrao: Estudos Tradutolgicos)

    Orientador: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert

    So Paulo 2012

  • Ao meu amado Cristiano,

    por seu companheirismo e dedicao,

    por ter sido meu alicerce,

    por ter sempre acreditado em mim

    e por jamais ter permitido que eu desistisse.

  • Agradecimentos

    Agradeo a Deus, pela oportunidade de realizar esta pesquisa.

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Francis Aubert, por ter me aceito como orientanda, por sua dedicao, seus conselhos sempre sbios e por sempre ter acreditado no meu potencial.

    Aos professores das disciplinas que cursei durante o Mestrado, Luciana Salazar Salgado, Norma Discini, Beth Brait, Iv Carlos Lopes e John Milton por todo o conhecimento que me proporcionaram para o enriquecimento deste trabalho.

    Aos professores Lenita Esteves e Joo Azenha Junior, pelas valiosas sugestes e orientaes

    na ocasio do meu Exame de Qualificao.

    Aos funcionrios do Departamento de Lingustica, rica Flvia de Lima, Ben Hur Euzbio e Robson Dantas Vieira, pela gentileza com que me atenderam e por todo suporte que me ofereceram nas questes administrativas.

    colega de curso, Vilma Soares, pelas vrias palavras de incentivo que me ajudaram a seguir em frente.

    Aos meus pais, Antonio e Josilda e ao meu irmo, Leonardo, pela compreenso e pelo apoio.

    Ao meu marido, Cristiano, por seu amor, pacincia, carinho e dedicao em todas as horas difceis, por ter me incentivado a prestar o processo seletivo e por seu imenso apoio durante todo o perodo do Mestrado.

  • RESUMO

    A proposta desta pesquisa consiste em um trabalho de Lingustica Aplicada que proporcione uma reflexo emprica sobre o fazer tradutrio, em especial no que tange ao tratamento dado aos marcadores culturais linguisticamente expressos no texto original. A anlise ser desenvolvida a partir do cotejo do conto The Gold Bug do escritor Edgar Allan Poe no original em ingls com trs tradues do texto original para o portugus brasileiro. O cotejo ser executado aplicando-se a ferramenta de descrio das modalidades de traduo (Aubert 1998, 2006a, derivados dos procedes techniques de la traduction, de Vinay & Darbelnet (1958), como forma de identificar questes culturais e lingusticas, discutindo as solues adotadas por cada um dos tradutores para trechos culturalmente marcados e dificuldades lxico-gramaticais. Pretende-se, assim, compreender as relaes de equivalncia entre as lnguas, bem como suas diferenas e convergncias culturais. Com tal intuito, sero invocados os Estudos Tradutolgicos com auxlio da Lingustica, bem como o auxlio pontual da Literatura Comparada e da Antropologia (Estudos Interculturais). Como resultado final, espera-se que o mapeamento das solues tradutrias faculte generalizaes sobre os mtodos de traduo adotados.

    Palavras-chave: Marcadores Culturais, Estudos de Traduo, Lingustica Aplicada, Literatura Comparada, Estudos Interculturais.

  • ABSTRACT

    This investigation is proposed as a piece of Applied Linguistics offering an empirical review of the translation process, particularly in what concerns the treatment of cultural markers as linguistically expressed in the source text. Our analysis will be conducted based on a comparison between the short story The Gold Bug by Edgar Allan Poe in its original English version with three different translations of the original text published in Brazilian Portuguese. The comparison shall be carried out using as a descriptive tool the translation modalities (Aubert 1998, 2006a, as derived from Vinay & Darbelnets procedes techniques de la traduction (1958), so as to identify the cultural and linguistic issues involved, discussing the solutions offered by each translator for the culturally marked passages and for the lexical-grammatical difficulties encountered. In this fashion, we expect to shed light on the equivalence relationships between the languages, as well as on the cultural differences and convergences. With this purpose in mind, we will fundamentally resort to Translations Studies with assistance of Linguistics, and with the accurate assistance of Comparative Literature and Anthropology (or Intercultural Studies). As a final result, we expect that the survey of the translation solutions will enable generalizations on the translation methods employed.

    Keywords: Cultural Markers, Translation Studies, Applied Linguistics, Theory of Literature, Intercultural Studies.

  • Sumrio

    INTRODUO .................................................................................................................... 10

    CAPTULO 1: FUNDAMENTAO TERICA.............................................................. 19 1.1 Domnio culturais de Nida (1945)..................................................................................... 19 1.2 Os gneros de discurso de Bakhtin (1950)......................................................................... 20 1.3 Jakobson (1959)................................................................................................................. 20 1.4 Mounin (1963)................................................................................................................... 22 1.5 Equivalncia formal versus equivalncia dinmica: o modelo de Nida (1964)................. 22 1.6 Hoebel & Frost (1976)....................................................................................................... 23 1.7 Traduo semntica versus traduo comunicativa: o modelo de Newmark (1981)......... 23 1.8 Barbosa (1990)................................................................................................................... 24 1.9 Modalidades de traduo: o modelo de Aubert (1998)...................................................... 26 1.10 Estrangeirizao e domesticao: os conceitos de Venuti (1998)................................ 26 1.11 Milton (1998)............................................................................................................... 27 1.12 Amorin (2005).............................................................................................................. 27 1.13 Aubert (2006a)............................................................................................................. 28 1.14 Modalidades de traduo: o modelo revisitado de Aubert (2006b)............................. 28 1.15 Azenha Jnior (2006)................................................................................................... 30 1.16 Adaptao local e adaptao global: o modelo de Cintro & Zavaglia (2007)............ 30 1.17 Milton (2010)............................................................................................................... 31

    CAPTULO 2: CONSIDERAES SOBRE O CONTO THE GOLD BUG DE EDGAR ALLAN POE.......................................................................................................................... 33 2.1 Breve biografia do autor.................................................................................................... 33 2.2 Sobre o enredo................................................................................................................... 34 2.3 Contextualizando a obra..................................................................................................... 36 2.4 Sobre as tradues escolhidas.............................................................................................45 2.5 Traduo literria................................................................................................................46

  • 8

    CAPTULO 3: MARCADORES CULTURAIS DE NVEL LEXICAL.......................... 51 3.1 Lxico e sociedade: os termos negro e massa da lngua inglesa....................................... 54 3.1.1 O termo massa................................................................................................................ 54 3.3 O termo negro.................................................................................................................... 58 3.3 O termo nigger................................................................................................................... 67 3.4 Expresses do latim: os termos scarabaeus e scarabaei................................................... 71 3.4 Lxico e sistemas de medio............................................................................................ 73 3.5 Lxico, fauna e flora.......................................................................................................... 75 3.5.1 O termo marsh-hens........................................................................................................ 76 3.5.2 O termo bristly palmetto................................................................................................. 78 3.6 Sntese dos resultados........................................................................................................ 79

    CAPTULO 4: MARCAS DIALETAIS E SINTTICO-SEMNTICAS........................ 87 4.1Marcas dialetais................................................................................................................... 88 4.2 Questes sinttico-semnticas............................................................................................ 97 4.2.1 Expresses idiomticas................................................................................................... 98 4.2.2 Questes gerais de sintaxe e sentido............................................................................. 108 4.3 Sntese dos resultados...................................................................................................... 114

    CAPTULO 5: O CONTO COMO GNERO DE DISCURSO: MARCADORES CULTURAIS DE NVEL DISCURSIVO.......................................................................... 123 5.1 Os gneros do discurso segundo Bakhtin........................................................................ 123 5.2 O conto como gnero de discurso.................................................................................... 127 5.3 Marcadores culturais de nvel discursivo......................................................................... 129 5.3.1 Marcas discursivas socioculturais................................................................................. 130 5.3.2 Marcas discursivas lingustico-culturais....................................................................... 136 5.3.3 Aspectos discursivos gerais: adaptao, domesticao e estrangeirizao....................141

    CONCLUSO...................................................................................................................... 145

  • 9

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................150

  • Introduo

    Entendendo o conceito de marcador cultural

    A identificao de marcadores culturais linguisticamente expressos nos textos originais e sua traduo vem sendo objeto de preocupao tanto nos Estudos de Traduo, porque ainda no se chegou a um consenso sobre a prpria definio de marcador cultural (Aubert 2006a), quanto no exerccio profissional da traduo, em que a todo instante, o tradutor se depara com os seguintes dilemas: (i) decidir entre manter o termo ou trecho original ou inserir uma nota de rodap explicativa referente ao mesmo; (ii) dvidas em adaptar o texto-fonte ao contexto de recepo do texto-meta, descartando o sentido original, ou simplesmente suprimir na traduo o trecho culturalmente marcado para evitar um problema de traduo, assumindo os riscos que a lacuna pode trazer para o entendimento global do texto-fonte.

    fato que lngua e cultura so dois fenmenos intrnsecos um ao outro, e que, portanto, manifestam-se conjuntamente em qualquer sociedade, da utilizarmos a expresso complexo lngua/cultura. Conforme elucida Aubert (2006a: 24):

    Admita-se, inicialmente, que toda lngua um fato cultural. Integra e articula toda uma gama de comportamentos dos grupos sociais que dela se servem, e constitui um dos instrumentos mais elaborados de pensar, dizer e atuar sobre o mundo no seio das relaes sociais intra- e intergrupos. Se assim , de princpio tudo na lngua e toda expresso da lngua na fala porta em si uma ou mais marcas reveladoras deste vnculo cultural, traos que remetem a conjuntos de valores, de padres comportamentais, lingusticos e extralingusticos, que, tanto quanto os traos pertinentes fonolgicos, gramaticais e semnticos, individualizam e caracterizam ou tipificam determinado complexo lngua/cultura em relao a outras lnguas/culturas, prximas ou distantes (por qualquer critrio de proximidade ou distncia que se queira adotar). 1

    Devido a essa questo, pode parecer contraditria a utilizao da expresso trecho culturalmente marcado, pois em um primeiro momento, esta parece pressupor que alguns trechos no o so, o que seria uma contradio se considerarmos o princpio regente da expresso complexo lngua/cultura. Desse modo, convm esclarecer que quando dizemos que determinado trecho de um texto culturalmente marcado, isto se refere a um trecho culturalmente especfico, portador de marcadores culturais comumente encontrveis naquela

    1 AUBERT, Francis Henrik. Indagaes acerca dos marcadores culturais na traduo. Revista de Estudos

    Orientais, So Paulo, v. 5, 2006.

  • 11

    lngua e no em outra, comuns naquela cultura e no em outra. Ademais, podemos dizer que h dois nveis de marcao cultural, sendo o primeiro de carter mais geral, que forma um conjunto sui generis o qual compe um determinado complexo lngua/cultura, no confundvel com qualquer outro complexo lngua/cultura. O segundo nvel, de carter mais especfico, aquele que contm os elementos culturais comumente encontrveis em uma determinada lngua, que adota um certo modo de dizer. Nida (1945) 2 denomina cultura lingustica esse modo de dizer, o qual possui marcadores lingusticos especficos. Aqui, portanto, as expresses trecho culturalmente marcado e marcador cultural se configuram como um conceito operacional, que serve como ferramenta para a descrio de elementos lingusticos (como expresses idiomticas) e extralingusticos (como o lxico que nomeia o domnio da ecologia, da cultura material, da cultura social e da cultura religiosa), conforme classifica Nida (1945). Assim sendo, quando utilizarmos a expresso complexo lngua/cultura, esta referir-se- ao contexto geral da relao lingustico-cultural, e quando utilizarmos as expresses trecho culturalmente marcado e marcador cultural, estas funcionaro como um conceito operacional que ser utilizado em um contexto especfico da relao entre lngua e cultura durante a anlise que se seguir.

    A fim de dar contorno nossa proposta de pesquisa, exporemos a seguir o conceito de marcador cultural em si, quanto s suas definies e abordagens.

    No tocante nomenclatura do conceito, encontramos na literatura da rea pelo menos dois exemplos: o termo marcador cultural (Aubert 2006a) e o termo marca cultural (Azenha Junior 2006). Ao longo de nosso estudo, utilizaremos um termo pelo outro indistintamente, haja vista que ambos atendem aos nossos objetivos.

    Aubert (2006: 25) postula que h pelo menos trs dimenses de marcas distintas encontrveis nas lnguas: i) dimenso gramatical (como marcao de gnero, nmero e conjugao verbal); ii) dimenso discursiva (que inclui marcas nas intertextualidades que podem fazer sentido em um contexto e no fazer em outro); iii) dimenso referencial (que se refere aos domnios culturais de Nida: ecolgico, material, social e religioso). Em relao a essas trs dimenses de marcas, afirma o autor:

    Todas essas marcas sero aqui denominadas marcadores culturais, e admitimos, no que interessa traduo e ao traduzir, que representam, ao lado da funo potica da linguagem, as principais dificuldades tanto do fazer tradutrio quanto da reflexo sobre o traduzir. No limite, podem implicar a admisso da inviabilidade intrnseca ou a relativizao profunda do ato tradutrio.

    2 NIDA, Eugene. Linguistics and ethnology in translation problems. In: Word II, 1945.

  • 12

    E mais adiante:

    O objeto de estudo aqui proposto no composto pelas lnguas, enquanto sistemas ou estruturas abstratas, e sim pelos atos de enunciao, de fala, de produo verbal, que se realizam, por definio, em contextos e co-textos especficos. Nesta perspectiva, o marcador cultural ser visto menos como um fato de dicionrio e mais como de discurso. Assim, ao observarmos um texto ou segmento de linguagem verbal, o fazemos sobre termos e fases atualizados em contexto. E uma das caractersticas definidoras dos objetos assim observados reside, justamente, em encontrar-se em determinado co(n)texto de atualizao. (Aubert 2006a: 28)

    Por fim, Aubert (2006a: 30) postula ainda que a existncia do marcador cultural se torna evidente somente no confronto pela diferenciao, pontuando ainda que (...) a noo de marcador cultural remete a um elemento distintivo, isto , a algo que diferencia determinada soluo expressiva linguisticamente formulada de outra soluo tida por parcial ou totalmente equivalente.

    Da mesma forma que Aubert, Azenha Junior (2006) tambm associa o seu entendimento do conceito de marca cultural a condies como o contexto de atualizao, elementos discursivos e questes referenciais. Utilizando o apoio terico da Lingustica Textual em relao aos conceitos de referncia e referenciao, Azenha Junior (2006: 19) prope um alargamento do conceito de marca cultural, que compreenda uma noo de interao calcada na experincia. 3, de modo que essa noo seja responsvel pelos shiftings interpretativos de um mesmo fenmeno. Postula ainda que (...) a marca cultural do texto a ser traduzido entendida esta mais no modo como cada um l e interpreta o mundo desloca-se da relao entre um item lexical e seu correspondente extralingustico para o interior da tessitura do discurso. (Azenha Junior 2006: 20). Por fim, o autor convida a uma redefinio do conceito de marca cultural, a ser buscado no mais na chamada realidade extralingustica, e sim no modo como cada cultura enxerga o mundo e o reconstri no interior do discurso. (Azenha Junior 2006: 30).

    Acreditamos que as questes acima levantadas sugerem que uma investigao do processo tradutrio, que considere mais cuidadosamente o trabalho com os marcadores culturais, mostra-se relevante tanto para os Estudos de Traduo quanto para tradutores. Com tal intuito, ser til a aplicao de um modelo revisado e atualizado das modalidades de traduo, proposto por Aubert (2006b), modelo inicialmente intitulado como procedimentos

    3 AZENHA JNIOR, Joo. Lingustica Textual e Traduo: redefinindo o conceito de marca cultural. In:

    TradTerm 12. So Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2006.

  • 13

    tcnicos da traduo, elaborado originalmente por Vinay e Darbelnet (1958) 4.

    A dimenso lingustica da traduo

    Desde os primrdios de sua existncia, a traduo foi muitas vezes encarada apenas do ponto de vista prtico. Ao mesmo tempo, muitos pensadores ao longo da histria refletiram sobre a traduo, porm, sem dar a essas reflexes um contorno de estudo formal. Com o tempo, foram surgindo algumas teorias a respeito do fazer tradutrio. Segundo Milton (1998: 25) 5, a primeira tentativa de formalizao de uma teoria de traduo ocorreu em meados do sculo XVII na Inglaterra. Dentro do campo da Lingustica, a operao de traduzir passou a ser objeto de reflexo terica em meados de 1950. Segundo Mounin (1975), foi o linguista Fedorv o primeiro a sugerir a incluso dos estudos da traduo dentro do campo de investigao da cincia lingustica. Ainda que se admitam outras facetas ao ato tradutrio, tais outras facetas (aparentemente no-lingusticas ou extralingusticas) tambm so encontrveis em todas as demais situaes de uso da linguagem articulada humana. Assim, sem risco de erro, lcito afirmar que a dimenso lingustica do fenmeno sua dimenso definidora, primordial: ao se transpor um texto de um cdigo lingustico para outro, isto se faz mediante um conjunto de operaes lingusticas, resultando em um produto tambm lingustico (o texto traduzido), conforme lemos nas palavras de Mounin (1975: 27):

    Mas toda operao de traduo tem razo Fdorov comporta, basicamente, uma srie de anlises e de operaes especificamente dependentes da lingustica e suscetveis de serem mais e melhor esclarecidos pela cincia lingustica aplicada corretamente do que por qualquer empirismo artesanal. Poderemos dizer, se fizermos questo disto, que, tal como a medicina, a traduo ainda uma arte, mas uma arte alicerada numa cincia. Os problemas tericos suscitados pela legitimidade ou ilegitimidade da operao de traduzir, e por sua possibilidade ou impossibilidade, s podem ser esclarecidos em primeiro lugar no quadro da cincia lingustica. 6

    Partindo, portanto, da dimenso lingustica da traduo, nossa proposio a de uma reflexo terica a respeito do ato tradutrio, feita a partir de sua aplicao em textos literrios escritos originalmente em ingls e suas tradues para o portugus, aplicao esta que deve contribuir para os Estudos da Traduo, pois ir oferecer, inter alia, uma plataforma slida em que os modelos tericos so testados na prtica, de modo a incidir seja na corroborao,

    4 VINAY, Jean-Paul; DARBELNET, Jean. Stylistique compare du franais et de langlais: mthode de traduction. Paris, Didier, 1958. 5 MILTON, John. Traduo: Teoria e Prtica. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

    6 MOUNIN, G. Os problemas tericos da traduo. So Paulo: Cultrix, 1975 [1963].

  • 14

    ampliao ou reviso dos mesmos ou ainda na refutao destes e consequente abertura a novas abordagens. Alm disso, os conhecimentos das teorias da traduo e da lingustica aplicados ao cotejo do texto original com o texto traduzido, oferecem o suporte terico que permite analisar os mecanismos e estratgias utilizadas pelos tradutores, a fim de averiguar no somente os procedimentos lingusticos envolvidos, mas tambm questes de ordem extralingustica, quais sejam, os aspectos culturais presentes no texto-fonte, bem como os procedimentos adotados pelos tradutores para manter, modificar parcialmente ou adaptar esses aspectos ao contexto de recepo do texto-meta. De tal sorte, uma anlise contrastiva entre duas lnguas na traduo literria deve iluminar as diferenas culturais e as formas de interpretao dessas diferenas no contexto de recepo.

    Se assumirmos que embora diferentes, todas as lnguas e culturas possuem algum grau de equivalncia, ento a questo da equivalncia na diferena, segundo Jakobson (1959) 7 o principal problema da linguagem e por consequncia, a principal preocupao da Lingustica. Contudo, Jakobson tambm postula que quem diz sinonmia no diz equivalncia completa, ou seja, um par de vocbulos ditos correspondentes em duas lnguas distintas podem ser considerados sinnimos apenas em determinados contextos, por haver uma ou mais interseces semnticas entre o vocbulo da lngua-fonte e o vocbulo da lngua-meta. Contudo, se consideramos todos os co-textos e contextos nos quais estes vocbulos podem aparecer, veremos que a sinonmia no se verifica em todos os casos. Assim, dada a centralidade da noo de equivalncia tanto na teoria quanto na prtica da traduo, a pesquisa proposta ter como apoio terico nessa questo as postulaes encontradas em Jakobson (1959), Nida (1969) e Newmark (1981). Quanto s questes relacionadas s modalidades de traduo, marcadores culturais, domnios culturais e adaptao, tomaremos por base terica os textos de Aubert (1998, 2006a 2006b), Nida (1945) , Cintro & Zavaglia (2007), Amorim (2005) e Milton (2010).

    Objetivos

    A pesquisa aqui proposta pretende se constituir em uma anlise de ordem qualitativa que seja a um s tempo lingustica e antropolgica de uma obra literria do escritor Edgar Allan Poe traduzida para a lngua portuguesa. A partir do cotejo do texto original em ingls com trs de suas tradues para o portugus brasileiro, objetivamos:

    7 JAKOBSON, Roman. Aspectos lingusticos da traduo. In: Lingustica e comunicao. So Paulo: Cultrix,

    1969 [1959].

  • 15

    a) Proceder descrio e anlise de marcadores culturais a partir do modelo terico das modalidades de traduo (Aubert 1998, 2006b), o qual prover subsdios para compreender as estratgias dos tradutores para lidar com os marcados culturais, verificando a manuteno ou adaptao de aspectos culturais da lngua inglesa no contexto de recepo do portugus brasileiro. Nesse ponto, nos apoiaremos tambm no arcabouo terico oferecido pelo modelo dos domnios culturais de Nida (1945), bem como pelos conceitos de estrangeirizao e domesticao propostos por Venuti (1998).

    b) Analisar marcadores culturais em trs nveis lingusticos: lexical, sinttico-semntico e discursivo, proporcionando assim uma concepo mais abrangente do trabalho dos tradutores com esses marcadores.

    c) Verificar o procedimento de cada um dos tradutores quanto ao modo de atualizao do complexo do tempo e do espao do texto-fonte para o texto-meta;

    d) A partir do trabalho de lingustica aplicada aqui pretendido, efetuar o teste de alguns modelos descritivos da rea de Estudos de Traduo na prtica, quais sejam, os de Aubert (2006b), Nida (1945), Nida (1964) e Newmark (1981) e Cintro & Zavaglia (2007), visando verificar se tais modelos so aplicveis realidade da traduo literria que envolve o par lingustico ingls e portugus brasileiro.

    Corpus e Metodologia

    Para fins de descrio e anlise da pesquisa proposta, foi selecionado o conto The Gold Bug (conhecido em portugus como O Escaravelho de Ouro) do escritor Edgar Allan Poe e trs de suas tradues brasileiras para a lngua portuguesa.

    As razes que motivaram a escolha desse texto, para alm das motivaes estritamente pessoais como empatia com a obra do autor visaram principalmente propiciar uma situao tradutria com desafios especficos; no caso em tela, as marcas estilsticas na sintaxe e no lxico que se mostram significativamente mais rebuscadas do que o uso corrente no ingls contemporneo, o que certamente representou um desafio para os tradutores alm claro, da questo diacrnica e o problema de optar entre o contemporneo e o anacrnico no texto em portugus. Alm disso, esse conto de Poe em particular, possui muitos aspectos culturais (termos culturalmente marcados, marcas dialetais entre outros) o que, portanto, corrobora nosso objetivo de investigao acerca dos marcadores culturais. Tendo em vista que todas as relaes entre lngua e cultura so passveis de anlise, o que nos

  • 16

    interessa, inter alia a maneira como esses tradutores interpretaram as marcas culturais do texto em ingls e as transferiram para o seu texto em portugus.

    A metodologia e o processo de anlise sero desenvolvidos da seguinte forma: selecionamos um trecho do texto original em ingls, o qual cotejado com trs respectivas tradues diferentes em portugus. A seleo de trechos foi feita por meio de anlise prvia para a identificao de trechos com maior densidade de marcadores culturais. Essa anlise prvia deu-se atravs da leitura dos textos e aplicao do conceito de marcador cultural conforme abordado no incio desta introduo. Aps a seleo do trecho do original e de suas respectivas tradues, passamos anlise do cotejo, aplicando o modelo das modalidades de traduo (Aubert 1998, Aubert 2006b), o modelo dos domnios culturais (Nida 1945), o modelo de equivalncia formal versus equivalncia dinmica de Nida (1964) e o modelo de traduo semntica versus traduo comunicativa de Newmark (1981), visando identificar as estratgias adotadas pelos tradutores, concentrando nosso foco de anlise principalmente nas solues por eles utilizadas para trabalhar com os marcadores culturais, mas tambm procurando localizar potenciais dificuldades lxico-gramaticais, sinttico-semnticas e discursivas e o procedimento adotado pelos tradutores para solucionar essas dificuldades. A partir da aplicao destes modelos, espera-se identificar nas semelhanas e nas diferenas entre as tradues a existncia de um padro de comportamento tradutrio.

    Marco terico

    A bibliografia selecionada para a presente pesquisa engloba dicionrios monolngues da lngua inglesa e da lngua portuguesa, alm de trabalhos da Antropologia Cultural, da Sociologia, da Histria e da Teoria Literria (incluindo alguns trabalhos sobre Edgar Allan Poe), bem como alguns trabalhos da rea de Lingustica Geral, Estudos do Discurso e Estudos de Traduo. Contudo, nosso marco terico se concentra especialmente na rea dos Estudos de Traduo.

    Para tratar da questo das marcas culturais, adotaremos a literatura que aborda as seguintes questes:

    a) Marcadores culturais; b) Lngua e cultura; c) Modalidades de traduo; d) Domnios culturais; e) Equivalncia;

  • 17

    f) Adaptao; g) Traduo Estrangeirizadora x Traduo Domesticadora. h) Gneros de Discurso

    Assim sendo, para proceder anlise do corpus selecionado, tomaremos por base o modelo das modalidades de traduo revisado em Aubert (1998; 2006a), derivado da tipologia dos procedimentos tcnicos da traduo, inicialmente proposto por Vinay e Darbelnet (1958) e utilizando algumas das contribuies de Barbosa (1990); em relao ao modelo de domnios culturais, utilizaremos a abordagem proposta inicialmente por Nida (1945), e tambm alguns dos desdobramentos do modelo propostos por Aubert (2006b) e Cintro & Zavaglia (2007), sendo que destas ltimas, tambm abordaremos o conceito de adaptao proposto pelas autoras; no tocante ao conceito de marcadores culturais, tomaremos por base o que encontramos em Aubert (2006a) e Azenha (2006). Visando fornecer anlise um olhar antropolgico, tomaremos por base algumas consideraes feitas pelos antroplogos Hoebel & Frost (2006), no que concerne a relao entre lngua e cultura. No tocante questo da equivalncia, ser utilizada a distino entre equivalncia dinmica e equivalncia formal de Nida (1964) e como contraponto, o modelo de Newmark (1981) relacionado aos conceitos de traduo semntica e traduo comunicativa. Em relao ao conceito de adaptao, sero utilizadas as reflexes propostas por Amorim (2005) e Milton (2010). Quanto distino entre traduo estrangeirizadora e traduo domesticadora, tomaremos por base a teoria de Venuti (1998). Alm disso, para a constituio de um quadro terico mais geral, buscaremos apoio particularmente nas reflexes tericas sobre o fazer tradutrio de Jakobson (1959), Mounin (1977) e Milton (1998). Por fim, levando em considerao que o texto escolhido para o corpus de anlise um conto, portanto, um gnero literrio, tomaremos como apoio terico as reflexes de Bakhtin (1950) no intuito de discutir o conceito de gnero de discurso aplicado traduo de marcadores culturais de nvel discursivo.

    Captulo a captulo

    No primeiro captulo ser apresentada em ordem cronolgica, uma contextualizao histrica dos modelos descritivos e teorias selecionadas como marco terico, relatando a importncia e as razes que motivaram a escolha dos mesmos para a escrita desta dissertao.

  • 18

    Em seguida, no segundo captulo, faremos a apresentao e a contextualizao histrica e literria da principal obra de nosso corpus, isto , o conto The Gold Bug de Edgar Allan Poe, o qual tambm inclui alguns aspectos gerais da vida e da obra do autor.

    Os trs captulos subsequentes trazem cada um deles, uma abordagem de marcadores culturais em trs nveis lingusticos: lexical, sinttico-semntico e discursivo, sendo que no segundo, tambm inclumos as marcas dialetais.

    Assim sendo, no terceiro captulo, abordaremos a relao entre lxico e cultura, a partir da aplicao da teoria dos domnios culturais em alguns itens lexicais especficos que se destacam nas tradues, tais como os termos massa e negro da lngua inglesa, os quais objetivamos verificar de que forma se constituem como marcadores culturais de nvel lexical.

    Posteriormente, no quarto captulo, discorreremos sobre as marcas dialetais e sinttico-semnticas. Nosso enfoque nas caractersticas dialetais peculiares da fala do personagem Jpiter, que grafada de modo a representar uma variante no-padro da lngua falada no texto original, verificando pelo cotejo de que forma os tradutores lidaram com essas marcas da representao da fala de Jpiter. A partir da anlise comparativa, discutiremos o conceito literrio de Eye dialect aplicado traduo. Alm disso, abordaremos tambm as expresses idiomticas do ingls e a forma como os tradutores adaptaram essas expresses para lngua portuguesa ou mantiveram-nas no texto por meio de traduo literal, e tambm como expresses no-idiomticas do ingls foram transformadas em expresses idiomticas do portugus brasileiro na traduo. Alm disso, tambm sero verificadas algumas questes gerais de sintaxe e sentido.

    Por fim, no quinto e ltimo captulo, falaremos do conceito de gnero de discurso de Bakhtin aplicado ao gnero conto, de modo a avaliar os processos textuais desenvolvidos pelos tradutores levando em considerao o conto enquanto gnero de discurso, dando ensejo a uma abordagem de marcadores culturais no nvel discursivo.

  • Captulo 1 Fundamentao terica

    No que concerne s teorias escolhidas para a presente pesquisa, h algumas tradicionais, tais como Nida (1945) e Jakobson (1959), e outras mais recentes como Aubert (2006) e Milton (2010). Por certo, notvel a distncia no tempo existente entre essas teorias. Todavia, mister salientar que cada teoria selecionada para a descrio e anlise desta pesquisa serve a seu propsito. A seguir, apresentamos cronologicamente os fundamentos tericos que compem a base desta pesquisa.

    1.1 Domnios Culturais de Nida (1945)

    Na linha do tempo, o primeiro trabalho de Eugene Nida (1945). No obstante o histrico do autor dedicado aos Estudos de Traduo e ao ofcio de tradutor, conhecido, sobretudo por seu trabalho de traduo da Bblia, este artigo de Nida foi escolhido particularmente por nos oferecer o modelo dos domnios culturais, o qual julgamos ser muito proveitoso para uma pesquisa desta natureza. Devido a sua tipologia que relaciona lxico e cultura, consideramos este texto fundamental para um estudo mais meticuloso acerca dos marcadores culturais na traduo, por isso, um dos marcos tericos de nossa pesquisa e, por uma feliz coincidncia, o primeiro na cronologia de nosso arcabouo terico. Aqui, Nida classifica os domnios culturais da linguagem em quatro, conforme nos explica Aubert (2003) 8 e Cintro e Zavaglia (2007).

    a) Domnio ecolgico: relativo a todos os objetos, seres ou eventos naturais, no produzidos ou moldados pelo homem, tais como os que pertencem fauna, flora, hidrografia, paisagens naturais.

    b) Domnio da cultura material: termos que designam objetos, espaos, criados pelo homem ou por ele transformado, relativo a tudo que fruto da atividade humana.

    c) Domnio da cultura social: termos relacionados a relaes sociais de uma forma geral ou como melhor definem Cintro & Zavaglia (2007: 8): termos que designam o prprio homem, suas classes, funes sociais e profissionais, origens, relaes

    8 AUBERT, Francis Henrik. Traduzindo as diferenas extra-lingsticas. Procedimentos e condicionantes.

    TradTerm, So Paulo, v. 9, p. 151-172, 2003.

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    hierrquicas, bem como as atividades e eventos que estabelecem, mantm ou transformam essas relaes, inclusive atividades lingsticas. 9

    d) Domnio da cultura ideolgica: termos relacionados aos sistemas de crenas, relativo s religies, englobando desde as diversas mitologias at as entidades espirituais e os eventos gerados por estas. 10

    e) Domnio da cultura lingustica: este domnio opera no nvel da interdizibilidade, sendo, portanto o que pode oferecer mais dificuldades traduo. Segundo Aubert (2006b: 67), este domnio representa o modo de dizer peculiar a determinado complexo lngua-cultura, os idiomatismos de expresso, de significado, de conotao. 11

    1.2 Os gneros de discurso de Bakhtin (1950)

    A seguir, em nossa cronologia, vem um trabalho que no na rea de traduo, porm notvel na rea de estudos da linguagem: o de Mikail Bakhtin (1950), intitulado Esttica da Criao Verbal. Tendo em vista o fato de que o texto original de nosso corpus de anlise um conto de Edgar Allan Poe, constituindo, portanto, um gnero literrio, consideramos importante abordar a questo do gnero, e para tal, nossa base terica ser o conceito de gnero de discurso de Bakhtin, o que nos permitir analisar de que modo as caractersticas do gnero literrio conto influenciam ou determinam as escolhas dos tradutores. Os estudos de Bakhtin so responsveis, inter alia, pela formao de disciplinas como a Anlise do Discurso, a Pragmtica e a Teoria da Enunciao, contribuindo enormemente para o desenvolvimento atual das cincias da linguagem. No trabalho supracitado, discute amplamente o conceito de gnero de discurso. Essa categoria do pensamento bakhtiniano nos auxiliar a entender de que maneira os tradutores trabalharam com o conto enquanto gnero, alm de auxiliar na identificao de marcadores culturais no nvel discursivo.

    1.3 Jakobson (1959)

    9 CINTRO, H. P.; ZAVAGLIA, A.. Domnios culturais e funo potica como condicionantes da adaptao

    dentro da traduo: reflexes sobre o conceito de adaptao. In: VI ENCONTRO EGIONAL DA ABRALIC, 2007, So Paulo. Caderno de Resumos do VI Encontro Regional da ABRALIC, p. 1-11. 10

    Vale lembrar que Nida utiliza o termo cultura religiosa. O termo cultura ideolgica um desdobramento desse termo proposto pelos autores supracitados. 11

    AUBERT, Francis Henrik. Em busca das refraes na literatura brasileira traduzida. Revendo a ferramenta de anlise. Revista Literatura e Sociedade, So Paulo: DTLLC/FFLCH/USP, v. 9, p. 60-69, 2006.

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    Assim como Bakhtin, o linguista Roman Jakobson (1959) tambm deu grandes contribuies s cincias da linguagem. Conhecido por seus trabalhos sobre as funes da linguagem, Jakobson foi o primeiro linguista a discutir a relao entre a Lingustica e o fazer tradutrio. Em seu livro, Lingustica e Comunicao, no captulo intitulado Aspectos Lingusticos da Traduo, Jakobson contextualiza a traduo no mbito das operaes lingusticas.

    Jakobson prope uma classificao simples de tipos de traduo que, no entanto, viria a dar ensejo a outras mais complexas. Tendo como base a teoria dos signos, o autor prope trs categorias de traduo:

    a) Traduo intralingual ou reformulao, que seria a interpretao dos signos verbais utilizando signos da mesma lngua. Como exemplo, podemos citar textos da rea mdica de difuso em massa em revistas, jornais e na internet. Visando a compreenso do pblico leigo, os cientistas simplificam os termos tcnicos, os chaves e a linguagem utilizada para que o grande pblico compreenda.

    b) Traduo interlingual. Como diz o prprio nome, entre lnguas. Segundo Jakobson, consiste em interpretar os signos verbais de uma lngua a partir dos signos verbais de outra lngua. Abrange diversos textos como manuais, glossrios, textos literrios etc. Pressupe o dialogo entre duas lnguas, o que constitui a natureza essencial do prprio fazer tradutrio. Por essa razo, Jakobson define esse tipo de traduo como traduo propriamente dita.

    c) Traduo inter-semitica: Jakobson foi o primeiro a categorizar esse tipo de traduo, que ele define como transmutao de signos verbais em signos no verbais. Abrange as tradues entre diferentes mdias ou suportes como, por exemplo, da literatura para o cinema, do teatro para o cinema, ou ainda um livro com trechos ilustrados. Atualmente utiliza-se muito o termo adaptao para designar esse tipo de traduo, o que, no deixa de ser, na essncia, a traduo inter-semitica proposta por Jakobson. Embora tenha proposto e designado o termo, o autor no chegou a desenvolver uma sistematizao mais elaborada sobre o mesmo. Ainda hoje, existem poucos trabalhos publicados sobre a traduo inter-semitica, sendo o trabalho de Plaza (2001) 12 o mais completo sobre o tema at ento.

    12 PLAZA, Julio. Traduo Intersemitica. So Paulo: Perspectiva, 2001.

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    Assim sendo, entendemos que as elucidaes tericas de Jakobson sero teis, j que pretendemos aqui realizar um trabalho de Lingustica Aplicada.

    1.4 Mounin (1963)

    Consideramos til tambm o arcabouo terico encontrado em Mounin (1963). Conhecido por seus trabalhos nas reas de Lingustica Estrutural e Estilstica, o linguista francs George Mounin tambm deu grandes contribuies ao pensamento sobre o fazer tradutrio, considerando-o, antes de tudo, uma operao lingustica. Alm disso, o autor se debrua sobre os problemas tericos da traduo, o que nos til, considerando o fato de que esta pesquisa pensada como um trabalho de Lingustica Aplicada que ir refletir inter alia, sobre os problemas tericos relativos traduo de marcadores culturais.

    1.5 Equivalncia formal versus equivalncia dinmica: o modelo de Nida (1964)

    Quando se trata da traduo de marcadores culturais, vem tona o conceito de equivalncia, pois envolve a tenso em optar entre a traduo de um termo ou expresso por um equivalente cultural ou um equivalente mais literal. Na teorizao sobre seu prprio trabalho de traduo da Bblia, Nida ponderou sobre as questes culturais nos contextos de recepo do texto bblico entre os diferentes povos. Seguindo a linha de Chomsky, Nida se baseia na gramtica gerativa-transformacional. Segundo Barbosa (1990: 32), para Nida esta viso gerativa da lngua fundamental para o tradutor, pois este, ao traduzir de uma lngua para outra, deve ir alm da simples comparao das estruturas correspondentes nas duas lnguas. 13. O autor, portanto, busca ampliar o conceito de equivalncia proposto por Vinay e Darbelnet. Para ele, as estruturas de uma lngua so decodificadas pelo tradutor e transformadas nas estruturas de outra lngua. Assim sendo, sua nfase na dimenso comunicativa da linguagem e por extenso, do ato tradutrio, o qual , antes de tudo, um ato de linguagem. Uma vez que para o autor, a lngua um cdigo comunicativo, Nida tambm busca apoio terico na semntica, na pragmtica e na teoria das funes da linguagem descritas por Jakobson. Utilizando esta base, Nida tem seu enfoque na traduo como comunicao e a lngua como seu cdigo comunicativo, em que o tradutor e o leitor so os dois interlocutores do ato comunicativo mediado pela traduo.

    13 BARBOSA, Heloisa Gonalves. Procedimentos tcnicos da traduo: uma nova proposta. 2 ed. Campinas:

    Pontes, 1990.

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    Por essas razes, consideramos importante para este estudo os conceitos de equivalncia formal e equivalncia dinmica propostos pelo autor.

    A equivalncia formal proposta por Nida est centrada na correspondncia formal entre o texto de partida e o texto de chegada. Assemelha-se ao procedimento tcnico da traduo literal de Vinay e Darbelnet (1958).

    J o conceito de equivalncia dinmica consiste em transpor os elementos da cultura do texto original para a prpria cultura do texto de chegada. semelhante ao conceito de traduo domesticadora de Venuti (1998).

    1.6 Hoebel & Frost (1976)

    Em se tratando da anlise de marcadores culturais na traduo, por certo, passaremos pelas relaes entre lngua e cultura. Nesse sentido, os antroplogos Hoebel & Frost (1976) oferecem nossa pesquisa um olhar antropolgico sobre a linguagem.

    1.7 Traduo semntica versus traduo comunicativa: o modelo de Newmark (1981)

    Na linha terica de base funcionalista, Newmark (1981), como muitos tericos anteriores a ele, se detm na tenso entre a traduo literal e a traduo no literal, privilegiando a dimenso comunicativa do ato tradutrio. Da teoria de Newmark, consideramos que so trs os conceitos primordiais sobre traduo, a saber, o que ele denomina o efeito do princpio equivalente, e a distino entre traduo semntica versus traduo comunicativa.

    a) Efeito do princpio equivalente: de acordo com Newmark este princpio consiste em manter o foco sobre o leitor, no ato comunicativo. A traduo neste caso beneficia o leitor, reduzindo as fronteiras estruturais entra a lngua de partida e a lngua de chegada, aproximando o texto do leitor, facilitando sua compreenso. Para o autor, embora o princpio do efeito equivalente seja til em determinadas situaes, ele no o considera suficiente. Segundo ele, o tradutor deve considerar as funes da linguagem presentes no texto a ser traduzido, alm do gnero e da finalidade do texto. So essas trs questes consideradas paralelamente que vo determinar quais procedimentos devem ser utilizados na traduo. Por isso, o modelo de traduo de Newmark inclui essas questes que ele disponibiliza em um quadro. Ele divide os tipos de traduo em trs grandes grupos: (i) expressiva

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    (literatura, textos autorais), (ii) informativa (livros didticos, relatrios cientficos e tcnicos) e (iii) vocativa (publicidade, leis, obras polmicas) e as distribui de acordo com as funes de linguagem que cada gnero contm. (Ver Newmark 1981: 39)

    b) Traduo semntica: nesse tipo de traduo, o foco recai sobre a lngua de partida, o autor original, bem como o pblico original. A traduo semntica mais literal e fiel ao sentido e ao contexto do original, valendo-se das aproximaes possveis entre as estruturas sintticas e semntica entre as duas lnguas.

    c) Traduo comunicativa: aqui, o foco est na lngua de chegada e seu pblico leitor. Esse tipo de traduo mais livre e idiomtica. Seu principal intuito produzir nos leitores o efeito mais prximo possvel daquele causado nos leitores do texto original, como se lessem um texto que parece no ter sido traduzido.

    Um contraponto de modelo de Newmark com o de Nida (1964) sobre equivalncia formal e equivalncia dinmica poder nos oferecer ensejos que auxiliaro o entendimento em relao s opes dos tradutores quanto a aproximar a traduo mais da cultura-fonte ou da cultura-meta.

    1.8 Barbosa (1990)

    A autora Helosa Gonalves Barbosa (1990) descreveu e analisou diversas tipologias de procedimentos tcnicos da traduo, comeando por Vinay e Darbelnet (1958), passando por Catford (1965), Nida (1964) e Newmark (1981), entre outras, e no ltimo captulo de seu livro, prope uma tipologia de sua autoria feita com base no que considera ter faltado ou ter ficado incompleto nas tipologias que abordou anteriormente.

    Barbosa (1990) inicia sua reflexo pontuando que desde os primrdios dos estudos de traduo, a grande tenso que norteia estes estudos aquela que considera dois eixos diametralmente opostos, a saber, a traduo literal versus a traduo no literal. A autora descreve e analisa algumas das tipologias de procedimentos tcnicos, evidenciando atravs de sua explanao que todas estas teorias, de uma forma ou de outra, giram em torno desta tenso. Visando quebrar este paradigma, Barbosa prope ento duas abordagens distintas no que concerne aos procedimentos tcnicos:

    a) Categorizao dos procedimentos tcnicos da traduo pela frequncia de ocorrncia: nesta proposta, os procedimentos seriam ordenados de acordo com a

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    frequncia com que so utilizados. Como exemplo, Barbosa cita um estudo de Alves (1983) que fez uma anlise estatstica para medir a frequncia do uso dos procedimentos tcnicos em textos da rea de cincias sociais. Segundo ela, a hiptese de Alves a de que os procedimentos mais fceis so os mais utilizados, devido ao fato de que a anlise semntica e contrastiva serem menos profundas. Os resultados que Alves apresenta evidenciam que, embora Vinay e Darbelnet considerem o emprstimo e o decalque os procedimentos mais fceis, estes so na prtica os menos frequentes, sendo que os que ocorrem com mais frequncia so a traduo literal e a transposio que seriam, portanto, os que apresentam menor grau de dificuldade na traduo. Ainda segundo a autora, Alves pontua que os resultados podem variar de acordo com a limitao do corpus e do gnero do texto, e que anlises com gneros diversos e quantidades diversas de corpus seriam necessrias para verificar a questo com mais acuidade.

    b) Categorizao dos procedimentos tcnicos da traduo pela convergncia ou divergncia lingustica e extralingustica entre o par de lnguas: essa abordagem considera o grau de proximidade entre as duas lnguas envolvidas no que concerne s aproximaes lexicais e sinttico-semnticas bem como culturais. A hiptese a de que pares lingusticos mais prximos, tais como, o portugus brasileiro e o espanhol implicaro a utilizao de procedimentos tradutrios mais simples e mais fceis do que em um par lingustico mais distinto como o portugus e o alemo. Para Barbosa, nos casos de maior convergncia, os procedimentos mais comuns so a traduo palavra por palavra e a traduo literal. Ainda segundo a autora, quanto maior a divergncia entre as duas lnguas, mais complexos sero os procedimentos empregados:

    A divergncia dos sistemas lingusticos obriga o tradutor a empregar procedimentos tradutrios mais complexos do que a traduo palavra por palavra ou a traduo literal, conforme definidas aqui. Esses procedimentos mais complexos visariam a preservar alm do sentido original, a gramaticalidade do TLT (Texto da Lngua de Traduo). (Barbosa 1990: 95)

    Esses procedimentos mais complexos, na tica de Barbosa (1990) so a transposio, a modulao e a equivalncia. Alm da divergncia lingustica (lexical, gramatical), a autora ainda considera um segundo tipo de divergncia, a extralingustica, ou seja, as diferenas culturais, as quais causam divergncias no lxico e at mesmo nos modos de expresso.

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    Assim sendo, as contribuies da autora sero teis na aplicao das modalidades de traduo nos cotejos que sero analisados.

    1.9 Modalidades de traduo: o modelo de Aubert (1998)

    A tipologia das modalidades de traduo proposta por Aubert (1998), com base nos procedimentos tcnicos da traduo de Vinay e Darbelnet, o cerne da metodologia a ser utilizada em nossa pesquisa, por permitir uma abordagem metodolgica descritiva das operaes tradutrias. neste artigo que se encontra a primeira proposio da tipologia, porm nosso foco ser na reformulao dessa tipologia feita pelo prprio autor em Aubert (2006a).

    1.10 Estrangeirizao e domesticao: os conceitos de Venuti (1998)

    De linha ps-estruturalista, o autor Lawrence Venuti (1998) , antes de tudo, um grande interessado no dilogo entre culturas e nos aspectos culturais da traduo. Uma vez que se trata de um estudo de marcadores culturais de uma lngua e de outra, os conceitos de traduo estrangeirizadora e traduo domesticadora sero utilizados de forma a compreender as semelhanas e diferenas culturais encontradas a partir do cotejo com o texto original e suas tradues, bem como, auxiliar no entendimento do processo de cada tradutor, ao optar por domesticar ou estrangeirizar o texto em sua traduo. Para Venuti (1998), o modo de traduo deve ser escolhido de acordo com a pretenso do tradutor em relao ao texto que ser traduzido. Assim, se o texto original for pertencente a um complexo lngua/cultura minoritrio, o tradutor pode optar por um projeto tradutrio que privilegie na traduo os traos daquela cultura. O autor denomina este processo projeto minorizante. Da mesma forma, se o texto de partida pertencer a uma cultura majoritria, ele defende que este tenha os traos lingusticos e culturais substitudos pelos da lngua de chegada. Assim sendo, o que comumente chamamos lngua de partida e lngua de chegada, o autor denomina lngua estrangeira e lngua domstica. A partir disso, Venuti prope os conceitos a seguir:

    a) Traduo domesticadora: processo de traduo cujo objetivo aplainar as diferenas lingusticas e extralingusticas entre o texto-fonte e o texto-meta, substituindo os caracteres lingusticos e culturais da lngua estrangeira pelos da lngua domstica, submetendo o texto ao processo de domesticao.

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    b) Traduo estrangeirizadora: o processo tradutrio atravs do qual as caractersticas lingusticas e culturais do texto estrangeiro permanecem no texto traduzido no apenas no lxico, mas nos aspectos culturais, sociolgicos, histricos e em alguns casos, at as estruturas sintticas do texto estrangeiro so mantidas e as expresses e idiomatismos so adaptados na traduo de modo a alcanar um efeito semelhante ao que causa no texto original. A idia central manter o efeito do estrangeiro, evidenciando ao leitor que se trata de um texto que foi traduzido.

    Vemos, portanto que, embora tambm divida a traduo na antiga tenso entre literal e no literal, Venuti considera a traduo principalmente em sua dimenso discursiva de uma forma mais global, considerando o texto como uma unidade. O autor defende que a inteno ideolgica, sobretudo o que norteia se a traduo ser predominantemente estrangeirizadora ou domesticadora. Diz ainda que, qualquer que seja a ideologia ou o processo adotado, todo texto original ao ser traduzido, ser imbudo de valores do complexo lngua/cultura domstico.

    1.11 Milton (1998)

    As elucidaes de Milton (1998), feitas a partir da abordagem historiogrfica sobre a traduo, principalmente no concerne traduo literria, contribuiro para o enriquecimento da anlise por oferecer dados histricos sobre o fazer tradutrio, como por exemplo, a mudana de pensamento sobre a traduo com o passar do tempo. Neste trabalho, o autor abrange desde a primeira tentativa de formalizar uma teoria de traduo, at as teorias mais recentes da rea, estabelecendo um comparativo entre as teorias tradicionais e as teorias contemporneas.

    1.12 Amorim (2005)

    O autor Amorim (2005) se dedica aos conceitos de traduo e adaptao na literatura e anlise dos conflitos tericos existentes entre esses dois termos. Alm disso, o autor se debrua sobre o processo de adaptao, entendido aqui, no como uma modalidade de traduo aplicada a uma expresso ou um trecho localmente, mas como um processo global de adaptao cultural. O processo de adaptao est diretamente ligado traduo de marcas

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    culturais, seja esse processo global ou local, seja este processo domesticador ou estrangeirizador, e por isso que as contribuies do autor sero bem-vindas.

    1.13 Aubert (2006a)

    Nesse artigo, o autor faz um mapeamento do estudo dos marcadores culturais na traduo, abordando desde a definio do termo, passando pelos processos de identificao desses marcadores, bem como o delineamento de algumas propostas para o tratamento da questo. Alm disso, importante salientar que foi este artigo que motivou a investigao aqui proposta, o que, portanto, o faz o artigo-chave norteador desta pesquisa. Como j foi dito na introduo desta dissertao, neste artigo, o autor discute algumas dificuldades inerentes questo dos marcadores culturais, tais como sua identificao, conceituao e suas subcategorias. Aborda a noo do termo cultura dentro da ptica da lingustica e prope, conforme j exposto em nossa introduo, a existncia de trs formas de marcadores culturais que podem ser encontradas nas lnguas: a dimenso gramatical (marcao de gnero e nmero entre outros), a dimenso discursiva (contextos que fazem sentido em uma lngua, no em outra) e a dimenso referencial (domnios culturais propostos por Nida (1945)). As marcas englobadas por essas trs dimenses so definidas pelo autor como marcadores culturais.

    1.14 Modalidades de traduo: o modelo revisitado de Aubert (2006b)

    Nesse artigo, Aubert (2006b) aborda os marcadores culturais na literatura brasileira traduzida, e prope uma reformulao de sua tipologia das modalidades de traduo de 1998, a qual espera-se, possa suprir melhor a necessidade dos tradutores e tradutlogos quanto ao entendimento e a identificao dos marcadores culturais. A remodelagem das modalidades de traduo presente neste artigo ser utilizada como ferramenta descritiva nesta pesquisa.

    Este artigo contm no apenas uma remodelagem em relao ao modelo inicialmente proposto por Vinay e Darbelnet (1958), mas apresenta uma remodelagem das modalidades de traduo encontrada em Aubert (1998). O autor revisitou seu prprio trabalho visando nos dar uma abordagem mais prtica e mais completa, desenvolvida no intuito de servir como ferramenta para tradutores bem como para professores e alunos de traduo.

    A grande contribuio desta remodelagem a diviso das modalidades de traduo em cinco grandes grupos, de acordo com suas peculiaridades, a saber: a) Omisso; b)

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    Espelhamento; c) Literalidade; d) Equivalncia e e) Traduo inter-semitica, os quais apresentamos abaixo sucintamente:

    a) Omisso: ocorre quando um segmento textual da lngua de partida no pode ser recuperado na lngua de chegada;

    b) Espelhamento: ocorre quando o segmento do texto original reaparece sem alteraes ou com poucas alteraes no texto traduzido. O espelhamento dividido em duas subcategorias: o emprstimo (item lexical do texto original reproduzido no texto traduzido, com ou sem marcadores grficos de emprstimo) e o decalque ( um emprstimo que passou por mudanas ortogrficas ou morfolgicas, como vemos em textos em ingls, So Paulo ser escrito, Sao Paolo, para se aproximar da pronncia em portugus).

    c) Literalidade: trata-se de um conjunto de solues tradutrias que aparentemente parecer ser feita de maneira direta, ou, dizendo de um modo mais popular, uma traduo mais ao p da letra, ou ainda, como define Aubert (2006a) trata-se de solues configuradoras de uma certa sinonmia interlingustica e intercultural no contexto dado. Aqui, busca-se ao mximo as aproximaes sinonmicas, isto , na medida em que a fronteira lingustica entre cada par de textos permite. A literalidade se subdivide nas modalidades transcrio (segmentos que pertencem a ambas as lnguas como nmeros ou emprstimos de uma terceira lngua), traduo palavra por palavra (segmento em que nos dois textos cotejados, haja o mesmo nmero de palavras, na mesma ordem sinttica, com as mesmas categorias gramaticais e que os itens lexicais sejam sinnimos bastante prximos), transposio (quando no h pelo menos uma das condies necessrias para a traduo palavra por palavra e so feitos rearranjos sintticos) e explicitao (salientar a literalidade semntica por meio de aposto explicativo, nota de rodap ou glossrio).

    d) Equivalncia: nesse tipo de modalidade, a interferncia e a presena do tradutor tornam-se mais visveis, mais ntidas no cotejo entre o texto original e o texto traduzido. Caracterizam-se por deslocamentos semnticos, sintticos e discursivos, e como bem define o prprio autor, pode no limite levar reescrita interpretativa na tica da cultura de recepo. Esto inclusas aqui as subcategorias implicitao (em que informaes explcitas tornam-se referncias implcitas), modulao (expressa o modo de dizer de um determinado complexo lngua/cultura, os

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    idiomatismos, procedimento muito comum na traduo literria) e adaptao (interseco de sentidos que abandona a busca da equivalncia plena).

    e) Traduo intersemitica: esse termo, como j dito anteriormente, foi proposto por Jakobson (1959), tendo sido definido como a traduo de textos verbais para textos no verbais. Na literatura, essa modalidade encontrada em forma de ilustraes, vinhetas, recursos de layout, capa, etc.

    A ferramenta descritiva das modalidades de traduo encontrada em Aubert (1998), redefinida conforme exposto acima em Aubert (2006a) foi reestruturada de forma a criar um vnculo maior entre a traduo como processo e a traduo como produto. O autor assim nos esclarece o intuito de sua reformulao e quais resultados espera obter:

    Destaca-se, nesta reformulao, o abandono de uma correlao estrita entre os fenmenos que se

    manifestam na estrutura de superfcie e a classificao linear das modalidades, entendidas como

    formando uma escala de diferenciao original/traduo, de um grau zero a um grau extremo, para alm do qual ocorreria o erro. Mantido o conceito de escala, fez-se um reagrupamento em

    grandes classes espelhamento, literalidade, equivalncia que, em muitos casos, melhor

    representam o que de fato ocorre na traduo, e permite separar com mais preciso os

    automatismos decorrentes das tipologias lingsticas das intencionalidades manifestas pelas opes do tradutor. (Aubert 2006b: 68)

    1.15 Azenha Jnior (2006)

    Em seu artigo, Azenha Jnior (2006) tambm trata daquilo que denomina marcas culturais, porm no contexto da prtica de traduo em sala de aula e com um olhar mais focado no discurso e na enunciao. Tambm conforme j dissemos na introduo, buscando subsdio na Lingustica Textual, o autor prope uma ampliao do conceito de marca cultural, que leve em considerao a interao discursiva, a qual no se restrinja a correspondncias entre itens lexicais, mas que seja calcado na maneira de ver o mundo de cada cultura, e como essa viso reconstruda dentro do interior do discurso tecido pelo ato de traduo. Sua definio de marca cultural e sua abordagem do tema do ensejo a esta pesquisa, uma vez que a investigao acerca das marcas culturais seu objetivo central.

    1.16 Adaptao local e adaptao global: o modelo de Cintro & Zavaglia (2007)

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    No artigo de Cintro & Zavaglia (2007), abordado detidamente o conceito de adaptao e sua relao com o conceito de traduo. Com auxlio da classificao dos domnios culturais de Nida (1945), as autoras discutem a distino entre adaptao global e adaptao local.

    a) Adaptao Local: aquela que se restringe a trechos especficos de um texto, ou ainda segundo as autoras, aplicvel quando h uma unidade de traduo, que envolve desencontros e assimetrias entre lngua e cultura-fonte vs. lngua e cultura-meta. (Cintro & Zavaglia 2007: 1-2)

    b) Adaptao Global: que abrange a totalidade do texto traduzido, em que a atuao do tradutor sobre o texto ocorre de forma mais sistemtica, implicando mudanas mais profundas no texto como um todo. Dependendo da inteno inerente ao projeto de traduo em questo, a adaptao global pode consistir em omitir determinados trechos ou ainda em reduzir, sintetizar ou reformular profundamente o texto.

    A discusso presente neste artigo nos auxiliar em nossa anlise, na medida em que traz indagaes pertinentes ao nosso mtodo de estudo e desdobramentos recentes na rea de Estudos de Traduo.

    1.17 Milton (2010)

    O artigo de Milton (2010), recentemente publicado, auxiliar nossa pesquisa a partir da discusso sobre o conceito de adaptao. Traz diversas definies para o termo, e nos apresenta alguns desdobramentos dos recentes chamados Estudos de Adaptao.

    ***

    Em se tratando de um trabalho descritivo sobre o fazer tradutrio, esta pesquisa requer uma base terica que se apie em trabalhos de tericos da traduo de linha estruturalista cuja abordagem mais tradicional, fazendo contrapontos com abordagens contemporneas. Por certo, sabemos que h discordncia e debates acalorados entre os tericos da traduo, bem como sabido que h linhas tericas mais recentes sobre a traduo como, por exemplo, a teoria desconstrutivista, de linha ps-estruturalista, cuja abordagem certamente traz grandes contribuies ao pensamento sobre o fazer tradutrio. Entretanto, quando se trata de Cincias Humanas, acreditamos que a mxima que afirma que a teoria mais contempornea suplanta a

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    mais antiga no condiz com a realidade, uma vez que as teorias mais antigas so sempre e invariavelmente a base, isto , o ponto de partida das teorias mais recentes, seja para endoss-las, seja para refut-las. Por essa razo, esta pesquisa rene uma bibliografia que abrange desde autores de linha estruturalista (Aubert, Jakobson, Mounin), passando pelos de linha gerativista (Nida), funcionalista (Newmark), historiografia da traduo (Milton), chegando at o ps-estruturalismo (Venuti). Sem dvida, a abordagem que aqui predomina, naturalmente a descritiva, devido ao fato de que o objetivo central desta pesquisa proceder identificao, descrio e anlise dos marcadores culturais na traduo. Por certo, tambm levaremos em conta as facetas histrica, social e ideolgica do ato tradutrio, porm, como j defendemos anteriormente, entendemos que a faceta lingustica a dimenso definidora da traduo. Assim sendo, o trabalho que aqui propomos de carter essencialmente descritivo. Contudo, cada teoria sugere uma abordagem que nos d ensejos que so teis de alguma forma, em determinados pontos da anlise que ser feita. Entendemos que as teorias tradicionais e contemporneas so, antes de tudo, complementares, e que o dilogo entre teorias tem somente a acrescentar ao nosso estudo e nisso, concordamos com o conceito de dialogismo relacionado crtica na perspectiva bakhtiniana. Bakhtin (1950) postula que um raciocnio no deve tentar sobrepor-se ao outro, transformando o outro (o texto estudado) em objeto, mas sim deve dialogar com o outro no mesmo nvel, uma vez que no existem diferentes nveis de qualidade. Este pensamento bakhtiniano em particular, endossa as nossas diretrizes nesta dissertao.

  • Captulo 2 Consideraes sobre o conto The Gold Bug de

    Edgar Allan Poe

    Uma vez que nosso corpus de anlise uma obra literria, convm apresentar uma sntese da biografia do autor, bem como apresentar o enredo e contextualizar sua obra. Apresentamos tambm as tradues escolhidas e as motivaes das escolhas. Alm disso, abordaremos tambm o gnero da traduo literria, a fim de dar maior ensejo anlise do texto original e de suas tradues para o portugus brasileiro que se seguir nos prximos captulos.

    2.1 Breve biografia do autor

    O grande nmero de tradues e publicaes em portugus sugere que, o escritor norte-americano Edgar Allan Poe relativamente bem conhecido pelo pblico brasileiro. Portanto, a biografia a seguir apenas um resumo dos fatos mais importantes de sua vida, os quais, de uma forma geral, parecem ter influenciado sua obra e sua viso sobre a vida. 14

    Poe nasceu na cidade de Boston, EUA em 1809, filho de atores pobres e pouco conhecidos. Perdeu o pai com poucas semanas de vida, e a me antes de completar trs anos de idade. Foi criado pelo exportador de tabacos escocs John Allan e por sua esposa. De 1815 a 1826 morou com os pais adotivos na Inglaterra, o que explica a influncia da literatura gtica inglesa e da linguagem rebuscada que viria a utilizar em seus textos. De volta aos EUA, frequentou a Universidade da Virgnia, onde embora bom aluno, foi acusado de mau comportamento e problemas com a bebida. Foi impelido a abandonar os estudos por seu tutor John Allan, com quem teve grandes problemas de convivncia. Mudou-se para Boston em 1827, onde publica anonimamente seus primeiros poemas. No mesmo ano vai para Baltimore, alista-se no exrcito e conhece sua tia Maria Clemm e sua prima Virgnia, de quatro anos. Em 1830, rompeu relaes com seu tutor e passou a viver s prprias custas. Nos anos seguintes publicou poemas e contos. Em 1836, casou-se em segredo com sua prima Virgnia de 13 anos. Em 1838, mudou-se para a Filadlfia, e no ano seguinte publicou aquela que viria ser sua mais famosa coletnea de contos Tales of the Grotesque and the Arabesque. (Contos do

    14 Para cronologia completa da vida de Poe, ver: POE, Edgar Allan. Histrias Extraordinrias. Traduo: Oscar

    Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1987, p. 251-254.

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    Grotesco e do Arabesco). Em 1840, teve uma vida intelectual agitada, dirigindo uma revista e trabalhando para duas outras, porm sua sorte mudou quando no ano seguinte, sua esposa adoeceu de tuberculose, ele ficou desempregado e seus problemas com a bebida aumentaram exponencialmente. Em 1843, publicou dois de seus contos mais conhecidos: Murders in the Rue Morgue e o conto aqui estudado, The Gold Bug. Mudou-se para Nova York em 1844 e no ano seguinte publicou a antologia de contos Tales e a coletnea de poemas The raven and other poems. Em 1846, comeou a escrever diversos artigos, entre o eles o conhecido Philosophy of Composition, no qual aborda seu mtodo de composio do poema The Raven. Em 1847, sua esposa vem a falecer aos vinte e quatro anos, fato do qual Poe jamais conseguiria se recuperar. Em 1849, o escritor foi encontrado em um bar de Baltimore, demasiadamente embriagado e desacordado. Foi levado para um hospital, mas no resistiu e veio a falecer aps quatro dias internado.

    Poe levou uma vida instvel e turbulenta. Alcolatra e angustiado, expressou seus tormentos e descontentamento pela vida atravs de seus personagens, to atormentados quanto ele prprio o era. Retratou em seus contos e poemas os aspectos mais sombrios da sociedade, o mais grotesco e arabesco que se pode encontrar na natureza humana, alm de expressar sua imensa curiosidade e inteligncia narrando enigmas e decifrao de cdigos com rigor matemtico em seus contos de detetive, gnero do qual por sinal, ele fora o inventor, e viria a inspirar o escritor ingls Arthur Connan Doyle a criar seu famoso

    personagem Sherlock Holmes.

    2.2 Sobre o enredo

    A histria do conto O Escaravelho de Ouro uma narrativa feita em primeira pessoa, como o costume do autor. Seu enredo, que um misto de aventura, mistrio e decifrao de enigmas por meio de raciocnio lgico, se desenrola em uma pequena ilha no estado da Carolina do Sul nos Estados Unidos. A histria gira em torno de trs personagens: o narrador-personagem, cujo nome no citado (outro trao comum do autor), o qual amigo de um homem chamado William Legrand, e o velho negro Jpiter, que um ex-escravo e criado de William. Tudo comea com uma visita do narrador ao seu amigo na pequena ilha onde mora com Jpiter. William um entusiasta de antiguidades e artefatos exticos e gosta de fazer colees. Na visita de seu amigo, William est entusiasmado por um escaravelho dourado que descobriu na ilha, que segundo Jpiter, era feito de ouro macio.

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    Algum tempo depois, o narrador-personagem recebe a visita de Jpiter em sua casa, dizendo que seu patro, Massa Will (senhor Will) est muito doente, envolvido com uns nmeros e que no falava em outra coisa que no fosse o tal do escaravelho. Jpiter traz consigo uma carta de William pedindo para que v ao encontro dele. Preocupado com a possibilidade de seu amigo ter sido acometido por um quadro de insanidade, o narrador parte com Jpiter para rev-lo. Ao chegar l, descobre que William pretende sair em uma empreitada, para qual convida o amigo, que mesmo reticente acaba aceitando. Eles chegam a um lugar no p de uma grande rvore, na qual, por ordem de William, Jpiter sobe muito alto e na ponta de um galho encontra uma caveira. Seguindo as instrues de seu patro, Jpiter passa o escaravelho amarrado ponta do barbante, pelo que deveria ser olho esquerdo da caveira, mas na verdade ele passa pelo olho direito. Ento, eles comeam a cavar o que na verdade se revelaria o lugar errado. Tendo notado o erro, William fica irritado com Jpiter e pede que eles comecem a cavar novamente h alguns metros do primeiro buraco. Eis que eles encontram um tesouro de pirata, avaliado ao que equivalia na poca a um milho e meio de dlares. Aps retornarem cabana, William conta ao seu amigo como foi que descobriu onde aquele tesouro estava enterrado. Na verdade, houve uma sucesso de coincidncias felizes que acabaram levando ao tesouro. William relata que ele e Jpiter encontraram o escaravelho, e devido ao fato de seu patro ter sido ferroado, Jpiter encontra uma folha de papel para pegar o inseto. Naquela folha de papel, ele havia desenhado o escaravelho para seu amigo ver na ocasio da visita anterior, j que no estava de posse dele naquele momento. O amigo na ocasio, disse que o desenho parecia uma caveira. Qual no foi a surpresa dele ao aproximar o papel da lareira, ter visto no verso do papel o desenho de uma caveira, prximo ao desenho de um cabrito, e um cdigo de nmeros e sinais de pontuao. Deduziu tratar-se do mapa do tesouro de um pirata conhecido como Capito Kidd (kid significa cabrito em ingls). Assim, William comeou a estudar a mensagem codificada e fazer uma srie de associaes dos nmeros e sinais com letras do alfabeto ingls. A partir disso, conseguiu uma mensagem. Depois de uma pesquisa pelos arredores da regio, descobriu o local exato onde o tesouro estaria enterrado. Agora a questo que fica : afinal, qual a conexo disso tudo com o tal escaravelho de ouro? Em principio, no h nenhuma conexo aparente. Segundo William, a insistncia de seu criado Jpiter em dizer que o escaravelho era feito de ouro macio acabou mexendo com sua imaginao, despertando seu interesse pelo cdigo. Ademais, ele demonstrou uma falsa fissura pelo escaravelho, pois como Jpiter e o narrador duvidaram de sua sanidade mental, ele decidiu se vingar de ambos criando misticismo em torno do escaravelho, e acabou por pregar uma boa pea nos dois. Na verdade, o escaravelho de ouro

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    uma metfora, pois foi a obsesso de Jpiter em afirmar que o inseto era feito de ouro que acabou levando seu patro descoberta do ouro de pirata escondido na ilha.

    2.3 Contextualizando a obra

    Nos idos da dcada de 1840, como j foi dito, Poe lanava uma coletnea de seus trabalhos, intitulada Tales of the Grotesque and the Arabesque (Contos do Grotesco e do Arabesco). Mais tarde, o poeta francs Charles Baudelaire traduziria e apresentaria o volume Frana batizando-o com o nome Histoires Extraordinaires. Por essa razo, o trabalho ficou conhecido no Brasil pela traduo do ttulo em francs para o portugus Histrias Extraordinrias, fato que no surpreende, pois conforme salienta Denise Bottman 15, no incio do sculo XIX, as tradues de Edgar Allan Poe no Brasil no eram feitas diretamente do ingls, mas sim feitas a partir das tradues francesas. No Brasil foram lanadas diversas edies diferentes dessa coletnea, sendo que algumas delas possuem nomes diferentes de Histrias Extraordinrias. Nestes casos, destacado um conto especfico e o ttulo completado com e outras histrias ou e outros contos. Desse modo, uma edio contm determinados contos e poemas e no contm outros, e assim por diante. Contudo, aparentemente todas possuem quase que invariavelmente os contos O Escaravelho de Ouro, A Queda da Casa de Usher, O Gato Preto, O Barril de Amontillado, e Os Crimes da Rua Morgue, os quais, por sinal, tornaram-se os contos de Poe mais populares entre o pblico brasileiro.

    Em breve ensaio presente em uma edio brasileira completa das obras de Poe, Oscar Mendes (1965: 53), um dos tradutores que aqui estudamos, fala da grande influncia que Poe exerceu sobre os pases estrangeiros e nos explica como se deu esse processo na Frana, pas que foi o pioneiro na divulgao da obra de Poe para o mundo:

    Inegavelmente deve-se Frana a difuso universal da obra de Poe. Foi atravs da traduo de Baudelaire que o mundo literrio ocidental tomou conhecimento da novidade e do valor da mensagem do autor norte-americano. As tradues que de seus contos surgiram em muitos pases foram feitas sobre a traduo de Baudelaire e no sobre o original ingls. Em 1845 aparece na Revue Britannique, que se publica em Paris, com uma notcia de Amde Pichot, uma traduo por Borghers de "O Escaravelho de Ouro". No ano seguinte, em 1846, comea a verdadeira popularidade de Poe, na Frana, quando surge em La Quotidienne, sob o ttulo de "Um Crime sem

    15 Para saber mais sobre as coletneas dos contos de Edgar Allan Poe que foram publicados no Brasil, ver artigo

    Poe no Brasil da tradutora Denise Bottman, publicado em seu blog: http://naogostodeplagio.blogspot.com. Acesso em 10 de abril de 2010.

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    Exemplo nos Fastos da Justia", uma adaptao feita por G. B. do conto "Os Crimes da Rua Morgue.16

    E mais adiante:

    Baudelaire foi traduzindo novos contos de Poe e a 12 de maro de 1856, o editor Michel Lvy lanava num volume in-12 as Estrias Extraordinrias, de Poe, treze contos, traduzidos por Baudelaire, que tambm autor de uma INTRODUO sobre Edgar Poe, sua vida e sua obra. Estava assim projetado no mundo literrio francs o escritor que trazia para a literatura, como do prprio Baudelaire dissera Vtor Hugo, um frisson nouveau. Esse "arrepio novo" iria transmitir-se a dezenas de escritores no s da Frana, mas de numerosos outros pases, e no apenas escritores medianos, mas at mesmo os nomes mais destacados e mais em evidncia. (Mendes 1965: 53)

    Considerando o conjunto de sua obra, verificamos que uma caracterstica peculiar do estilo de Poe que, devido a preocupar-se com questes de carter mais universal e focar a narrativa no nvel psicolgico, o tempo e o espao no so facilmente determinveis em seus textos, conforme observa Palelogo (1950: 17):

    Diante da obra de Edgar Allan Poe uma observao logo se impe: sua extraordinria independncia no tempo e no espao. Impossvel chegar a concluses satisfatrias tomando por base o meio e a poca. Excetuando as referncias cientficas que vez por outra salpicam alguns de seus trabalhos secundrios, a ao dos personagens sempre se desenvolve num ambiente vago e impreciso, onde o insondvel mistrio das almas a nica realidade. 17

    Alm disso, muito comum na obra de Poe o foco no assunto principal e o pouco detimento em detalhes. Outra caracterstica literria bastante peculiar do autor que todos os seus narradores tambm so personagens de suas histrias, ora personagens principais, ora coadjuvantes. Os nomes destes narradores nunca so citados, isso porque, segundo Baudelaire, eles so o prprio Poe. Seus narradores e personagens, em muitos casos se confundem com o prprio autor. Baudelaire, poeta, tradutor e crtico literrio, que alm de ter traduzido Poe para o francs, tinha grande afinidade com sua obra, evidencia essas questes de maneira bastante pertinente:

    Geralmente Edgar Poe suprime as coisas acessrias, ou pelo menos, no lhes d seno um valor mnimo. Graas a esta sobriedade cruel, a idia geratriz se torna mais visvel e o assunto se recorta ardentemente, sobre esses segundos planos nus. Quanto a seu mtodo de narrao, simples. Abusa do eu com uma cnica monotonia. Dir-se-ia que est to certo de interessar que pouco se preocupa em variar seus meios. Seus contos so quase sempre narrativos ou manuscritos do personagem principal. 18

    16 MENDES, Oscar. Influncia de Poe no Estrangeiro in EDGAR A. POE: FICO COMPLETA, POESIA &

    ENSAIOS. Traduo: Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. 17

    PALELOGO, Constantino. Machado, Poe e Dostoievski: Ensaios. Rio de Janeiro: Revista Branca, 1950. 18

    BAUDELAIRE, Charles. Edgar Allan Poe. In: POE, Edgar Allan. Contos Escolhidos. Rio de Janeiro: Globo: 1985, p. 16.

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    E mais adiante:

    Os personagens de Poe, ou melhor, o personagem de Poe, o homem de faculdades superagudas, o homem de nervos relaxados, o homem cuja vontade ardente e paciente lana um desafio s dificuldades, aquele cujo olhar est ajustado com a rigidez duma espada, sobre os objetos que crescem, medida que ele os contempla - o prprio Poe. 7

    A biografia e a obra de Poe esto, de fato, bastante relacionadas. Os tormentos, dificuldades de sua vida e a complexidade de sua mente so expressos de forma muito significativa em seus escritos. Antes de iniciar o relato da biografia de Poe, Palelogo (1950: 19) afirma que, para examinar a obra do autor, primeiramente necessrio lembrar rapidamente as circunstncias que, por sua grave natureza, marcaram de modo indelvel todas as suas produes. Citando o exemplo do conto estudado, pode-se dizer que Poe era simples e amvel como Jpiter, e ao mesmo tempo complexo e obstinado como William Legrand. Cada personagem criado por ele era, de certo modo, uma alegoria dele mesmo, uma diferente manifestao de sua conscincia, de sua intensa personalidade e de sua notvel genialidade. Segundo Cahen (1955: 21), Baudelaire considerava Poe um escritor genial: Dele dizia Baudelaire que era excelente homem de letras, na acepo mais ampla e delicada da palavra e que seu estilo era prodigiosamente original e perfeitamente correto. 19 Dizia tambm que Poe era um grande gnio, profundo como o cu e o inferno e que possua uma alta filosofia.

    Cahen (1955: 19-20) salienta, no entanto que, se entre os franceses Poe era considerado o mais elevado dos escritores, entre seus compatriotas, sua obra era considerada pouco interessante por entenderem na sua poca, que faltava a esta moral e tica, bem como a abordagem de questes sociais:

    Na Frana, terra de Baudelaire e Paul Valry, no preciso frisar a excelncia da poesia de Poe, nem exaltar sua reputao. Este o considerava o mais ldico dos tericos da arte de escrever, e aquele o tomava por modelo. Entre seus patrcios, no entanto, o entusiasmo no era grande. Por no cantar a Amrica, no agradava aos patriotas, e no seu tempo que era tambm o de Longfellow suas teorias e poemas afiguravam-se demasiadamente originais e, por isso, pouco prprios para seduzir o pblico ou os professores. Mais tarde, o impulso da literatura americana tomaria a direo do naturalismo e do realismo. Ora, a doutrina artstica de Poe, trazia em si, antecipada, a condenao destes movimentos, pois era isenta de preocupao social e no oferecia mais que uma mensagem puramente esttica. No s a tica est ausente de sua obra, como chega a conden-la como estranha, e at mesmo contrria arte. Ora, os americanos so pouco sensveis arte pela arte e mais propensos a julgar os mritos de um escritor segundo o valor de sua mensagem moral.

    19 CAHEN, Jacques-Fernand. Literatura Americana. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1955.

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    Se a preocupao social no era o tema mais ululante na obra de Poe, isso no quer dizer, todavia, que as questes sociais no estivessem presentes em alguns de seus textos. O conto The Gold Bug, ao mostrar a relao entre um homem branco e seu servo negro ex-escravo, bem como os caracteres culturais inerentes a cada um destes personagens, evidencia que Poe alocou tambm em sua literatura as questes sociais e culturais do momento histrico em que viveu, e justamente este fator que d base a presente dissertao. lcito concordar, no entanto, que Poe no se posiciona perante essas questes e no d profundidade a elas. Sabe-se, contudo, que elas esto l, de uma forma ou de outra. Palelogo (1950: 18) pontua que no foi necessrio ao propsito artstico de Poe aprofundar-se em questes sociais: Para atingir o mistrio do ser, no precisou ocupar-se da sociedade em que vivia nem dos seus tipos caractersticos. Penetrou de chofre nos abismos do esprito.

    No que concerne valorizao da literatura por suas caractersticas morais pelos norte-americanos, constatamos a realidade da anlise de Cahen (1955) ao lermos a crtica de alguns escritores e ensastas contemporneos a Poe, como por exemplo, Walt Whitman,

    renomado poeta norte-americano. Ao falar da importncia de Poe para a literatura, Whitman (1892), critica duramente o que considera falta de princpios morais nos versos de Poe. Assim como Baudelaire e Palelogo, relaciona o contedo da obra de Poe com os fatos que marcaram sua vida:

    Almost without the first sign of moral principle, or of the concrete or its heroisms, or the simpler affections of the heart, Poes verses illustrate an intense faculty for technical and abstract beauty, with the rhyming art to excess, an incorrigible propensity toward nocturnal themes, a demoniac understone behind every page-and, by final judgment, probably belong among the electric lights of imaginative literature, brilliant and dazzling, but with no heat. There is an indescribable magnetism about the poets life and reminiscences, as well as the poems. To one who could work out their subtle retracing and retrospect the latter would make a close tally no doubt between the authors birth and antecedents, his childhood and youth, his physique, his so-calld education, his studies and associates, the literary and social Baltimore, Richmond, Philadelphia, and New York, of those times-not only the places and circumstances in themselves, but often, very often, in a strange spurning of, and reaction from them all. 20

    Apesar das crticas, Whitman reconheceu a grandeza da obra de Poe:

    For a long while, and until lately, I had a distaste for Poes writings. I wanted and still want for poetry, the clear sun shining and fresh air blowing- the strength and power of health, not of delirium, even amid the stormiest passions-with always the background of the eternal moralities. Noncomplying with these requirements, Poes genius has yet conquerd a special recognition for itself, and I too have come to fully admit it, and appreciate it and him. (Whitman 1897 apud Carlson 1970: 74)

    20 WHITMAN, Walt. Edgar Poes significance. In: CARLSON, Eric W. (Ed.). The recognition of Edgar Allan

    Poe. Selected Criticism since 1829. University of Michigan Press, 1970, p. 73.

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    Segundo relatos 21 Walt Whitman foi o nico intelectual presente no funeral de Poe, o que comprova que, mesmo com as ressalvas, Whitman era um grande admirador de seu trabalho.

    Dostoevski (1861), escritor e jornalista russo, por outro lado, aclamou a obra de Poe e, segundo Mendes (1965), foi fortemente influenciado por ela. Ao apresentar trs dos contos de Poe aos leitores da Rssia (The Tell-Tale Heart, The Black Cat e The Devil in the Belfry), Dostoevski destaca o talento de Poe, valorizando o vis psicolgico de sua escrita, alm do realismo dos detalhes e sua notvel imaginao: What a strange, though enormously talented writer, that Edgar Poe! His work can hardly be labeled as purely fantastic, and in so far as it falls into this category, its fantasticalness is a merely external one, if one may say so. 22 E

    mais adiante:

    He chooses as a rule the most extravagant reality, place his hero in a most extraordinary outward or psychological situation and, then, describes the inner state of that person with marvelous acumen and amazing realism. Moreover, there exists one characteristic that is singularly peculiar to Poe and which distinguishes him from every other writer, and that is the vigor of his imagination. Not that his fancy exceeds that of all other poets, but his imagination is endowed with a quality which in such magnitude we have not met anywhere else, namely the power of details. (Dostoevski 1861 apud Carlson 1970: 61)

    Alm de ter influenciado Dostoevski na Rssia, Mendes (1965) destaca ainda a influncia de Poe em escritores notveis como Mallarm, Paul Valry e Jlio Verne na Frana, Machado de Assis no Brasil e Arthur Connan Doyle na Inglaterra. Se em terras estrangeiras o reconhecimento de Poe parece ter sido quase imediato, em seu prprio pas foi bastante tardio. Essa predileo sua obra pelos estrangeiros e pouco apreo dos norte-americanos da sua poca e ainda anos aps sua morte, pontuada por Walker (1973: 157):

    For many years following his death Poe was understood better in Europe than in America. His first scholarly biographer, John Ingramm, was an Englishman, while the French, inspired by Baudelaire, had no hesitation in acclaiming Poe as a major author with an international appeal. But it was only after the in breakdown of the genteel moralistic tradition in American literature that Poes true significance began to be recognized in his own country. 23

    21 Ver op. cit. p. 73: About the most significant part of the Poe reburial ceremonies yesterday which only a

    crowded and remarkably magnetic audience of the very best class of young people, women preponderating, prevented from growing tedious-was the marked absence from the spot of every popular poet and author, American and foreign. Only Walt Whitman was present. 22

    DOSTOEVSKI, Fyodor M. Three tales of Edgar Allan Poe In: CARLSON, Eric W. (Ed.). The recognition of Edgar Allan Poe. Selected Criticism since 1829. University of Michigan Press, 1970, p. 60. 23

    WALKER, Ian M. Edgar Allan Poe. In: CUNLIFFE, Marcus. (org.) American Literature to 1900. Narrie & Jenkins. London, 1973.

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    Conforme salienta o autor, Poe somente teve sua importncia reconhecida nos Estados Unidos quanto terminou em sua literatura o perodo de tradio moralista, o que explica porque Whitman e outros diziam que faltavam princpios morais nos escritos de Poe.

    No tocante variedade de gneros literrios, a obra de Poe, no que concerne ao gnero conto bastante diversa, conforme nos lembra Walker ( apud Cunliffe 1973: 145): An aspect of Poe that is often overlooked is the diversity of his work in the short story form. Apart from his studies in psychology of terror, Poe also experimented with science fiction, hoaxes, satires, philosophical dialogues, surrealist fantasies and detectives stories.. Um dos gneros que mais se popularizou foi o ltimo citado, que comumente classificado pelos ensastas como detective story, tale of mistery e, no Brasil, ficou conhecido como conto policial. Ainda segundo Walker (apud Cunliffe 1973: 145), Po