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    Ace rvo , R io de Janeiro, v. 12, n 1-2 , p . 67-8 8, jan /dez 1999 - p g.67

    R V O

    Mar!

    E um aberto poema que

    ressoa

    No bzio do areal...

    Ah, quem pudesse

    ouvi-lo sem mais versos!

    Assim puro,

    Assim azul,

    Assim salgado. ..

    Milagre horizontal

    Universal,

    Numa palavra s realizado.

    (Miguel Torga, Mar)

    Penso, na verdade, que a

    histria do Brasil no

    histria parte, e que deve

    Vitorino Magalhes Godinho

    no Labirinto UltramarinoAs frotas, as especiarias e o mundo

    atlntico

    Oswaldo Munteal FilhoOswaldo Munteal FilhoOswaldo Munteal FilhoOswaldo Munteal FilhoOswaldo Munteal Filho

    Historiador da Seo de Pesquisa doArquivo Nacional. Professor adjunto de Histria Moderna e

    Contempornea da UERJ e da PUC-Rio. Doutor em Histria Social IFCS/UFRJ. Coordenador do Navegar laboratrio de estudos portugueses da UERJ.

    ser consideradanas suas

    relaes com a

    histria

    do meu

    pas, e ambas integradas na

    evoluo mundial.

    (Vitorino Magalhes Godinho)

    INTRODUO: ATRAMADAREDEATLNTICA

    Oencontro dos navegadores coma Amrica deu-se atravs doMar-Oceano, para tomar aquiuma inspirao de Colombo. Este meio

    natural, paulatinamente domesticado, foi

    tornando-se aos poucos uma fonte de

    mistrios, de interpretaes fantsticas

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    pg.68, jan/dez 1999

    A C E

    cunhadas pelos capites-nobres. Estes co-

    mandantes de esquadra formaram-se nos

    quadros de um pensamento medieval

    comprometido com o ideal da cavalaria,

    a obsesso pela honra e, sobretudo, pela

    busca da glria. Portanto, o perigo fazia

    parte da conquista, assim como a manei-

    ra de ultrapassar os obstculos transcen-

    dentes, representados por serpentes ma-

    rinhas, drages ou mesmo entidades

    mgicas capazes de alterar a mente dosmarujos.1

    A arte da marinharia, confrontada ao tem-

    po histrico em que os aristocratas esta-

    vam inscritos, representou uma fonte de

    novas certezas para a secularizao da

    Ibria.2 O historiador portugus Vitorino

    Magalhes Godinho props uma verdadei-

    ra reviso da epopia das descobertas,

    por meio da histria das frotas e dos me-

    tais amoedveis, das rotas ultramarinas,

    e, sobretudo, das especiarias do Oriente

    e da Amrica.

    Pode-se supor que ele percebe uma ver-

    tente original para a histria dos desco-

    brimentos, fundada no movimento dos

    homens e das mercadorias que singraram

    os continentes do Novo Mundo. Tempo

    secular o tempo da acumulao da ri-

    queza das naes, especialmente dos pa-

    ses ibricos. A utopia da construo de

    uma nova identidade (luso-americana)

    tem uma referncia central para Godinho:

    os meios p r t icos que melhor

    viabilizariam a conquista fsica das novas

    terras. Nesse sentido, o encontro do Ve-

    lho Mundo com o Novo Mundo depende

    de uma compreenso do significado da

    realidade palpvel, ao alcance da mo dos

    portugueses, articulada ao esforo de

    conferir uma dimenso inteligvel Natu-

    reza encontrada ou descoberta.3

    No devemos nos esquecer que muitos

    ainda hoje, no limiar do sculo XXI, con-

    sideram a inveno do Novo Mundo como

    um dado insofismvel, e sobre o qual

    pouco pode-se ainda dizer.4 O que talvez

    explique a apatia brasileira ou as mani-

    festaes estreis diante das comemo-

    raes dos 500 anos de Brasil. Afinal,

    como lembra bem a catilinria ps-mo-

    derna, para que investigar o que j est

    dado? Faz sentido pesquisar?

    Faz-se necessrio, pois, retomar o deba-

    te acerca das fronteiras, a fim de que pos-

    samos perceber o cariz da sociedade por-tuguesa que produziu o encontro com a

    Amrica. O conceito de fronteira foi as-

    sim explicitado por Lucien Febvre: Fron-

    teira: palavra de exrcitos em movimen-

    to, palavra relativamente nova que se

    ope a limite, essa velha palavra indul-

    gente de medidores de terra. Fronteira,

    verdadeira fronteira, linear e de choque

    um dos nervos flor da pele, cuja dor

    lancinante nossa velha Europa carrega em

    seus flancos....5 necessrio um esfor-

    o de retomada da teoria do sistema mun-

    dial na perspectiva analtica de Fernand

    Braudel, e dessa forma integrar a com-

    preenso da fronteira compulso

    globalidade, forada pelas polticas colo-

    niais europias em tela desde o sculo

    XVI.

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    Ace rvo , R io de Janeiro, v. 12, n 1-2 , p . 67-8 8, jan /dez 1999 - p g.69

    R V O

    As terras descobertas tm a funo, den-

    tro da lgica da mundializao das tcni-

    cas e do conhecimento sob controle do

    Ocidente moderno, de proporcionar uma

    acumulao ilimitada e interminvel de

    capitais e de foras em torno do grande

    comrcio e dos estados hegemnicos do

    ncleo duro da economia mundo dos des-

    cobrimentos.

    Este estudo pretende, sumariamente e

    tendo como foco uma escrita postada,

    examinar as fon tes da re f lexo

    historiogrfica de Godinho e os caminhos

    da sua interpretao, a partir de um tra-

    balho intitulado: Portugal, as frotas do

    acar e as frotas do ouro (1670-1770).

    A estrutura deste trabalho apresentar os

    seguintes problemas, tomando-se por

    base a anlise da escrita de Godinho: arelao que o autor estabelece entre a

    crise civilizacional do mundo contempo-

    rneo e o futuro dos pases de lngua por-

    tuguesa. Esse elemento atravessa os es-

    tudos e cursos mais recentes do historia-

    dor portugus; o colonialismo luso como

    uma etapa da histria do sis tema mundi-

    al; a identidade entre a histria do Brasil

    e de Portugal; as frotas e o imprio por-

    tugus. Os aspectos apontados nessa

    agenda intelectual de Magalhes Godinho

    no aparecem nessa ordem, ou mesmo

    com esses t tu los . Na verdade, o

    ordenamento deste artigo obedecer o

    ritmo das frotas do acar e do ouro, com

    um olhar sempre atento para as suges-

    tes e polmicas implcitas num trabalho

    preparado em 1951.

    MAREMODERNIDADE: OS IMPASSES

    DACIVILIZAO

    Areflexo sobre a escrita de Ma-galhes Godinho exige um es-foro de compreenso de duasvertentes que aparecem constantemente

    no estudo sobre as frotas: em primeiro

    lugar, a percepo do mundo como obje-

    to de pesquisa. De uma outra perspecti-

    va, Godinho revela uma preocupao

    constante com a maneira de pensar a his-

    tria, e o ofcio do historiador. Esse pro-

    cesso de conhecimento do mundo luso-

    americano encontra o seu ponto de

    imbricao quando a histria da expan-

    so capaz de examinar, articuladamen-

    te, o conceito de descobrimento, a idia

    de Novo Mundo e a singularidade do

    renascimento ibrico para a cultura oci-

    dental.

    Os homens que cruzaram o Atlntico en-

    tre os sculos XV e XVIII buscavam, em

    essncia, especiarias que muitos navega-

    dores, naturalistas e burocratas rgios

    julgavam existi r abundantemente nas ter-

    ras exticas do Novo Mundo. Nessa parte

    do globo terrestre, as aes dos luso-bra-

    sileiros foram impulsionadas por uma es-

    pcie de mutao mental de inspirao

    renascentista, que, aliada ao esprito

    aventureiro, domou as ondas da mar e

    quebrou a baa tranqila da resignao

    em busca do alto-mar.

    Na mente e na alma do navegante deve-

    ria haver clareza, quando tudo oscilava

    sob ele. Na ponte de comando havia tan-

    to a sobriedade do conhecimento para

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    pg.70, jan/dez 1999

    A C E

    pilotar, quanto o sentimento de descobrir

    e a caprichosa mstica de errar pelo mun-

    do inteiro.

    A dimenso multissecular do reconheci-

    mento do cu, da terra e do mar, dos li-

    mites territoriais nos oceanos e nas no-

    vas terras, precipitou as potncias euro-

    pias da poca para um cenrio interna-

    cional de disputa acirrada. Muitas bandei-

    ras singraram os mares, dos piratas aos

    comerciantes ultramarinos, alm dos mis-

    sionrios, nobres, pilotos, e naturalistas

    que lutavam pela hegemonia do Atlnti-

    co, transferindo assim para o cu e para

    o mar a geografia do continente.

    A migrao de povos, idias, especiar ias

    e identidades acabou por caracterizar as

    sucessivas aventuras de redescoberta dos

    territrios ultramarinos. Quando pensa-

    mos, quinhentos anos depois, nos poss-

    veis significados da conquista da frica,

    Amrica e ndia para o fluxo de homens e

    mulheres que passaram a experimentar a

    cultura portuguesa, perguntamo-nos so-

    bre a capacidade que temos de reunio e

    o quanto somos diferentes da origem.6

    A idia de uma comunidade de povos de

    lngua portuguesa ultrapassa o espao

    local e ganha fora planetria quando di-

    versos pases fora da lngua oficial portu-

    guesa se integram de forma fragmentada

    cultura lusitana.7 As iniciativas em tor-

    no de uma maior integrao tm sido t-

    midas. Os centros de pesquisa, acordos

    de cooperao econmica e mesmo as

    famosas comemoraes em torno dos

    quinhentos anos muitas vezes ignoram a

    fora vital de uma possvel unidade

    lusfona.

    O pensamento nico de cunho neoliberal

    aumenta os desafios que estamos a en-

    f ren ta r , d ian te do p rocesso de

    g loba l i zao da economia e de

    massificao da cultura. A busca da me-

    mria viva, dos laos intelectuais e ticos

    que nos unem e da reflexo sobre as di-

    ferenciadas rotas que marcaram a hist-

    ria de Angola, Cabo Verde, Brasil, Portugal,

    Timor Leste, Macau, Moambique, So Tom

    e Prncipe e Guin ao longo do sculo XX

    adquirem sentido para a formao edu-

    cacional e cultural de nossos povos.

    de fundamental importncia que as ca-

    sas de memria, universidades e os r-

    gos de comunicao social trabalhem

    articuladamente na revalorizao da tra-dio intelectual luso-brasileira com o

    objetivo de informar a sociedade civil so-

    bre uma histria que foi durante muito

    tempo comum. Para alm disso, devemos

    refletir sobre os nossos vnculos com a

    modernizao e pensar no passado colo-

    nial, que afinal sempre surge como um

    fantasma contemporneo para as ex-co-

    lnias em busca da superao do atraso.

    Parte de nossa elite dirigente econmi-

    ca e burocrtica tenta contaminar o sen-

    so comum com a explicao perversa que

    associa o nosso atraso econmico tra-

    dio luso-brasileira, esquecendo eviden-

    temente da forma dependente do nosso

    capitalismo, este sim associado a fatores

    globais e que escapam ao consenso atln-

    tico.

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    Ace rvo , R io de Janeiro, v. 12, n 1-2 , p . 67-8 8, jan /dez 1999 - p g.71

    R V O

    A liderana em torno da idia desse con-

    senso depende claro de investimento

    material, assim como deve estar compro-

    metida com atitude tica e fora intelec-

    tua l , que a f ina l concorrem para a

    materializao dos nossos ideais.

    Quinhentos anos depois da expanso cul-

    tural e da explorao econmica do Novo

    Mundo, os povos de lngua portuguesa

    tm refletido, cada um a sua maneira,

    sobre o processo colonizador e sobre o

    lugar que cada um ocupa no mundo de

    cultura lusfona. As cidades ultramarinas

    tm em comum o passado colonial , a he-

    rana de uma longa tradio imperial

    (1415-1974) e os fragmentos de uma

    multifacetada identidade cultural. A expe-

    r inc ia de uma un idade imper ia l ,

    deslanchada pela cultura renascentista e

    consignada pela lngua, pela f e pelo

    monoplio metropolitano, caracterizou a

    mensagem dos descobrimentos portugue-

    Retrato de Vasco da Gama. Roteiro da viagem queem descobrimento da ndia pelo cabo da Boa Esperana fez d. Vasco da Gama em 1497. Porto, 1838.

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    pg.72, jan/dez 1999

    A C EA C E

    ses por trs continentes.8

    A reflexo sobre o futuro dos povos de

    lngua portuguesa, das origens maturi-

    dade, integra uma histria de muitos ca-

    ptulos na busca dos traos comuns en-

    tre a histria de Portugal e a histria dos

    pases que progressivamente se viam en-

    volvidos num complexo cultural discursivo

    transepocal. As diversidades cultural, t-

    nica, lingstica e intelectual presentes na

    trajetria das ex-colnias nos obrigam a

    cruzar a hipottica temperana e a pecu-

    l ia r idade dos t rp icos com a

    multiplicidade de dialetos e crenas, e fi-

    nalmente com a prpria busca dos pases

    que herdaram o portugus do seu senti-

    do/destino.9

    Na memria dos viajantes que singraram

    os mares e invadiram os povos e as ter-

    ras exticas, havia a contemplao em re-

    lao natureza tropical e ao no sen-

    tido dos homens seculares. A perspectiva

    de estar-no-mundo foi vital para os des-

    cobridores, afinal cu e mar pertenciam

    de fato aos navegantes e a todos os que

    eram capazes de entender os sinais pre-

    sentes na natureza fsica das colnias.

    Havia assim uma verdadeira aliana en-

    tre a colonizao e a compreenso. Resta

    saber, hoje, que sntese possvel ser

    recuperada ou criada a partir da rida

    conquista da autonomia e da distante

    percepo dos fragmentos de uma iden-

    tidade.

    Viajar era preciso e natural para os ho-

    mens do renascimento cientfico-cultural

    do chamado Grande Sculo. A necessida-

    de de que fossem trilhados caminhos para

    dentro e para fora de Portugal, com as

    mesmas finalidades e objetivos, reside

    nos sentidos de explorar e conhecer.10 Na

    viagem est implcito o distanciamento,

    fictcio ou no, independente de qualquer

    racionalidade para ser, num duelo entre

    razo e vontade/instinto. Para quem o ca-

    rter de observar constitui a base para um

    saber elucidado e no perigosamente su-

    posto, o caminho das fontes precauoe lementa r . A v iagem fo i capaz de

    (re)construir Portugal pela significao

    que lhe d o tempo. Tempo esse que

    passado, pois s ele verdadeiramente

    tempo.

    O desenvolvimento dos espaos de soci-

    abilidade intelectual e o investimento no

    mtodo cientfico, voltados para o estudo

    da natureza como matria filosfica, vi-

    saram a promoo imediata de um conhe-

    cimento que se constitui utilitrio, ou seja,

    de um entendimento de fim prtico, e in-

    serido nos termos de uma nova descober-

    ta do Novo Mundo. Dessa maneira, a na-

    tureza foi a chave para um controle que,

    de uma forma pragmtica, correspondeu

    a um movimento de largo e minucioso

    reconhecimento do imprio colonialatlntico.

    O escritor portugus Miguel Torga em

    seus Dirios diz: O meu espao de li-

    berdade o mapa de Portugal, subenten-

    dido na folha de papel onde escrevo.

    Tor ga convida-nos em sua obra, espec i-

    almente em seus Dirios, a um passeio

    imaginrio por Portugal. Apresenta ao lei-

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    Ace rvo , R io de Janeiro, v. 12, n 1-2 , p . 67-8 8, jan /dez 1999 - p g.73

    R V OR V O

    tor um percurso da aventura lusada des-

    de os trs-montanos aos minhotos, ao

    Douro, s Beiras, ao passado coimbro, a

    Lisboa ultramarina dos cruzados e dos

    mouros e a Lisboa peninsular/europia,

    e, afinal, converge para as fundaes da

    nacionalidade portuguesa de d. Afonso

    Henr iques, pa ra en to chegar aos

    alentejanos e algarvios, neste caso o ori-

    ente criado pela pennsula ibrica, regio

    fundadora do cisma Ocidente/Oriente des-de 711.

    Esse o roteiro ideal-tpico dos ensastas

    de diversas pocas, mesmo entre aque-

    les em que a perspectiva do historiador

    no necessariamente a dominante e, de

    certa maneira, o entendimento acerca de

    Portugal acaba por transcender o ofcio

    especificamente historiogrfico. Entre

    estes intelectuais habitam diversas tradi-

    es acadmicas e literrias, como nos

    casos de Alexandre Herculano, Antnio

    Srgio e Oliveira Martins, que, neste lti-

    mo caso, pontifica a reinterpretao da

    histria de Portugal luz de uma civiliza-

    o ibrica emergente e de um pas que

    morreu ao nascer e viveu a imitar os ou-

    tros. Portugal teria acabado no sculo XVI

    e os Lusadas seriam um epitfio.

    Entender Portugal nas suas origens e na

    sua integralidade parece ser sempre uma

    inteno, uma meta, um objetivo quase

    impossvel de ser alcanado.11 Em um

    episdio de grande dramaticidade para a

    histria moderna portuguesa, o historia-

    dor Joo Lcio de Azevedo prope: Nin-

    gum acredita j que d. Sebastio venha

    a ressuscitar, mas poder-se- dizer que

    desapareceu de todo o sebastianismo?

    Nascido da dor, nutrindo-se da esperan-

    a, ele na histria o que na poesia a

    saudade, uma feio inseparvel da alma

    portuguesa.12

    A difci l e complexa tarefa de, tomando

    aqui a perspectiva de Fernand Braudel,

    pegar a estrada, e com os prprios olhos

    inventariar a diversidade, interpretar a

    partir da paisagem, procurar a divergn-

    cia, o contraste, a ruptura e a fronteira,

    mobiliza-me e impulsiona-me a perceber

    a interinfluncia luso-brasileira na sua

    singularidade e originalidade.

    O problema da identidade no limiar do

    sculo XXI recoloca a sociedade brasilei-

    ra e a portuguesa frente a frente com as

    suas histrias de permanncias e ruptu-

    ras. A retomada das discusses em torno

    dos quinhentos anos faz reacender no

    s a remota histria do povo brasileiro,

    mas tambm o sentido desta discusso

    para o prximo milnio. A retomada da

    herana quinhentista sinuosa, diria

    mesmo perigosa, pois remete a uma pes-

    quisa sobre o sentido transistrico que

    habita no interior da tradio luso-brasi-

    leira. Ns no acabamos de nos conhe-

    cer. A re lao at lnt ica ant iga e

    permeada por significativas contradies

    que referem-se ao prprio passado colo-

    nial.

    Promover uma ligao entre portugueses

    e brasileiros, com base exclusivamente na

    efemride ou mesmo na comemorao

    do acontecimento, um risco calculado

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    pg.74, jan/dez 1999

    A C E

    e imprevisvel. O aqui e agora, escre-

    veu Ernst Jnger, trata-se de uma ques-

    to central do nosso tempo, quer dizer,

    de uma questo que, em qualquer dos

    casos, se faz acompanhar de perigos.13

    Entre a herana e o futuro h uma traje-

    tria errtica e muitas vezes criativa.

    Pode-se dizer mesmo que a gnese da

    identidade lusfona refere-se, em primei-

    ro lugar, a trs influncias tnico-cultu-

    rais: a presena islmica (sculo VIII); a

    tradio visigtica (criao da diocesis

    Hispaniarumpor Diocleciano em 297) que

    originalmente fundou a Ibria; e o lega-

    do ultramarino marcado pelo incio das

    grandes navegaes (em torno de 1415).

    Num segundo momento, deve-se consi-

    derar a interpretao sobre a histria das

    geraes de povos e culturas que entra-

    ram em contato reciprocamente a partir

    da empresa colonial, das guerras religio-

    sas e dos movimentos de independncia.

    Aparentemente, as trocas cul turais foram

    desprezadas como fatores de integrao,

    e muitas vezes encaradas como fontes do

    atraso material. Nesse sentido, para que

    lembrar de relaes entre partes esque-

    cidas ou pouco desenvolvidas do globo,

    como a distante e ininteligvel ndiagoense, a miservel frica portuguesa de

    descolonizao recente e polmica, ou o

    Brasil cada vez mais perifrico quanto s

    exigncias do ncleo orgnico do capita-

    lismo global?

    As dificuldades em torno de uma maior

    visualizao acerca da relevncia de se

    pensar sobre o passado luso-brasileiro

    comeam com o movimento de consoli-

    dao do nacionalismo no sculo XIX, se-

    gu ido do fenmeno nacional

    metamorfoseado em fascismo na dcada

    de 1920 em Portugal, e, finalmente, a re-

    cuperao econmica em meio a uma

    recesso internacional.14 Portugal e Bra-

    sil parecem existir em planetas distintos.

    A dinmica do encontro contemporneo

    parece reivindicar da inteligncia ibero-

    americana a elaborao de um verdadei-ro inventrio dos marcos conceituais que

    venham a caracterizar uma historiografia

    dos povos de lngua portuguesa.

    O ensino secundrio dos jovens estudan-

    tes brasileiros tem confirmado todos os

    preconceitos seculares construdos ao

    longo das sucessivas redescobertas das

    nossas diferenas. O encontro do sculo

    XXI no apenas de culturas, mas essen-

    cialmente marcado por uma espcie de

    ajuste de contas com a nossa memria

    coletiva. curioso observar a estranheza

    dos brasileiros no que tange aos quinhen-

    tos anos. Um olhar atento pode perceber

    as seguintes iniciativas ldicas : a prepa-

    rao de uma outra sinfonia do Novo Mun-

    do (alm da famosa nona de Antonin

    Dvork) pensada para as comemoraesoficiais, uma encenao da chegada dos

    navegadores numa espcie de funeral vir-

    tual, e, claro, alguns protestos em nome

    da busca da alteridade perdida.

    Portugal retomado no mbito do senso

    comum como o ponto de partida do atra-

    so, 15 uma espcie de mergulho para o

    nada. Trata-se, na verdade, de eliminar

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    R V O

    fronteiras entre os pases que formam a

    comunidade lusfona, e aproximar algu-

    mas investigaes realizadas no contexto

    dos centros de excelncia, na direo do

    grande pblico. A sociedade brasileira

    precisa de uma alta dose de histria. H

    uma concepo mais ou menos dissemi-

    nada de que a empresa e a carreira colo-

    niais empreendidas pelos lusos foram in-

    feriores s dos holandeses, franceses, in-

    gleses e at dos espanhis dos nossosvizinhos no Cone-Sul. Alguns parecem

    buscar a metrpole ideal ou a coero

    mais perfeita. Pior, h um verdadeiro es-

    quecimento do colonialismo recente em

    frica. O olhar sobre a histria do pre-

    sente imediato parece ameaar decisiva-

    mente a crtica e surge a proposta escon-

    dida de um homem no-histrico. Mais

    uma vez retomando Torga, o escritor por-tugus diz: uma vida d para quase

    tudo.

    A intolerncia com o passado faz parte das

    especulaes neoliberais e ps-modernas

    da contemporane idade. A lguns

    prepotentes do fim do sculo correm em

    busca de uma notoriedade milenarista

    propondo o fim do pensamento e da ao,

    sinalizando para o pensamento nico que

    no cessa de afirmar que tudo j est dito.

    Ento para que a pesquisa? H um esfor-

    o de retirar da histria qualquer capaci-

    dade de compreender ou explicar, num

    movimento de esmagamento de todo pro-

    jeto coletivo. O desafio posto na mesa

    o seguinte: no h memria individual ou

    coletiva. O historiador ser capaz de cap-

    turar no tempo histrico os registros da

    memria social contida na experincia

    multissecular dos descobrimentos? A ati-

    tude de pensar historicamente civil e

    crtica, independente de ideologias, no

    momento em que possvel confrontar

    concepes, examinar registros documen-

    tais dspares, buscar a contradio na

    pesquisa rida e minuciosa sobre o pro-

    cesso com os seus ritmos e sentidos pr-

    prios.

    O pai da hermenutica contempornea,

    Hans Georg Gadamer, em seu ensaio so-

    bre as origens culturais e os fundamen-

    tos antropolgicos do continente euro-

    peu, medita longamente sobre o hiato

    entre a genealogia dos povos europeus e

    o futuro que os espreita. Para tanto,

    Gadamer lembra muitas vezes do papel

    da Segunda Guerra Mundial como um

    momento de reflexo ou balano da ex-

    perincia humana produzida no passado,

    e a manipulao sobre a opinio pbica e

    a formao cientfica estril nos dias que

    correm. Afinal, e a funo do pensamen-

    to filosfico nisso tudo?16

    A pergunta que muitas vezes tem sacudi-

    do os meios de comunicao, de uma

    maneira geral, parte da convico de que

    realmente existe alguma coisa para se co-

    memorar. Bem, se isso verdade, faz-se

    necessrio estabelecer algumas propos-

    tas preliminares. O acontecimento/pro-

    cesso que engloba o mundo lusfono pos-

    sui temporalidades distintas. A reconstru-

    o portuguesa de 1974 se deu num mo-

    mento extremamente desfavorvel. A eco-

    nomia sustentou o processo de moderni-

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    pg.76, jan/dez 1999

    A C E

    zao e redemocratizao nas dcadas

    que se seguiram Revoluo do 25 de

    abril, movimento militar que foi o res-

    ponsvel direto pela liquidao do

    salazarismo.17

    As ex-colnias v iveram, ao longo do s-

    culo XX, uma outra experincia histri-

    ca, marcada por uma imensa dvida so-

    cial e pela acelerao do processo de de-

    pendncia econmica. Em termos

    metodolgicos pode-se pensar a relao

    luso-brasileira a partir de Portugal, do

    Brasil ou de Portugal e Brasil. E este o

    ponto fundamental: romper com o iso-

    lamento cultural que mais uma vez faz uma

    sombra entre a Ibria e o Oriente. 18

    A definio do que somos em termos de

    uma unidade dos povos de lngua portu-

    guesa depende de uma afirmao do en-

    contro no sculo XXI. O sentido da come-

    morao diverso, e a capacidade de reu-

    nio est vinculada diretamente recupe-

    rao da memria das ex-colnias e

    admissibilidade de uma histria comum

    num passado mais remoto.

    Uma das tarefas que se apresentam para

    os inte lectua is que tm pensado e

    pesquisado a longa expanso colonial lu-

    Guillaume-Thomas Franois Raynal, Histoire philosophique etpolitique des tablissements et du commerce des europens dans les deux Indes, Paris, 1820, volume

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    Ace rvo , R io de Janeiro, v. 12, n 1-2 , p . 67-8 8, jan /dez 1999 - p g.77

    R V O

    sitana, estabelecer um dilogo entre os

    tempos da conquista19 e as tenses em

    torno dos processos de descolonizao.

    importante remeter a massa esparra-

    mada de dados, fatos e teorias a uma in-

    terpretao que insira o espao ibero-

    americano no sistema mundial.

    Recentemente, o historiador Eric J.

    Hobsbawn escreveu uma espcie de bio-

    grafia do sculo XX aliada a um profundo

    senso prospectivo. A provocao veio

    numa entrevista denominada O novo s-

    culo, que apresentou o seguinte ponto

    de vista logo na sua primeira resposta:

    Todos ns, na medida do possvel, ten-

    tamos prever o futuro. Faz parte da vida,

    dos negcios, nos perguntarmos sobre

    o que ele nos reserva. Mas a previso

    do futuro deve necessariamente base-ar-se no conhecimento do passado. Os

    acontecimentos futuros precisam ter

    alguma relao com os do passado, e

    nesse ponto que intervm o historiador.

    Ele no est em busca de lucros, no

    sentido de que no explora seus conhe-

    cimentos para assegurar ganhos. O his-

    toriador pode tentar identificar os ele-

    mentos relevantes do passado, as ten-

    dncias e os problemas. Por isso, pre-

    ciso que nos arrisquemos a fazer pre-

    vises, mas tomando certos cuidados.

    Entre os quais, tendo sempre a consci-

    ncia do perigo de macaquear o carto-

    mante. Precisamos entender que, na

    prtica e por princpio, grande parte do

    futuro inteiramente inacessvel. Creio

    que so imprevisveis os acontecimen-

    tos nicos e especficos, ao passo que

    o verdadeiro problema para os histori-

    adores entender o quo importantes

    eles so ou podem vir a ser. s vezes,

    podem se mostrar significativos do pon-

    to de vista da anlise, mas nem sem-

    pre assim.20

    Nos dias que correm, posicionamentos

    desse t ipo parecem um convite ao

    confinamento intelectual. Essa articulao

    bastante rara e para muitos um empre-

    endimento de alto risco. Hobsbawn come-

    a o seu livro mencionando o papel da

    bola de cristal para a atividade do inte-

    lectual que estabelece um compromisso

    com o presente.

    O enfoque deste estudo privilegia a co-

    municao entre o passado e o presente

    como um dos focos para uma viso mais

    precisa das contribuies de Magalhes

    Godinho histria da expanso martima

    da poca moderna.

    ASVIAGENSDE DESCOBRIMENTO

    Omundo atlntico, na perspecti-va de Godinho, representouuma verdadeira novidade geo-grfica, edificada entre 1520 e o final do

    sculo XVI. A civilizao da modernidade

    atlntica superou a barreira intransponvel

    do oceano, e instalou um mundo marca-

    do pelas conexes permanentes entre

    americanos, africanos e asiticos. Os pa-

    dres de relacionamento constitudos nos

    primrdios da modernidade europia

    apresentam ritmos e direes variadas,

    entretanto Godinho faz questo de frisar

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    pg.78, jan/dez 1999

    A C E

    que os contatos e migraes existiram

    sempre.21

    O mar na Europa tinha adquirido uma

    componente do poder de Estado, mas no

    por todo o lado nem ao mesmo tempo,

    nem no mesmo grau. De um modo geral,

    o papel do mar na afirmao do poder foi

    inversamente proporcional extenso do

    territrio. Sem retomar as experincias

    anteriores ao sculo XIII, as cidades itali-

    anas, Veneza e Gnova em part icular, de-ram provas de precocidade. As suas pos-

    sesses alm-mar, at o mar do Norte,

    fizeram reviver o conceito antigo de

    talassocracia. Antes de Inglaterra, Portu-

    gal e mais tarde as Provncias Unidas te-

    rem fundado, fosse sobre uma ilha, ou

    sobre uma margem estreita do continen-

    te, domnios martimos, o Mediterrneo

    conheceu, em meados do sculo XV, aexperincia original da Coroa de Arago.

    A partir de uma expanso catal at o mar

    Egeu, o voluntarismo de Afonso V, o Mag-

    nnimo (1418-1456), uniu numa espcie

    de federao a Catalunha, o reino de

    Valncia, a Sardenha, o reino de Npoles

    e a Siclia; em 1449, um verdadeiro pro-

    grama por ele publicado impunha a es-

    ses estados alguns elementos de um im-

    prio martimo: proibio de determina-

    das importaes estrangeiras, aumento

    das construes navais e monoplio da

    bandeira aragonesa. Por seu lado, o rei-

    no da Frana, intimamente ligado ao con-

    tinente tanto por suas fronteiras como

    pela mentalidade rural dos seus habitan-

    tes, e dividido entre os seus imperativos

    terrestres e as suas atraes martimas,

    teve hesitaes e atrasos. O poderio es-

    panhol, atravs de Castela, deu prosse-

    guimento a esses avanos com o fortale-

    cimento dinstico e militar absolutista.22

    Magalhes Godinho percebe com clareza

    que as rotas atlnticas perseguidas pelas

    frotas so complementadas pelas rotas de

    redistribuio, que transportam mercado-

    rias transformadas, atendendo assim a

    outras demandas do mundo europeu e

    mesmo extra-europeu. Especiarias exti-

    cas tornadas produtos medicinais, a pra-

    ta metamorfoseada em moeda. Das pro-

    dues naturais se podia extrair os

    corantes e tinturas em geral. Nesse caso,

    pode ser lembrado a partir do estudo de

    Godinho: o pau-brasil vindo da Amrica

    portuguesa, o pau-de-campeche do

    Yucatan, e vindo de Dara no Marrocos

    saariano, o anil. O acar partia de vrios

    lados do imprio martimo e simboliza na

    anlise de Godinho o epicentro de uma

    das fases da civilizao ibero-atlntica. A

    abordagem sistmica ganha fora quan-

    do afirma que a gnese do mundo atln-

    tico est pois, em grande parte, ligada

    quilo que Fernand Braudel chama muito

    apropriadamente a dinmica do acar.23

    Uma demarcao que atravessa toda a

    modernidade a intencionalidade racio-

    nal24 dos estados nacionais e dos intelec-

    tuais ligados ao poder mais diretamente,

    o r ien tados para uma po l t i ca

    preservacionista do mundo natural, ten-

    do como pano de fundo o pragmatismo,

    o utilitarismo e a perspectiva de uma

    redescoberta especulativa do Novo Mun-

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    R V O

    do. Tudo isso atualizado pela ilustrao

    setecentista que afinal norteou as potn-

    cias, os filsofos naturais e os cientistas

    na direo da criao de espaos de soci-

    abilidade intelectual, e da formulao de

    po l t i cas co lon ia is capazes de

    reorientarem a dinmica da explorao

    capitalista estruturada no centro da eco-

    nomia mundial.25 Afinal, sobre esse as-

    pecto deve-se lembrar o importante e atu-

    alizado estudo do economista alemoElmar Altvater, acerca do impacto do de-

    senvolvimento econmico e do processo

    decisrio dos pases de acumulao mais

    complexa sobre o meio ambiente. Altvater

    medita densamente sobre a natureza do

    processo de crescimento econmico das

    naes mais desenvolvidas do globo, e

    sustenta de uma forma contundente,

    apo iado numa fa r ta demonstraoemprica, que o desenvolvimento con-

    trrio ao meio ambiente.26

    Mas devemos ter um certo cuidado ao jul-

    gar que o movimento de p i lhagem

    ambiental foi algo que eclodiu quase ex-

    clusivamente numa fase posterior ao se-

    gundo ps-guerra. Suponho que o movi-

    mento exploratrio tenha sido bem ante-

    rior, e foi estrutural, enraizado, pensado,calculado pormenorizadamente at mes-

    mo em suas conseqncias mais imedia-

    tas. Sendo assim o processo de arqueo-

    logia, expanso e explorao, iniciado

    com os descobrimentos, reveste-se de

    uma certa familiaridade com as inflexes

    da macropoltica contempornea.

    O reconhecimento do territrio aonde se

    est pisando nunca foi to valorizado

    pelos meios de comunicao, escolas, in-

    telectuais oficiais, governo e as universi-

    dades. E o sculo XVIII esteve, de certa

    maneira, a sombrear a revoluo intelec-

    tual e cientfica que funcionou como a

    fora motriz da continuidade, e do salto

    das geraes futuras no que se refere

    mudana de atitude diante das transfor-

    maes verificadas no espao natural,

    como tentarei demonstrar nas pginasque se seguem.

    O jogo de busca e conquista dos objetos

    foi um palco privilegiado para o observa-

    dor da histria da cultura cientfica oci-

    dental. Os viajantes dos descobrimentos

    farejaram incessantemente significaes

    e vestgios do elo perdido, numa espcie

    de pesquisa quase arqueolgica, em ter-

    mos do conhecimento produzido e retido

    a partir da experincia novomundista.

    O esforo despendido pelos navegadores,

    missionrios-religiosos e aventureiros

    encontra eco na permanente conquista do

    espao natural das ex-colnias, que se

    pode observar contemporaneamente nas

    conferncias sobre a biodiversidade, exa-

    mes detalhados acerca das novas frontei-

    ras ecolgicas no norte do Brasil, assim

    como em toda mobilizao urbana, em

    grande medida associada aos setores in-

    termedirios da pirmide social, em tor-

    no da valorizao da qualidade de vida

    dos grandes centros, como Rio de Janei-

    ro ou So Paulo.

    H uma evidente revitalizao dos ambi-

    entes silvestres no interior das residnci-

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    pg.80, jan/dez 1999

    A C E

    as, e uma percepo aguda de que na in-

    fncia possvel educar visando a preser-

    vao do meio ambiente nas grandes ci-

    dades. A aclimatao de parcelas da po-

    pulao vida natural no representa um

    segredo para os estudiosos da gnese da

    adequao dosmodernos ou dos homens

    seculares27 ao mundo natural recriado nas

    grandes metrpoles.

    Esse movimento global de integrao de

    grandes contingentes de homens e de

    produtos exticos rede de trocas de

    mercadorias foi identificado por Russell-

    Wood. Aps extensa pesquisa documen-

    tal, o historiador norte-americano anali-

    sou diversas variveis simultaneamente,

    conferindo uma nica inteno carreira

    colonial, e vrios sentidos ao fluxo huma-

    no , ao f luxo de espec ia r ias

    comercializveis por todo o Ocidente, as-

    sim como difuso dos elementos per-

    tencentes flora e fauna dos ambien-

    tes rsticos transplantados para o conti-

    nente europeu.28

    Os descobrimentos peninsulares investi-

    ram numa acumulao de foras na dire-

    o de um profundo e contnuo movimen-

    to investigativo acerca do mundo natural

    das colnias ultramarinas do Novo Mun-

    do. Podemos ento procurar detectar as

    principais tarefas dos investigadores da

    natureza que saltavam das suas naus,

    caravelas e caraveles. As marcas deixa-

    das pelos primeiros colonizadores na de-

    marcao do territrio relacionam-se di-

    retamente forma como os lusos enten-

    diam o que estavam vendo.29 Nesse sen-

    tido, o projeto inicial da empresa metro-

    politana, para alm da explorao dos to

    sonhados meta is preciosos, estava

    alicerado numa certa contemplao do

    vazio do territrio, do reconhecimento

    dos meios fluviais, do entendimento do

    relevo, das potencialidades da natureza e

    das propriedades que dela se pode extrair.

    Falarei agora um pouco sobre a odissia,

    em torno da conquista dos elementos

    naturais, pelas terras americanas ao lon-

    go dos tempos modernos, mais especifi-

    camente na abertura da modernidade.

    Este estudo pretende contribuir para uma

    compreenso mais apurada das origens

    do desvelamento do meio ambiente ame-

    ricano numa poca de profunda reflexo

    sobre as razes que impulsionam os es-

    tados nacionais na direo de uma explo-

    rao cada vez ma is v igo rosa dos

    ecossistemas planetrios.30 As conseqn-

    cias da macropoltica dos estados tambm

    tm sido cuidadosamente estudadas por

    meio de importantes mensuraes quan-

    titativas.31 Para os efeitos desta investi-

    gao, cabe-me aqui provocar algumas

    discusses sobre um ponto de viragem

    em que se deu uma reorientao poltica

    e intelectual, visando uma maior explo-rao combinada com uma retrica

    preservacionista de tudo o que hipoteti-

    camente representasse o mundo das cri-

    aturas brutas.

    O caminho aparentemente errtico dos

    portugueses na rota da Amrica, para al-

    guns investigadores e muitos curiosos,

    deve ser percebido como uma aventura

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    R V O

    at certo ponto inconclusa, ou at mes-

    mo equivocada e acidental, fruto de um

    povo procura da sua histria perdida no

    tempo, e esfacelada em razo de um con-

    junto plural de identidades que viriam a

    formar os povos peninsulares rabes,

    europeus herdeiros da tradio visigtica

    e homens de vocao atlntica que circu-

    lavam no alto-mar e traziam costumes

    exticos de diversas provenincias.

    Quando Portugal confirmava por interm-

    dio de Tordesilhas a sua chamada auto-

    nomia atlntica (longo processo que tem

    no perodo de 1475 at 1494 anos deci -

    sivos para os monarcas portugueses32 ), os

    demais reinos ibricos batiam-se em tor-

    no da unificao e da reconquista crist

    em sua fase terminal. No centro dos con-

    flitos protonacionais estavam envolvidos

    diversas cidades-estados e estados

    recentssimos, ainda em busca de legiti-

    midade interna e capacidade blica para

    que se protegessem do inimigo potencial

    externo.

    Em meio a teia hobbesiana que se tecia

    reinos poderosos lutando entre si como

    a Inglaterra e a Frana, outros em forma-

    o como Florena e Veneza e finalmente

    os reinos que integravam o grande comr-

    cio mediterrnico e atlntico faz-se ne-

    cessrio lembrar que o Ulisses ibrico ti-

    nha uma tarefa no continente e outra no

    alm-mar. O reino de Granada buscava no

    final do sculo XV e princpios do XVI a

    identidade religiosa, os aragoneses divi-

    d iam-se en t re os in te resses

    mediterrnicos com os aliados de Npo-

    les e aqueles propriamente peninsulares

    numa possvel aliana com Castela. Cr-

    doba vivia a iminente condio de reino

    esfacelado pela sobrevivncia das Taifas.

    Navarra constituiu-se como regio de in-

    teresse dos Habsburgos espanhis, mas

    tambm dos absolutistas franceses, e ain-

    da tinha que, ao mesmo tempo, se ver li-

    vre da obedincia maometana.33

    Quero crer que a fora que sobressai de

    toda essa rede de trocas mercantis e po-

    lticas pode ser caracterizada como uma

    forma de conscincia ultramarina que ir

    determinar uma vocao desptica, nos

    do is scu los que se seguem aos

    primrdios da colonizao portuguesa nos

    trpicos, fundada na convico de que o

    futuro est na origem. como se a salva-

    o dos exploradores da natureza estives-

    se imobilizada na descoberta dos objetos

    encontrados pelos primeiros viajantes.

    O fato de sermos de uma maneira ou de

    outra ultramarinos pode se ver refletido

    nas constantes tenses, freqentemente

    capturadas pela historiografia contempo-

    rnea, entre a preservao da tradio e

    os caminhos que sinalizam novas formas

    de conhecimento baseadas no aconteci-

    mento. Os conflitos do continente foram

    deixados provisoriamente de lado para

    que a empresa de constituir um vasto

    imprio no esbarrasse na ignorncia

    ecolgica, afinal era fundamental enten-

    der taxonomicamente o que se estava

    vendo.34 Os europeus possuam as ferra-

    mentas para europeizar a frica, a Am-

    rica e a ndia, entretanto muitos impre-

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    pg.82, jan/dez 1999

    A C E

    vistos ocorreram no decorrer do tempo,

    como por exemplo o desconhecimento

    das mltiplas propriedades das ervas, da

    procriao dos animais que ameaavam

    as plantations,ou mesmo os novos mi-

    nrios parecidos com preciosidades, mas

    que deveriam se converter em outros usos

    que no os propriamente pecunirios.35

    Primeiro, a natureza a ser conquistada era

    a do arquiplago dos Aores, da ilha da

    Madeira e demais formaes insulares na

    costa africana e na sia. Posteriormente,

    o mundo natural da Amrica portuguesa

    passou a ser o objetivo em mira ao longo

    dos sculos XVII e XVIII, tanto o litoral

    quanto o interior do Brasil deveriam ser

    explorados. A lgica que preside a funda-

    mentao cientfica a apropriao

    excedentria funcionalizada para o

    expansionismo, que assumiu contornos

    cada vez mais objetivos no sculo XX.

    A natureza passa a se consti tuir numa

    potente estrutura de pensamento forne-

    cedora de inspirao para os sbios e es-

    tadistas metropolitanos interessados

    numa utilizao mais racional dos ele-

    mentos naturais e na multiplicao das

    suas propriedades. O mundo natural in-

    tegra um conhecimento que resultou do

    encontro dos navegadores-viajantes com

    os costumes nativos e as novas especia-

    rias, formando o que o historiador portu-

    gus Lus Filipe Barreto denominou de

    complexo sociocultural dos descobrimen-

    tos. Ao lado disso, a natureza funciona

    como estrutura do sistema colonial,

    flexibilizando-o diante das novas motiva-

    es do capitalismo moderno. O conjun-

    to das prticas econmicas do absolutis-

    mo (mercantilismo) vai alm das exclusi-

    vas relaes de troca ou mesmo de um

    iderio limitado pela falta de originalida-

    de que abundava entre os fisiocratas.

    Alguns trabalhos relativamente recentes

    demandam uma determinada originalida-

    de conce i tua l do pensamento

    mercantilista, muito especialmente nas

    seguintes obras: Cosimo Perrota, Produ-

    o e t raba lho produt ivo no

    mercantilismo e no iluminismo; Francis-

    co J. C. Falcon, Exclusivo metropolitano

    e comrcio colonial: questes recentes;

    Vitorino Magalhes Godinho, Mito e mer-

    cadoria: utopia e prtica de navegar. Nes-

    ses estudos, pode-se afirmar que h uma

    espcie de atualizao de algumas posi-

    es consolidadas no que concerne fi-

    xidez da prtica mercantil na esfera da

    circulao, assim como no aparente

    imobilismo do Estado diante das trans-

    formaes estruturais do capitalismo eu-

    ropeu , que v iv ia um novo c ic lo

    hegemnico de acumulao de foras

    militares e dinsticas.

    ASARTRIASVITAIS

    Abusca do fio para o entendi-mento do labirinto ultramari-no exige do investigador daexpanso um conhecimento adensado

    sobre o mundo atlntico, expresso cu-

    nhada pelo prprio Godinho a fim de de-

    signar a insero do Novo Mundo no con-

    texto da economia mundo europia. A his-

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    Ace rvo , R io de Janeiro, v. 12, n 1-2 , p . 67-8 8, jan /dez 1999 - p g.83

    R V O

    tria da expanso trilhada de uma ma-

    neira que, muitas vezes, nos conduz para

    a hiptese do estabelecimento dos mar-

    cos conceituais de uma historiografia dos

    povos de lngua portuguesa. Como se

    pode verificar imediatamente, a obra de

    Magalhes Godinho possui diversas lati-

    tudes intelectuais, e todas convergem

    para uma compreenso das fontes do

    mundo contemporneo.36A histr ia do

    presente ronda o tempo todo a tese daexpanso como um movimento global,

    sem que o autor abandone o foco: a cir-

    culao de homens e moedas pelo imp-

    rio martimo. Galees e frotas navegam

    pelas rotas primrias na captura do con-

    trole de Cdiz, Sevilha, La Corua, Lis-

    boa, O Porto e Viana do Castelo. O trfico

    do acar feito pelas rotas do Brasil a

    So Tom. Godinho prope um verdadei-

    ro mapa dos descobrimentos, examinan-

    do o atlntico e os eixos comerciais mais

    remotos do continente europeu.

    A POLTICADO MONOPLIOCOLONIAL

    EOSFUNDAMENTOSDACRISE

    Otempo longo do colonialismo contemplado pelo historiador

    do imprio ultramarino tanto

    num olhar dirigido para as motivaes

    mentais coletivas, quanto numa ao de

    Estado baseada na racionalidade da soci-

    Mapa do cabo da Boa Esperana.

    Johan Nieuhofs. Gedenkweerdige Brasiliae Zee-em-Lant-Reize(...). Amsterdam, 1682.

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    pg.84, jan/dez 1999

    A C E

    edade portuguesa de antigo regime.

    Godinho no se perde na perspectiva de

    uma crise econmica esttica, mas privi-

    legia efetivamente os elementos que in-

    tegram um movimento de crise: a hist-

    ria dos preos mundiais, o dficit da ba-

    lana comercial,37 e os processos de de-

    senvolvimento em curso nas metrpoles

    europias. A concorrncia escala do ter-

    ritrio e da acumulao de capitais

    definidora para a ocupao do posto deEstado controlador do ncleo orgnico da

    economia mundial.

    Nas sees 4, 5, 6 e 7 do estudo de Ma-

    galhes Godinho sobre as frotas e o re-

    conhecimento do mundo atlntico, pode-

    se observar a participao portuguesa no

    sistema mundial por intermdio das co-

    lnias. A flutuao do papel do Estado

    portugus no cenrio internacional uma

    das chaves metodolgicas para a compre-

    enso desse estudo. Portugal descrito

    por Godinho numa luta incessante diante

    das demais potncias frente s alteraes

    de demanda por novos produtos exticos,

    confron tos p ress ionados pe lo

    patrulhamento das rotas promovido por

    armadas de diversas bandeiras, e no ho-

    rizonte os vrios papis exercidos peloBrasil:

    Ao mesmo tempo, o ouro do Brasi l tor-

    na-se, cada vez mais, uma tentao. Em

    contrapartida, a cultura aucareira vai

    diminuir no Brasil, porque a mo-de-

    obra desviada para as minas e por-

    que o ouro mais rendoso o que, de

    resto, no passa de uma miragem, de

    um mito, mas os mitos exercem uma

    influncia que se no pode desprezar

    nas atitudes coletivas; os homens jul-

    gam que o ouro rende mais do que o

    acar; embora na realidade no seja

    exato, isso basta para os desviar do

    acar para o metal fulvo.38

    Godinho vislumbra vrias leituras para a

    evoluo do mercantilismo no espao ib-

    rico. O autor rev a centralidade da es-

    tratgia metalista, e sugere que o Estado

    protecionista da poca moderna tinha

    uma grande capacidade de adaptar-se s

    situaes de enfrentamento com a din-

    mica do sistema interestados.

    CONCLUSO: AHISTRIAFORMADE

    PENSAMENTO

    Adefinio clara do objeto, a

    busca da objetividade do co-nhecimento e a erudio no

    tratamento das fontes e dos clssicos do

    pensamento contemporneo articularam

    o conjunto das preocupaes do histori-

    ador portugus Vi tor ino Magalhes

    Godinho, em sua obra vasta e complexa.

    um escritor de Portugal e do Brasil. Um

    pensador do sentido imperial da coloni-

    zao portuguesa pelo mundo. capaz de

    a um s tempo contar a histria de Portu-

    gal apoiado numa pesquisa erudita, pen-

    sar sobre o significado da totalidade ib-

    rica, e impor uma trama da rede atlntica

    a partir dos domnios e da poltica imposta

    pelas metrpoles. O debate que existe nos

    dias de hoje acerca da natureza do pro-

    cesso colonial, entre os pesquisadores da

    expanso lusa, deveria atingir tambm os

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    Ace rvo , R io de Janeiro, v. 12, n 1-2 , p . 67-8 8, jan /dez 1999 - p g.85

    R V O

    estudiosos das regies colonizadas.

    Retomando o autor mais uma vez:

    A pesquisa histrica estava assim es-

    treitamente associada anlise das

    questes essenciais do presente e do

    futuro da grei portuguesa. Pois bem: em

    nossos dias, bem mais do que ento,

    nesse dealbar da revoluo industrial e

    da Revoluo Francesa, a

    perspectivao histrica da problem-

    tica que se nos impe instrumento

    analtico insubstituvel, e isto se volta-

    dos, como devemos estar, para a

    prospectiva.39

    A dimenso prospectiva do seu pensa-

    mento tambm deve ser marcada. A

    historiografia brasileira demonstra um

    profundo desconhecimento acerca da pro-

    duo intelectual portuguesa, especial-

    mente no sculo XX. O historiador portu-

    gus faz parte de uma verdadeira legio

    de autores esquecidos por muitos histo-

    riadores, ou simplesmente ignorado pe-

    los jovens estudantes que se formam em

    histria hoje em dia.

    Godinho sugere que a histria de alguma

    forma seja portadora de um discurso que

    amplifique o contedo para a vida, mais

    ou menos desta forma: como se o his-

    toriador devesse agir sobre o seu meio

    social, observando a realidade que o cer-

    ca, procurando senti-la, e viv-la no seu

    dinamismo. O movimento para ele no

    est confinado experincia das trocas.

    No, a histria demanda um intercmbio

    de homens, restabelecendo, de certa for-

    ma, um caminho na direo da civiliza-

    o, uma das preocupaes do autor. O

    passado deve ser visto luz do presente

    e o historiador deve se comprometer com

    uma escrita prxima ao pblico, como fica

    claro numa entrevista concedida ao pro-

    fessor Manuel Nunes Dias na USP, em

    1954. O depoimento ocorre exatamente

    numa poca em que Godinho retocava

    seus estudos sobre as frotas e os merca-

    dos coloniais, e preparava uma edio das

    frotas com um vasto material de pesqui-sa. Os mercados no representam uma

    utopia latente de construo da autono-

    mia territorial, mas a verificao de que

    processos de desenvolvimento so lutas

    de dominao. O estudo das frotas, den-

    tre outras lies, demonstra que o cruza-

    mento de interesses, o confronto de iden-

    tidades e disputas hierrquicas no sig-

    nificam descolamento do mundo.O repertrio de problemas que Godinho

    delineia nesse estudo, afirma, ou mesmo

    silencia e provoca a interpretao, pode

    ser pelo menos apresentado sob a forma

    de uma agenda para ensaios futuros so-

    bre a histria da historiografia luso-bra-

    sileira: a retomada da histria econmi-

    ca e dos estudos de histria moderna e

    contempornea; a crtica pesada hist-

    ria acontecimental; a histria diplomti-

    ca com seus estudos que levam ao nada;

    e, finalmente, a preocupao constante

    com parmetros universais para compre-

    ender o passado. No final da entrevista

    ao professor Nunes Dias, pode-se desta-

    car uma referncia para os estudiosos

    daquelas dcadas, e um aspecto para a

    reflexo para os investigadores da pes-

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    pg.86, jan/dez 1999

    A C E

    N O T A S1. Consultar esse processo de formao da conscincia cortes no Ocidente em: Norbert Elias,

    Curializao e romantismo aristocrtico, emA sociedade de corte, Lisboa, Estampa, 1987,pp. 183-233.

    2. Conferir a esse respeito: Giacomo Marramao, Poder e secularizao: as categorias do tempo,So Paulo, Unesp, 1995.

    3. Ver para maiores detalhes: Edmundo O Gorman,A inveno da Amrica: reflexo a respeito daestrutura histrica do Novo Mundo e do sentido do seu devir, So Paulo, Unesp, 1992.

    4. Consultar a este respeito: Vitorino Magalhes Godinho, O papel de Portugal nos sculos XV eXVI. Que significa descobrir? Os novos mundos e um mundo novo, Lisboa, GTMECDP, 1994.

    5. Lucien Febvre, O Reno: histria, mitos e realidades, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira , 2000,p. 209.

    6. Consultar a esse respeito: A. J. R. Russel-Wood, Um mundo em movimento: os portugueses nafr ica, sia e Amrica (1415-1808), Lisboa, Dife l, 1998.

    7. Os documentos fundadores de uma idia em torno da comunidade lusfona podem ser locali-zados na seguinte biografia: Jos Alberto Braga (coord.), Jos Aparecido o homem que cra-vou uma lana na lua, Lisboa, Trinova Editorial, 1999.

    8. Conferir o seguinte estudo: A. J. R. Russel-Wood, Portugal e o mar: um mundo entrelaado,Lisboa, Assrio & Alvim, 1997.

    9. Sobre esse aspecto o ensasta Eduardo Loureno oferece uma persperctiva decisiva: Portugal precisamente o primeiro reino da pennsula a libertar-se da presena do Islo e a ocupardesde os fins do sculo XIII at hoje a mesma tira estreita beira do Atlnt ico, a outra fronteirasem fim que mais tarde far parte do seu espao real e mtico de povo descobridor. Cf. Eduar-do Loureno, Portugal como destino: dramaturgia cultural portuguesa, em Mitologia da sau-dade, So Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 90.

    10.Ver a esse respeito: Jos Saramago, Viagem a Portugal, Lisboa, Editorial Caminho, 1985.11.Ver: K. David Jackson, Os construtores dos oceanos, Lisboa, Assrio & Alvim, 1997.

    12.Joo Lcio de Azevedo,A evoluo do sebastianismo, Lisboa, Presena, 1984, p. 7.

    13.Ernest Jnger, O passo da floresta, Lisboa, Edies Cotovia, 1995, p. 9.

    14.Sobre essa discusso consultar: Kenneth Maxwell, A construo da democracia em Portugal,Lisboa, Presena, 1999.

    15.Ver a coletnea de artigos de Jaime Reis, O atraso econmico portugus, 1850-1930, Lisboa,Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993.

    16.Ver: Hans Georg Gadamer, L eredit dell Europa, Torino, Giulio Einaudi Editore, 1991.

    17.Consultar dados de Juan J. Linz e Alfred Stepan,A trans io e consol idao da democracia: aexperincia do sul da Europa e da Amrica do Sul, So Paulo, Paz e Terra, 1999. Especialmenteas pginas 115-187.

    quisa histrica contempornea: ... Mas o

    passado a cada momento reconstitudo

    segundo a mentalidade do presente, logo

    h um vaivm permanente e a histria

    torna-se, em parte, a autodeterminao

    do momento de agora por si prpria.

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    Ace rvo , R io de Janeiro, v. 12, n 1-2 , p . 67-8 8, jan /dez 1999 - p g.87

    R V O

    18.Para uma clarif icao das tenses Ocidente/Oriente conferir: Salman Rushdie, Oriente, Ociden-te, So Paulo, Companhia das Letras, 1995.

    19.Para um aprofundamento dos marcos qualitativos desta discusso ver: Boaventura de SousaSantos, Pela mo de Alice: o social e o poltico na ps-modernidade, So Paulo, Cortez, 1997.

    20.Eric J. Hobsbawn, O novo sculo, So Paulo, Companhia das Letras, 1999.

    21.O conjunto da obra e do projeto intelectual de Norbert Elias, acerca de uma teoria da civili za-o, fundamental para as nossas reflexes nesta parte do estudo sobre V. M. Godinho.

    22.Consultar sobre essa perspectiva mais global: Michel Mollat,A Europa e o mar, Lisboa, Presen-a, 1995.

    23.Vitorino Magalhes Godinho, Portugal, as frotas do acar e as frotas do ouro (1670-1770),em Ensaios II: sobre a histria de Portugal, Lisboa, 2aed., Livraria S da Costa Editora, 1978,p. 427.

    24.Conferir: Miguel Batista Pereira, Modernidade e secularizao, Coimbra, Almedina, 1990.

    25.Assinalo aqui a importncia de um exame das idias do seguinte artigo: Carlos Eduardo Martins,Los desafios del sistema mundial para el siglo XXI: perspectivas para la Amrica Latina, em

    Aportes(revista de la Facultad de Economa de la benemrita Universidad Autnoma de Puebla),Puebla, enero-abril 2000, pp. 55-69.

    26.Ver essa discusso em Elmar Altvater, O preo da riqueza: pilhagem ambiental e a nova(des)ordem mundial, So Paulo, Unesp, 1995. Especialmente as pginas 21-43. Consultar tam-bm sobre o conceito de desenvolvimento: Elmar Altvater, Obstaculos en la trayectoria deldesarrollo, em Francisco Lpez Segrera, Los retos de la globalizacin, Caracas, Unesco, 2volumes, pp. 609-625. Ver tambm os estudos recentes do socilogo e economista italianoGiovanni Arrighi sobre a noo de desenvolvimento sustentvel no mundo contemporneo apartir de uma perspectiva que admite nveis diferenciados de somas acumuladas de capitalentre os conjuntos de naes, gerando uma espcie de desigualdade macrorregional que darianovos contornos s disparidades locais, regionais e at mesmo numa escala mundial. Cf.Giovanni Arrighi,A iluso do desenvolvimento, Petrpolis, Vozes, 1997.

    27.Consultar a seguinte obra: Antnio Edmilson Martins Rodrigues e Francisco Jos Calazans Falcon,

    Tempos modernos: ensaios de histria cultural, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2000.

    28.Ver: A. J. R. Russell-Wood, Um mundo em movimento: os portugueses na frica, sia e Amrica(1415-1808), op. cit.

    29.Conferir sobre esse aspecto o criativo trabalho de Kenneth David Jackson, Os construtores dosoceanos, Lisboa, Assrio & Alvim, 1997.

    30.Conferir: Vitorino Magalhes Godinho, O socialismo e o futuro da pennsula, Lisboa, LivrosHorizonte, 1969.

    31.Consultar: Immanuel Wallerstein, O capitalismo histrico, So Paulo, Brasiliense, 1985.

    32.Sobre esse aspecto, deve-se consultar um artigo que oferece uma viso abrangente e atualiza-da deste intrincado problema que envolve questes de ordem diplomtica e querelas oriundasda gesto da poltica interna lusa: Lus Felipe de Alencastro, A economia poltica dos descobri-mentos, em Adauto Novais (org.),A descoberta do homem e do mundo, So Paulo, Funarte,1998, pp. 193-209.

    33.Para uma perspectiva acerca das origens desses conflitos tnico-nacionais ver o tratado deRobert Lopez, O nascimento da Europa, Lisboa, Cosmos, 1965.

    34.Consultar: Alfred W. Crosby, Imperialismo ecolgico: a expanso biolgica da Europa, 900-1900, So Paulo, Companhia das Letras, 1993.

    35.Ver para maiores detalhes: Sydney Mintz, A antropologia da produo de plantation, emBernardo Sorj, Fernando Henrique Cardoso e Maurcio Font, Economia e movimentos sociaisna Amrica Latina, So Paulo, Brasiliense, 1985.

    36.Para uma viso ampla da obra e da vida de Magalhes Godinho consultar: Joaquim RomeroMagalhes, De Victorini Magalhes Godinho vita, scriptis et in adversis animi fortitudine, emEstudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhes Godinho, Lisboa, Livraria S da CostaEditora, 1988, pp. 1-41. Romero Magalhes abre diversas portas e per mite que o leitor tenha aliberdade de percorrer as possibilidades vislumbradas pela imensa obra produzida pelo histo-riador portugus.

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    pg.88, jan/dez 1999

    A C E

    A B S T R A C T

    This text analyses the interpretation of the historian Vitorino Magalhes God inho about the

    relationship between the Portuguese America and the process of organization of the economy of

    the European world since the fifteenth and sixteenth centuries.

    The principa l ideas announced in this study, according to the history of the fleet and the circulation

    of the spices related by Godinho, are the following: the conception of the global space discovered

    since the opening of the world; the contemporaneous crisis of the human science; the history of

    Brazil and Potugal in a unique writing; and, finally, the concept of Maritime Empire.

    R S U M

    Ce text analyse l'interprtation du historien Vitorino Magalhes Godinho sur la relation entre

    lAmrique portugaise et le procs dorgani sation de lconomie du monde europen, depuis les

    quinzime et seizime sicles.

    Les ides principaux annonces dans cet tude, selon lhistoire des flottes et de la circulation des

    piceries racontes par Godinho sont les suivantes: la conception du space global dcouvert depuis

    l ouverture du monde; la crise contemporaine de la science de lhumanit; lhistoire du Brsil et

    du Portugal dans une criture unique, et finalement, le concept dEmpire Maritime.

    37.Conferir sobre esse aspecto: Jos Jobson de Andrade Arruda, Frotas de 1749: um balano,em Varia Histr ia, Belo Horizonte, UFMG/Fapemig/Fundao Joo Pinheiro, no21, jul. 1999, pp.190-209.

    38.Cf. Vitorino Magalhes Godinho, Portugal, as frotas do acar e as frotas do ouro (1670-1770),op. cit., p. 438.

    39.Idem, Os nossos problemas: para a histria de Portugal e Brasil, em Maria Adelaide GodinhoArala Chaves, Formas de pensamento em Portugal no sculo XV: esboo de anlise a partir derepresentaes de paisagens nas fontes literrias, Lisboa, Livros Horizonte, 1969, p. 9.