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Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’O S S E RVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Ano LI, número 24 (2.651) Cidade do Vaticano terça-feira 16 de junho de 2020 Despertar da letargia da responsabilidade CONTINUA NA PÁGINA 5 ANDREA MONDA «V i a miséria do meu povo no Egito e ouvi o clamor que lhe arrancam os seus opres- sores; conheço as suas aflições. Desci para o libertar». As palavras que Deus, dos ramos de uma sarça que ar- de sem se consumir, dirige a Moisés no capítulo 3 do livro do Êxodo mar- cam o início da história, de uma his- tória verdadeiramente humana, de uma história de salvação. Antes destas palavras não havia uma verdadeira “história”, o homem era apenas um elemento natural entre outros seres vi- vos como Ele, submetido ao ritmo cí- clico da natureza, no âmbito de uma dura luta pela sobrevivência, que sem- pre acabava na lei do mais forte. Os egípcios e os judeus. Agora acontece um facto novo. Alguém, acima da na- tureza, o próprio Criador, inter-vém, entra, “desce” para libertar o homem por cuja “miséria” sente compaixão. Esta descida acontece porque três ações são realizadas em conjunto: ver, ouvir, conhecer. E depois passa-se à liber-ação. Este é o início da história de Israel que tem no advento de Cris- to o cumprimento, uma história que vê sempre o homem como protagonis- ta juntamente com Deus. «Aquele que criou tudo sem ti, não te salvará sem ti», recorda Santo Agostinho. Es- ta história de salvação só pode acon- tecer com a resposta ativa do homem, unicamente se o caminho for um sín- odo, um caminho percorrido em con- junto: Deus caminha com o seu povo, que acolhe a sua proposta de liberda- de. Esta história, como muitas outras narradas na Bíblia, acontece sempre, todos os dias. Deus chama e propõe, o homem responde. Pode fazê-lo por- que é capaz de o fazer, é responsável. Às vezes fá-lo, mas nem sempre, e quando o homem não responde, volta a ser apenas um elemento natural. Reconhece-se pelo facto de que ele deixa adormecida a sua responsabili- dade, colocando-a “em letargia”. Foi esta expressão que o Papa utilizou na sua última Mensagem para o dia mundial dos pobres, divulgada a 13 de junho: «As graves crises económi- cas, financeiras e políticas não cessa- rão enquanto permitirmos que perma- neça em letargia a responsabilidade que cada um deve sentir para com o Apelo no Angelus recitado após a missa de Corpus Christi Proteger os migrantes e pôr fim às violências na Líbia Um apelo a pôr fim à violência na Líbia e à proteção dos mi- grantes foi lançado pelo Pontífi- ce no final do Angelus recitado ao meio-dia de domingo, 14 de junho, Solenidade de Corpus Christi. Aos numerosos fiéis reu- nidos na praça de São Pedro, o Papa confidenciou que segue «com grande apreensão e tam- bém com tristeza a dramática si- tuação na Líbia». Anteriormente o Pontífice, na missa celebrada em São Pedro, afirmou que é urgente dar vida a «cadeias de solidariedade» pa- ra «cuidar de quem tem fome de alimentos e dignidade, de quem não trabalha e vive com dificuldades». PÁGINAS 2 E 3 Laboratório sobre o pós-pandemia O corpo é o nosso vínculo de igualdade ANDREA MONDA NAS PÁGINAS 6-8 Carta do Papa ao presidente colombiano Não se pode ser saudável num planeta doente PÁGINA 10 Apresentado o Fundo querido pelo Papa a favor das pessoas atingidas pela crise a Roma Restituir dignidade a famílias e trabalhadores PÁGINA 11 Na mensagem para o Dia mundial dos pobres o Papa elogia quem durante a pandemia desafia o contágio para ajudar o próximo Mãos estendidas com generosidade para responder ao brado dos mais necessitados «Estende a tua mão aos pobres»: é tirado do antigo livro de Ben Sira (7, 32) o tema escolhido pelo Papa Francisco para o próximo Dia Mundial dos Pobres, a celebrar no domingo, 15 de novembro. E a imagem da «mão estendida» é também o leitmotiv da mensagem de preparação para o Dia, escrita pelo Pontífice na memória litúrgica de Santo António de Lisboa, pa- droeiro dos pobres. O texto do Papa foi apresenta- do na manhã de 13 de junho ao vivo na Sala de imprensa da Santa Sé pelo Arcebispo Rino Fisischel- la, presidente do Pontifício Conse- lho para a Promoção da Nova Evangelização, organizador do Ju- bileu da Misericórdia, do qual sur- giu esta iniciativa, agora na sua quarta edição. A mensagem pontifícia parte do pressuposto de que «a oração a Deus e a solidariedade com o sofri- mento são inseparáveis»: por esta razão «o tempo para dedicar à ora- ção nunca pode tornar-se uma des- culpa para negligenciar o próximo em dificuldade». Embora «o con- trário seja verdade», isto é, que «a oração alcança o seu objetivo» quando é acompanhada «pelo ser- viço aos pobres». PÁGINAS 4 E 5

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Page 1: Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 OL’ S S E RVATOR E ROMANO · Este duplo fruto da Eucaristia — o primeiro, a união com Cristo, e o se-gundo, a comunhão entre aqueles

Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00

L’O S S E RVATOR E ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suum

EM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Ano LI, número 24 (2.651) Cidade do Vaticano terça-feira 16 de junho de 2020

D espertarda letargia

da responsabilidade

CO N T I N UA NA PÁGINA 5

ANDREA MONDA

«V i a miséria do meu povo noEgito e ouvi o clamor quelhe arrancam os seus opres-

sores; conheço as suas aflições. Descipara o libertar». As palavras queDeus, dos ramos de uma sarça que ar-de sem se consumir, dirige a Moisésno capítulo 3 do livro do Êxodo mar-cam o início da história, de uma his-tória verdadeiramente humana, deuma história de salvação. Antes destaspalavras não havia uma verdadeira“história”, o homem era apenas umelemento natural entre outros seres vi-vos como Ele, submetido ao ritmo cí-clico da natureza, no âmbito de umadura luta pela sobrevivência, que sem-pre acabava na lei do mais forte. Osegípcios e os judeus. Agora aconteceum facto novo. Alguém, acima da na-tureza, o próprio Criador, inter-vém,entra, “desce” para libertar o homempor cuja “miséria” sente compaixão.Esta descida acontece porque trêsações são realizadas em conjunto: ver,ouvir, conhecer. E depois passa-se àliber-ação. Este é o início da históriade Israel que tem no advento de Cris-to o cumprimento, uma história quevê sempre o homem como protagonis-ta juntamente com Deus. «Aqueleque criou tudo sem ti, não te salvarásem ti», recorda Santo Agostinho. Es-ta história de salvação só pode acon-tecer com a resposta ativa do homem,unicamente se o caminho for um sín-odo, um caminho percorrido em con-junto: Deus caminha com o seu povo,que acolhe a sua proposta de liberda-de.

Esta história, como muitas outrasnarradas na Bíblia, acontece sempre,todos os dias. Deus chama e propõe,o homem responde. Pode fazê-lo por-que é capaz de o fazer, é responsável.Às vezes fá-lo, mas nem sempre, equando o homem não responde, voltaa ser apenas um elemento natural.Reconhece-se pelo facto de que eledeixa adormecida a sua responsabili-dade, colocando-a “em letargia”. Foiesta expressão que o Papa utilizou nasua última Mensagem para o diamundial dos pobres, divulgada a 13de junho: «As graves crises económi-cas, financeiras e políticas não cessa-rão enquanto permitirmos que perma-neça em letargia a responsabilidadeque cada um deve sentir para com o

Apelo no Angelus recitado após a missa de Corpus Christi

Proteger os migrantese pôr fim às violências na Líbia

Um apelo a pôr fim à violênciana Líbia e à proteção dos mi-grantes foi lançado pelo Pontífi-ce no final do Angelus recitadoao meio-dia de domingo, 14 dejunho, Solenidade de CorpusChristi. Aos numerosos fiéis reu-nidos na praça de São Pedro, oPapa confidenciou que segue«com grande apreensão e tam-bém com tristeza a dramática si-tuação na Líbia».

Anteriormente o Pontífice, namissa celebrada em São Pedro,afirmou que é urgente dar vidaa «cadeias de solidariedade» pa-ra «cuidar de quem tem fomede alimentos e dignidade, dequem não trabalha e vive comdificuldades».

PÁGINAS 2 E 3

Laboratório sobre o pós-pandemia

O corpo é o nossovínculo de igualdade

ANDREA MONDA NAS PÁGINAS 6-8

Carta do Papaao presidente colombiano

Não se podeser saudávelnum planeta doente

PÁGINA 10

Apresentado o Fundo querido peloPapa a favor das pessoas atingidaspela crise a Roma

Restituir dignidade afamílias e trabalhadores

PÁGINA 11

Na mensagem para o Dia mundial dos pobres o Papa elogia quem durante a pandemia desafia o contágio para ajudar o próximo

Mãos estendidas com generosidadepara responder ao brado dos mais necessitados

«Estende a tua mão aos pobres»: étirado do antigo livro de Ben Sira(7, 32) o tema escolhido pelo PapaFrancisco para o próximo DiaMundial dos Pobres, a celebrar nodomingo, 15 de novembro. E aimagem da «mão estendida» étambém o leitmotiv da mensagemde preparação para o Dia, escritapelo Pontífice na memória litúrgicade Santo António de Lisboa, pa-droeiro dos pobres.

O texto do Papa foi apresenta-do na manhã de 13 de junho aovivo na Sala de imprensa da SantaSé pelo Arcebispo Rino Fisischel-la, presidente do Pontifício Conse-lho para a Promoção da NovaEvangelização, organizador do Ju-bileu da Misericórdia, do qual sur-giu esta iniciativa, agora na suaquarta edição.

A mensagem pontifícia parte dopressuposto de que «a oração a

Deus e a solidariedade com o sofri-mento são inseparáveis»: por estarazão «o tempo para dedicar à ora-ção nunca pode tornar-se uma des-culpa para negligenciar o próximoem dificuldade». Embora «o con-trário seja verdade», isto é, que «aoração alcança o seu objetivo»quando é acompanhada «pelo ser-viço aos pobres».

PÁGINAS 4 E 5

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página 2 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 16 de junho de 2020, número 24

L’OSSERVATORE ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suumEM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Cidade do Vaticanoredazione.p ortoghese.or@sp c.va

w w w. o s s e r v a t o re ro m a n o .v a

ANDREA MONDAd i re t o r

Giuseppe Fiorentinov i c e - d i re t o r

Redaçãovia del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano

telefone +390669899420fax +390669883675

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Apelo e convite à solidariedade do Pontífice no final do Angelus

Proteger os migrantese pôr fim às violências na Líbia

Um apelo a pôr fim às violências e àproteção dos migrantes foi lançado peloPontífice no final do Angelus recitadoao meio-dia de domingo, 14 de junho.Antes da oração mariana o Papaofereceu aos fiéis — reunidos na praçade São Pedro no respeito dasdistâncias de segurança impostas pelapandemia — uma meditação sobre aEucaristia baseada na liturgia dasolenidade do Corpus Christi.

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!Hoje, na Itália e noutras nações, ce-lebramos a Solenidade do Corpo eSangue de Cristo, Corpus Christi. Nasegunda leitura da liturgia de hoje,São Paulo desperta a nossa fé nestemistério de comunhão (cf. 1 Cor 10,16-17). Ele enfatiza dois efeitos docálice partilhado e do pão partido: oefeito místico e o efeito comunitário.

Primeiro o Apóstolo afirma: «Ocálice da bênção que nós abençoa-mos, não é comunhão com o sanguede Cristo? O pão que partimos, nãoé comunhão com o corpo de Cris-to?» (v. 16). Estas palavras expres-sam o efeito místico ou podemos di-zer o efeito espiritual da Eucaristia:diz respeito à união com Cristo, queno pão e no vinho se oferece para asalvação de todos. Jesus está presen-te no sacramento da Eucaristia paraser o nosso alimento, para ser assi-milado e para se tornar em nósaquela força renovadora que restauraa energia e restabelece o desejo de sepôr a caminho, depois de cada pau-sa ou queda. Mas isto exige o nossoconsentimento, a nossa vontade denos deixarmos transformar, o nossomodo de pensar e de agir; caso con-trário, as celebrações eucarísticas emque participamos reduzem-se a ritosvazios e formais. Muitas vezes háquem vá à missa, mas porque se de-ve ir, como um dever social, respei-toso, mas social. Contudo o mistérioé outra coisa: é Jesus presente quevem para nos alimentar.

O segundo efeito é o comunitário eé expresso por São Paulo com estaspalavras: «E como há um único pão,nós, embora sendo muitos, somosum só corpo» (v. 17). É a comunhãorecíproca daqueles que participamna Eucaristia, a ponto de se torna-rem um só corpo, pois um só é opão que se parte e se distribui. Nóssomos comunidade, alimentados pe-lo corpo e pelo sangue de Cristo. Acomunhão com o corpo de Cristo ésinal eficaz de unidade, comunhão epartilha. Não se pode participar naEucaristia sem se comprometer nu-ma fraternidade recíproca, que sejasincera. Mas o Senhor sabe bem quesó a nossa força humana não é sufi-ciente. Pelo contrário, ele sabe queentre os seus discípulos haverá sem-

pre a tentação da rivalidade, da in-veja, do preconceito, da divisão...Todos nós conhecemos estas coisas.Também por isso nos deixou o Sa-cramento da sua Presença real, con-creta e permanente, para que, per-manecendo unidos a Ele, possamossempre receber o dom do amor fra-terno. «Permanecei no meu amor»(Jo 15, 9), disse Jesus; e isto é possí-vel graças à Eucaristia. Permanecerna amizade, no amor.

Este duplo fruto da Eucaristia — oprimeiro, a união com Cristo, e o se-gundo, a comunhão entre aquelesque se alimentam d’Ele — gera e re-nova continuamente a comunidadecristã. É a Igreja que faz a Eucaris-tia, mas é mais fundamental que aEucaristia faça a Igreja, e permite

que ela seja a sua missão, ainda antesde a cumprir. Este é o mistério dacomunhão, da Eucaristia: receber Je-sus para nos transformar a partir dedentro e receber Jesus para sermosunidade e não divisão.

Que a Santíssima Virgem nos aju-de a acolher sempre com admiraçãoe gratidão o grande dom que Jesusnos deu, deixando-nos o Sacramentodo seu Corpo e do seu Sangue.

No final da prece mariana o Pontíficerecordou o Dia mundial do doador desangue, definindo-o uma ocasião paraestimular a sociedade a ser solidária esensível com quantos se encontram emnecessidade».

Amados irmãos e irmãs!Acompanho com grande apreensão etambém com dor a dramática situa-ção na Líbia. Ela tem estado presen-te na minha oração nestes últimosdias.Por favor, exorto os organismosinternacionais e quantos têm respon-sabilidades políticas e militares a re-lançarem com convicção e determi-nação a busca de um caminho parapôr fim à violência, que conduza àpaz, à estabilidade e à unidade dopaís. Rezo também pelos milharesde migrantes, refugiados, requeren-tes de asilo e pessoas deslocadas in-ternamente na Líbia. A situação sa-nitária agravou as suas condições jáprecárias, tornando-os mais vulnerá-veis às formas de exploração e vio-lência. Há crueldade. Exorto a co-munidade internacional, por favor, alevar a sério a sua situação, identifi-cando caminhos e fornecendo meiospara lhes proporcionar a proteção deque necessitam, uma condição dignae um futuro de esperança. Irmãos eirmãs, todos nós temos responsabili-dades nesta matéria; ninguém se po-de sentir dispensado. Rezemos todosem silêncio pela Líbia.

Hoje é o Dia Mundial do Doadorde Sangue. É uma oportunidade paraestimular a sociedade a ser solidáriae sensível às pessoas necessitadas.Saúdo os voluntários presentes emanifesto o meu apreço a quantosrealizam este simples mas muito im-portante gesto de ajuda ao próximo:doar o sangue.

Saúdo-vos a todos, fiéis romanose peregrinos. Desejo a vós, e a quan-tos estão ligados através dos meiosde comunicação social, um bom do-mingo. Por favor, não vos esqueçaisde rezar por mim. Bom almoço e atéà vista.Refugiados em campos de detenção na Líbia (Ansa)

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número 24, terça-feira 16 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 3

O Papa celebrou a missa do Corpus Christi na basílica de São Pedro

Ao lado de quem tem fome de alimentos e de dignidadeServem verdadeiras correntes de solidariedade para não deixar sozinho o nosso próximo

Hoje é urgente dar vida a«verdadeiras correntes desolidariedade» para «cuidar de quemtem fome de alimentos e dignidade, dequem não trabalha e tem dificuldadeem ir em frente», afirmou o PapaFrancisco na homilia da missacelebrada na basílica de São Pedro namanhã de domingo, 14 de junho,solenidade do Corpus Christi.

«Recorda-te de todo esse caminhoque o Senhor, teu Deus, te fez per-correr» (Dt 8, 2). R e c o rd a - t e : foi comeste convite de Moisés que se abriuhoje a Palavra de Deus. Pouco de-pois Moisés reiterava: «Não te es-queças do Senhor, teu Deus» (8, 14).Foi-nos dada a Sagrada Escriturapara vencermos o esquecimento deDeus. Como é importante tê-lo namemória, quando rezamos! Assimno-lo ensina um Salmo, que diz:«Tenho na memória os teus feitos,Senhor; lembro-me das tuas maravi-lhas» (77/76, 12). Incluindo as mara-vilhas e prodígios que o Senhor fezna nossa própria vida.

É essencial recordar o bem recebi-do: se o não conservamos na memó-ria, tornamo-nos estranhos a nósmesmos, meros «passantes» pelaexistência; sem memória, desenraiza-mo-nos do terreno que nos alimentae deixamo-nos levar como folhas pe-lo vento. Pelo contrário, fazer me-mória é amarrar-se aos laços maisfortes, sentir-se parte duma história,respirar com um povo. A memórianão é uma coisa privada, mas o ca-minho que nos une a Deus e aos ou-tros. Por isso, na Bíblia, a lembrançado Senhor deve ser transmitida degeração em geração, contada de paipara filho, como se diz neste textoestupendo: «Quando, amanhã, osteus filhos te perguntarem que re-gras, leis e preceitos são estes que oSenhor, nosso Deus, vos impôs, di-rás aos teus filhos: “Éramos escravos(…) [toda a história da escravidão]e, à nossa vista, o Senhor fez sinais eprodígios» (Dt 6, 20-22). Tu comu-nicarás a memória ao teu filho.

Aqui põe-se um problema: E se acorrente de transmissão das recorda-ções se interromper? Depois, comose pode lembrar aquilo que só ouvi-mos, mas sem o ter experimentado?Deus sabe como isso é difícil, sabecomo é frágil a nossa memória e rea-lizou, em nosso favor, uma coisainaudita: deixou-nos um memorial.Não nos deixou apenas palavras,porque é fácil esquecer o que se ou-ve. Não nos deixou só a Escritura,porque é fácil esquecer o que se lê.Não nos deixou apenas sinais, por-que se pode esquecer também o quese vê. Deu-nos um Alimento, e é di-fícil esquecer um sabor. Deixou-nosum Pão em que está Ele, vivo e ver-dadeiro, com todo o sabor do seuamor. Ao recebê-Lo, podemos dizer:«É o Senhor! Ele lembra-Se demim». Foi por isso que Jesus nospediu: «Fazei isto em memória deMim» (1 Cor 11, 24). Fa z e i . A Euca-ristia não é simples lembrança; é umfacto: é a Páscoa do Senhor, que res-suscita para nós. Na Missa, temos

diante de nós a morte e a ressurrei-ção de Jesus. Fazei isto em memóriade Mim: reuni-vos e, como comuni-dade, como povo, como família, ce-lebrai a Eucaristia para vos lembrar-des de Mim. Não podemos passarsem ela, é o memorial de Deus. Ecura a nossa memória ferida.

Cura, antes de mais nada, a nossamemória órfã. Vivemos numa épocade tanta orfandade. Cura a memóriaórfã. Muitos têm a memória lesadapor faltas de afeto e dolorosas dece-ções, vindas de quem deveria ter da-do amor e, em vez disso, tornou ór-fão o coração. Gostaríamos de voltaratrás e mudar o passado, mas não sepode. Deus, porém, pode curar estasferidas, introduzindo na nossa me-mória um amor maior: o d’Ele. AEucaristia traz-nos o amor fiel doPai, que cura a nossa orfandade. Dá-nos o amor de Jesus, que transfor-mou um sepulcro, de ponto de che-gada, em ponto de partida e da mes-ma maneira pode inverter as nossasvidas. Infunde-nos o amor do Espí-rito Santo, que consola, porque nun-

ca nos deixa sozinhos e cura as feri-das.

Com a Eucaristia, o Senhor curatambém a nossa memória negativa,aquele negativismo que frequente-mente se apodera do nosso coração.O Senhor cura esta memória negati-va, que sempre faz vir ao de cima ascoisas mal feitas e deixa-nos na ca-beça a triste ideia de que não servi-mos para nada, que só cometemoserros, que nos fizeram «errados». Je-sus vem dizer-nos que não é assim.Ele é feliz quando está na nossa inti-midade e, sempre que O recebemos,lembra-nos que somos preciosos: so-mos os convidados esperados para oseu banquete, os comensais que Eledeseja. E não só porque é generoso,mas porque Se enamorou verdadei-ramente de nós: vê e ama a beleza eo bem que somos. O Senhor sabeque o mal e os pecados não são anossa identidade; são doenças, infe-ções. E Ele vem curá-las com a Eu-caristia, que contém os anticorpospara a nossa memória doente de ne-gativismo. Com Jesus, podemos

imunizar-nos contra a tristeza. Conti-nuaremos a ter diante dos olhos asnossas quedas, as canseiras, os pro-blemas de casa e do trabalho, os so-nhos não realizados; mas o seu pesodeixará de nos esmagar, porque, naprofundidade de nós mesmos, temosJesus que nos encoraja com o seuamor. Aqui está a força da Eucaris-tia, que nos transforma em p o r t a d o re sde Deus: portadores de alegria, nãode negativismo. Nós, que vamos àMissa, podemos perguntar-nos oque levamos ao mundo: as nossastristezas, as nossas amarguras ou aalegria do Senhor? Fazemos a Co-munhão e, depois, continuamos a re-clamar, a criticar e a lamentar-nos?Mas isto não melhora coisa alguma,ao passo que a alegria do Senhormuda a vida.

Enfim a Eucaristia cura a nossamemória fechada. As feridas, que con-servamos dentro, não criam proble-mas só a nós, mas também aos ou-tros. Tornam-nos medrosos e des-confiados: ao princípio, fechados;com o passar do tempo, cínicos e in-diferentes. Levam-nos a reagir aosoutros com insensibilidade e arro-gância, iludindo-nos de que assimpodemos controlar as situações; masenganamo-nos! Só o amor cura omedo pela raiz, e liberta dos fecha-mentos que aprisionam. É assim quefaz Jesus, vindo ter connosco commansidão, na fragilidade desarmanteda Hóstia; assim faz Jesus, Pão par-tido para romper a carapaça dosnossos egoísmos; assim faz Jesus,que Se dá para nos dizer que sóabrindo-nos é que nos libertamosdos bloqueios interiores, das parali-sias do coração. O Senhor, oferecen-do-Se a nós tão simples como o pão,convida-nos também a não desperdi-çar a vida, correndo atrás de mil coi-sas inúteis que criam dependências edeixam o vazio dentro. A Eucaristiaapaga em nós a fome de coisas eacende o desejo de servir. Levanta-nos do nosso estilo cómodo e seden-tário de vida, lembra-nos que nãosomos apenas boca a saciar, mastambém as mãos d’Ele para saciar opróximo. Agora é urgente cuidar dequem tem fome de alimento e digni-dade, de quem não trabalha e temdificuldade em seguir para diante. Efazê-lo de modo concreto, comoconcreto é o Pão que Jesus nos dá.É precisa uma proximidade real; sãonecessárias verdadeiras correntes desolidariedade. Na Eucaristia, Jesusaproxima-Se de nós: não deixemossozinho, quem vive ao pé de nós!

Queridos irmãos e irmãs, conti-nuemos a celebrar o Memorial quecura a nossa memória (ao dizer aquique cura a memória, recordemo-nosque é a memória do coração), estememorial é a Missa. É o tesouro quedeve ocupar o primeiro lugar naIgreja e na vida. E, ao mesmo tem-po, redescubramos a adoração, quecontinua em nós a ação da Missa.Faz-nos bem, cura-nos por dentro.Sobretudo agora, temos verdadeira-mente necessidade dela.

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página 4 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 16 de junho de 2020, número 24

Na mensagem para o Dia mundial dos pobres o Papa elogia quem durante a pandemia desafia o contágio para ajudar o próximo

Mãos estendidas com generosidadepara responder ao brado dos mais necessitados

«O tempo a dedicar à oração nuncapode ser uma justificação paradescuidar o próximo em dificuldade. Éverdade o contrário... a oração alcançaa sua finalidade» quando éacompanhada do serviço aos maisnecessitados. Escreve o Papa Franciscona mensagem para a IV edição do Diamundial dos pobres – por ele instituídaem 2016 com a carta apostólica«Misericordia et misera» na conclusãodo Jubileu da misericórdia – que serácelebrado a 15 de novembro próximo,XXXIII domingo do tempo comum.

«Estende a tua mão ao pobre»(Sir 7, 32)

«Estende a tua mão ao pobre» (Sir7, 32): a sabedoria antiga dispôs es-tas palavras como um código sacroque se deve seguir na vida. Hoje res-soam com toda a densidade do seusignificado para nos ajudar, tambéma nós, a concentrar o olhar no essen-cial e superar as barreiras da indife-rença. A pobreza assume sempre ros-tos diferentes, que exigem atenção acada condição particular: em cadauma destas, podemos encontrar oSenhor Jesus, que revelou estar pre-sente nos seus irmãos mais frágeis(cf. Mt 25, 40).

1. Tomemos nas mãos o Ben Sirá,um dos livros do Antigo Testamen-to. Nele encontramos as palavrasdum mestre da sabedoria que viveucerca de duzentos anos antes deCristo. Andava à procura da sabedo-ria que torna os homens melhores ecapazes de perscrutar profundamen-te as vicissitudes da vida. E fê-lonum período de dura prova para opovo de Israel, um tempo de dor,luto e miséria por causa da domina-ção de potências estrangeiras. Sendoum homem de grande fé, enraizadonas tradições dos pais, o seu primei-ro pensamento foi dirigir-se a Deuspara Lhe pedir o dom da sabedoria.E o Senhor não lhe deixou faltar asua ajuda.

Desde as primeiras páginas do li-vro, Ben Sirá propõe os seus conse-lhos sobre muitas situações concretasda vida, sendo a pobreza uma delas.Insiste que, na contrariedade, é pre-ciso ter confiança em Deus: «Não teperturbes no tempo do infortúnio.Conserva-te unido a Ele e não te se-pares, para teres bom êxito no teumomento derradeiro. Aceita tudo oque te acontecer e tem paciência nasvicissitudes da tua humilhação, por-que no fogo se prova o ouro, e oseleitos de Deus no cadinho da hu-milhação. Nas doenças e na pobre-

za, confia n’Ele. Confia em Deus eEle te salvará, endireita os teus cami-nhos e espera n’Ele. Vós que temeiso Senhor, esperai na sua misericór-dia, e não vos afasteis, para não cair-des» (2, 2-7).

2. Página a página, descobrimosum precioso compêndio de suges-tões sobre o modo de agir à luz du-ma relação íntima com Deus, criadore amante da criação, justo e provi-dente para com todos os seus filhos.Mas, a constante referência a Deusnão impede de olhar para o homemconcreto; pelo contrário, as duas rea-lidades estão intimamente conexas.

Demonstra-o claramente o textodonde se tirou o título desta Mensa-gem (cf. 7, 29-36). São inseparáveis aoração a Deus e a solidariedade comos pobres e os enfermos. Para cele-brar um culto agradável ao Senhor,é preciso reconhecer que toda a pes-soa, mesmo a mais indigente e des-prezada, traz gravada em si mesma aimagem de Deus. De tal consciênciaderiva o dom da bênção divina,atraída pela generosidade praticadapara com os pobres. Por isso, o tem-po que se deve dedicar à oração nãopode tornar-se jamais um álibi paradescuidar o próximo em dificuldade.É verdade o contrário: a bênção doSenhor desce sobre nós e a oraçãoalcança o seu objetivo, quando sãoacompanhadas pelo serviço dos po-b re s .

3. Como permanece atual, tam-bém para nós, este ensinamento! Narealidade, a Palavra de Deus ultra-passa o espaço, o tempo, as religiõese as culturas. A generosidade queapoia o vulnerável, consola o aflito,mitiga os sofrimentos, devolve digni-dade a quem dela está privado, écondição para uma vida plenamentehumana. A opção de prestar atençãoaos pobres, às suas muitas e variadascarências, não pode ser condiciona-da pelo tempo disponível ou por in-teresses privados, nem por projetospastorais ou sociais desencarnados.Não se pode sufocar a força da gra-ça de Deus pela tendência narcisistade se colocar sempre a si mesmo noprimeiro lugar.

Manter o olhar voltado para o po-bre é difícil, mas tão necessário paraimprimir a justa direção à nossa vidapessoal e social. Não se trata de gas-tar muitas palavras, mas antes decomprometer concretamente a vida,impelidos pela caridade divina. To-dos os anos, com o Dia Mundialdos Pobres, volto a esta realidadefundamental para a vida da Igreja,porque os pobres estão e sempre es-tarão connosco (cf. Jo 12, 8) paranos ajudar a acolher a companhia deCristo na existência do dia a dia.

4. O encontro com uma pessoaem condições de pobreza não cessade nos provocar e questionar. Comopodemos contribuir para eliminar oupelo menos aliviar a sua marginali-zação e o seu sofrimento? Como po-demos ajudá-la na sua pobreza espi-ritual? A comunidade cristã é cha-mada a coenvolver-se nesta expe-riência de partilha, ciente de que

não é lícito delegá-la a outros. E, pa-ra servir de apoio aos pobres, é fun-damental viver pessoalmente a po-breza evangélica. Não podemos sen-tir-nos tranquilos, quando um mem-bro da família humana é relegadopara a retaguarda, reduzindo-se auma sombra. O clamor silencioso detantos pobres deve encontrar o povode Deus na vanguarda, sempre e emtoda parte, para lhes dar voz, defen-dê-los e solidarizar-se com eles facea tanta hipocrisia e tantas promessasnão cumpridas, e para os convidar aparticipar na vida da comunidade.

É verdade que a Igreja não temsoluções globais a propor, mas ofere-ce, com a graça de Cristo, o seu tes-temunho e gestos de partilha. Alémdisso, sente-se obrigada a apresentaros pedidos de quantos não têm onecessário para viver. Lembrar a to-dos o grande valor do bem comumé, para o povo cristão, um compro-misso vital, que se concretiza na ten-tativa de não esquecer nenhum da-queles cuja humanidade é violadanas suas necessidades fundamentais.

5. Estender a mão leva a desco-brir, antes de tudo a quem o faz,que dentro de nós existe a capacida-de de realizar gestos que dão sentidoà vida. Quantas mãos estendidas seveem todos os dias! Infelizmente,sucede sempre com maior frequênciaque a pressa faz cair num turbilhãode indiferença, a tal ponto que sedeixa de reconhecer todo o bem quese realiza diariamente no silêncio ecom grande generosidade. Assim, sóquando acontecem factos que trans-tornam o curso da nossa vida é queos olhos se tornam capazes de vis-lumbrar a bondade dos santos «aopé da porta», «daqueles que vivemperto de nós e são um reflexo dapresença de Deus» (Exort. ap. Gau-dete et exsultate, 7), mas dos quaisninguém fala. As más notícias abun-dam de tal modo nas páginas dosjornais, nos sites da internet e nosvisores da televisão, que faz pensarque o mal reine soberano. Mas nãoé assim. Certamente não faltam amalvadez e a violência, a prepotên-cia e a corrupção, mas a vida está te-cida por atos de respeito e generosi-dade que não só compensam o mal,mas impelem a ultrapassá-lo perma-necendo cheios de esperança.

6. Estender a mão é um sinal: umsinal que apela imediatamente à pro-ximidade, à solidariedade, ao amor.Nestes meses, em que o mundo in-teiro foi dominado por um vírus quetrouxe dor e morte, desconforto eperplexidade, pudemos ver tantasmãos estendidas! A mão estendidado médico que se preocupa de cadapaciente, procurando encontrar o re-médio certo. A mão estendida da en-fermeira e do enfermeiro que perma-nece, muito para além dos seus ho-rários de trabalho, a cuidar dosdoentes. A mão estendida de quemtrabalha na administração e provi-dencia os meios para salvar o maiornúmero possível de vidas. A mão es-tendida do farmacêutico exposto ainúmeros pedidos num arriscado

contacto com as pessoas. A mão es-tendida do sacerdote que, com o co-ração partido, continua a abençoar.A mão estendida do voluntário quesocorre quem mora na rua e a quan-tos, embora possuindo um teto, nãotêm nada para comer. A mão esten-dida de homens e mulheres que tra-balham para prestar serviços essen-ciais e segurança. E poderíamos enu-merar ainda outras mãos estendidas,até compor uma ladainha de obrasde bem. Todas estas mãos desafia-ram o contágio e o medo, a fim dedar apoio e consolação.

7. Esta pandemia chegou de im-proviso e apanhou-nos imprepara-dos, deixando uma grande sensaçãode desorientamento e impotência.Mas, a mão estendida ao pobre nãochegou de improviso. Antes, dá tes-temunho de como nos preparamospara reconhecer o pobre a fim de oapoiar no tempo da necessidade.Não nos improvisamos instrumentosde misericórdia. Requer-se um treinodiário, que parte da consciência dequanto nós próprios, em primeirolugar, precisamos duma mão estendi-da em nosso favor.

Este período que estamos a vivercolocou em crise muitas certezas.Sentimo-nos mais pobres e mais vul-neráveis, porque experimentamos asensação da limitação e a restriçãoda liberdade. A perda do emprego,dos afetos mais queridos, como afalta das relações interpessoais habi-tuais, abriu subitamente horizontesque já não estávamos acostumados aobservar. As nossas riquezas espiri-tuais e materiais foram postas emquestão e descobrimo-nos amedron-tados. Fechados no silêncio das nos-sas casas, descobrimos como é im-portante a simplicidade e o manteros olhos fixos no essencial. Amadu-receu em nós a exigência duma novafraternidade, capaz de ajuda recípro-ca e estima mútua. Este é um tempofavorável para «voltar a sentir queprecisamos uns dos outros, que te-mos uma responsabilidade para comos outros e o mundo (...). Vivemosjá muito tempo na degradação mo-ral, baldando-nos à ética, à bonda-de, à fé, à honestidade (...). Uma taldestruição de todo o fundamento davida social acaba por colocar-nosuns contra os outros na defesa dospróprios interesses, provoca o des-pertar de novas formas de violênciae crueldade e impede o desenvolvi-mento duma verdadeira cultura docuidado do meio ambiente» (Cartaenc. Laudato si’, 229). Enfim, as gra-ves crises económicas, financeiras epolíticas não cessarão enquanto per-mitirmos que permaneça em letargoa responsabilidade que cada um de-ve sentir para com o próximo e todaa pessoa.

8. «Estende a mão ao pobre» é,pois, um convite à responsabilidade,sob forma de empenho direto, dequem se sente parte do mesmo desti-no. É um encorajamento a assumiros pesos dos mais vulneráveis, comorecorda São Paulo: «Pelo amor, fa-zei-vos servos uns dos outros. É que

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número 24, terça-feira 16 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 5

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 1

toda a Lei se cumpre plenamentenesta única palavra: ama o teu pró-ximo como a ti mesmo. (...) Carre-gai as cargas uns dos outros» (Gl 5,13-14; 6, 2). O Apóstolo ensina que aliberdade que nos foi dada com amorte e ressurreição de Jesus Cristoé, para cada um de nós, uma res-ponsabilidade para colocar-se ao ser-viço dos outros, sobretudo dos maisfrágeis. Não se trata duma exortação

facultativa, mas duma condição daautenticidade da fé que professamos.

E aqui volta o livro de Ben Siráem nossa ajuda: sugere ações concre-tas para apoiar os mais vulneráveis eusa também algumas imagens suges-tivas. Primeiro, toma em considera-ção a debilidade de quantos estãotristes: «Não fujas dos que choram»(7, 34). O período da pandemia

constrangeu-nos a um isolamentoforçado, impedindo-nos até de po-der consolar e estar junto de amigose conhecidos atribulados com a per-da dos seus entes queridos. E, de-pois, afirma o autor sagrado: «Nãosejas preguiçoso em visitar um doen-te» (7, 35). Experimentamos a im-possibilidade de estar junto de quemsofre e, ao mesmo tempo, tomamosconsciência da fragilidade da nossaexistência. Enfim, a Palavra de Deusnunca nos deixa tranquilos e conti-nua a estimular-nos para o bem.

9. «Estende a mão ao pobre» fazressaltar, por contraste, a atitude dequantos conservam as mãos nos bol-sos e não se deixam comover pelapobreza, da qual frequentemente sãocúmplices também eles. A indiferen-ça e o cinismo são o seu alimentodiário. Que diferença relativamenteàs mãos generosas que acima descre-vemos! Com efeito, existem mãos es-tendidas para premer rapidamente oteclado dum computador e deslocarsomas de dinheiro duma parte domundo para outra, decretando a ri-queza de restritas oligarquias e a mi-séria de multidões ou a falência denações inteiras. Há mãos estendidasa acumular dinheiro com a venda dearmas que outras mãos, incluindomãos de crianças, utilizarão para se-mear morte e pobreza. Existemmãos estendidas que, na sombra,trocam doses de morte para se enri-quecer e viver no luxo e num eféme-ro desregramento. Existem mãos es-tendidas que às escondidas trocam

favores ilegais para um lucro fácil ecorrupto. E há também mãos esten-didas que, numa hipócrita respeita-bilidade, estabelecem leis que elesmesmos não observam.

Neste cenário, «os excluídos con-tinuam a esperar. Para se poderapoiar um estilo de vida que excluios outros ou mesmo entusiasmar-secom este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença.Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer aoouvir os clamores alheios, já nãochoramos à vista do drama dos ou-tros, nem nos interessamos por cui-dar deles, como se tudo fosse umaresponsabilidade de outrem, que nãonos incumbe» (Exort. ap Evangeliigaudium, 54). Não poderemos ser fe-lizes enquanto estas mãos que se-meiam morte não forem transforma-das em instrumentos de justiça e pazpara o mundo inteiro.

10. «Em todas as tuas obras, lem-bra-te do teu fim» (Sir 7, 36): tal é afrase com que Ben Sirá conclui a suareflexão. O texto presta-se a umadupla interpretação. A primeira des-taca que precisamos de ter semprepresente o fim da nossa existência. Alembrança do nosso destino comumpode ajudar a conduzir uma vidasob o signo da atenção a quem émais pobre e não teve as mesmaspossibilidades que nós. Mas existetambém uma segunda interpretação,que evidencia principalmente a fina-lidade, o objetivo para o qual tendecada um. É a finalidade da nossa vi-da que exige um projeto a realizar eum caminho a percorrer sem se can-sar. Pois bem! O objetivo de cadaação nossa só pode ser o amor: tal éo objetivo para onde caminhamos, enada deve distrair-nos dele. Esteamor é partilha, dedicação e serviço,mas começa pela descoberta de queprimeiro fomos nós amados e des-pertados para o amor. Esta finalida-de aparece no momento em que acriança se cruza com o sorriso damãe, sentindo-se amada pelo pró-prio facto de existir. De igual modoum sorriso que partilhamos com opobre é fonte de amor e permite vi-ver na alegria. Possa então a mão es-tendida enriquecer-se sempre com osorriso de quem não faz pesar a suapresença nem a ajuda que presta,mas alegra-se apenas em viver o esti-lo dos discípulos de Cristo.

Neste caminho de encontro diáriocom os pobres, acompanha-nos aMãe de Deus que é, mais do quequalquer outra, a Mãe dos pobres. AVirgem Maria conhece de perto asdificuldades e os sofrimentos dequantos estão marginalizados, por-que Ela mesma Se viu a dar à luz oFilho de Deus num estábulo. Devi-do à ameaça de Herodes, fugiu, jun-tamente com José, seu esposo, e oMenino Jesus, para outro país e, du-rante alguns anos, a Sagrada Famíliaconheceu a condição de refugiada.Possa a oração à Mãe dos pobresacomunar estes seus filhos prediletose quantos os servem em nome deCristo. E a oração transforme a mãoestendida num abraço de partilha ereconhecida fraternidade.

Roma, em São João de Latrão,na Memória litúrgica

de Santo António,13 de junho de 2020.

próximo e toda a pessoa». Interes-sante este verbo: «Não cessarão»,como se dissesse que o desenvolvi-mento económico, confiado apenasaos homens, se torna um “fluxocontínuo” natural de crises graves,de lutas pelo poder para satisfazera ganância insaciável. Se a ganâncianunca dorme, para se satisfazer temnecessidade de que tudo o resto, is-to é, a consciência, durma, estejaem hibernação, a fim de que tam-bém a responsabilidade do homemdesvaneça até desaparecer. É neces-sária uma intervenção sobrenaturalpara interromper este ciclo aparen-temente inelutável, e isto acontecepontualmente graças ao facto deque, como recordava Pascal, «o ho-mem supera infinitamente o ho-mem». Esta intervenção é expressanum gesto que o Papa quis indicarcomo título da sua mensagem: Es-tende a tua mão aos pobres. Umgesto que hoje, até neste momentode crise dramática, acontece fre-quentemente, todos os dias, só quenós não nos damos conta. O Papacita sete exemplos de “mãos esten-didas”: do médico, da enfermeira,«de quem trabalha na administra-ção e providencia os meios para sal-var o maior número possível de vi-das», do farmacêutico, «do sacer-dote que, com o coração partido,continua a abençoar», do voluntá-rio, «de homens e mulheres quetrabalham para prestar serviços es-senciais e segurança. E poderíamosenumerar ainda outras mãos esten-didas, até compor uma ladainha deobras de bem. Todas estas mãos de-

safiaram o contágio e o medo, afim de dar apoio e consolação».

O que fizeram todas estas pes-soas? Agiram como Deus: viram,ouviram, conheceram o sofrimento,correram para libertar os outros dador, ou pelo menos para os acom-panhar contra um mal que fez tudopara destruir a própria possibilida-de desta companhia. Aquelas mãosestendidas eram as mãos de Deusque, para acariciar o homem, pedea colaboração das mãos de outroshomens. O gesto de estender a mãoaos pobres, observa o Papa, «fazressaltar, por contraste, a atitude dequantos conservam as mãos nosbolsos e não se deixam comoverpela pobreza, da qual frequente-mente são cúmplices também eles.A indiferença e o cinismo são o seualimento diário».

Tornamo-nos colaboradores daternura de Deus ou indiferentesnão de uma só vez, mas através deuma “alimentação diária”. «Nãonos improvisamos instrumentos demisericórdia», continua o Papa nasua Mensagem: «Requer-se um trei-no diário, que parte da consciênciade quanto nós próprios, em primei-ro lugar, precisamos de uma mãoestendida em nosso favor. Este pe-ríodo que estamos a viver colocouem crise muitas certezas. Sentimo-nos mais pobres e mais vulneráveis,porque experimentamos a sensaçãodo limite e a restrição da liberdade.A perda do emprego, dos afetosmais queridos, como a falta das re-lações interpessoais habituais, abriusubitamente horizontes que já nãoestávamos acostumados a observar.As nossas riquezas espirituais e ma-teriais foram postas em questão e

descobrimo-nos amedrontados. Fe-chados no silêncio das nossas casas,descobrimos como é importante asimplicidade e manter os olhos fi-xos no essencial».

Manter os olhos fixos, isto é, ver.E obedecer, ou seja, pôr-se à escuta,porque há um grito na história doshomens que deve ser ouvido. As-sim, conheceremos o sofrimentodos outros. Esta é, talvez, a passa-gem mais delicada: o mundo de ho-je parece estar dividido em duaspartes que se ignoram, uma nadasabe da vida da outra, não conse-gue achar um ponto de encontro(este seria o “lugar” da política), eo seu confronto torna-se inevitavel-mente um conflito. Mas só se co-nhecermos o sofrimento, se o reco-nhecermos, poderemos realmentepassar para a ação de ir ao encon-tro, de socorrer, de salvar. O Papatem palavras muito claras e inequí-vocas acerca deste aspeto: «Nãopodemos sentir-nos “tranquilos”,quando um membro da família hu-mana é relegado para a retaguarda,reduzindo-se a uma sombra. O cla-mor silencioso de tantos pobres de-ve encontrar o povo de Deus navanguarda, sempre e em toda a par-te, para lhes dar voz, defendê-los esolidarizar-se com eles face a tantahipocrisia e tantas promessas nãocumpridas, e para os convidar aparticipar na vida da comunidade».É um discurso que sem dúvida temconsequências políticas, mas antesainda é profundamente humano eautenticamente cristão, dirigido aopovo dos cristãos que, pela sua na-tureza, não pode, nesta terra, sen-tir-se “tranquilo”.

Despertar da letargia da responsabilidade

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número 24, terça-feira 16 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 6/7

Reflexões acerca dos efeitos da pandemia com Marco Bracconi a partir do seu panfleto “La mutazione”

O corpoé o nosso vínculo de igualdade

“O gesto do Papa... de sair para a rua e presidiaro mundo real com o próprio corpo foi, na minha opinião,uma forte intuição (não importa quanto fosse consciente)contra a desmaterialização das nossas vidas”

LA B O R AT Ó R I O SOBRE O PÓS-PA N D E M I A

ANDREA MONDA

«O ponto de viragem foi ver o Pa-pa caminhar sozinho na via delCorso para ir rezar diante do Cru-cifixo da Igreja de São Marcelo».

Marco Bracconi não esconde osentido de admiração e gratidãopor esse gesto do Papa a 15 demarço, uma semana depois domundo estar bloqueado e fechado.Naquela paisagem desenhada emarcada pela presença da Covid-19eis que alguém «meteu uma cu-nha», ali mesmo, «no lugar queacabava de ser proibido ao nossocorpo em vias de esterilização». OPapa — escreve Bracconi no panfle-

to La mutazione que acaba de serlançado em e-book pela editoraBollati Boringhieri — «pôs-se a ca-minho e lançou um corpo de dezmil toneladas na rua. Apenas umque resumia os corpos de todos osoutros. Como se estivesse lá à espe-ra do regresso de todos, em vez dere z a r » .

Bracconi não é um crente, é umcatólico como todos nós italianos(Croce ainda tem razão, reconhece)e não ficou impressionado com as

palavras ou orações do Papa, mascom o facto em si mesmo: este ho-mem moveu-se, caminhou pela ci-dade vazia e expôs a sua pessoa, oseu corpo, no momento em que ocorpo tinha sido banido da socie-dade, da coexistência civil. Tudoisto enquanto escrevia um panfletosobre a “mutação” que a sociedadeocidental está a viver, ou seja, atransferência para o mundo digitalque tem, entre outros efeitos, tam-bém o da desmaterialização, do de-saparecimento do corpo em benefí-cio da sua representação.

«Na verdade, eu estava a escre-ver um romance distópico que de-veria falar da substituição da vidapelo conceito de “estilo de vida” e

da viragem global em direção aodigital; depois a realidade superouo que eu queria dizer com a fanta-sia: a pandemia da Covid-19 conge-lou o mundo inteiro como numaimagem estática. Naquele ponto, aminha atenção centrou-se em al-guns paradigmas que se estavam aestabelecer, o mais perigoso dosquais era o ar de milenarismo querespirámos durante dois meses.Frases repetidas como um mantra eque nos diziam “nada será como

antes”, ou “nunca tal antes tinhaacontecido”. Não, isso não tinhasentido. Começando por um aspe-to da questão à qual não foi dadaa devida importância: não só nostínhamos fechado nas nossas casas,como também nos tínhamos deslo-cado em massa para o mundo digi-tal, e esta fuga coletiva, não só dasruas e praças, mas também da rea-lidade física para a rede, não foidevidamente enfatizada. Talvez pornão ter sido, precisamente, algo“que nunca antes acontecera”, masum processo já em curso, que foiconsiderado um dado adquirido.Assim, decidi escrever um panfleto,não um romance, mas sob a formade uma carta dirigida diretamente

atacavas e a internet substituía. Eassim aquele passeio romano tornou-se um motim. Um corpo estranho econtundente atirado contra o esquemade exatidão da quarentena». O quequer dizer com essa expressão?

O gesto do Papa foi a irrupçãoda vida dentro dos limites rígidosda exatidão, limites que de facto jános estávamos a impor com o ad-vento do digital. Na minha lingua-gem “o esquema da exatidão” éprecisamente o oposto da espiritua-lidade, um esquema de perfeiçãogeométrica que reduz tudo à multi-plicação, inclusive o que é humanoe que por sua natureza é imperfei-ção, ou até excesso. Daquele pas-seio do Papa foi sublinhada a di-mensão da solidão e o significadodo conforto para a cidade. Masambas as interpretações foram su-perficiais, um pouco assustadas.Parece-me, pelo contrário, que nes-se gesto houve também uma res-posta à multiplicação dos nossoscorpos digitais. No livro escrevoque o corpo do Papa é um corpo«exponencial ao contrário» que sereduz a um único corpo e é apenasesse homem, único, como se nosquisesse lembrar que a nossa iden-tidade é acima de tudo corpórea,sensível. O próprio facto de sairpara a rua e presidiar o mundo realcom o próprio corpo foi, na minhaopinião, uma forte intuição (nãoimporta quanto fosse consciente)contra a desmaterialização das nos-sas vidas. Eis então a resposta deBergoglio ao esquema da exatidão:por um lado, o reconhecimento dasingularidade do corpo, da suasubstância e da sua matéria, poroutro, a ideia multiplicadora da re-de que reduz o sujeito humano àsua função, que acaba então porser a do consumidor.

As suas palavras recordam-me que oPapa convidou recentemente os fiéis a«passar da cultura do adjetivo paraa teologia do substantivo».

Formidável, é assim mesmo! Osujeito, com o seu corpo, não épermutável. Em vez disso, quandonos tornamos accounts, já não so-mos sujeitos, nem individuais nemsociais, mas apenas multiplicadoresda rede, objetos, “coisas” que po-dem manipular ou ser manipuladasem termos de poder. É por issoque digo que a verdadeira igualda-de pode e deve ser a do corpo, não

a simbólica, o que nunca é verda-de. A igualdade baseada em repre-sentações simbólicas é a dos siste-mas totalitários. A verdadeira de-mocracia precisa da carne.

Alguns dias depois o Papa voltou asair, em carne e osso, e apareceu naPraça de São Pedro vazia e molhadade chuva e, entre outras coisas, pro-nunciou palavras fortes como quandodisse que a nossa era uma ilusão,pensar que somos «saudáveis nummundo doente». Como se sentiu aoouvir estas palavras?

tir que nós, leigos, tratámos a Co-vid-19 como Satanás e que, ao con-trário, o Papa recordou-nos que setratava apenas de um vírus. É claroque Francisco sentia que as pessoastinham medo e que devíamos estarperto delas, mas ele nunca elevouo vírus a inimigo, nunca. Haviaduas formas de ler a emergência eo lockdown: como “suplência” oucomo o início de um novo mundo,e o Papa viu-o corretamente na pri-meira forma, colocando os nossospés de novo na história. Como sedissesse: “nada de novo, uma epi-demia é a coisa mais constante queconhecemos” e admoestasse “não é

de existir, deixa de ser tal, torna-seimpraticável.

Pode dar algum exemplo deste confli-to sobre a centralidade do corpo?

Os migrantes. Por que nos as-sustam tanto? Porque chegam como seu corpo nu, sujo, vestido comoà toa, mostram-nos isto em toda asua escandalosa consistência. A suamensagem é: com este corpo, so-mos iguais a vós. A questão é quenós, com os nossos corpos cadavez mais abstratos e simbólicos ecada vez menos materiais, não osconseguimos ver como iguais. Nãosou católico, mas não há necessida-de de ser católico para me ligar àideia de um Deus que encarna emorre como qualquer outro ho-mem: é Cristo crucificado que nosrecorda que o corpo é o nosso pri-meiro vínculo de igualdade e queeste vínculo é válido para todos.Deste ponto de vista o gesto deBergoglio é o mais cristão que sepossa imaginar. Pense na questãodas missas: o corpo não é tambémo elemento fundamental neste ca-so? Ao fundar a Eucaristia Cristodiz «este é o meu corpo» e estabe-lece que a p re s e n ç a do corpo nãopode ser reduzida a um símbolonem a uma mediação. O corpo estálá, está aqui e na terra. Gostaria deutilizar um termo caro ao PapaFrancisco, p ro x i m i d a d e . Não é por-ventura o coração da mensagemcristã, baseada no amor ao próxi-mo e não no “conectado”? Vem-meà mente a frase de João XXIII querecordamos com mais emoção,aquele convite a fazer “uma caríciaaos vossos filhos”. Uma carícia aser dada com as mãos, na pele, to-cando aquele rosto que é único, o

único que temos. Impossível de re-produzir, será sempre apenas “nos-so”.

Além disso, a fé cristã prevê na essên-cia da sua mensagem a ressurreiçãodos corpos. Das suas palavras, porém,emerge uma condenação da tecnologia,será esta a mutação de que fala nolivro? Um destino agora inelutável?

Não, dizer que a tecnologia é oinimigo seria a abordagem erradada questão. É verdade que com“mutação” refiro-me à mudança deestado do digital durante o lock-down. Mas é uma mutação que,como dissemos antes, ocorreu con-tinuamente, não como causa diretada pandemia: nós, ocidentais, jáéramos fortemente dependentes dosistema de rede, a internet já se ti-nha tornado, de facto, um sistemamundial e não uma mera utilidade.A emergência de saúde revelousimplesmente esta verdade. No li-vro, defendo que a Covid-19 só es-tá a levar a bom termo um proces-so já começado, em que, no imagi-nário coletivo, a rede se torna umfim e não um meio. Isto significaque a tecnologia não é o inimigo,não o pode ser. O adversário é aideologia da inovação digital. E é oadversário daqueles que se preocu-pam com o património das nossassociedades, mas também daquelesque têm no coração a dimensão es-piritual do homem. Por esta razão,acredito profundamente que umaaliança entre crentes e não crenteshoje é inevitável, ou melhor: natu-ral e fisiológica, porque, à luz doque foi dito há pouco sobre o mile-narismo, procurar a racionalidade

CO N T I N UA NA PÁGINA 8

ao vírus, “acusando-o” de ter reve-lado uma realidade já em curso,mas inadvertida. E enquanto eu re-fletia sobre isto, vi aquela imagem,o Papa a caminhar sozinho na rua.Uma das imagens mais poderosasque eu vi».

A essa cena dedica algumas páginasdo seu texto de grande intensidade,impressionado pelo facto de o Papaquerer dizer o que disse «com o corpo.A parte de nós que tu [Covid-19]

Camiões militares que transportam os caixões com as vítimas da Covid-19 em Bergamo (Itália)

Quase caí da cadeira: o único afazer um discurso que não era mi-lenarista nem consolatório foi ele,o Papa. Todos os leigos (talvezcom a exceção de Cacciari) brinca-ram a ser milenaristas ou, então,cantores de uma palingénesis dehomo sapiens capaz de se realizarem pouco mais de 24 horas. Assim,as palavras mais racionais e credí-veis vieram da autoridade religiosa:recordar-nos que já estávamosdoentes e isolados, o Papa minimi-zou a situação, retirou-a daquelaauréola milenar, fazendo-nos com-preender que não se tratava deuma novidade absoluta, do Malabsoluto. No final, temos de admi-

verdade que nada será como an-tes”. Assim, essa fotografia da viadel Corso pareceu-me o baú deuma mensagem tão concreta quan-to urgente: “reparai, se construir-mos uma sociedade sem corpo, omundo perde o mais importante,porque o corpo é o nosso únicovínculo de igualdade”. Com essacaminhada transgressiva o Papaalongou o ritmo, precedeu-nos edisse: “Espero-vos neste corpo”.Foi o único que não eliminou ofacto de que o conflito entre a ma-téria da vida e a sua representaçãojá estiva amplamente em curso.Um choque em torno da própriaideia de igualdade, porque se ocorpo evapora a igualdade não po-

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página 8 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 16 de junho de 2020, número 24

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 6

na fé já não é um paradoxo. Lem-bra-se quando, no início do lock-down, as redes sociais lançaram oalarme para a possível falha dosservers? Era um risco inexistente,mas temido como real e desastroso.Bem, esse receio global realçou adimensão da intocabilidade alcan-çada pelo mundo do sistema da in-ternet. A substituição digital tinha-se tornado total, a função da webjá não era a de um apoio, mas dealgo de que precisamos para viver,que de facto nos “salva” em casode emergência. É a mudança destatus cultural. Um processo queesconde uma ameaça totalitária.

Não é estranho repetir, como fi-zemos há meses, que nunca maisnos veremos livres deste vírus? Enão dizemos que do smart workinge do e-learning não se voltaráatrás? Mas pergunto-me: não seriaimportante refletir, discernir, sepa-rar? Perguntemo-nos, por exemplo,o que pensamos das universidades,se queremos concebê-las como lu-gares vitais e fluidos ou como cai-xas onde podemos produzir tecno-cracias. E o trabalho à distância? Amediação digital na produção nãobeneficia a representação simbólicado ser humano, as suas hierarquiasde poder, fazendo prevalecer pa-péis e funções sobre a pessoa, oadjetivo sobre o substantivo? O ris-co é construir em torno do smartworking uma ideologia que alimen-te processos de solidificação dasnossas estruturas sociais, enquantoas estruturas sociais devem sermantidas suaves e fluidas. Engessá-las significa reconduzi-las, mais ce-do ou mais tarde, para uma ordemque nunca é democrática.

Deste ponto de vista, o seu livro as-sume um carácter explicitamente polí-tico.

Sim, é verdade. A questão écomplexa e toca diretamente a di-mensão política. Não se trata deuma tecnologia oposta da mesmaforma ideológica, seria insensato efora de tempo, provavelmente. Maspenso que há uma necessidade ur-gente de reflexão através da qual sepossa exercer a prática saudável dadúvida (que hoje me parece terpermanecido toda no campo católi-co). Face às múltiplas pressões quediminuem a coesão social, devemosresponder com audácia e coragem,talvez pensando num novo “pacto”com o digital, hoje ainda mais in-dispensável, dada a demonstraçãode força que nos é oferecida pelasredes durante o lockdown. Esta se-ria a tarefa de uma política capazde ter uma visão a longo prazo.Trabalhar num novo pacto com aweb, mas desta vez entre iguais.Não tenho medo da votação onlineou de outros instrumentos de altatecnologia nas práticas sociais, in-cluindo a política. Mas sinto pavorde um mundo em que a formaçãodo espírito público se processa emformato digital.

No livro, defendo que seria im-portante redescobrir fronteiras eperímetros, adaptando radicalmen-

te os instrumentos da democraciado século XX ao digital, mas salva-guardando a presença física daspessoas nos locais onde se estrutu-ra o espaço público: a polis. Nãosó. A democracia, tal como a con-cebemos hoje, não pode durarmuito tempo num sistema governa-do pelo ritmo das redes; um siste-ma de ligação global profundamen-te individualista não é compatívelcom a ideia de bem comum queinforma os nossos valores democrá-ticos. Dizer que os h a t e rs e os ven-dedores de fake news são maus nãonos serve para nada. Nós sabemosisso. Seria mais útil pensar na es-trutura da web, começando a deba-ter o que pode ser “seu” e o quedeve continuar a ser “nosso”, físico,corporal. Procurando assim o mo-do que nos permita voltar a falarrealmente uns com os outros, e nãoapenas simbolicamente.

Relacionada com isto está a questãoda solidão. Responder à grande soli-dão dos homens nas cidades é talvezo desafio maior e mais urgente da po-lítica.

É assim. E a resposta a estaemergência não pode ser a confian-ça no digital. Há quem, comoAlessandro Baricco, nestes temposde isolamento social, falava de uto-pia da biotecnologia, da “extensão”dos nossos corpos biológicos, daracionalidade da rede. Fascinante,talvez. Mas não há necessidade deexumar categorias veteromarxistaspara nos lembrarmos que somos osmestres dos nossos corpos, enquan-to as nossas “extensões” digitais osão um pouco menos. As cincomaiores empresas do planeta sãodigitais e o seu principal interessenão é a emancipação do ser huma-no, mas o lucro. Este é outro aspe-to da mutação: transforma o nossocorpo de um corpo social num cor-po de desejo (e portanto prontopara o consumo), cenário que lem-bra o antigo lema dos romanos,“panem et circenses” (não foi poracaso que os romanos perseguiamos cristãos). Por outras palavras:estamos a desmaterializar-nos nasociedade, mas continuamos a que-rer e a imaginar-nos física e mate-

rialmente diante do desejo. É umgrande tema do humano, antes deo ser do catolicismo. Porque trans-formar o corpo social no corpo dodesejo é um perigo para todos. Aespiritualidade não é um problemaexclusivamente religioso, é um de-safio para todos, para a política epara a cultura. Portanto, o objetivoé comum: voltar a utilizar os ins-trumentos que sabemos inventarcom tal génio, mas deixar de sergovernados por eles. Dou umexemplo que diz respeito à lingua-gem. No livro escrevo que estou aaprender a usar a mesma lingua-gem para funerais e para conselhosde administração. É a sintaxe digi-tal que mistura hierarquias, poluias relações de causa e efeito, acele-ra os prazos, nivelando o hiato en-tre o bom senso e o senso comum.Quais são as consequências a longoprazo?

Sobre o tema dos funerais, o livroaborda a questão da morte com pala-vras muito fortes: «Não se diz neces-sariamente que Jesus Cristo e a in-ternet têm as mesmas opiniões sobre asalvação das pessoas. Certamente nãona morte. Pergunta aos sacerdotesque saíam à noite para colocar a mãona testa dos moribundos [...] a revo-gação viral do conforto para os mori-bundos e cadáveres foi a mais intole-rável das privações a que nos sujei-taste». E depois entrou em pormeno-res sobre como é terrível «ver a tuamãe partir numa ambulância paraum hospital onde morrerá sozinha, emsilêncio, na companhia de alienígenascompassivos em macacões fosforescen-tes, para não falar da mesma cenavista através dos olhos daqueles queobservam o seu filho das janelas deuma ambulância partir para o Ha-des. Foi bastante assustador, sim.Não apenas a dor, toda essa geome-tria também. Para te trazer de voltasob o nosso domínio fomos obrigadosa erguer um muro entre os corpos dosvivos e dos mortos. Sem contacto».

Também aqui acontece o mesmofenómeno de desmaterialização — ehá já algum tempo. Porventura oFacebook não é um mecanismo deimortalidade digital? A rede desde-nha o corpo e visa as almas, a pon-

to que nunca as deixa morrer. Nopanfleto refleti sobre os perfis digi-tais dos falecidos: não há lápides,mas erupções de vitalidade. Perde-mos a life, continuamos on. Sem-pre. O facto é que a rede está adesmaterializar a nossa relação coma morte porque desmaterializa, an-tes de mais, a nossa relação com otempo. Também por esta razão fi-quei impressionado com o gesto“físico” do Papa: naqueles dias“milenaristas” ele foi o único amanter firme o fio da história,aquele que começa com o que éra-mos antes do vírus, atravessa o quesomos agora e interroga-se sobre oque seremos amanhã. Tempo. E,em vez disso, para muitos, este fioda história depois de 8 de marçoparecia ter sido interrompido. Co-mo se não existisse antes, como seo depois já tivesse sido estabeleci-do para sempre. Afinal, já éramosusados pela web para renascer “no-vos” todos os dias, para viver deacordo com a dinâmica temporalda rede, aquilo a que eu chamo nolivro o eterno presente. Um mundoonde a memória é sempre atual,disponível todos os dias. Tudomuito bonito na aparência, mas opreço é muito elevado: no sistemamundial da internet já não há me-mória (que é um processo) mas oarquivo (que é um mecanismo). Ese até o tema da morte está subor-dinado a esta “ausência” de tempo,recuperar uma ideia de tempo his-tórico, não tecnológico, é um dosgrandes desafios que enfrentamos.Estou convencido de que, desteponto de vista, também o cristia-nismo pode desempenhar um pa-pel decisivo. Tal como deve ser de-sempenhado pelo pensamento críti-co dos leigos mais experientes. Éisto que quero dizer quando falode uma aliança entre pensadores,crentes e não-crentes: se a emer-gência que nos preocupa é a mes-ma, se o ponto de partida e o fimdevem continuar a ser o homem, asua busca de sentido e a sua eman-cipação, os leigos e os católicosnão podem deixar de falar unscom os outros, talvez cara a cara.Hoje, mais do que nunca.

Reflexões sobre os efeitos da pandemia com Marco Bracconi

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número 24, terça-feira 16 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 9

CA R TA APOSTÓLICA EM FORMA DE «MOTU PROPRIO» D O SUMO PONTÍFICE FRANCISCO

Sobre a transparência, o controle e a concorrêncianos procedimentos de adjudicação de contratos públicos da Santa Sé

e do Estado da Cidade do Vaticano

CA R TA APOSTÓLICA EM FORMADE «MOTU PROPRIO»D O SUMO PONTÍFICE

FRANCISCO

Sobre a transparência, o controle

e a concorrência nos procedimentos

de adjudicação de contratos públicos

da Santa Sé

e do Estado da Cidade do Vaticano

A diligência de um bom pai de fa-mília constitui um princípio geral ede máximo respeito, com base noqual todos os administradores de-

vem desempenhar as suas funções.Isto é exigido de modo explícito pe-la lei canónica em relação aos benseclesiásticos (cân. 1.284 § 1 CD C),mas é válido em geral para qualqueroutro administrador.

A economia mundial e uma inter-dependência crescente fizeram so-bressair a possibilidade de realizarpoupanças consideráveis como efeitoda operacionalidade de múltiplosfornecedores de bens e de serviços.Tais possibilidades devem ser utiliza-das sobretudo na gestão dos benspúblicos, onde a exigência de umaadministração fiel e honesta é aindamais sentida e urgente, uma vez que,neste âmbito, o administrador é cha-mado a assumir a responsabilidadepelos interesses de uma comunidade,que vão muito além dos individuaisou dos que dependem de interessesp a r t i c u l a re s .

Esta exigência favoreceu tambémuma regulamentação específica ecoerente no âmbito da Comunidadeinternacional, que já dispõe de prin-cípios e regras que inspiram a con-duta e demonstram a experiênciados vários Estados. É útil fazer refe-rência a esta herança normativa, comas correspondentes “boas práticas”,

contudo tendo bem presentes osprincípios fundamentais e as finali-dades próprias do ordenamento ca-nónico e a peculiaridade daquele doEstado da Cidade do Vaticano.

Portanto, a fim de permitir umagestão mais eficaz dos recursos, deci-di aprovar um conjunto de normasdestinadas a promover a transparên-cia, o controle e a concorrência nosprocedimentos de adjudicação decontratos públicos estipulados porconta da Santa Sé e do Estado daCidade do Vaticano. Com elas pre-tendo definir os princípios gerais edelinear um procedimento único so-bre esta matéria, através de um cor-pus de regulamentos válidos para asvárias Entidades da Cúria Romana,para as Instituições administrativa-mente ligadas à Santa Sé, para oGovernatorato do Estado, bem co-mo para as demais pessoas jurídicaspúblicas canónicas especificamenteidentificadas.

Ao mesmo tempo, apesar da suaunicidade e homogeneidade, estadisciplina contempla as diferençasnecessárias entre a Santa Sé e o Es-tado da Cidade do Vaticano, bemconhecidas pela lei e universalmenteconsideradas pela prática jurídica,também internacional, bem como asfinalidades objetivas próprias de ca-da Entidade que, em virtude do seusingular serviço eclesial, é chamada aaplicá-las.

A promoção de uma contribuiçãoconcorrente e leal de agentes econó-micos, unida à transparência e aocontrole dos procedimentos de adju-dicação de contratos, permitirá umamelhor gestão dos recursos que aSanta Sé administra para alcançar asfinalidades próprias da Igreja (cf.cân. 1.254 CD C), garantindo aos mes-mos agentes a igualdade de trata-mento e possibilidade de participa-ção através de uma especial O rd e mdos agentes económicos e de procedi-mentos específicos.

Além disso, a operacionalidade detodo o sistema constituirá um obstá-culo a acordos restritivos e permitiráreduzir de forma considerável o pe-rigo de corrupção de quantos sãochamados à responsabilidade de go-

Intervenção do presidente do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano

Aplicar regras e práticas da comunidade internacional

GIUSEPPE PI G N AT O N E

A nova lei «Sobre a transparência, o controle e a con-corrência nos procedimentos de adjudicação de contra-tos públicos», definida por síntese como “código dee m p re i t a d a s ”, constitui uma nova e importante mani-festação da vontade do Papa Francisco, e portanto daSanta Sé, de ser parte ativa da Comunidade internacio-nal, compartilhando e implementando também as re-gras que nestes anos inspiraram importantes reformasem vários campos do ordenamento jurídico do Vatica-no.

Neste contexto, como disse o Santo Padre por oca-sião da inauguração do Ano judiciário, no passado dia15 de fevereiro, a Santa Sé «trabalha para partilhar osesforços da comunidade internacional, a fim de cons-truir uma convivência justa, honesta e sobretudo atentaàs condições dos mais desfavorecidos e excluídos»,criando também guarnições internas de legalidade, vi-gilância e controle.

De resto, é supérfluo ressaltar o compromisso deFrancisco contra a corrupção, que constitui um temabásico de numerosas das suas intervenções.

Portanto, este é o contexto em que se insere a novadisciplina dos contratos públicos da Santa Sé e do Es-tado da Cidade do Vaticano.

As finalidades que a nova lei se propõe são indica-das claramente na Carta Apostólica que a acompanha.

1) Alcançar poupanças consideráveis como resultadode uma concorrência mais ampla e correta entre osagentes económicos interessados, que poderão inscre-ver-se numa Ordem especial. Há que recordar que otema da redução das despesas é extremamente atual eimportante neste momento, infelizmente destinado aperdurar, de graves dificuldades económicas para omundo inteiro mas também, de forma específica, paraa Santa Sé e a Cidade do Vaticano, como frisou recen-temente o Prefeito da Secretaria para a Economia, pa-dre Juan Antonio Guerrero Alves.

2) Uma gestão eficiente dos recursos.

3) Um compromisso renovado e decisivo contra orisco de corrupção.

Para alcançar estes objectivos, aplicam-se as melho-res regras e práticas elaboradas pela Comunidade inter-nacional, fundadas nos princípios de transparência e defavorecimento da concorrência. Prevê-se igualmenteum sistema minucioso de controles, inclusive informáti-cos.

Eis o motivo do novo código de empreitadas, se qui-sermos utilizar esta expressão, válido tanto para as En-tidades da Cúria Romana como para aquelas que estãoligadas administrativamente à Santa Sé e ao Estado daCidade do Vaticano.

Naturalmente, também a nova lei deve refletir osprincípios próprios do ordenamento do Vaticano, eportanto o artigo 81 prevê que todos os contratos se-jam disciplinados pelo Direito canónico com uma refe-rência, embora não expressamente regulamentada, àsleis do Estado do Vaticano.

Naturalmente, a introdução de novos direitos e obri-gações exige que haja um juiz que possa assegurar asua observância e que regule os conflitos entre as par-tes. Esta competência, que poderá tornar-se muito exi-gente, foi atribuída ao Tribunal do Estado de primeirainstância, com a possibilidade de propor apelação aoTribunal de Recurso. Além disso, foi introduzido umnovo procedimento, diferente do previsto pelo Códigocivil em vigor, que pode satisfazer as exigências especí-ficas apresentadas por uma matéria tão particular e im-portante. De modo semelhante ao que acontece na Itá-lia perante o Tar (Tribunal administrativo regional),prevê-se também a possibilidade de uma medida caute-lar de suspensão dos atos contestados, mas são impos-tos prazos muito breves para evitar o perigo de atrasosou até de um bloqueio na execução do contrato.

A atribuição desta nova competência é uma renova-da manifestação de confiança por parte do Santo Padrenos juízes do Vaticano. Posso assegurar que da nossaparte haverá o máximo esforço para a merecer. CO N T I N UA NA PÁGINA 10

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página 10 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 16 de junho de 2020, número 24

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 9

Carta apostólica em forma de «Motu Proprio»do Sumo Pontífice Francisco

Carta do Papa ao presidente colombiano

Não se pode ser saudávelnum planeta doente

verno e de gestão das Entidades daSanta Sé e do Estado da Cidade doVa t i c a n o .

Esta regulamentação, de carátersubstancial, é acompanhada poruma legislação processual, destina-da a garantir o recurso à tutela ju-risdiconal em caso de controvérsiasrelativas aos procedimentos de ad-judicação de contratos públicos ouem relação às medidas de inscriçãoou de anulação na Ordem dosagentes económicos.

A especificidade da matéria e otecnicismo da regulamentação subs-tancial justificam a extensão da ju-risdição dos órgãos judiciais do Es-

tado da Cidade do Vaticano, aosquais é atribuída competência paraconhecer os eventuais contenciosos,mesmo que eles digam respeito aEntidades da Cúria Romana, semprejuízo da competência do Supre-mo Tribunal da Assinatura Apostó-lica em caso de conflito de atribui-ção.

Portanto, após a preparação dasredações finais dos mencionados re-gulamentos, depois de os ter con-sultado e considerado no seu con-junto com a devida ponderação, de-libero Motu proprio, com ciênciacerta e autoridade soberana, a apro-vação da regulamentação contidanos textos anexos ao presente Ato,para serem considerados parte inte-

grante do mesmo, que deverão serobservadas em todas as suas partes,não obstante qualquer disposiçãocontrária, mesmo que seja digna demenção especial.

Disponho que o original do pre-sente Motu proprio seja promulgadomediante a publicação no site dainternet de L’Osservatore Romano,entrando em vigor trinta dias maistarde, e que depois seja publicadonas Acta Apostolicae Sedis.

Dado em Roma, junto de SãoPedro, a 19 de maio de 2020,

oitavo ano de Pontificado.

«Tudo está em relação: o autêntico cuidado da própria vida e das nossasrelações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e dafidelidade aos outros». Relançando os hashtags #LaudatoSi e#WorldEnvironmentDay com um tweet na conta @Pontifex, o Papa uniu-seàs celebrações do Dia mundial do meio ambiente a 5 de junho. Nessa ocasião,Francisco também enviou ao presidente da Colômbia — país designado esteano pela Onu como organizador do Dia, que, devido à pandemia da Covid-19, só pôde ser realizado de forma virtual — a carta que publicamos a seguir.

Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral

Agir agora para o futuroComissão vaticana Covid-19 — Trabalhos od grupo 1

A Sua ExcelênciaSenhor Iván Duque Márquez

Presidente da Repúblicada Colômbia

Senhor Presidente!Tenho o prazer de me dirigir a

si, a todos os membros organizado-res e aos participantes no DiaMundial do Ambiente, que esteano deveria ter sido celebrado emBogotá, mas devido à pandemia deCovid-19, será realizado de formavirtual. É um desafio que nos re-corda que, perante a adversidade,há sempre novas formas de estar-mos unidos como uma grande fa-mília humana.

A proteção do meio ambiente eo respeito pela “bio diversidade” doplaneta são questões que dizemrespeito a todos nós. Não podemospretender ser saudáveis num mun-do que está doente. As feridas cau-sadas à nossa mãe terra sangramtambém em nós. O cuidado pelosecossistemas precisa de um olharpara o futuro que não se limiteapenas ao imediato, procurandoum lucro rápido e fácil; um olharcheio de vida e que procure a pre-servação para benefício de todos.

A nossa atitude perante o pre-sente do planeta deveria responsa-bilizar-nos e obrigar-nos a testemu-nhar a gravidade da situação. Nãopodemos ficar calados perante oclamor quando demonstramos oscustos muito elevados da destrui-ção e exploração do ecossistema.Não é tempo de continuar a olhar

para o outro lado, indiferentes aossinais de um planeta que está a sersaqueado e violado, por ganânciade lucro e — muito frequentemente— em nome do progresso. Temos aoportunidade de inverter a marchae de apostar num mundo melhor emais saudável a legar às geraçõesfuturas. Tudo depende de nós; serealmente o quisermos.

Celebrámos recentemente oquinto aniversário da Carta Encícli-ca Laudato si’, que chama a aten-ção para o grito que chega a nósda mãe terra. Convido-vos tambéma participar no ano especial queanunciei para refletir à luz destedocumento. E, assim, todos juntos,tomar mais consciência dos cuida-dos e da proteção pela nossa casacomum, bem como dos nossos ir-mãos e irmãs mais frágeis e descar-tados da sociedade.

Por fim, encorajo-vos nesta tare-fa que assumistes, para que as vos-sas decisões e conclusões sejamsempre a favor da construção deum mundo cada vez mais habitávele de uma sociedade mais humana,na qual haja espaço para todos eninguém seja considerado a mais.

E, por favor, peço-vos que rezeispor mim. Que Jesus vos abençoe eque a Virgem Santa cuide de vós.

C o rd i a l m e n t e ,

FRANCISCO

Vaticano, 5 de junho de 2020

Há «a ação comum da Igreja», des-tinada a enfrentar as várias frentesde crise abertas pela pandemia, notrabalho que, há mais de dois meses,empenha a Comissão do Vaticanopara a Covid-19, nascida após o pe-dido do Papa Francisco — a 20 demarço passado — ao Dicastério parao serviço do desenvolvimento huma-no integral (Dsdhi) para criar umorganismo, em colaboração com ou-tras realidades da Cúria romana einstituições católicas, para expressara sua solicitude e amor por toda afamília humana face à emergênciado coronavírus, sobretudo através daanálise e reflexão acerca dos desafiossocioeconómicos e culturais do futu-ro e da proposta de orientações paraos enfrentar.

Subdividida em cinco Grupos (1,agir agora para o futuro; 2, olhar pa-ra o futuro com criatividade; 3, co-municar a esperança; 4, procurar odiálogo e reflexões comuns; 5,apoiar para preservar), a comissão eos seus objetivos foram apresentadosem 27 de março ao Papa, a quemsão chamados a prestar contas os co-ordenadores da direção única dosvários Grupos, compostos pelo car-deal Peter Kodwo Appiah Turkson,prefeito do Dsdhi; pelo secretário,monsenhor Bruno-Marie Duffé; epelo secretário adjunto, padre Au-gusto Zampini.

A partir da edição de 6 de junhoo diário “L’Osservatore Romano”começa a publicar uma série de arti-gos sobre o difícil caminho percorri-do pela Igreja para assegurar proxi-midade às mulheres e homens atin-gidos de várias formas pelo vírus.Uma narração feita através de entre-vistas, crónicas e testemunhos reco-

lhidos diretamente das pessoas — sa-cerdotes, religiosos e voluntários —em primeira linha nesta frente.

Agora o objetivo centra-se emparticular no primeiro Grupo, que —coordenado pelo Dicastério em coo-peração com a Caritas Internationa-lis — se dedica à escuta e ao apoio àsIgrejas locais, para as tornar prota-gonistas das situações em que vivem.Com o lema “Ninguém se salva sozi-nho”, ele colabora com as iniciativasde solidariedade promovidas por ou-tras entidades da Santa Sé: Esmola-ria apostólica, Pontifícias obras mis-sionárias e farmácia do Vaticano.

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número 24, terça-feira 16 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 11

INFORMAÇÕES

AudiênciasO Papa Francisco recebeu em audiên-cias particulares:

No dia 6 de junhoOs Senhores Cardeais Marc Ouellet,Prefeito da Congregação para osBispos; e Angelo Bagnasco, Admi-nistrador Apostólico de Génova(Itália), Presidente do Conselho dasConferências Episcopais da Europa(C.C.E.E.).Sua Ex.cia o Sr. Valenti Junyent Tor-ras, Presidente da Câmara Munici-pal de Manresa (Espanha), com oSéquito.

No dia 8 de junhoOs Senhores Cardeais Luis Francis-co Ladaria Ferrer, Prefeito da Con-gregação para a Doutrina da Fé; eAngelo Comastri, Arcipreste da Ba-sílica Papal de São Pedro no Vatica-no, Vigário-Geral de Sua Santidadepara a Cidade do Vaticano; D. An-drea Bellandi, Arcebispo de Salerno-Campagna-Acerno (Itália); e D. Ig-nazio Sanna, Arcebispo Emérito deOristano (Itália), Presidente da Pon-tifícia Academia de Teologia.Sua Ex.cia o Dr. Paolo Ruffini, Pre-feito do Dicastério para a Comuni-cação.

RenúnciasO Sumo Pontífice aceitou a renúncia:

A 6 de junhoDe D. Jerome Dhas Varuvel, S.D.B.,ao governo pastoral da Diocese deKuzhithurai (Índia).

A 9 de junhoDe D. Curtis J. Guillory, S.V.D., aogoverno pastoral da Diocese deBeaumont (Estados Unidos da Amé-rica).De D. Pedro Daniel Martínez Perea,ao governo pastoral da Diocese deSan Luis (Argentina).

A 10 de junhoDe D. Robert J. Carlson, ao gover-no pastoral da Arquidiocese Metro-politana de Saint Louis (EstadosUnidos da América).De D. Aloísio Jorge Pena Vitral, aogoverno pastoral da Diocese de SeteLagoas (Brasil).

NomeaçõesO Santo Padre nomeou:

No dia 5 de junhoBispo Auxiliar da Arquidiocese Me-tropolitana de La Plata (Argentina),o Rev.do Pe. Jorge Esteban Gonzá-lez, até agora Reitor da Catedral ePró-Vigário-Geral da mesma Sede,simultaneamente eleito Bispo Titularde Alesa.

D. Jorge Esteban González nasceuem La Plata, na Argentina, no dia 20de junho de 1966, e foi ordenado Sa-cerdote a 7 de dezembro de 1992.

Bispo Auxiliar da Diocese de SanCristóbal de Las Casas (México), oR e v. do Pe. Luis Manuel López Alfa-ro, até esta data Vigário-Geral damesma Sede, simultaneamente eleitoBispo Titular de Garba.

D. Luis Manuel López Alfaro nas-ceu na Cidade do México, a 21 de ju-nho de 1963, e recebeu a Ordenaçãopresbiteral no dia 15 de agosto de1991.

No dia 8 de junho

Bispo de Astorga (Espanha), D. Je-sús Fernández González, até hojeBispo Titular de Rotdon e Auxiliarde Santiago de Compostela.

No dia 9 de junho

Bispo de Beaumont (Estados Uni-dos da América), o Rev.mo Mons.David L. Toups, do clero da Diocesede Saint Petersburg, Flórida, até àpresente data Reitor do Saint Vin-cent de Paul Regional Seminary, emBoyton Beach, Flórida.

David L. Toups nasceu a 26 demarço de 1971 em Seattle, nos EstadosUnidos da América, e foi ordenado Sa-cerdote em 14 de junho de 1997.

Bispo de San Luis (Argentina), D.Gabriel Bernardo Barba, até agoraBispo de Gregorio de Laferrere.

No dia 10 de junho

Arcebispo Metropolitano de SaintLouis (Estados Unidos da América),D. Mitchell T. Rozanski, até esta da-ta Bispo de Springfield in Massa-chusetts.

Bispo de Sete Lagoas (Brasil), D.Francisco Cota de Oliveira, até hojeBispo Titular de Fiorentino e Auxi-liar de Curitiba.

Bispo Auxiliar da Arquidiocese Me-tropolitana de Baltimore, nos Esta-dos Unidos da América, o Rev.do Pe .Bruce Lewandowski, C.S S.R., Mem-bro da Província de Baltimore daCongregação do Santíssimo Reden-tor (Redentoristas), até à presentedata Delegado “ad interim” para oMinistério aos Hispânicos na mesmaSede Metropolitana e Pároco da“Sacred Heart of Jesus / SagradoCorazon de Jesus Parish” em High-landtown, Maryland, simultanea-mente eleito Bispo Titular de Croae.

D. Bruce Lewandowski, C.S S.R.,nasceu no dia 8 de junho de 1967 emToledo, Ohio (Estados Unidos daAmérica), e recebeu a Ordenação pres-biteral em 7 de maio de 1994

Prelados falecidosAdormeceu no Senhor:

A 3 de junhoD. Mario Rino Sivieri, Bispo Eméri-to da Diocese de Propriá (Brasil).

O ilustre Prelado nasceu no dia 15de abril de 1942, em Castelmassa,Diocese de Adria-Rovigo (Itália). Foiordenado Sacerdote a 3 de julho de1966 e recebeu a Ordenação episcopalem 25 de maio de 1997. Renunciou aogoverno pastoral da sua Diocese no dia25 de outubro de 2017.

Apresentado o Fundo querido pelo Papa a favor das pessoas atingidas pela crise em Roma

Restituir dignidade a famílias e trabalhadoresALESSANDRO GUA R A S C I

«Restituir dignidade às pessoas quecaíram no desânimo» e fazer «flo-rescer a solidariedade». Assim oCardeal Angelo De Donatis, Vigá-rio de Roma, resumiu os objetivosdo Fundo Jesus Divino Trabalha-dor, desejado pelo Papa Franciscopara ajudar «aqueles que correm orisco de ser excluídos da tutela ins-titucional e precisam de apoio, en-quanto não puderem caminhar denovo autonomamente». A iniciativafoi apresentada a 12 de junho, noPalácio Apostólico de Latrão, pelosupracitado cardeal, pela presidentemunicipal Virginia Raggi e peloPresidente da Região do Lázio, Ni-cola Zingaretti, que, na ocasião, as-sinaram o protocolo de entendi-mento denominado «Aliança paraRoma». Representa uma mão es-tendida para as muitas famíliasatingidas pela crise económica pro-vocada pelo coronavírus, em parti-cular para os muitos trabalhadoresque deixaram de ter rendimentos eperderam a esperança de recuperaros seus empregos. O fundo — parainiciar, um milhão de euros, tendoaderido a Região e o Municípiocom quinhentos mil euros — é uminstrumento importante, sublinhouo cardeal De Donatis, porque «nãose trata apenas de disponibilizaruma soma de dinheiro, mas de res-ponder a um verdadeiro mandato»para a comunidade cristã: «ser sal efermento na sociedade». Precisamosde um esforço de «generosidade epartilha» que tenha na «solidarie-dade» a sua palavra-chave, com a

participação de todos os cidadãos,das instituições políticas e económi-cas, do mundo do associacionismo,para que, acrescentou o cardeal, re-cordando as palavras de Francisco,«ninguém fique para trás e o vírusda indiferença não se propa-gue».Não se fala de assistencialis-mo mas de um caminho de ajuda ede proximidade, de promoção so-cial, para que todos possam serprotagonistas do renascimento dacomunidade romana. Desde a ex-plosão da pandemia, milhares depessoas pediram ajuda às paróquiase aos centros de escuta. As institui-ções intervieram com bónus, subsí-dio de desemprego e outros amorte-cedores sociais, mas a crise da Co-vid-19 teve um impacto devastador.A «Aliança para Roma» que nasceudo Fundo Jesus Divino Operárioquer, portanto, ser um instrumentopara agir de forma coordenada ecomunitária. O fundo — explicou obispo auxiliar Gianpiero Palmieri —tem como objetivo encarregar-se eacompanhar, pelo menos de mil fa-mílias, com dois tipos de interven-ção: o pagamento de uma contri-buição económica para superar afase de emergência (de 300 a 600euros por mês) e a atuação de per-cursos de aprendizagem, subven-ções de trabalho e financiamento demicro-projetos de empreendedoris-mo. Tem uma duração máxima deseis meses por beneficiário e paracada uma das medidas ativadas.

Para ter acesso a ele, é necessárioestar domiciliado no território dadiocese ou do município de Roma;não ter rendimento familiar supe-rior a 600 euros por mês, acrescido

de 100 euros por cada coabitante;estar desempregado ou ter reduzidodrasticamente as suas oportunida-des de trabalho; manifestar a vonta-de de colaborar para superar aemergência. É possível candidatar-se através das Unidades de EscutaTerritorial, cerca de noventa locali-zadas no território, onde trabalha-rão 523 voluntários. As famílias quenão puderem beneficiar do projetoserão encaminhadas para as outrasmedidas ativadas pela diocese paraa emergência Covid-19, tais como ocartão alimentar, o fundo anti-criseou o fundo anti-usura. Durante apandemia, sublinhou Virginia Rag-gi, «houve duas tendências: uma éa do egoísmo», com o compromissoprioritário de se salvaguardar; a ou-tra, «levou a ajudar os outros» emanifestou-se em muitas pequenas«experiências de partilha e solida-riedade». Uma atitude da qual éexpressão a «aliança» para a cidadedesejada pelo Papa, que exorta a«proteger e deixar florescer a se-mente da solidariedade». A seguir,o Presidente da Região, Zingaretti,recordou que a resposta à crise de-sencadeada pela pandemia «se ba-seia nos valores que nos unem, nasolidariedade e na coesão, para ga-rantir que o medo não se transfor-me em raiva e para estender a mãoa quem fica para trás». O projeto,afirmou, «ajudará muitas pessoas e,sobretudo, envolverá muitas outrasnuma competição pela solidarieda-de». A sua lógica, de facto, con-cluiu Palmieri, não é «pensar quan-to posso obter, mas quanto possopartilhar».

Page 11: Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 OL’ S S E RVATOR E ROMANO · Este duplo fruto da Eucaristia — o primeiro, a união com Cristo, e o se-gundo, a comunhão entre aqueles

página 12 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 16 de junho de 2020, número 24

Quando a oraçãoé uma luta com Deus

Apelo contra a exploração do trabalho infantil

O Pontífice falou de Jacob

C AT E Q U E S E

«Lutar com Deus» é «uma metáforada oração», afirmou o PapaFrancisco durante a audiência geralde quarta-feira, 10 de junho,realizada na Biblioteca particular doPalácio apostólico do Vaticano, sem apresença de fiéis por causa dapandemia de Covid-19. Prosseguindoo ciclo de catequeses iniciado a 6 demaio, o Pontífice falou da oração deJacob.

Amados irmãos e irmãs, bom dia!Continuemos a nossa catequese so-bre o tema da oração. O livro doGénesis, através das vicissitudes dehomens e mulheres de tempos dis-tantes, conta-nos histórias nasquais podemos refletir as nossas vi-das. No ciclo dos patriarcas, en-contramos também o de um ho-mem que tinha feito da astúcia oseu melhor talento: Jacob. A narra-ção bíblica conta-nos a difícil rela-ção que Jacob teve com o seu ir-mão Esaú. Desde crianças, houverivalidades entre eles, que nuncaforam resolvidas. Jacob é o segun-do filho, mas, com o engano, con-segue obter de seu pai Isaac a bên-ção e o dom da primogenitura (cf.Gn 25, 19-34). É apenas a primeirade uma longa série de astúcias dasquais este homem sem escrúpulos écapaz. Até o nome “Jacob” signifi-ca alguém que se move com astú-cia.

Forçado a fugir para longe doseu irmão, ele parece ter sucessoem todos os empreendimentos dasua vida. É hábil nos negócios: en-riquece muito, tornando-se o donode um enorme rebanho. Com tena-cidade e paciência consegue casarcom a mais bela das filhas de La-bão, pela qual estava verdadeira-mente apaixonado. Jacob — diría-mos com linguagem moderna — éum homem que “se fez sozinho”,com a sua perspicácia, com a astú-cia, conseguiu conquistar tudo oque quis. Mas faltava-lhe algumacoisa. Faltava-lhe a relação vivacom as próprias raízes.

E um dia sente saudades de ca-sa, da sua antiga pátria, onde aindavivia Esaú, o irmão com o qualsempre tivera péssimas relações. Ja-cob partiu e fez uma longa viagemcom uma numerosa caravana depessoas e animais, até chegar à úl-tima etapa, o rio Jaboq. Aqui o Li-vro do Génesis oferece-nos uma pá-gina memorável (cf. 32, 23-33).Diz-nos que o patriarca, depois de

ter feito todo o seu povo e gado —que era tanto — atravessar o baixio,permanece sozinho na margem es-trangeira. E pensa: o que o esperano dia seguinte? Qual será a atitu-de do seu irmão Esaú, ao qual rou-bara a primogenitura? A mente deJacob é um turbilhão de pensa-mentos... E quando anoitece, de re-pente um desconhecido apodera-sedele e começa a lutar contra ele. OCatecismo explica: «A tradição espi-ritual da Igreja divisou nesta narra-tiva o símbolo da oração comocombate da fé e vitória da perseve-rança» (CIC, 2573).

Jacob lutou até ao romper daaurora, sem nunca se libertar dasgarras do seu adversário. No final,foi derrotado, atingido pelo seu ri-val no nervo ciático, ficando aleija-do para o resto da vida. Esse mis-terioso lutador pergunta ao patriar-ca o seu nome, dizendo-lhe: «Oteu nome não será mais Jacob, masIsrael; porque combateste contraDeus e contra os homens e conse-guiste resistir!» (v. 29). Como sequisesse dizer: nunca serás o ho-mem que caminha assim, mas di-reito. Muda-lhe o nome, muda-lhea vida, muda-lhe a atitude: cha-mar-te-ás Israel. Então também Ja-cob pergunta: «Peço-te que me di-gas o teu nome». Ele não lho reve-la, mas em troca abençoa-o. E Ja-cob percebe que encontrou Deus“face a face” (cf. vv. 30-31).

Lutar com Deus: uma metáforada oração. Outras vezes, Jacob ti-nha-se mostrado capaz de dialogarcom Deus, de O sentir como umapresença amiga e próxima. Masdessa noite, através de uma lutaque durou muito tempo e que oviu quase sucumbir, o patriarcasaiu transformado. Mudança donome, mudança do modo de vivere mudança da personalidade: elesaiu transformado. Desta vez jánão é dono da situação — a sua as-túcia não serve — já não é o estra-tega nem o homem calculista;Deus o reconduz à sua verdade demortal que treme e tem medo, por-que na luta Jacob sentiu medo. Pe-la primeira vez Jacob nada maistem para apresentar a Deus a nãoser a sua fragilidade e impotência,também os seus pecados. E é esteJacob que recebe a bênção deDeus, com a qual entra coxo naterra prometida: vulnerável, e vul-nerado, mas com um coração novo.Certa vez ouvi um idoso dizer —

um bom homem, um bom cristão,mas um pecador que tinha tanta féem Deus —: “Deus me ajudará; Elenão me deixará sozinho. Entrareino paraíso a coxear, mas entrarei”.Anteriormente Jacob era um ho-mem seguro de si; ele confiava nasua própria astúcia. Era um ho-mem impermeável à graça, refratá-rio à misericórdia; não sabia o queera a misericórdia. “Aqui sou euque mando!”, pensava que não pre-cisava de misericórdia. Mas Deussalvou o que estava perdido. Ele ofez entender que era limitado, queera um pecador que precisava demisericórdia e salvou-o.

Todos nós temos um encontromarcado com Deus de noite, nanoite da nossa vida, nas muitasnoites da nossa vida: momentos es-curos, momentos de pecado, mo-mentos de desorientação. Há alium encontro com Deus, sempre.Ele nos surpreenderá quando me-nos esperamos, quando nos encon-tramos verdadeiramente sozinhos.Nessa mesma noite, lutando contrao desconhecido, tomaremos cons-ciência de que somos apenas po-bres homens — ouso dizer “infeli-zes” — mas, precisamente nessa al-tura, quando nos sentirmos “p o-bres homens”, não deveremos re-cear: porque, nesse mesmo momen-to, Deus nos dará um novo nome,que contém o sentido de toda anossa vida; Ele mudará os nossoscorações e nos dará a bênção reser-vada para aqueles que se deixamtransformar por Ele. Este é umbom convite para nos deixarmostransformar por Deus. Ele sabe co-mo fazer, porque conhece cada umde nós. “Senhor, tu conheces-me”,todos nós o podemos dizer. “Se-nhor, tu conheces-me. Transforma-me”.

Um apelo às instituições para que«concretizem todos os esforços paraproteger» as crianças foi feito peloPapa no Dia mundial contra aexploração do trabalho infantil, nofinal da catequese, que se concluiucom a recitação do Pai-Nosso e daBênção apostólica.

Na próxima sexta-feira, 12 de ju-nho, celebramos o Dia Mundialcontra a Exploração do TrabalhoInfantil, um fenómeno que privameninos e meninas da sua infânciae põe em perigo o seu desenvolvi-mento integral. Na actual situaçãode emergência de saúde, em váriospaíses, muitas crianças e jovens sãoforçados a aceitar empregos inade-quados para a sua idade, para aju-dar as suas famílias em condiçõesde extrema pobreza. Em muitos ca-sos, trata-se de formas de escravi-dão e prisão, que resultam em so-frimento físico e psicológico. Todosnós somos responsáveis por isso.Apelo às instituições para que fa-çam todos os esforços para prote-ger os menores, preenchendo as la-cunas económicas e sociais que es-tão na base da dinâmica distorcidaem que infelizmente estão envolvi-dos. As crianças são o futuro da fa-mília humana: cabe a todos nóspromover o seu crescimento, saúdee serenidade!

Saúdo os ouvintes de línguaportuguesa e convido-vos — na vi-gília da solenidade do SantíssimoCorpo e Sangue de Cristo — aolhar com confiança o vosso futuroem Deus, levando o fogo do seuamor ao mundo. Logo que vos sejapossível, voltai à adoração e à co-munhão do Corpo do Senhor naMissa de preceito. É a graça daPáscoa que frutifica na Eucaristia eque desejo abundante na vossa vi-da. Que Deus vos abençoe!

Eugène Delacroix, «A luta de Jacob com o anjo» (1854-1861)