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Sânzio de Azevedo ssor

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Sânzio de Azevedossor

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ntrevista"

Entrevista com Rafael Sânzio de Azevedo em 10/06/2008.

Alinne - Seu pai (Otacílio de Azevedo)veio de Redenção (município cearense damicrorregião do Maciço de Baturité, situadoa 63 km da Capital) para morar em Fortalezaaos 18 anos. Por aqui sua família morou emvárias casas diferentes. Passou pelo castelodo arquiteto Emílio Hinko, por uma casa naRocha Lima (rua do Centro) até que se esta-beleceu na rua Jaime Benévolo (situada nobairro José Bonifácio, próximo ao Centro deFortaleza). Qual foi a recordação mais sig-nificativa que você guardou desses locaisonde passou a infância?

Sânzio - Bom, a data mais significativamesmo é difícil. Agora eu achei interessan-te você ter assinalado exatamente as casasonde eu morei - você olhou pela data (ri-sos). Eu nasci mesmo foi aqui perto da Uni-versidade, numa rua que se chamava rua daBotija. Era chamado Prado, aqui o bairro,mas eu não me lembro de nada. É incríveleu me lembrar de quando eu tinha três (falacom ênfase) anos. Isso eu tenho certeza.Tenho certeza porque quando eu morei naAldeota (bairro de Fortaleza) - não que agente fosse rico -, nós morávamos numacasa do (arquiteto húngaro) Emílio Hinko.Meu pai tomava conta das casas dele. OEmílio Hinko era casado com a Pierina, donado Excelsior Hotel (localizado na Praça doFerreira, foi inaugurado em 7932 e foi consi-derado na época o primeiro arranha-céu deFortaleza, com sete andares), viúva do Plá-cido, aquele Plácido do castelo que demoli-ram (Plácido de Carvalho, primeiro maridode Pierina, para quem construiu um castelono quarteirão onde hoje se situa o Centrode Artesanato do Ceará - Ceart - na PraçaLuiza Távora), porque aqui no Ceará tudo sebota abaixo.

Então, lá na Aldeota, nós morávamosnuma casa cujo muro dava para a (rua) Cos-ta Barros. Vejam vocês como eu sou anti-go ... Eu me lembro muito bem, é uma coisamarcante, de uma boiada passando numarua cheia de areia, e a minha irmã Consuelome pôs no braço - eu muito pequeno - paraeu ver os bois passando. Nisso um dos boisvirou os chifres para um lado do muro eeu quase caía de medo. Eu acho que é porisso (que) até hoje eu tenho medo de boi evaca. Depois eu conversando com a minhamãe, ela me disse: "Era a rua Costa Barros".Então você imagine: a rua Costa Barros era

areia passando boiada (hoje é das ruas maismovimentadas da Aldeota). Depois fomospara a Rocha Lima. Justamente ... em 42 euestava na Rocha Lima. Nasci em 38, em 42eu completei quatro anos na Rocha Lima.

É claro que o mais marcante para mimvai ser a Jaime Benévolo, porque eu fui comcinco anos para essa rua, número 757, ondehoje mora minha irmã. E todas as minhaslembranças da infância, as maiores lem-branças, são dessa rua - que era areia. Nãotinha energia elétrica, era na base da lampa-rina. Depois eu vi quando calçaram a rua etudo. E o tempo foi passando.

Havia circos. Havia um terreno perto láde casa, onde de tempos a tempos vinha oCirco Boa Noite (fala com ênfase), o CircoBelas Artes, o Circo Alegria, ou então quer-messes. E aí eu entrei até pela adolescência.Havia umas quermesses ... (Havia) uns par-ques com as "irradiadoras" (espécie de ser-viços de altofalantes que permitiam a trocaanônima de mensagens) com aquelas mú-sicas. Então nesse tempo, com 17 anos, eutomava assim umas canas, uma cachaças, eficava apaixonado por uma moça, ficava bo-tando todo tempo um disco do Nelson Gon-çalves (um dos maiores cantores de músi-cas românticas do Brasil, é intérprete de Avolta do boêmio), morto de bêbado juntocom um amigo. Então isso a gente não es-quece nunca (risos). Justamente, o que memarcou mais foi a Jaime Benévolo mesmo.Eu vivi lá praticamente de 1943 a 1972.

Lucíola - Sânzio, você nasceu em ummeio artístico: sua mãe era retocadora defotos e seu pai, além de ser poeta autodida-ta e pintor, era fotógrafo. Em que momentoda sua infância você se deu conta de queseu pai era um poeta?

Sânzio - Não é fácil responder isso, não.Eu me lembro de que - parece-me - quandoele publicou em 44 o poema Redenção ... Erauma plaqueta, um opúsculo (pequena obraescrita). Eu lembro que eu gostava muitodesse poema. Eu comecei a ler e achar bo-nitos aqueles versos. Eu tenho a impressãode que foi aí que comecei, ainda menino,a ver que papai era um poeta. Os quadrosentão ... Sempre. Sempre vi meu pai pintare achava aquilo muito bonito. Agora, é umacoisa curiosa, não sei se eu falei isso naqueledia (refere-se à pré-entrevista), mas quandoeu entrei na Academia Cearense de Letras,

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Antes que o semestrecomeçasse, Sânzio mi-nistrou um curso sobrePadaria Espiritual no Cen-tro Cultural do Banco doNordeste. Thiago e Lucíolaestiveram presentes.

Na fase inicial da dis-ciplina de Laboratório deJornalismo Impresso, oscandidatos a entrevistadossão indicados pelos pró-prios alunos e submetidosa uma votação.

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No dia da escolha, Lu-cio Ia tinha na lista cincoautores cearenses: PedroSalgueiro, Henrique Bel-trão, Ana Miranda, Abelar-do Montenegro e Sãnziode Azevedo.

Thiago, entretanto, tevea fala requisitada antes dadela e, coincidentemente,indicou o nome do poeta.Até hoje ela reclama a co-autoria da indicação.

no discurso (de posse), eu disse uma coisaque parece retórica, e é - mas tem muito deverdade. Eu disse que cresci entre um poe-ta que ouvia estrelas, alusão ao Bilac (OlavoBilac, cronista, contista e poeta parnasianocujo texto mais famoso é o soneto X/// deVia Láctea); e um astrônomo que observavaas estrelas, o Rubens, meu irmão mais ve-lho: Rubens de Azevedo, que é o nome doplanetário do Dragão do Mar (Centro Dra-gão do Mar de Arte e Cultura, um dos prin-cipais equipamentos culturais do .Çeará).Então, engraçado, eu acho, eu tenho quasecerteza de que eu tive uma influência muitoforte da poesia de papai e da ciência do meuirmão. Tanto assim que meu primeiro livrose chama A Terra antes do homem. É sobreanimais pré-históricos, dinossauros - nãoé um livro de poemas. Quase todo mundoinicia a sua obra por um livro de poemas.Eu não. Eu já fazia uns poemas, muito ruins(risos) aqui em Fortaleza, quando eu fui paraSão Paulo.

Thiago - Ainda a respeito do seu pai, elese define, numa gravação que nós ouvimosdo Museu Fonográfico do Ceará (iniciadocom acervo de áudios, em 1958, hoje levao nome de Arquivo Nirez, apelido de MiguelÂngelo de Azevedo, irmão de Sânzio) comopoeta parnasiano-simbolista. Além do gostode estudar Parnasianismo e o Simbolismo,o que mais ficou de Otacílio em Sânzio?

Sânzio - (Pausa) Olha, eu tenho a impres-são de que meu pai me influenciou muito,não só sobre o Parnasianismo e o Simbolis-mo, mas sobre a Literatura Cearense. Quan-do eu fui no fim de 59 para São Paulo, eu mesenti completamente deslocado, morrendode saudade do Ceará. Porque São Paulo émuito diferente. Se eu tivesse ido para oRio, eu acho que eu tinha ficado lá. Me des-culpe se tiver algum paulista aqui, mas SãoPaulo é muito diferente. Parece que se estána Europa (risos). E aquele frio ... Eu gostavado frio ... Mas eu digo a paisagem ... Eu ti-nha uma saudade, eu sentia uma falta muito

"Cresci entre umpoeta que ouvia es-trelas (...) e um as-

trônomo que obser-vava as estrelas, oRubens, meu irmão

mais velho"

grande do Ceará. E meu pai me mandavalivros cearenses. Mandava do Dolor Barreira(jurista, historiador, professor e ensaísta. Éautor da obra de quatro volumes História daLiteratura Cearense, publicados entre 1948 e1962)... E o Carlyle Martins (promotor e juizem diversas cidades cearenses, escreveu li-vros de poesia, biografia, ensaio e ficção),que era poeta parnasiano, amigo do meu paie meu também. Carlyle Martins também memandava livros de poetas brasileiros, masmuitos livros do Ceará. E ocorreu que emuma ocasião (pausa), eu morava em SantoAmaro (bairro da zona sul de São Paulo). Eumorei em muitos lugares em São Paulo.

Fui morar em Santo Amaro e eu tinha umamigo carteiro, chamado Floreal d'Amore -era paulista mesmo, apesar do nome. Nes-se tempo eu estava desempregado e ele medisse: "Quer ir comigo distribuir cartas?" Elesabia que eu gostava de poesia e quandochegou numa casa ele disse para o mora-dor: "Quem é o poeta de Santo Amaro?" Omorador disse: "Paulo Eiró!" E começou adeclamar versos de Paulo Eiró. Ora, PauloEiró era poeta romântico que morreu louco.Eu achei aquilo tão interessante, tão bonitoo cidadão conhecer o poeta da sua terra ecomecei a me lembrar do Ceará, onde nin-guém conhecia - nem conhece - (risos) osescritores da terra. Eu dou aula de Literatu-ra Cearense e de vez em quando eu estoucitando uns nomes que ninguém conhece.Muitas vezes alguém diz: "Ah, a rua onde eumoro" (risos).

Então (risos), quando voltei para o Ce-ará, voltei com a firme decisão de estudare divulgar a Literatura Cearense. Quer di-zer, meu pai (também) influenciou bastantenessa decisão. Quando eu voltei, eu tive asorte de trabalhar na Casa de José de Alen-car (local onde nasceu o escritor cearense,hoje tombado pelo Instituto do Patrimô-nio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN,é instituição cultural ligada à UFC) com odoutor Martins Filho (Antônio Martins Filho,cearense do Crato, foi o primeiro reitor daUniversidade Federal do Ceará, fundada em1954), de quem eu cheguei a ser amigo ... Agente conversava muito e ele me incentivoua fazer uns opúsculos: A Padaria Espiritual,A Academia Francesa do Ceará e O CentroLiterário, (publicados respectivamente em)1970, 71 e 72 (três principais agremiaçõesculturais do Ceará do século XIX. Na tese dedoutorado, defendida em 1980, Sânzio vol-taria a tratar da Padaria Espiritual para falardo surgimento do Simbolismo no Ceará).

Thiago - Você fala da influência na litera-tura. Mas e os ensinamentos de pai, o quemais o marcou?

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Sânzio - É meio difícil de eu dizer, por-que meu pai não era muito de ensinar, não(risos). Ele deixava a coisa fluir naturalmen-te. Agora, o que meu pai fazia era me im-pressionar ... Ele me fez desenvolver o meuouvido. Eu dou até aula de Teoria do Versoe tenho um livro: Para uma teoria do verso.

Isso aí eu devo ao meu pai, sem ele que-rer. Porque eu tinha a mania, quando eu ti-nha tempo, de pegar livros de poemas e ficarlendo para ele, lendo alto. E ele achava umabeleza, dizia: "Bonito!". Ele tinha uma pre-venção contra o modernismo - confesso queeu tinha no começo um pouco, depois fui ...

De vez em quando eu pegava um poe-ma de Fernando Pessoa (poeta modernistaportuguês, considerado um dos maiorespoetas da língua portuguesa, autor de Men-sagem). lia para ele, ele dizia: "Bonito!", eeu dizia: "Pois é o Fernando Pessoa" (risos).Ele gostava mesmo era do Bilac. Então euquero dizer: esse negócio de eu ler os po-emas me acostumou muito o ouvido. Tantoque hoje você diz um poema para mim e eudigo logo quantas sílabas tem o verso semprecisar estar contando.

Meu pai contava que conheceu um po-eta, Raimundo Varão, um poeta estranho,que tinha seis dedos em cada mão. Meu paicomeçou a fazer versos contando nos de-dos. Não sei se era porque Raimundo Varãotinha seis dedos ... Ele chamava meu pai de"Seu Oton": "Seu Oton, desgraçado do po-eta que conta as sílabas nos dedos!"

Outra coisa interessante do meu pai foieu ver como ele fazia os poemas. Porqueum dia, lá em casa, eu me sentei à mesa, pe-guei papel e caneta, lápis e borracha, e dis-se para ele: "Vou escrever um soneto sobreFortaleza." Papai olhou assim e disse: "Ah!Se eu me sentar para escrever, não escrevocoisa nenhuma." E ficou andando do quintalpara a porta da rua. Todo o tempo andando,andando, andando ... E eu lá sabia o que eletava fazendo! Eu quebrando a cabeça parafazer o soneto e não saía nada. Quando foidaí a um pedaço ele pegou um papel, escre-veu e me deu. Era um soneto que ele tinhafeito sobre Fortaleza: "Ainda contemplo, óloura Fortaleza/ no sorriso de sol que oradesatas/ a antiga Canaã num sonho presa/ao choro dos violões das serenatas." E ter-minava dizendo: "E onde cabelos a revoar,dispersos/ eu escrevia os meus primeirosversos/ ao rosário de luz dos combustores."Eu rasguei o meu e desisti (risos). Eu apren-di muito com ele a maneira de compor ascoisas. Eu vi que não tem nada a ver comporum poema assim como quem faz um ofício.

Diego - Sânzio, você acabou de falar dasua relação com seu pai, seu Otacílio. Como

era a relação do senhor com a sua mãe? Osenhor escreveu um soneto para ela, "A mi-nha mãe", do livro Cantos da Longa Ausên-cia (primeiro livro de poemas; no soneto Aminha mãe, Sânzio escreve: "és tu, apenas,quem me entende as dores").

Sânzio - Mas pode me chamar de vocêmesmo. É o seguinte. A minha relação coma mamãe era a mais estreita e carinhosapossível. Eu sou o mais novo - ou o menosvelho. Mamãe (risos) quase morreu quan-do eu viajei. Ela passou o ano de 63 lá emSão Paulo (quando Sânzio morava lá) e de-pois voltou. Quando eu voltei, em 65, só apasseio, eu voltei pela cidade, mas princi-palmente pela minha mãe. Mamãe ficou tãoabalada com o fato de eu ter que ir emborade novo que daí um ano eu voltava definiti-vamente. Eu era louco pela minha mãe.

Isabele - O menino Rafael já tinha gostopela leitura. Aos oito anos, você ganhou do ir-mão Rubens um exemplar de Viagem à Auro-ra do Mundo, de Erico Verissimo (romancistae tradutor gaúcho, autor de Olhai os lírios doscampos e Música ao longe. Viajou por diver-sos países divulgando a cultura e a literaturabrasileiras). O que você viu no livro de maisinteressante para escrever ao autor?

Sânzio - Foi com nove anos. Na verdade,nesse tempo, o meu irmão Rubens já me ti-nha dado umas páginas de uma revista - nãolembro nem que revista era - com uns ani-mais pré-históricos. Eu já estava interessadopor negócio de animais pré-históricos. Quan-do o Rubens me deu esse livro, Viagem à Au-rora do Mundo, eu li de ponta a ponta.

Eu li o romance, mas, acima de tudo, oque me interessou foi a Paleontologia, por-que era a história de um cientista que con-seguia captar numa televisão imagens dopassado. E apareciam uns animais. Eu fiqueitão encantado com um monte de animaisque eu nem conhecia, que ... Então eu ditei(a carta) para a minha irmã (Maria Consue-10) - porque até hoje minha letra é péssima,imagine quando eu tinha nove anos. Minhairmã escreveu a carta: "Gostei muito do seulivro. Conheci os animais tais". E ainda tive aaudácia de mandar um desenho, um dinos-sauro desenhado por mim (risos).

"Eu vi que não temnada a ver compor.um poema assim

como quem faz umofício"

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Alinne conheceu a his-tória de vida de Sânzio naQuarta literária, evento re-alizado no Dragão do Mar.No dia seguinte, muito em-polgada com a entrevista,ela repetia saltitante: "Quepersonagem! n

Alguns colegas não co-nheciam Sânzio. No inter-valo de uma aula, no tra-dicional ponto de tapiocada rua Juvenal Galeno, elepassou em seu carro. "Aliestá o nosso entrevista-do", apresentou Thiago.

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Ao convidarmos Sânziopara ser entrevistado paraa nossa revista, ele comen-tou que conhecia o proje-to, mencionando a edição(nº 2) em que o contistacearense Moreira Camposfora entrevistado.

Ele disse que tinha tem-po disponível naquele mo-mento e perguntou se aentrevista seria ali, na salade aula onde estávamos.Explicamos que a entre-vista só seria em algunsmeses, depois de longapesquisa.

Eu já tinha esquecido (quando) eu re-cebo depois a carta do Erico Verissimo:"Recebi sua carta e o admirável desenho ...Quando eu terminar um romanção grandeque eu estou escrevendo - que era O tem-po e o vento (obra dividida em duas partes,cada uma com dois volumes) -, voltarei aescrever obras de Geologia e Paleontologia.É bom que você seja um geólogo ou um pa-leontólogo. Isso é bom, porque não temosmuitos no Brasil". E terminava dizendo que,no ano seguinte, em 48, ele iria passar aquiem Fortaleza e, na certa, iria me encontrar. Edizia: "Receba um abraço de quem já é seuamigo". Ah! Meu pai espalhou essa carta,botou no jornal. .. Um retrato meu ridículo,vestido de marinheiro (risos). E o pior nãoé isso! O Costa (José Raymundo Costa) doO Povo /jornal cearense fundado por Demó-crito Rocha em 1928), tudo que era relativoa mim ele botava lá. Recentemente, em 98,quando (a primeira publicação da matéria)fez 50 anos (há uma sessão publicada dia-riamente no jornal que traz resumo do quefoi notícia em outras décadas), botou lá:"Há 50 anos: Sânzio de Azevedo recebe car-ta de Erico Verissimo". E botou o retrato demarinheiro (risos). Olha que vergonha! Nes-se tempo eu já (risos) tocava violão com osamigos e todo mundo deu notícia: "Rapaz,você saiu no jornal!"

Alinne - E dois anos depois, ele (Erico)veio aqui para o Ibeu (Instituto Brasil - Esta-dos-Unidos). E aí, como foi?

Sânzio - Ah, sim! Ele veio para o Ibeufazer uma conferência. Nesse ínterim, meupai saiu mostrando a todo mundo essa car-ta, mostrou ao doutor Silvinha, cearense,amigo de infância do papai que se formouem Medicina e foi para o Rio Grande do Sulclinicar em Roca Sales (cidade gaúcha). Eleera amigo do Erico Verissimo. E quando ele(Silvinha) esteve lá em casa, disse: "Olha acarta do Erico Verissimo! Erico é meu ami-go! Vamos tirar um retrato aqui!" Arranjouum grupo: eu, segurando um quadro dopapai, papai, mamãe, não sei quem, minhairmã, eu acho ... Eu sei que ele tirou o retratoe levou para o Erico Verissimo. O pior foi avergonha que eu passei depois. Quando fui

levar o livro para o Erico Verissimo pôr a as-sinatura, eu pus a carta dentro. Quando eleabriu, viu a carta, olhou para mim e disse:"E como vai aquela família?". Eu fiquei frio.Eu não me lembrava. Eu fiquei frio e pensei:"Ele deve estar me confundindo com outrapessoa". Eu disse: "Que família?". "Aquela,do retrato do Silvinha." Até hoje eu pensonisso: um homem internacional como o Eri-co Verissimo, vivia nos Estados Unidos, co-nhecia muita gente, se lembrar de um pau-de-arara aqui do Ceará! Só pode ter sidoporque eu devo ter sido o único meninoque escreveu a respeito de Viagem à Auro-ra do Mundo. Porque ele escreveu Tibicue-ra (As aventuras de Tibicuera, publicado em1937), que é um livro infantil, e deve ter re-cebido uma dezena de cartas (de crianças),ou mais. Mas (Viagem à) Aurora do Mundo,acho que o único menino que manifestouinteresse fui eu. É a única explicação que euencontro para ele ter lembrado.

Edwirges - A sua irmã Consuelo falouque, quando você era criança, gostava muitode desenhar. Desenhava até mesmo à noiteà luz de lamparina. O que você desenhava ecomo surgiu esse gosto por desenhar?

Sânzio - Olha, na verdade, eu acreditoum pouco na hereditariedade. Papai era pin-tor e desenhista. Nós todos desenhamos.Bem ou mal, nós todos desenhamos. Todosnós temos essa mania. Inclusive fazíamoshistórias em quadrinhos. Eu gostava mui-to de gibi. Aliás, eu fico furioso ainda hojequando eu vejo alguém falar mal de históriaem quadrinhos, dizendo que, como amigosmeus ... Até a Rachei de Oueiroz (romancis-ta, cronista, é autora de O Quinze), chegoua escrever contra a história em quadrinhos,"porque isso tira o gosto da leitura". Ne-gativo! Lá em casa todo mundo lê e nós,quando éramos meninos, todos lemos gibi,aquelas aventuras ... Eu era louco por histó-ria em quadrinhos.

Eu inventava meus personagens tam-bém. O tempo da minha infância era o tem-po dos filmes de faroeste, que hoje quasenão tem. Mas havia uns faroestes no CineMajestic ... (inaugurado em 1917, era a maisimportante sala de exibição de filmes deFortaleza na primeira metade do séculoXX). Depois eu descobri que esses faroes-tes vinham com um atraso muito grande.Porque perto dos anos 50 eu assistia aosfilmes de Johnny Mack Brown. Esse JohnnyMack Brown foi um caubói em 36, 37, poraí. Eu cheguei a assistir a um seriado, O Úl-timo dos Moicanos, (série norte-americanade 1932) com Harry Carrey (ator de filmesde faroeste nascido em 1878 e morto em1947). Harry Carrey é "do tempo do ronca"!

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Até porque era mudo ... Esses seriados erammudos e apareciam aqueles letreiros. Paravocês verem como a coisa era defasada.

Sim, uma coisa curiosa. Se eu fosse umartista plástico, isso que vou contar seria in-teressante. Eu merendava no Instituto Wal-demar Falcão, de saudosa memória, que eraali onde hoje é a praça do BNB (Banco doNordeste do Brasil), na esquina da Floria-no Peixoto com Pedra I (ruas do Centro deFortaleza). Era o Instituto Waldemar Falcão,onde eu fiz o curso primário, alguns anosdo curso primário. Eu lembro que eu nãotinha um tostão para merendar e começa-va a desenhar. Chegava um colega: "Dese-nha o Bill Elliot (ator de faroeste conhecidocomo Wild Bill)." "Desenha o Durango Kid(coubói justiceiro da série de TV americanaque levava seu nome)", que era (interpreta-do pelo) Charles Starett. "Desenha o RockyLane (nome do famoso caubói interpretadopor Harry Leonard Albershart)." E por aí ia.Todos os caubóis da época. A gente chama-va "roquelane" mesmo (fala numa pronún-cia aportuguesada) (risos).

Eles me pagavam um, dois tostões pelosdesenhos. Eu juntava e merendava. Eu ga-nhei dinheiro com muito desenho. Depois,eu passei a fazer rótulos de bebidas: decachaça, de vinho, de conhaque. Aí evoluíe, quando fui para São Paulo, trabalhei naAdesite, uma fábrica daquelas fitas adesi-vas, fazendo desenho. Eu fazia o desenho,reduziam e faziam um "clichezinho" (c/ichê éa placa gravada para impressão de imagense textos por meio de prensa tipográfica) deborracha. Eu cheguei a São Paulo como de-senhista, depois é que virei revisor.

Ivna - Como professor você é brincalhãoem sala de aula e aqui mesmo já percebe-mos que você gosta de contar coisas engra-çadas. E, como estudante, você foi aluno doseu próprio irmão, Rubens. Você mantinhaesse espírito de brincadeira?

Sânzio - (Como) aluno do Rubens?Ivna - Sim.Sânzio - Não ... Nas aulas do Rubens eu

ficava meio calado (risos). Ele era professorde Geografia. Mas a gente fazia muita palha-çada no (Colégio) Agapito dos Santos. Elefoi meu professor ali quando eu estudavade dia, de manhã. Depois eu passei para anoite só para não "fazer a farda". Tinha umafarda ridícula e eu nunca ...

Thiago - ... Tinha que usar a farda?Sânzio - Era. Quem estudava de dia ti-

nha que usar a farda. Era um negócio as-sim meio cinza e a calça marrom com umassandálias de franciscanos - tinha uma coisaque "puxava a São Francisco". E eu passeipara a noite só para não "fazer essa farda",

foi! (risos) E à noite eu fui colega do HeitorFaria Guilherme (jornalista e professor apo-sentado da UFC, primeiro chefe do Depar-tamento de Comunicação Social da UFC). Agente chamava Heitor. Inclusive, o Amaral,Roberto Amaral (ministro de Ciência e Tec-nologia do primeiro mandato de Lula), quefoi nosso colega também, um dia desses eledisse para o Faria Guilherme: "Vocês todosmudaram de nome! O Rafael virou Sânzio ...Você, que é Heitor, virou Faria ..." Inda temum que não foi nosso colega lá, que erao Jáder, Jáder de Carvalho Nogueira, quevirou Carvalho Nogueira (sobrinho do jor-nalista Jáder de Carvalho). Então a gentebrincava muito e depois teve uma coisa - aíeu não posso omitir porque é a verdade. Agente saía para beber no bar do Vieira, na(hoje avenida) Domingos Olímpio, e a genteenchia a cara! Então, numa ocasião ...

Thiago - ... Isso no primário?Sânzio - Não. No ginásio. Então eu esta-

va com o Faria Guilherme e mais um boca-do de colegas. Tinha um Moreira - que era omais doido de todos - e era ele quem levavaa gente para a perdição (risos). A gente tavaenchendo a cara (fala com ênfase) lá, quandoparou a caminhonete do Agapito dos Santos.Estava o Lauro de Oliveira Lima (estudioso dePiaget, um dos donos do ginásio Agapito dosSantos), que era o diretor, e o Luís EdgardCartaxo de Arruda, que foi meu professor deHistória - gostava muito. dele. Os dois olha-ram e saíram contando e anotando quem era(que estava no bar) para suspender.

Acontece que nós tínhamos um jornalzi-nho, e eu caricaturei os dois. Eu fiz o retratodo pessoal "tudo bebo", bebendo, e lá nacaminhonete o Lauro, que estava semprecom a barba por fazer, eu desenhei a bar-ba dele assim (faz gesto mostrando que abarba era rala), e o Cartaxo. Mas eles riramtanto que ninguém sofreu nada. Toda horao Lauro chamava o pessoal para mostrar odesenho (risos). Eles acharam foi bom. En-tão eu já livrei a turma pelo menos com essedesenho. Meus desenhos serviram para al-guma coisa.

Isabele - Você fala sobre os filmes de fa-roeste. Ainda hoje, você gosta?

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Depois do convite, Sân-zio telefonou para Thiagodizendo que queria enviaruma miscelânea para nosajudar com a produção,pasta em que guardava asmatérias de jornais e revis-tas sobre ele.

No jargão jornalístico,essa miscelânea é chama-da clipping. Dirimidas asdiferenças terminológicas,Sânzio fez questão de en-viá-Ia por correio com umacarta escrita à mão agrade-cendo o convite.

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Os Departamentos deLetras e Comunicação daUFC são separados ape-nas por uma avenida, masThiago, empolgado por re-ceber carta de Sânzio, nãocontestou. A correspon-dência chegou em 10 dias.

A idéia inicial era fazera entrevista na casa deSânzio, mas ele não topou.Disse que a casa era pe-quena, o gabinete era me-nor ainda e não iam caber18 pessoas.

Sânzio - Ainda hoje. Ainda hoje. Quan-do eu posso, eu adquiro. Até filmes atuais,como aquele: Os imperdoáveis, de ClintEastwood (cineasta e ator norte-americano)eu fiz questão de comprar.

Isabele - O que o atrai nesses filmes?Sânzio - Bom, é difícil de explicar. É uma

fidelidade muito grande, porque desde me-nino eu gosto de filmes de faroeste, nuncadeixei de gostar. Eu gosto do enredo, eu seilá porquê ... Não sei dizer, não. Inclusive háum contraste muito grande ... Eu tenho ami-gos que têm horror aos Estados Unidos epor isso têm horror até à Língua Inglesa. Eunão sou assim, não. Eu não gosto do GeorgeBush (atual presidente dos Estados Unidos),mas não é por isso que eu vou detestar a Lín-gua Inglesa, muito menos a cultura inglesa.

Eu sou louco pelojazz antigo, o earlyjazz,o jazz dos anos 20. Eu tenho vários discos ...Todo mundo que gosta de jazz tem horrora Paul Whiteman porque ele era do famosojazz sinfônico, diziam que ele era picareta. Eusei que só falam em Duke Ellington (EdwardKennedy El/ington, músico americano, rece-beu o apelido de 'duque' por sua maneiraelegante de se vestir), em Louis Armstrong(músico de jazz mais conhecido do públicoem todo o mundo. Foi chamado de "a per-sonificação do jezz"), mas o Paul Whitemané esquecido, apesar de na orquestra deleter tocado o Bix Beiderbecke, que é um dosmaiores pistonistas. Duke Ellington, JellyRoll Morton (auto-intitulava-se o "inventordo jezz". Ajudou a estabelecer padrões parao estilo e foi o primeiro músico a transcre-ver suas inovações para as partituras) ...Esse pessoal eu gosto muito. Então é isso.O faroeste eu não sei explicar por que eugosto não. Mas eu gosto muito do gênerofaroeste. Gosto também do filme histórico,tipo Ben-Hur (filme épico de 1959 premiadocom 11 Oscars e baseado no romance donorte-americano Le.w Wallace), EI Cid (filmeépico de 1961 ambientado na Espanha doséculo XI), ou coisa que o valha ... Os DezMandamentos, aquele do Cecil B. DeMille(um dos mais bem sucedidos diretores dahistória de Hollywood. Dirigiu também o fil-me Cleópatra). Eu gosto desse gênero.

Thiago - Ainda nessa época da infância,do menino Rafael, como a sua irmã aindahoje chama o senhor ... Ela nos contou queumas das maiores diversões de vocês erabrincar com um gramofone.

Sânzio - Era.Thiago - Como foi a chegada desse ob-

jeto na família de vocês? Um objeto que, naépoca, já era antigo?

Sânzio - Se eu não estou enganado, se aminha memória não falha, a gente chamava

"rnirafone", Eu nunca vi esse nome na mi-nha vida, o nome é gramofone (aparelho dereprodução fonográfica). Me parece que ogramofone é anterior a mim, pelo menos àminha inteligência. Porque parece que essegramofone apareceu na Aldeota, na casa doEmílio Hinko, e com alguns discos de cera.A corda quebrou, mas tinha um negóciochamado "borboleta" que não deixava de-sandar, que marcava o ritmo mesmo. E eu,quando era menino, bem pequeno, quatroanos, eu botava os discos e ficava rodandocom a mão esquerda. E dizem - não que-ro me elogiar não -, mas diziam minha mãee minha irmã que eu tinha muito ritmo. Eos discos eram de Carmen Miranda (atriz,dançarina e cantora. Foi a artista brasilei-ra que alcançou maior sucesso nos EstadosUnidos). É a mesma coisa da história doscaubóis. É tudo anterior ao meu nascimen-to. Era disco do Almirante (Henrique ForeisDomingues Almirante, cantor, radialista epesquisador de música popular brasileira)de 1934, disco de Carmen Miranda, de Car-los Galhardo (cantor popular nas décadasde 1940 e 1950, era conhecido como "0 Reida Valsa"), por aí assim. Então esse gostomeu ainda hoje por música desse tempo,música antiga, vem um bocado daí.

Alinne - Na sua adolescência, o point era aPraça Coração de Jesus (tradicional praça doCentro da cidade). Lá você teve contato comjovens escritores e jornalistas. Como era?Como foi seu contato com essas pessoas?

Sânzio - A Praça do Coração de Jesus,realmente, quem se encontrava ... Essa tur-minha já se conhecia doutros locais. O Car-valho Nogueira - que é o Jáder de CarvalhoNogueira - me foi apresentado umas três ve-zes pelo Faria Guilherme, lá no Agapito dosSantos. E depois seria um grande (fala comênfase) amigo meu. Morreu relativamentehá pouco tempo (2001). E nessa história dePraça Coração de Jesus, era o Heitor FariaGuilherme, o César Coelho, e outros mais.

Nós inventamos - nós inventamos, não,já existia - a Academia dos Novos, que sereunia na Casa de Juvenal Galeno (criadaem 1936, é um importante salão de encon-tro de artistas cearenses. Ainda hoje funcio-na na rua General Sampaio, 1128, mesmolocal onde nasceu o poeta que dá nome àinstituição). E eu entrei de gaiato nessa Aca-demia dos Novos, que já tinha publicadouma antologia, mas depois que eu entrei jáestava meio decadente (a Academia). Aí erao Roberto Amaral, o José Freire de Freitas,Ribamar Lopes (poeta maranhense, folc/o-ris ta e estudioso de cordel) - que morreurecentemente, era meu amigo, colega dessaépoca -, Osíris do Nordeste - era um músi-

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o maranhense. A gente ia para a Praça do=erreira e ficava dizendo poemas lá.

Nessa Academia dos Novos, eu era se-cretário, pegava o livro de atas e ia para aCasa de Juvenal Galeno. Estava lá a doutoraHenriqueta Galeno (filha do poeta JuvenalGaleno, ocupou, na Academia Cearense deLetras, a cadeira que pertenceu ao pai). Issonos anos 50. Eu chegava lá e ficava conver-sando com a doutora Henriqueta e não apa-recia ninguém. A doutora Henriqueta faziaera rir: "Mas seus amigos não vieram, não?"Eu sei que eu fui uns três sábados e não foininguém, aí acabou-se a Academia (risos).A Academia dos Novos morreu.

Alinne - Você escreveu no livro Cantosda Longa Ausência o poema "Serenatas deFortaleza". E nele você descreve as serena-tas de forma muito emocionante. Ouais fo-ram as serenatas mais marcantes?

Sânzio - Olha, é o seguinte, quando eunão sabia tocar violão nem nada, fiz váriasserenatas com um amigo chamado JoséMarçal, muito mais velho do que eu. A irmãdele me ensinou as primeiras músicas. Eufazia as serenatas, eu era metido a cantor.Depois que eu descobri que eu não tinhavoz ... E, quando eu voltei de São Paulo, euainda fiz serenatas. O mais estranho é queEdigar de Alencar (teatrólogo, poeta, ensa-ísta e considerado um dos maiores especia-listas em Carnaval' do Brasil) - outro amigomeu antigo, nascido em 1901 e falecido em1993 - escreveu sobre o meu livro dizen-do: "Sânzio de Azevedo fala das serenatas.Naturalmente só de imaginar, porque nuncaviu uma serenata". Rapaz, isso não é verda-de (risos). Eu ia falar sobre uma coisa queeu não vi? Eu fiz serenata muito, fiz demais!

O final do poema, aí sim eu sou obrigadoa dizer que eu gosto do final desse poema.Quando eu digo: "E ainda embriagado desons/ muitas vezes julguei caírem-me dosombros/ uns restos de luar ...rr Não deixa deter sido um achado na época (risos).

Alinne - Teve alguma reação positiva dealguma pretendente? Ou algum pai saiu cor-rendo atrás de vocês?

Sânzio - Nunca ninguém tomou nem co-nhecimento das minhas serenatas (risos).A gente tocava ou cantava, nem ninguémabria as janelas, nem agradecia, nem falavamal, graças a Deus.

Lucíola - Apesar de ser filho de um gran-de poeta, você costuma dizer que sua maiorinfluência para começar a escrever não veiopropriamente dele, mas sim desses amigoscom quem você se encontrava na Praça Co-ração de Jesus ...

Sânzio - (Interrompendo) É curioso, isso.Realmente eu via papai escrever e achava

que estava longe de ser poeta: "Que ne-gócio de poesia, que nada!" Mas aconteceque, nos primeiros amooores ... O CarvalhoNogueira, principalmente, me mostrava unspoemas. Engraçado a relatividade do tem-po. Ele me mostrava e dizia: "Olha essepoema aqui, eu fiz faz três anos". Três anospara mim era coisa do outro mundo. Eu di-zia: "Quando eu vou ter um poema que terátrês anos de idade?"

Então eu comecei a escrever umas bes-teiras lá. E tinha o jornal do Jáder de Carva-lho (jornalista e escritor, fundou, na décadade 20, os jornais A Esquerda e O Combate)ali na Tristão Gonçalves (avenida do Cen-tro de Fortaleza), que era o Diário do Povo(fundado em 1947, caracterizou-se pelo ca-ráter libertário de sua linha editorial). Aliás,eu pensei que tinha publicado o primeirosoneto no Diário do Povo. Depois eu des-cobri que meu pai tinha levado um para ojornal O Nordeste (jornal católico que circu-lou entre 1922 e 1967 sob responsabilidadeda Arquidiocese de Fortaleza), do AndradeFurtado (poeta e líder católico nascido emOuixeramobim), e tinha saído um sonetopior do que o outro - naturalmente. Aindabem. Eu tenho um caderno lá em casa comessas relíquias horríveis. Um dia eu vou to-car fogo (risos). Quando eu sentir que tôperto de morrer, eu toco fogo. Realmente,por influência principalmente do Jáder e doCarvalho Nogueira, ele fazia aqueles poeee-emas apaixonados ... Eu comecei a tentar fa-zer também. Fiz um soneto muito ruim queterminava dizendo: "Indo de menos ou demais". O meu pai: "Ohl Mas você é poeta!"Foi aí que eu peguei a corda mesmo.

Thiago - Desses amigos, qual foi a maiorinfluência para iniciar a escrever?

Sânzio - Carvalho Nogueira, sem dú-vida nenhuma. Porque o Ribamar Lopesfazia uma poesia meio matuta ... CarvalhoNogueira foi a influência maior. E outra: eumostrava a ele os poemas.

Síria - Sânzio, você é muito respeitado

"'Olha esse poemaaqui, eu fiz faz trêsanos'. (...) Eu dizia:

'Ouando eu vouter um poema queterá três anos de

idade?'"

SÂNZIO DE AZEVEDO 71

O número 18, aliás, nãosaiu da cabeça dele. Sem-pre que se referia ao nú-mero de entrevistadores,insistia nos 18, não nos 12,como a equipe de produ-ção sempre corrigia.

Por sugestão de Ronal-do Salgado, indicamos aAcademia Cearense deLetras, mas Sânzio negou:seria falso pois, apesar deescrever bastante para aspublicações da ACL, naverdade, nem pisava lá.

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A produção passou umatarde entrevistando Nirez,irmão de Sânzio. Na en-trevista, ele disse que, sebatêssemos Rubens, Con-suelo, Nirez e Sânzio emum liquidificador, não che-garia aos pés do pai.

Para Nirez, Otacíl io deAzevedo foi bom pai, bommarido, bom pintor, bompoeta, bom fotógrafo e boagente (assim, repetindo oadjetivo, para deixar claraa profunda admiração).

no meio literário, já escreveu muitos poe-mas, mas me parece que você tem umaauto-crítica muito grande. Eu queria saberde onde vem isso. Você está sempre me-nosprezando seus textos ...

Sânzio - (Risos) Olha, para ser sincero, averdade é a seguinte: com relação à poesia,eu não sei se eu sou tão respeitado assim,não. Eu mesmo me depreciava muito por-que, no início, quando escrevia uma dedi-catória, colocava: "O poeta bissexto", "Osversos bissextos". Manuel Bandeira (poetamodernista nascido em Pernambuco, intro-dutor do verso livre no Brasil) chamava debissexto o poeta que escrevia uma vez navida e outra na morte. Então, eu tinha essenegócio de me considerar bissexto e issofez com que algumas pessoas me conside-rassem (pausa) pouco importante como po-eta, e mais como ensaísta. Também, vamose venhamos: eu publiquei 23 livros, contan-do os opúsculos, e desses só quatro são depoesia. Realmente minha obra ensaística émuito mais volumosa. Agora, eu acho queeu tenho noção da (procurando a palavra)validade do que eu escrevo. Realmente noensaio eu não sou tão modesto, não. Eu achoque eu fiz alguma coisa, mas a minha poesiaé fraca (risos). Agora não tão fraca quantoa de alguns que tiveram a coragem de pu-blicar. Inclusive, eu ainda tive coragem depublicar os últimos livros porque eu vi muitacoisa ruim por aí (risos). Eu disse: "Então euvou publicar também." Ultimamente, eu nãoposso me chamar de bissexto. Posso atéme chamar de mau poeta, mas de bissextonão. Já publiquei quatro livros de poemas(Cantos da Longa Ausência, Canto Efêmero,Cantos da Antevéspera e Lanternas Cor deAurora) e figuro em mais de dez antologiasde poesia. Quer dizer, de qualquer maneira,

não sou tão bissexto assim, não (risos.Isabele - Sânzio, você vivenciou um pen-

ado em que o Carnaval de Fortaleza era bemdiferente do que é atualmente, com a passa-gem de blocos pelas ruas e tudo mais. Comoé hoje em dia? Como é a sua participação nes-sa festa e como você vê hoje o Carnaval?

Sânzio - Olha, a minha participação ézero. Eu moro na (rua) José Vilar com Mar-condes Pereira. Lá da minha janela, nos trêsou quatro dias de Carnaval eu olho pela mi-nha janela e não vejo nada, mas nada! Euposso esquecer que estou no Carnaval, por-que hoje é assim.

Antigamente, não. Antigamente havia ospapangus (tradicionais personagens masca-rados dos carnavais e reisados do Nordes-te), havia os sujos. Quando eu era menino,de calças curtas, na década de 40, eu lem-bro que essa casa da Jaime Benévolo ondemora minha irmã, ela dava para a rua Ouin-tino Bocaiúva. Lembro que a gente chamavao beco do seu Chico, porque era um becoque dava para a mercearia do seu ChicoMossoró. Nesse beco do seu Chico um diadesembocou um bloco chamado Garotosdo Frevo. E eu ainda lembro o que eles can-tavam: "Com pandeiro ou sem pandeiro/ ê,ê, ê, eu brinco", um sucesso de FranciscoAlves (cantor carioca de marchas carnava-lescas, frevos e sambas). E você via eles decamisa vermelha e calça branca ... E ali naDuque de Caxias tinha o (bloco) Zombandoda Lua, tinha a Escola de Samba Luís Assun-ção, era uma coisa linda! Não é saudosismo,não, é que realmente acabou. Até mesmono Brasil, de modo geral, no Rio de Janeiro,acabou-se. Eu passei carnavais no Hio deJaneiro e, se você não vai para a Marquêsde Sapucaí, você não vê Carnaval, não.

Thiago - Mas você fazia parte dos blocos?Sânzio - Não, não fazia parte dos blocos.

Eu tenho a impressão de que não. Ah! Umtempo aí... Bom, eu era menino pequeno,o Carnaval da Vitória. A guerra (SegundaGuerra Mundial) terminou em 45, e em 46foi uma festa tão grande que meu pai ves-tiu uma capa de chuva, botou um nariz depalhaço. E eu me fantasiei não sei de quê,e nós fomos fazer o corso. Até teve o casode um cidadão que jogou lança-perfumeno olho do cavalo, o cavalo desembestoue derrubou um cavaleiro lá... Na verdade éisso. E gostava muito de dançar. Eu bebiae dançava. Eu passava os quatro dias alco-olizado (risos) e ia para os clubes com lan-ça-perfume nos bolsos e tudo mais. Nessetempo era assim. Depois eu esqueci ... Nin-guém há de dizer que eu sou, que eu fui umfolião, com essa cara (risos).

Isabele - De algum modo essa diversão

"Nesse beco doseu Chico um diadesembocou umbloco chamado

Garotos do Frevo. Eeu ainda lembro oque eles cantavam:'Com pandeiro ou

sem pandeiro/ ê ê êeu brinco'"

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:: antigamente influenciou na sua produção-eraria? O Carnaval de antigamente ...

Sânzio - Não, eu fiz um soneto - muito...:m - sobre Carnaval na época (risos) e saiuo jornal, no Diário do Povo, só. Mas nem

_ trou no livro não. De forma que o Carna-ai passou incólume pela minha pena.

Isabele - Você acha que as festas atu-ais ... De alguma forma falta motivo, falta ins-piração para fazer poemas atualmente?

Sânzio - É muito relativo isso, sobrefestas. Eu, por exemplo, nessa altura docampeonato, estou com 70 anos, não soumais de festas de jeito nenhum. Outra coi-sa: festa junina, ainda existe isso? Antiga-mente existia era fogueira; não era fogueirade papel crepom ou papel de seda, não! Erafogueira de verdade! Aquele negócio de pu-lar fogueira, de ter compadre de fogueira.Isso havia muito ... Na rua onde eu morava,a Jaime Benévolo, tinha a rua do lado, a Ba-rão de Aratanha (rua do Centro de Fortale-za), que a gente chamava de Rua do Lago.Ali havia muita fogueira, com areia e tudomais ... É outra realidade. Hoje é até proibidofazer fogueira.

Giselle - Esse tempo de festas foi umtempo de muitos amores para você?

Sânzio - Não ... Eu vou confessar umacoisa: na realidade, eram muitos amoresplatônicos. É engraçado, eu fui mais felizcom negócio de amores depois que eu fuiamadurecendo. No tempo que eu era bemjovem, quando eu olhava o retrato e eu meachava até bonito, eu não conseguia nada.Meus amores duravam uma semana, aí euficava apaixonado, fazendo serenata, e amoça não queria saber de nada. Ou entãoera um amor platônico mesmo, de longe,sem nem a pessoa saber (risos).

Ao longo dessa minha vida, é claro, hou-ve vários amores, e daí saiu poema ... Mas amaioria, não sei se é o Vinicius de Moraesque dizia que o poeta só é grande se so-frer (os versos "Assim como o poeta/ Só égrande se sofrer" fazem parte da música Eunão existo sem você, de Tom Jobim e Vini-cius de Moraes), mas, não é que eu fossegrande, mas eu acho que o poeta tem quesofrer. Um poeta contar vantagem não temgraça, não. Então, na realidade, dos poemasque eu fiz de amor, a grande maioria é maisde levar fora (risos).

Thiago - Passando para uma outra faseda sua vida, em 1959 você vai para São Pau-lo morar na casa do seu irmão Rubens. Porque você decidiu deixar Fortaleza?

Sânzio - Por falta de emprego. O pro-blema não era bem falta de emprego. OAmadeu Barros Leal (empresário na épocaresponsável pela cadeia local de cinemas

Cinemar, a qual pertence o Cine Jangada,sala que hoje exibe filmes pornográficos)até me arranjou um emprego lá na Cinemar,mas era para mexer com negócio de conta,contabilidade, e eu tenho horror a número.

Veja bem, eu tinha sido revisor em 56,57. Eu fui revisor do jornal O Estado (jornalcearense fundado em 1936, hoje tem circu-lação restrita e baixa inserção no mercadoeditorial), aqui em Fortaleza, no tempo doFran Martins (Francisco Martins é cearensede Iguatu, jornalista e integrante do grupoClã, importante movimento literário do Ce-ará na década de 40). Inclusive, uma coisacuriosa: eu me iniciei no jornal ao mesmotempo que o Tarcísio Holanda (colunista dojornal Diário do Nordeste, é radicado emBrasília há mais de 30 anos, conhecido pelacobertura de política), que hoje aparece aténa televisão com negócio de política (pro-grama Brasil em Debate, da TV Câmara). Éum jornalista de verdade, né? Pareceria queeu ia ser um jornalista também. Nós entra-mos como revisores.

Então, quando eu me vi sem dinheiro esem emprego, eu fui tentar a vida em SãoPaulo como desenhista, como eu já disse,fui trabalhar na Adesite. Depois me desem-preguei e fui trabalhar na Editora LEP (edi-tora paulistana), que era de um português,o seu Abel. Ali, qualquer coisa eu me de-sempregava. Aqui em Fortaleza mesmo,outro dia eu encontrei o Guimarães (FaustoGuimarães Filho, amigo desde os anos 50),que é professor aposentado do Labomar(Instituto de Ciências do Mar, vinculado àUniversidade Federal do Ceará, fundado em1960). Ele foi meu colega, desenhista tam-bém, na FlamBrasil (Flâmulas Brasil), queera do Aniz Chehab (empresário turco). Foisó o Aniz reclamar não sei o que de mimque eu digo: "Me dê minhas contas." Eu erairresponsável mesmo, eu brigava e saía.

Lá em São Paulo foi a mesma coisa: eu,para sair de um emprego, não custava nada.Acontece que eu saí da editora e houve aalta do papel, e, com a alta do papel, aca-bou-se condição de trabalhar. Eu fiz tes-te em muitos lugares, mas não conseguianada. Aí houve uma coisa curiosa e surreal.

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Na saída, dálmatas nadaamigáveis nos espera-vam no jardim. Lucíola foiquem mais se assustoucom a animosidade doscães, que a fizeram voltarcorrendo para dentro dacasa de Nirez.

A irmã de Sânzio, Con-suei o, foi a pessoa maissimpática entrevistada pelaprodução. Ela nos recebeuem sua casa na Rua JaimeBenévolo, onde Sânzio vi-veu grande parte da infân-cia e da adolescência.

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No início da conversa,dona Consuelo parecia umpouco nervosa. Terminadaa entrevista, porém, elanos revelou: "Sabia que eugostei de dar entrevista!Se quiserem fazer outra,podem vir!"

o ambiente, as históriasda infância do menino Ra-fael e a forma como faloudas recordações da famí-lia Azevedo despertaramem Thiago a vontade deescrever um conto sobredona Consuelo.

É que exatamente nessa época, em 1961, euestava publicando o livro ... Que esse livro, daEdart, eu não paguei para publicar, não, pelocontrário, eu recebia. A minha bibliografia foicrescendo como rabo de cavalo: para bai-xo, porque o meu primeiro livro foram 5 milexemplares, e eu fui pago, não é como hojeque tem que pagar para publicar, não.

Então, eu desempregado, sem um tostãono bolso, me engravatava todo, ia bater naEdart falar com o seu Malheiros (dono daeditora, Álvaro Malheiros foi contista co-nhecido pela obra de ficção científica), eele (com voz mais grave, imitando o che-fe): "Como vai o autor do livro? Olhe aquia revisão ...". Eu dava uma olhada assim ...Doido para pedir um emprego ao homem,mas eu não podia, porque, ali, eu era o au-tor do livro. Aí foi que eu conheci o Cassia-no Nunes (poeta e professor com cerca de50 títulos publicados, Cassiano dedicou 25anos ao Instituto de Letras da Universidadede Brasília), que foi professor em Brasília.Ele fez umas observações no livro, conver-sou comigo. E Cassiano foi meu amigo atéa morte. Ele tinha mania de me chamar deerudito. Essa época foi desse jeito.

Eu conversando com o Flávio Pereira(irmão adotivo do editor José Otimpioi, eleme deu uma carta de apresentação para oLéo Vaz (jornalista do jornal O Estado deS.. Paulo e escritor). Léo Vaz, pra quem nãosabe, é autor d'O Professor Jeremias (lan-çado em 1919, considerado por MonteiroLobato "um dos grandes livros da LiteraturaBrasileira"), um livro publicado por Montei-ro Lobato, muito interessante, que passou,ninguém fala mais.

Eu fui à casa desse Léo Vaz e, aliás, eununca vi uma coisa tão estranha, viu?! Erabom fazer um filme. Eu estava em 1961.Quando eu subi para o apartamento do LéoVaz, quando eu entrei no apartamento, osmóveis todos antiqüíssimos, e uma moça

"Eu não sei sealgum dia, quandoeu escrever minhasmemórias, (...) euvou saber traduzira euforia que eusenti ao entrar no

Estadão."

cantando uma musica de Paraguassu (Ro-que Riccierdi, nascido em 1894 no bairrodo Brás, em São Paulo. Na década de 20,entrou para o elenco da Columbia e lançoucerca de 150músicas): "nunca mais um ver-so meu terás, nunca mais ...", Nunca Mais(título da música). Era como se eu tivessevoltado aos anos 20. Eu digo: "Puxa vida, eunão estou mais em 61".

Aí lá se vem o Léo Vaz, um velhinho, e meentrega uma carta. Nesse tempo não existianegócio de xerox, senão eu teria tirado umacópia. Eu agradeci e desci. Quando olhei acarta, que estava dentro de um envelope,porque ele era um gentleman, eu abri e es-tava escrito: "Este moço, Rafael Sânzio deAzevedo, é um moço de muitas prendas."Ele nem sabia quem eu era nem nada, masdisse que tinha muitas prendas, me elogiou,que eu era inteligente e não sei o quê. E isso,essa carta, veja bem, não era para eu entrarn'O Estado de S. Paulo, não. Era para eu le-var ao senhor Montes (José Maria Homemde Montes, diretor por décadas do jornal OEstado de S.Paulo e ex-presidente da Asso-ciação Nacional de Jornais), n'O Estado deS. Paulo, e, de lá, ser enviado para o NelsonLima Netto, que era o chefe da revisão, parater direito de fazer uma prova.

Thiago - Para fazer a prova?Sânzio - Era, para fazer a prova. Não foi

pistolão, não. E, nessa prova, caiu uma coi-sa interessante que, depois, a gente semprelevava na palhaçada: um dos itens era "asvozes dos animais." "O que é o que cisnefaz?", arensa. "O que é que o camelo faz?",blatera. Aí depois, todo mundo que ia en-trando, novo, a gente perguntava: "Vem cá,algum dia você precisou desse raio dessasvozes de animais?" (risos). A coisa mais semsentido.

Thiago - Você acertou essa questão?Sânzio - Eu tenho a impressão de que eu

errei, né? (risos)Ivna - E como foi trabalhar num grande

jornal?Sânzio - Ah, eu vou dizer uma coisa: eu

não sei se algum dia, quando eu escreverminhas memórias, se eu escrever - PedroSalgueiro (contista e cronista cearense) vivequerendo que eu escreva -, se algum dia euvou saber traduzir a euforia que eu senti aoentrar no Estadão. Porque, realmente, eu fuiser revisor, trabalhando à noite, ganhandomuito, ganhando bem para os meus pa-drões, entende? Quer dizer, na época erauma coisa do outro mundo.

Eu fiquei completamente realizado nosentido profissional. Outra coisa, modéstiaà parte, eu era um revisor razoável, e, compouco tempo. me botaram na "peneira".

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"Peneira" era uma dupla que fazia a revisãodos outros trabalhos. Eu fui revisor do su-plemento agrícola, depois do suplementofeminino, depois do suplemento literário.Esse tempo do Estadão foi um tempo mara-vilhoso para mim, eu fiz muitas amizades lá.Engraçado, dessas amizades todas, só res-tou um, Raul Drewnick, que era poeta, bompoeta, mas depois virou autor de narrativasparadidáticas, esses livros quase infantis,mas escreve bem o Raul Drewnick.

Esse tempo do Estadão, curiosamente,foi - eu trabalhando à noite, no primeiro anotroquei lente não sei quantas vezes porquegastava a vista ler na luz fluorescente -, foio tempo que eu estudei mais, que eu li maisna minha vida inteira. O meu conhecimentoliterário é quase todo dessa época. Eu estu-dava muito, inclusive essa história de ver-sificação, eu estudava sozinho. Eu vivia naLivraria Teixeira (fundada em 1876, foi pon-to de encontro no Centro de São Paulo deescritores como Jorge Amado, Erico Veris-simo e Lygia Fagundes Te//es nos anos 50.Hoje a Teixeira fica no bairro dos Jardins) eem outras livrarias comprando livros e len-do, lendo, lendo.

Nesse tempo eu comecei a escrever unsartigos que meu pai publicava aqui, ou no OPovo, ou no Correio do Ceará (fundado em1915 por Álvaro da Cunha Mendes, o jornaldeixou de circular em dezembro de 1982)ou no Unitário (fundado em 1903 por JoãoBrígido, pioneiro no jornalismo cearense,foi adquirido pelos Diários Associados deAssis Chateaubriand em 1940), esses doisse acabaram.

Ivna - Você falou das amizades que vocêfez no Estadão, e foi nessa época tambémque você conheceu pessoalmente o Gui-lherme de Almeida (advogado, jornalista,poeta, ensaísta e tradutor, principal respon-sável pela divulgação do haicai no País).Como foi?

Sânzio - Eu comecei a fazer a revisãode uma crônica de Guilherme de Almeida,Eco ao longo dos meus passos - eu tenhoaté os originais de vários, tenho lá em casabem umas dez (crônicas), escritas à máqui-na e todas emendadas. Tinha uns colegas,o (Mário) Meio, que a gente chamava Me-linho, era quem sabia mais de gramática; oOtávio e o Raul Drewnick, e eles me leva-ram à rua Barão de Itapetininga, onde erao escritório dele (Guilherme de Almeida), edisseram: "Olha, este rapaz aqui é quem faza revisão das suas crônicas". Ele disse: "Ah,muito prazer." "Ele é cearense", e ele: "Ah,mas que beleza, a minha mulher é cearense,Baby Barroso" - não sei se era parente doGustavo Barroso (advogado, professor, po-

lítico, contista, folclorista, cronista, ensaístae romenciste, membro na Academia Cea-rense de Letras) -, e ele disse: "Apareçamsempre, podem vir aqui". E eu, que sou atémuito tímido, achei tanto prazer que ... Sim!(lembrando-se de algo) Porque eu já lia Gui-lherme de Almeida aqui, é uma das influên-cias de meu pai. Papai gostava muito dosversos de Guilherme de Almeida e eu sabiaaté de cor alguns poemas dele, aí eu voltei.Voltei lá, e ele conversava ...

O Guilherme de Almeida era um genti-Ihomme (cavalheiro em francês). Ele erauma pessoa importantíssima, membro daAcademia Brasileira de Letras, ostentavao ruban rouge de Ia légion d'honneur (fitavermelha da Legião de Honra, em francês.A ordem nacional da Legião de Honra é amais alta condecoração francesa, tendosido instituída em 1802 por Napoleão Bo-naparte e recompensa por méritos militaresou civis dedicados à Nação) na lapela, e euera apenas um nordestino de 27 anos, e ele,toda vez que eu ia lá, me levava até o eleva-dor, aqueles elevadores assim (faz, com asmãos, o movimento de abertura manual daporta do elevador, da esquerda para a direi-ta). Eu dizia: "Não precisa, não", e ele faziaquestão de me levar até lá.

Quando conversava comigo, era dizendoem francês, e eu não entendia nada (risos)- hoje, talvez, eu entendesse, mas, naque-le tempo, eu não entendia, não. Um dia eutive coragem de levar meus poemas paraele ler. "Mestre, eu queria que o senhorolhasse aqui". Aí, da vez seguinte que eu fuilá, quase que eu desmaio, porque, quandoeu cheguei, ele disse assim: "Olhe, eu es-tou encantado com os seus poemas." E eu:"Ai!", chega me faltou chão - porque eu souainda de uma geração que tem essas coi-

110 Guilhermede Almeida era(...) uma pessoaimportantíssima,

membro daAcademia Brasileira

de Letras, (...) eeu era apenas umnordestino de 27

anos."

SÂNZIO DE AZEVEDO I 75

Durante a conversa nasala, a vontade da produ-ção era conhecer os outroscômodos da casa da famí-lia de Sânzio. A "estraté-gia" utilizada foi pedir paraver os quadros de Otacíliode Azevedo.

Os quadros estavamnuma pequena bibliotecavizinha à sala de estar, demodo que não pudemosexplorar a casa inteira. Noentanto, a beleza dos qua-dros aliviou a frustração daequipe.

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Em contato por telefone,Artur Eduardo Benevidesdisse não poder recebera produção por estar "emtom febril". Dita desta for-ma, concluímos, a expres-são só poderia ter partidode um poeta.

Na pré-entrevista, Sân-zio disse que Guilhermede Almeida fora condeco-rado com a fita da Legiãode Honra da França. Disseem francês: "Ostentava oruban rouge de Ia légiond'honneur na lapela".

sas. Hoje os jovens querem saber mais doque os mais velhos.

?ois bem, ele começou a fazer observa-ções. Tinha até um soneto que ele mandouque eu cortasse, e eu cortei. Ele mostrouaté 22 sonetos que ele cortou do livro Nós,de 1917, a conselho de Vicente de Carva-lho (advogado, jornalista, político e contista,era parnasiano e conhecido como O poetado mar). Ele me aconselhou muita coisa.Umas eu não aceitei, mas a grande maio-ria eu aceitei, inclusive o corte desse sonetoeu aceitei na hora. Eu ainda criei coragem eperguntei se ele prefaciaria o livro, porqueseria uma consagração, e ele disse: "Olhe,infelizmente eu não faço prefácios. Eu já ne-guei tantos prefácios que eu não faço, maseu posso fazer a orelha!" (risos). Ele fez aorelha, e a orelha começa dizendo: "O moçopoeta Sânzio de Azevedo ...", Fiquei muitofeliz e publiquei o livro já indo embora de lá.Recebi o livro aqui em Fortaleza. Teve atéum lançamento na Casa de Juvenal Galeno- eu era muito ligado à Casa de Juvenal Ga-leno nesse tempo.

O Fernando Jorge (escritor, jornalista efoi jurado nos programas de Flávio Caval-canti, Bolinha e Carlcs Aguiar) foi quemfez o prefácio. Fernando Jorge, não sei sevocês sabem, é muito polêmico, foi até dejúri de televisão, fez um livro aí arrasandocom Paulo Francis (Vida e Obra do PlagiárioPaulo Francis, lançado em 1999 e reeditadoem 2007). Ele gosta muito de briga, mas elegostou dos meus poemas.

Aliás, eu conheci o Fernando Jorge peloseguinte: ele publicou um livro sobre OlavoBilac, em 64 - em 65 seria o primeiro cente-nário de nascimento de Bilac, e ele publicou.O lançamento foi na Livraria Teixeira, e eufui. Depois eu descobri que ele dizia uma coi-sa com a qual eu não concordei e botei umartigo no Unitário. Um dia eu o encontrei naLivraria Teixeira e tive coragem de mostrar oartigo com a censura (crítica negativa) a ele.Ah, mas ele pegou esse artigo e publicou naFolha de S. Paulo. Depois me deu o livro AsSandálias de Cristo, e disse assim: "Olhe,pode baixar a lenha!". Aí eu fiz um artigo elo-giando e depois começava a censurar; eledava risada e publicava na Folha de S. Paulo(risos). Depois disso eu o encontrei em 76,quando eu fui a São Paulo, e, atualmente, devez em quando, a gente se corresponde.

Talita - Sânzio, a amizade que você fezcom Guilherme de Almeida lhe rendeu atéo contato com um tipo de poema japonês,o haicai. Posteriormente você até escreveuum livro, Lanternas Cor de Aurora. O quemais te encantou nesses poemas?

Sânzio - Olha, é uma coisa curiosa. Essa

história aí é uma bomba de efeito retarda-do, retardadíssimo. No tempo de Guilhermede Almeida, eu nunca, jamais me aventureia fazer haicai, eu nem tinha vontade. E oRaul Drewnick, que é esse amigo, esse co-lega meu do jornal, escreveu uns haicais epublicou no Estadão mesmo. Eu achei umabeleza, e o tempo foi passando. Aqui, emFortaleza, eu fui revisor na Imprensa Univer-sitária (órgão da Universidade Federal doCeará), fui colega do Faria Guilherme e doBarroso Gomes (Francisco Barroso Gomes,poeta concretista), que morreu num desas-tre como juiz, era um rapaz muito brilhante,Nonato de Brito (revisor, poeta e contista)também foi meu colega nesse tempo ...

Pois bem, o Barroso Gomes fez uns hai-cais muito bons, inclusive no meu livro, Li-teratura Cearense, de 1976, eu incluí unshaicais do Barroso Gomes, mas o tempo foipassando. Sei lá quando foi na vida que meveio ... Por isso que eu acredito em inspira-ção. Eu conversava muito com FranciscoCarvalho sobre isso. Pode inventar outronome para isso, mas que existe uma predis-posição, existe. Você não faz um poema nahora que você quer. Você não se senta aquie faz um poema.

Então, um bel-o dia, me saiu um haicai.E aí eu fiz outro e fiz outro e fiz meia dúzia.Botei no meu livro Cantos da Antevéspera.Depois eu estava em Paris, porque a Fer-nanda (Coutinho, esposa, professora, hojeé coordenadora do mestrado em Letras noDepartamento de Literatura da UFC) feztipo um (curso) sanduíche (pós-graduaçãofeita parte em uma Universidade, parte emoutra). Nós passamos meio ano na França,ela pesquisou muito, foi muito bom, e eupassava o tempo todo na biblioteca. Issome rendeu um trabalho que fiz sobre VictorHugo, todo com livros em francês, porquelá não tinha livro em português. Nas horasvagas, quando eu estava em casa, eu come-cei a fazer haicai. Aí foi um atrás do outro,um atrás do outro. Mas é impressionante!Ali eu fiz ... esse livro tem 62, parece. Poistirando os seis, os outros todos, quase to-dos, eu fiz lá, numa tirada só. Numa semanasó eu fiz não sei quantos. Não é uma coisamediúnica, mas, que há uma predisposição,há. É impressionante, eu não sei nem expli-car o que é isso.

Lucíola - No poema Poema para Junho,você diz que "A madrugada é um poemade Guilherme de Almeida". Você vivenciou,quando trabalhava no Estadão, a boemiajornalística que era comum à época?

Sânzio - Essa história da madrugadado poema de Guilherme de Almeida, que,por sinal, quando ele leu, teve um ataque

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de modéstia, é a seguinte: aqui em Fortale-za, quando eu lia os poemas de Guilhermede Almeida falando na alameda, no frio, nocéu cinzento e os plátanos da rua, eu achavaque aquilo era europeu. Um nordestino quenunca tinha saído do Nordeste, eu lá sabiaQue São Paulo era daquele jeito! Eu tinhaa impressão de que aquilo era influênciada leitura de Verlaine (Paul Verlaine, poetafrancês do século XIX, influenciou o desen-volvimento do Simbolismo) ou coisa que ovalha. Acontece que, quando eu fui para SãoPaulo - porque eu não fui a São Paulo, eufui para, eu ia ficar lá -, uma noite eu estavana Avenida Rio Branco e vi as folhas caindodas árvores, aquele vento frio, e aí eu digo:"Puxa vida, está aqui. É isso que o Guilhermede Almeida via". Eu fiz o poema, que termi-na com "as flores se arrastando na alameda"que, para ele, para o poeta, "a madrugada éum poema de Guilherme de Almeida".

Thiago - Mas em relação à boemia jor-nalística? Você trabalhava à noite, e imaginoque, na época, saía do jornal. ..

Sânzio - Engraçado: eu já tinha passadoessa fase desse negócio de beber, já estavamais sóbrio, mas acontece que a gente nãoresiste muito. A gente ficava jogando sinu-ca até o dia raiar. Muitas vezes eu emendeinoite - era uma loucura o que eu fazia, mas,muitas vezes, eu emendava, eu ia trabalharsem ter dormido a noite anterior. Às vezes agente fazia era beber mesmo, encher a cara,e aí ocorreu um caso curioso: existe lá a La-deira da Memória (localizada no Centro deSão Paulo, possui um obelisco, monumentomais antigo da Capital), uma pracinha - eunem me localizo mais hoje. Para vocês ve-rem como São Paulo era diferente: madru-gada, eu e o Otávio estávamos tão tontos,pesados de bebida, que adormecemos nagrama. E o Raul Drewnick ficou sentado, to-mando conta. Aí disse que um outro cole-ga foi chegando: "Quem é esse? ..", e Raul:"Shhh! (faz indicação de silêncio) Peraí queeles tão dormindo" (risos). Dormindo na La-

deira da Memória. Imagine, se fosse fazerisso hoje, era para levar um tiro.

Thiago - Sânzio, ainda no livro Cantos daLonga Ausência, você escreveu assim sobreFortaleza: "Pois se não tenho a ti como desejo,!ó Fortaleza amada, eu te revejo/ com os olhosda saudade ...", Aí eu pergunto: além da sauda-de, o que fez você voltar para Fortaleza?

Sânzio - O que me fez voltar, em primei-ro lugar, foi a saudade, mas principalmenteo fato de, em 65, eu ter vindo aqui a pas-seio. Se eu nunca tivesse vindo, talvez euficasse por lá. Mas, quando eu vim, em 65,era época da chuva, e o céu estava cinzento,plúmbeo, e eu vendo os coqueiros diantedo céu cinzento - não sei se vocês sabem,mas em São Paulo não tem coqueiro. Essemeu amigo, o Floreal d'Amore, aquele queeu citei no negócio do Paulo Eiró, ele erametido muito a ser botânico, ele dizia pramim: "Opa, encontrei um coqueiro, vamolá!" A gente chegava lá e era uma palmeira.

Não tinha coqueiro. Esses de coco-da-baía, não tinha, não. Quando eu vi os co-queiros, o céu cinzento, quando eu vi minhamãe chorando, eu pensei assim: "Me digauma coisa, por que diabo eu tenho que vi-ver numa terra alheia se nem raízes eu tenholá?" Eu era solteiro. Vim ganhar cinco vezesmenos do que eu ganhava lá. Porque eu voudizer uma coisa: perdoe quem for paulista,mas eu nunca me adaptei a São Paulo, nun-ca gostei de São Paulo. Eu gostei de algunsmomentos, mas gostar de São Paulo, não.

Meu pai foi falar com o Eduardo Campos(radialista, jornalista, escritor cearense, te-atrólogo e pesquisador, Manuel EduardoPinheiro Campos teve mais de 70 livros pu-blicados), que era o superintendente dosDiários Associados, e disse: "Olhe, não temum lugar aí pro meu filho?" Não dá nem paratransformar, porque eu não entendo de eco-nomia, mas eu ganhava 500 mil cruzeiros,ou cruzeiros novos - eu não sei - com tudo,extraordinários também. Porque a gente,toda sexta-feira varava a noite, aí aumen-

S.• ZIO DE AZEVEDO I 77

O problema foi a frasedita em francês. Ao verSânzio tocando o lado es-querdo do peito, Thiago,que não entende nada dalíngua de Victor Hugo, tra-duziu o gesto: "Usava umaflor na lapela".

Ao fim da pré-entrevis-ta, a equipe de produçãose ofereceu para assistir àaula de Literatura Brasileiraque Sânzio ministraria emseguida, sobre o Simbolis-mo de Alphonsus de Gui-maraens.

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Ele avisou que nós nãodeveriamos esperar umaaula convencional, pois adele tinha um tom "ane-dótico". Na aula, Sânziofazia brincadeiras, contavahistórias sobre escritores elia poemas.

Ele mencionou que umaaluna era da RepúblicaTcheca. Ela disse que to-dos já sabiam, mas Sânzioretrucou: "Essas duas me-ninas e aquele rapaz nãosabem, eles não são daqui.São da polícia".

tava. Papai falou pro Eduardo Campos: "Dápara arranjar um lugar de revisor pro meu fi-lho?". Ele disse: "Quanto ele ganha lá no Es-tadão?". Papai disse: "500 mil". E ele: "Aquinem redator-chefe ganha isso!" (risos). Aí euvim ganhar 100 mil na Imprensa Universitá-ria. Vim ganhar cinco vezes menos e nuncame arrependi. De jeito nenhum!

Ivna - E o que foi exatamente que dificul-tou essa adaptação em São Paulo?

Sânzio - Na verdade, é difícil dizer. Eutive esses amigos no Estadão, mas, foraisso, eu achei a cidade muito fria, sei lá. Masfria não é no sentido térmico, não. Claro queé um mito dizer que o paulista é frio, porquehouve até gente chorando no dia que eu medespedi. Eu fiz muitos amigos lá. Mas euquero dizer é que ... é difícil a gente dizer. Euvivia constantemente ... Eu vou responderagora, agora chegou a palavra. Eu vivia pro-visoriamente, eu nunca me senti radicadoem São Paulo. Eu sempre estava esperandovoltar. Isso é uma coisa psicológica.

Eu tinha um amigo, Raimundo Rodriguesda Silva (também revisor), era um velho cea-rense que trabalhava lá no Estadão, e ele fala-va assim, de uma maneira muito peculiar (diztentando imitar o falar impostado do amigo).Quando eu disse a ele que pretendia voltar,ele disse: "Olha, eu não volto pro Ceará por-que eu já criei raizes. eu tenho até netos aqui.Mas você, você devia voltar mesmo." Ele di-zia: "Vive-se em toda parte", ele falava assim,né, "vive-se em toda parte" (arrasta as vogaisda sílaba tônica de cada palavra).

Eu tinha um amigo chamado José Carlosde Sylos, que era do interior, e, lá pras tan-tas, coincidiu que ele teve vontade de sairde São Paulo. Veja bem, em 66, São Paulojá estava ficando meio violenta, ele disse:"Eu já estou cansado de São Paulo, eu voulá pra 'não sei onde'", era um interior. Nóstivemos essa afinidade. Toda hora ele esta-va me chamando para conversar: "Eu achoque vou pra minha terra, e você?", "Cara, euvou pra minha também", e isso me incen-tivou. Eu vendo esse rapaz paulista querer

J1Vim(para Fortaleza)ganhar cinco vezes

menos (que noEstadão) e nuncame arrependi. Dejeito nenhum I"

voltar lá pro interior. Eu fiquei: "Por que eunão volto pra minha terra também?"

Thiago - No retorno a Fortaleza, Sânzio,você já veio com essa idéia de estudar a Li-teratura Cearense. Aí você foi trabalhar naImprensa Universitária e depois na Casa deJosé de Alencar, onde conheceu Artur Edu-ardo Benevides (Eleito "príncipe dos poetasceerenses", ensaísta e contista com maisde quarenta livros publicados, integrantedo grupo) ...

Sânzio - ...Não, eu já conhecia o Artur.Thiago - Ele nos contou que ele prati-

camente o obrigou a cursar Letras. Como éisso: você vinha disposto a estudar literatu-ra e não queria cursar Letras?

Sânzio - Não, eu vou dizer a verdade paravocês. Eu terminei o ginásio no Agapito dosSantos em 1955. Eu fui embora para SãoPaulo e não fiz coisa nenhuma mais, não fizcurso. Quando eu voltei de São Paulo, eu sótinha o ginásio (correspondente ao EnsinoFundamental li), eu não tinha clássico nemcientífico (correspondente ao Ensino Médio).Quando eu chego aqui, eu visitava o Artur,Artur Eduardo Benevides, o Macambira (JoséRebouças Macambira, professor do Liceue das universidades Estadual e Federal doCeará, integrante da ACL), o Plínio Sá Leitão(Plínio Santiago de Sá Leitão), todos ficavamcontentes, mas principalmente o Artur.

O Artur insistia comigo, insistia demais.Ele dizia: "Sânzio, você tem que fazer o cur-so de Letras. Do grupo Clã, só quem não éprofessor da Universidade é o Braga Monte-negro" - que é um dos mais brilhantes, porquê? Porque nunca fez um curso. Aí (o Ar-tur) insistia, insistia, insistia. Resultado: umamigo meu, chamado Raimundo, que euchamo Raimundinho (hoje em dia é oficialda polícia no Piaw) , não sei nem como é osobrenome dele, me arranjou o programade um Artigo 99 (espécie de curso supleti-vo), ou coisa que o valha, e aí eu fui ver asmatérias que eu podia fazer (no curso, es-colhiam-se oito matérias. Sânzio escolheuPortuguês, Geografia, História, Sociologia,Alemão, Inglês, Literatura e Filosofia). Nãoqueria botar nem Física nem Matemática,não queria negócio de número - e, parado-xalmente, hoje eu dou (aula de) Teoria doVerso, que é cheia de número (risos). Mas ocerto é que eu consegui fazer.

Em língua estrangeira eu fiz Francês, fizAlemão, porque eu estava estudando Ale-mão nesse tempo - se fosse hoje, já não iacolar. Era com Guilherme Müller, que depoisfoi meu professor de Literatura Francesa nafaculdade ... Eu digo na faculdade estadual(Uece), mas, na verdade, eu me formei nafederal (UFC), porque (a Uece) era agrega-

REVISTA ENTREVISTA I 78

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da. Não existia a Uece ainda, era Faculdadede Filosofia do Ceará, agregada à UFC.

Então esses conselhos do Artur Eduardopesaram muito. Fui fazer o Artigo 99 e, em69, eu fiz o vestibular. Inclusive, a língua queeu escolhi foi o Alemão e quase que eu erareprovado, porque foi o padre Jessé (poli-glota, professor de Alemão, Francês e Inglêsna Estadual) que fez a prova, e fez a prova alápis, exclusivamente para mim. Eu pensan-do que ia ser um livro daqueles do DeutscheSprachlehre für Auslénder (Língua Alemãpara Estrangeiros, em alemão), que eu tinhaestudado na Cultura Alemã (curso de línguaalemã vinculada à UFC), mas não foi nadadisso, foi uma prova que ele fez com a pala-vra "heiraten". Eu tinha que traduzir o texto,aí toda hora (aparecia no texto) "heiraten".

Eu chamava o professor, padre Jessé:"Professor, como é mesmo aqui a história?",e ele: "Você traduza!", e eu sem querer per-guntar, né? Até que uma hora lá eu digo: "Pa-dre, como é mesmo?", aí ele: "Rapaz, essahistória é de casamento". Aí eu digo: "aah,'heiraten' deve ser casar" (risos). Foi comoeu me safei. Ainda cometi uma burrice, eufiquei doente! Você sabe quando você errauma coisa, sabe que errou e se lembra docorreto antes de olhar o livro? É horrível. Erapara dizer "logo", e eu disse "schnell", sendoque "schnell" é rapidamente. Aí, quando eume lembrei na escada, era "sofort", Eu digo:"Pronto, agora eu estou ferrado." Mas eupassei. Eu digo que fui um aluno cobra, pas-sei arrastado em Alemão.

Giselle - Em 73 você já estava dando aulana Universidade. Quem foram os grandesmestres na arte de ser professor na sua vida?

Sânzio - Ah ... Os grandes mestres paramim, professores, que eu tive? Vixe, agoravocês me botaram numa situação ... É o se-guinte, lá eu não tive o prazer nem a honrade ser aluno nem do Artur Eduardo, nem doMoreira Campos (um dos mais importantescontistas, cearense de Senador Pompeu). Eufui aluno do Macambira, professor Rebou-ças Macambira. Taí, meus professores queme marcaram foram o professor RebouçasMacambira, de Lingüística, professora Agla-eda Facó, de Teoria, professor João SoaresLobo, de Literatura Portuguesa ... Sim! Tenhoque falar de outros professores também: oCartaxo (Luís Edgard Cartaxo de Arruda) memarcou muito, Lauro de Oliveira Lima (pro-fessores do ginásio) ... Acrescente aí, por fa-vor, o professor de Francês Mário BarbosaCordeiro (lecionava na Uece, membro daAcademia Cearense de Língua Portuguesa),primo do Cruz Filho (poeta da Academia Ce-arense de Letras eleito "príncipe dos poetasceerenses"i, Esse é um professor notável e

meu amigo ainda hoje. E o Guilherme Müller,que era Wilhelm Müller, mas aportuguesou onome. Por aí, acho que foram os professoresque mais me marcaram.

Isabele - Em que momento o senhordescobriu o gosto por ser professor?

Sânzio - Afe! É o seguinte, na verdade-isso é interessante -, quando eu estava ter-minando o ginásio, havia o Curso de Admis-são. O Curso de Admissão, que era o maisdifícil, tinha era Português, Matemática, Ge-ografia e História. O Lauro de Oliveira Lima,que todo mundo sabe que é um pedagogo,me escolheu para ser professor do Curso deAdmissão (ao Ginásio). Mas você não ima-gina de que disciplina: História. É porque eugostava muito de História nesse tempo, euera um dos alunos mais aplicados do LuísEdgard Cartaxo de Arruda.

Então o Lauro de Oliveira Lima me cha-mou para dar aula de História, História doBrasil, imagine! Aí eu perguntei: "ProfessorLauro, eu nunca dei uma aula na minha vida,como é que eu faço?" Ele disse: "O conselhoque eu lhe dou é o seguinte: nunca enroleos alunos. No dia em que eles perguntaremcoisas que você não souber, diga 'não sei'e pronto". Esse é o ensinamento maior doLauro para mim. E eu realmente gostei daexperiência, mas não tive oportunidade derepetir. Quando eu estava na Casa de Joséde Alencar, trabalhando nas funções buro-cráticas, o doutor Artur começou a insistirpara eu fazer o curso de Letras. Eu me lem-brei do tempo do magistério como profes-sor de História e, realmente, eu não tenhome saído muito mal, não. Veja bem, eu deiaula no Curso de Admissão em 1955 e fuidar aula depois na Universidade. Quandoeu me aposentei, eu fui convidado por trêscolegas: Leite Júnior (professor na UFC),Galileu (professor de Português no colégioEspaço Aberto) e o Eduardo Luz (ensina Te-oria da Literatura) para substituir o Galileu

JJEuperguntei:"Professor Lauro,eu nunca dei uma

aula na minha vida,,como e que eu

faço?". Ele disse:JJ(. .. ) nunca enrole os

alunos"

SÂNZIO DE AZEVEDO I 79

Sânzio referia-se ao fatode termos falado com vá-rios parentes e amigos. Aprodução brincava dizen-do a Sânzio que sabíamostudo sobre a vida dele eque estávamos seguindoseus passos.

Na verdade, era Sânzioquem seguia os nossos.Comentamos que havía-mos conversado por te-lefone com o seu amigoArtur Eduardo Benevides eele disse com naturalidadeque já sabia.

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Ao entrevistarmos airmã de Sânzio, Maria Con-suelo, ela deixou escaparque havia falado anterior-mente por telefone comRafael - é pelo primeironome que ela ainda o cha-ma.

Na ligação a Maria Con-suelo, Sânzio teria ditoà irmã mais velha: "Faledessas coisas que eu façomesmo ... Diga que eu de-senhava ruim feito o dia-bo, fale dos poemas, dosdiscos ...'',

no cursinho. Eu nunca passei por colégio(como professor), por Ensino Médio ou se-gundo grau ou coisa que o valha. E aí mepegaram para cursinho. Eu dava oito vezesa mesma aula.

Entre os donos do Espaço Aberto (colé-gio particular de Fortaleza), estavam pelomenos dois netos do doutor Martins, filhodo doutor Murilo (Martins, médico, atualpresidente da ACL). Eu nem me lembravadesse parentesco, quando doutor Martinschegou para mim e disse: "Olhe, você estáse dando muito bem lá com os meninos".Digo: "Que meninos?" "Ah, os meus netos.Eles estão gostando muito." Porque elessaíam perguntando aos alunos se eles esta-vam gostando das minhas aulas.

Como eu disse, eu não quero estar meelogiando, mas o Roberto Arruda, que hojeé professor de Latim e é coordenador docurso de Letras da UFC, ele foi meu aluno.Um dia, ele me fez uma pergunta que, paramim, foi um elogio. Ele disse: "Sânzio. ondefoi que você estudou didática?" Eu digo:"Em parte nenhuma. Eu fui o pior alunodessas disciplinas, 'não sei quê de segun-do grau'. Aquelas que ensinavam didática,eu passava arrastado". Mas ele achou queeu tinha uma didática muito boa. Eu tenho aimpressão, hoje, de que essa didática é umacoisa inata. O Rubens, por exemplo, meu ir-mão, tinha uma facilidade muito grande detransmitir o conhecimento.

Edwirges - Sânzio, e lecionando aqui naUniversidade (Federal do Ceará), você senteque o curso de Letras é capaz de despertarnos alunos esse gosto, esse interesse, esseamor pela literatura?

Sânzio - Olha, graças a Deus, os alunosdas disciplinas que eu dou - claro, há ex-ceções - talvez metade da turma não tomemuito conhecimento, ou fique empurrando,ou passe arrastado, mas muitos se interes-sam muito. Se interessam, e outra coisa: eutenho tido o prazer de ver depois ex-alunosmeus dando aula. Bom, aí mesmo, na Uni-versidade, o Paulo Mosânio foi meu aluno,o (Roberto) Arruda foi meu aluno, há mui-tos professores aí até destacados que forammeus alunos. Eu fico muito feliz com isso.

Quer dizer, não que eu tenha contribuídocom muita coisa, mas eu digo que essa pes-soa tem vocação para lecionar.

Lucíola - Como aconteceu o primeirocontato teu com o jornal O Pão? Em quemomento você primeiro ouviu falar dele?

Sânzio - Ah, é o seguinte ... Nesse tempoda Academia dos Novos, nos anos 50, haviauns colegas, o (Antônio) Pompeu, o CarvalhoNogueira, que quiseram fundar ou andaramfundando uma imitação da Padaria Espiritu-al. Eu ouvia falar naquilo, e tal e coisa, masnunca me interessei muito. Quando eu fuipara São Paulo, eu quis me aprofundar noestudo da Literatura Cearense. Eu li o livrode Leonardo Mata (folclorista cearense, es-critor e jornalista) sobre a Padaria Espiritual,de 1938, eu tomei conhecimento do jornal.Mas do jornal propriamente dito, eu só tomeiconhecimento com a Maria da ConceiçãoSouza, que é a pioneira da Biblioteconomiaaqui no Ceará (primeira diretora da Bibliote-ca Central da Universidade Federal do Ceará,criada em 1957). Ela foi quem ajudou o DolorBarreira na História da Literatura Cearense.Ela me deu vários exemplares (do jornal OPão) da segunda fase. Da segunda fase, queda primeira eu nunca vi. E em 1982 eu tive oprazer e a honra de organizar, com a ajuda daRegina Fiúzia (Regina Pamplona Fiúza, bisne-ta de José Carfos Júnior, padeiro da segundafase da Padaria Espiritual), uma edição fac-similar do O Pão.

Thiago - Ainda falando sobre O Pão e aPadaria Espiritual, eu queria oerguntar so-bre a sua tese de doutorado. Você defendena tese que o Simbolismo cearense veio di-reto de Portugal, e não da influência de au-tores cariocas ou paranaenses. Quais foramas repercussões que aconteceram a partirdessa sua tese?

Sânzio - Repercussão do meu trabalhoeu só conheço uma: o José Aderaldo Cas-tello (crítico literário), no seu livro LiteraturaBrasileira: origens e unidades, de 1999, de-dica uma página inteira a isso, ele explicameu trabalho e comenta. Mas o meu amigoMassaud Moisés (crítico, ensaísta e espe-cialista em literatura brasileira e portugue-sa, autor de diversos livros sobre história daLiteratura), esse foi uma graça, porque eledizia naquele livro O Simbolismo, da (Edito-ra) Cultrix, que o Simbolismo nasceu no Pa-raná, foi para o Rio, do Rio se irradiou para oresto do País. Depois eu mandei minha tesepara ele, naturalmente ele não leu (risos),botou meu livro na bibliografia e continuoudizendo a mesma coisa. Aí eu mandei umacarta para ele: "Massaud, meu amigo, muitoobrigado por me citar na bibliografia, masdo jeito que você me citou foi mesmo que

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nada, porque você continua dizendo a mes-ma coisa".

Pode parecer até bairrismo, porque euquero que o Simbolismo do Ceará não te-nha nada com o do Rio, mas eu não estoudizendo que ele nasceu por geração espon-tânea, estou dizendo que veio de Portugal.E outra: na minha tese eu acho que eu de-monstro isso claramente. Mário Linhares(poeta cearense, foi membro da AcademiaCarioca de Letras e da Academia Cearensede Letras), em 1938, no (livro) Poetas Esque-cidos, ele já dizia: "Lívio Barreto tinha noçãodo Simbolismo mesmo sem conhecer nadadessa escola". Quer dizer, ele (Mário) andouperto; não que (o Lívio) não conhecesse, elenão conheceu a deste País.

Sim, e me baseei também principal-mente numa frase de Adolfo Caminha nasCartas Literárias, de 1895, em que ele dizque o único volume do Só (livro simbolistaportuguês), de Antônio Nobre, que apare-cera misteriosamente na província, passavade mão em mão, era lido e adorado, "era anossa bíblia, o nosso encanto, o nosso livroamado." Ora, o Adolfo Caminha só esteveaqui (no Ceará) até 1892, que é o ano da pu-blicação do livro (Só), então não há jeito dese enganar. Logo, foi o próprio Antônio No-bre quem influenciou mesmo os poetas daPadaria Espiritual.

E na carta-prefácio que o Antônio Salesescreveu para o (livro) Phantos, do LopesFilho (autor simbolista, padeiro da primeirafase), que é de 1893, ele diz: "Bem se vê queleste Verlaine, Baudelaire, Mallarmé, Nobree Eugênio de Castro (poetas europeus), es-ses apóstolos da estranha escola do Deca-dismo". Por que ele não citou Cruz e Sousa,nem Alphonsus de Guimaraens, nem Emi-liano Perneta (autores simbolistas brasilei-ros)? Porque não conhecia.

Alinne - Mas essa não foi a única obra dosenhor que deu o que falar nacionalmente.Teve uma outra, que foi (o livro) LiteraturaCearense, que o senhor escreveu falandode vários poetas, da produção literária até acontemporaneidade ...

Sânzio - (Interrompendo) Ah, mas aí foiuma burrice minha, foi uma burrice imper-doável! O livro é de 1976, eu vim até 1976.Então, quem eu apenas citei ou nem citei iapara o jornal baixar a lenha em mim (comênfase). Eu levei tanta descompostura queeu prometi a mim mesmo nunca mais es-crever sobre autor contemporâneo - a nãoser assim, um livro de amigo, eu botar umprefácio, en passant (em francês, de passa-gem). Mas uma História da Literatura, nega-tivo. Eu faço como Manuel Bandeira: entreapanhar e apanhar, eu prefiro apanhar sem

prefácio, sem ressalva. Porque na aberturado livro ele (Manuel) explicava, ele explica-va (com ênfase) que botava os autores maissignificativos, mas todo mundo quer ser sig-nificativo.

Thiago - E a partir de que obra vocêapontaria que passou a ser visto como umgrande estudioso da literatura?

Sânzio - A partir de que obra? Para eumesmo dizer isso fica meio complicado ...Mas aqui no Ceará, a partir desse LiteraturaCearense - por ser um livro muito abran-gente, um livro muito citado, todo mundomexe nesse livro - , eu fiquei sendo umareferência, porque o Dolor Barreira só vematé 1918, e eu fui muito além. Depois dis-so, eu tive o prazer de, por exemplo ... Tantoa biografia do Adolfo Caminha (Adolfo Ca-minha: vida e obra), que eu publiquei em1997 com segunda edição em 1999, comoagora O Parnasianismo na Poesia Brasilei-ra, de 2004, os dois mereceram menção doWilson Martins (crítico literário, é autor deobras como História da Inteligência Brasi-leira e A Crítica Literária no Brasil), sendoque o do Parnasianismo mereceu um artigointeiro do Wilson Martins me fazendo pou-quíssimas restrições. Eu fiquei muito feliz.Embora isso seja muito precário: ele publi-cou no (jornal) O Globo, do Rio de Janeiro,então pouca gente leu por aqui.

Diego - No Rio de Janeiro (Sânzio via-jou ao Rio em 1976 para fazer Mestrado emLetras na Universidade Federal do Rio deJaneiro - UFRJ) você tinha uma intensa ro-tina de atividades. Como você conciliava osestudos com a produção literária e ainda ofato de ter de tomar conta do seu filho Lívio,ainda pequeno?

Sânzio - É o seguinte: a minha atividadeera estudar, lá (no Rio) eu tinha uma bolsa(de Mestrado) e estava só para estudar. En-tão, o que eu escrevia era a minha tese. Eutinha aula quase todo dia, mas não era tododia. Por exemplo: as aulas do meu orienta-dor, Afrânio (Afrânio Coutinho, crítico literá-rio e ensaísta autor de diversos livros sobreteoria literária), eram à noite. E a orientaçãodo Afrânio era interessante, ele me deu umaorientação notável. Ele disse: "Olhe, a Pada-

SANZIO DE AZEVEDO I 81

Depois da aula de Li-teratura Brasileira a queassistimos, Sânzio nosconvidou até o carro paranos presentear com trêsexemplares de LanternasCor de Aurora, livro de hai-cais publicado em 2004.

Enquanto conversáva-mos amenidades e recebí-amos os exemplares comsuas devidas dedicatórias,uma ex-aluna o abordou,bastante efusiva, enchen-do Sânzio de elogios.

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o interessante é quea menina não sabia queinvestigávamos a vida deSânzio. O depoimento,então, foi natural, sinceroe apaixonado, de grandevalia para o trabalho deprodução da entrevista.

Perguntamos a Sânziosobre o fato de ele ter seaposentado da UFC hátanto tempo - em 1994 - eainda estar dando aula. Elejustificou: "É que eu aindanão desencarnei".

ria Espiritual, você esgote o assunto". Claroque ninguém esgota nada, né, mas eu ia fa-zer só um capitulozinho, e ele disse: "Não,você escreva o que você puder sobre a Pa-daria, que você nunca mais vai ter coragemde mexer nisso, aproveite esse momento".Mas ele quase que não dava muito palpi-te, não. Ele dizia que quem entendia era eumesmo, então nossa orientação era ... O Má-rio Camarinha da Silva (filólogo, professor eensaísta carioca), que era uma espécie deco-orientador, deu mais orientação do que oAfrânio. O Afrânio me deixava muito livre.

Eu queria fazer só a dissertação do Mes-trado, e fui para lá em 76. Com um ano emeio, nem o Lívio nem a mãe dele, minhaprimeira mulher, a Margarida, se adapta-ram bem ao Rio. Ficaram por lá, mas não seadaptaram. Nós fomos morar num prédio,num edifício, na Rua Barata Ribeiro, entre(as ruas) Ronald de Carvalho e Duvivier. Euvoltei para o Ceará, me pegaram logo paradar aula, mas eu ia escrevendo os capítulose mandando para o Afrânio Coutinho. E eutenho muito orgulho de contar isso: eu fi-quei mandando os capítulos, e um dia eleme mandou uma carta - que eu brinco quevou botar num quadro -, dizendo assim:"Sânzio, isso não é mais uma dissertaçãode Mestrado, isso é uma tese de Doutorado.Venha fazer os créditos (do Doutorado)". Lávou eu e o Lívio de novo sofrer no Rio deJaneiro. Passou 79 e 80. Voltando para cá(Fortaleza) definitivamente, ele nunca maisquis nem saber do Rio (risos).

Lucíola - Sânzio, lá no Rio de Janeiro ti-nha um grupo que se reunia semanalmentena biblioteca do Plínio Doyle (advogado ca-rioca e amante da Literatura Brasileira, emsua biblioteca havia mais de 25 mil livros),que eram os Sabadoyles. E nesses encon-tros estavam presentes grandes nomes da

IJEle me mandouuma carta (...)

dizendo assim:"Sânzio. isso-, .nao e mais uma

dissertação deMestrado, issoé uma tese deDoutorado."

Literatura Brasileira, como Drummond (po-eta, cronista e contista mineira, autor de Arosa do povo, Alguma poesia e Sentimentodo mundo), Pedro Nava (memorialista pre-miado e ilustrador, fez parte do grupo deedição de A Revista, primeira publicaçãodo movimento modernista mineiro). .. Comovocê começou a freqüentar (o Sabadoyle)?

Sânzio - Foi o seguinte: o Plínio Doyleera amigo do Braga Montenegro (contistacearense, integrante do Grupo Clã). Quandoeu trabalhava na Casa de José de Alencar, oPlínió Doyle veio a Fortaleza, me conheceue ficamos nos correspondendo. Quando eufui para o Rio de Janeiro, eu tinha o telefonedele, telefonei: "Ah, mas você tem que virao Sabadoyle!" E eu fui, fiquei indo.

Da primeira vez em que eu fui ao Saba-doyle, o Pedro Nava disse: "Ah, mas deixaeu dar um abraço nesse cearense!" Porqueo Pedro Nava era filho de José Nava, cea-rense (e escritor da segunda fase da PadariaEspiritual). E José Nava era irmão de donaAlice, mulher do Antônio Sales, que ele (Pe-dra Nava) chamava tio Sales. Ele (Pedra) meconvidou logo para ir ao apartamento dele.Eu fiz muita pesquisa lá, encontrei inclusiveduas cartas do Adolfo Caminha (escritor ce-arense autor de A Normalista, fez parte daprimeira fase da Padaria Espiritual) uma deamizade e outra rompendo com a Padaria(Espiritual), e nunca ninguém tinha transcri-to (as cartas, ambas dirigidas a Antônio Se-les) em canto nenhum, Pedro Nava foi quemme arranjou esse material, tinha muita coisaimportante lá.

E outras pessoas do Sabadoyle ... O Drum-mond, por exemplo, Carlos Drummond deAndrade contava muita história do AméricoFacó (poeta e jornalista ceerensei, que foicolega dele de repartição. Um dia, pegueiuns poemas que eu tinha pesquisado aquiem Fortaleza da fase parnasiana do AméricoFacó, que ele renegou completamente; elepublicou depois Poesia Perdida, já nos anos50, uma poesia moderna, meio clássica, her-mética. E eu fiz um artigo e saí puxando ospoemas que eu tirei do Jornal do Ceará (fun-dado em 1904 por Valdemiro Cavalcante,que tinha sido da Padaria Espiritual).

Pois bem, no Jornal do Ceará foi que euencontrei esses poemas parnasianos doAmérico Facó, era quase tudo desconhe-cido e eu copiei muita coisa. Mostrei aoDrummond o artigo, e ele achou muito in-teressante, aí eu perguntei a ele: "Mestre,o senhor acha justo, já que o poeta rene-gou essa fase parnasiana dele, é justo queeu desenterre isso e publique?" E ele, comaquele jeito dele, disse assim (imitandoDrummond): "Defunto não tem direito a

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nada" (risos).E o que é mais curioso desse Sabadoyle é

que o Plínio achou - ele sabia que eu estavalá de passagem, eu estava fazendo um curso-, mas ele achou que eu tinha que ser umsabadoyliano de verdade, botou até meu re-trato na parede, tinha um retrato meu lá. E hádois livros sobre o Sabadoyle em que eu soucitado como um componente do grupo.

Síria - Você acha que você seria quemvocê é hoje se você não tivesse convividocom tantos escritores importantes?

Sânzio - É difícil dizer isso, muito difí-cil. .. Mas eu tenho a impressão de que eume enriqueci muito com a convivência comesse pessoal. Inclusive eu só citei aqui depassagem um nome muito importante naminha vida, que é o Braga Montenegro.Braga Montenegro foi um dos meus gran-des amigos, padrinho do meu único filho,o Lívio ... O Braga Montenegro me incenti-vou muito, prefaciou um livro meu, Poesiade Todo Tempo. Aliás, esse livro, de 1970,quando eu publiquei, eu coloquei na dedica-tória: para Artur Eduardo Benevides, BragaMontenegro e Fran Martins.

Fran Martins foi outro que me incentivoumuito. Aliás, vocês não me perguntaram,não, mas eu vou dizer: a minha entrada naAcademia Cearense de Letras... Quandomorreu o Sidney Neto, em 72, o Cláudio(Martins, irmão de Antônio Martins Filho)me telefonou (imita voz grave): "Sânzio,agora é você". Porque o Cláudio era assim:ele era vice-presidente da Academia, nãoera nem o presidente, o presidente era oEduardo Campos, mas ele era muito auto-ritário. E ele: "Sânzio, agora quem entra évocê". "Rapaz, que é isso ..." "Não, você temque entrar". Aí eu saí pedindo voto, que épraxe e tudo mais.

E o Cláudio me revelou uma coisa que eunão sabia: foi o Fran Martins quem se lem-brou do meu nome para ser da Academiaquando o Sidney morreu, o que não era me-recido, porque eu tinha apenas uns opuscu-lozinhos, um livro e dois ou três opúsculos,quase nada. Aí eu escolhi, naturalmente,o Fran para me receber (na solenidade deposse). Depois que o Fran morreu, o doutorMartins, Antônio Martins Filho, pediu paraeu organizar o Pireu, Ida e Volta, (livro) decrônicas do Fran, e na abertura eu revelouma coisa que eu descobri depois: a únicapessoa que o Fran Martins recebeu fui eu.Ele nunca tinha recebido ninguém. Porquetem uns que ... O Artur recebeu bem umas50 pessoas (risos). O Fran só recebeu amim, como eu só recebi ao Dimas Macedo(poeta e professor da Faculdade de Direitoda Universidade Federal do Ceará) e espero

não receber ninguém mais.Edwirges - Sânzio, além da literatura,

você também admira outra bela-arte, que éa música. E aos 18 anos você compôs umavalsa chamada Cinzas do Passado, que aca-bou se tornando sua primeira e única. Porque não deu continuidade?

Sânzio - Aí é um mistério. Como dizia oMário de Andrade, em alguns poetas jovensa poesia é uma brotoeja, que nasce e desa-parece. Essa (valsa) aí foi só uma brotoejamesmo. Essa valsa (Cinzas do Passado) real-mente foi até comentada na época, pelo pes-soal que entendia de música, porque eu nãosabia (quando compôs) o que diabo era me-nor nem maior, tom menor nem tom maior.Eu não sabia, eu não tinha noção de nada.

Agora, o que é mais curioso dessa valsaé que o Fernando Hugo, que é um cantoraqui do Ceará - cantava com a gente quandoeu tocava com Pedra Ventura (violonista), etudo -, canta parecido com o Sílvio Caldas(famoso cantor e compositor das décadasde 30 e 40) e ele gravou (a valsa) numa fita.Eu não sei se o Christiano Câmara (pesqui-sador e colecionador cearense, possui gran-de acervo sobre música, discos de cera e devinil) ainda se lembra disso, mas eu dei umafita - fita ou CD, sei lá -, e ele estava ouvindoessa valsa cantada pelo Fernando Hugo. ADouvina, mulher do Christiano Câmara, foie disse assim: "Ô meu bem, que valsa tãobonita é essa que o Sílvio Caldas tá cantan-do?" Ele me contou isso e eu disse para oFernando Hugo: "Fernando Hugo, um elo-gio para mim e para você: para mim porqueachou a valsa bonita, e para você porqueestá cantando como o Sílvio Caldas", quefoi um grande cantor.

Diego - Sânzio, depois dessa valsa quevocê acabou de citar, você aprendeu a to-car instrumentos de corda, inclusive vocêparticipava de um programa na Rádio Uni-versitária, que era o Noites de Serenata. Porque você deixou de tocar? Você tocava noprograma, como é que era?

Sânzio - Não, é o seguinte: ao longo daminha vida eu tenho tocado, assim: eu tocoe depois paro, depois ... Olhe, em 59 - essavalsa aí é anterior a 59, porque em 59 que

SANZIO DE AZEVEDO I 83

A entrev sta es a a ar-cada para o dia 5 de JU ode 2008. No dia 4, Sãnzioliga para o celular de Thia-go, que, naquele momen-to, passava de ônibus emfrente a casa de dona Con-suelo.

Sãnzio ligava para avi-sar que a entrevista nãopoderia ser realizada nodia seguinte, porque eleestava com virose. Outradata foi então acertada: 10de junho, uma quinta-feira,às 15h.

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Meia hora antes da en-trevista, todos já estavamna sala, e o nervosismocomeçava a mostrar seusprimeiros sinais. Às 14h40,Lucíola se vira para Thiagoe sentencia: "Hora de irbuscar o Sânzio".

Conforme havíamoscombinado, passaríamosna sala onde Sânzio esta-ria dando aula para levá-loaté o bloco de Comunica-ção Social. Quando chega-mos, alguns alunos aindaconversavam com ele.

eu comecei a aprender a tocar violão - láem São Paulo eu tocava, assim brincandoe tudo mais, mas nunca me aperfeiçoei.Quando eu voltei (para Fortaleza). aí eu fui ...Estudar é um modo de dizer, eu estudavacom o Miranda Golignac (professor de vio-lão). Ele queria que eu fosse solista, queriaque eu estudasse música, mas eu só queriade ouvido mesmo. Depois eu fui aprenderacompanhamento com o Expedito, Expedi-to Francisco dos Santos (violonista). que jámorreu. Eu parei, foi quando veio meu pri-meiro casamento, eu me afastei.

Na época do programa do Nelson Au-gusto (Noites de Serenata) era um grupo:Pedro Ventura, Saraiva, eu, e havia uns can-tores, havia o cavaquinho do Guedes, doPardal, e o pandeiro do Afrodísio Pamplona,que já morreu. Depois, eu me afastei. Quan-do eu me afasto, pronto, eu paro de tocar,os dedos ficam duros ...

Sim, porque tem um problema interes-sante na minha vida: toda vida eu moro numlugar que não tem ninguém que bata nemnuma lata, quanto mais tocar instrumento.É incrível essa coincidência, porque se eutivesse algum amigo que tocasse bandolime que morasse na outra rua, eu podia atévoltar a tocar.

No tempo da minha mãe, ela cantava eeu acompanhava, cantava aquelas músi-cas com muita modulação (mudança de to-nalidade na música). eu gostava muito deacompanhar, mas ...

Edwirges - Sânzio, seu pai praticamentenunca freqüentou a escola, e ele é conside-rado um dos nossos grandes poetas. E vocêmesmo costuma dizer que ele teve a felici-dade de não saber o que era sujeito ou pre-dicado. Aí eu te pergunto: até que ponto oembasamento teórico, a cadeira da escola,ajuda ou inibe um artista?

Sânzio - Bom, "até que ponto" é meio di-fícil, mas eu posso dar um depoimento meumesmo: eu fazia versos com muito maisfacilidade antes de eu estudar versificação.Depois que eu estudei versificação a pontode ser professor, acabou, eu faço poemascom muito mais dificuldade.

Agora, o que aconteceu com ele é que o

IJEufazia versoscom muito maisfacilidade antesde eu estudarversificação."

meu pai leu muito. Ele mesmo conta, numlivro de memórias (Fortaleza Descalça). queo Abraão de Carvalho tinha uma biblioteca,e ele lia muito. Ele conviveu com pessoascomo Clóvis Monteiro, grande filólogo, en-tão ele tinha quase professores ao lado dele(refere-se ao fato de que a companhia deprofessores fez as vezes de escola para opai Otacílio). Tanto que um tempo ele fezum soneto que terminava dizendo assim:"Que eu seja desgraçado e sejas tu feliz,/que outro te faça o bem que nunca me fi-zeste/ e que não faças nunca o mal que tenão fiz". Esse "te não fiz" é uma apossínclise(tipo de inversão). uma construção muito re-quintada. E o Clóvis Monteiro, que era poetae um grande filólogo, e que era muito ensi-mesmado, chegou e disse: "Otacílio, vocêsabe que você é analfabeto diante de mim".Papai disse: "Eu sei". "Mas eu vou morrer enão faço um verso desses" (risos). Ele (Ota-cílio) ficou todo orgulhoso.

Na verdade, meu pai freqüentou esco-la quando era menino, bem pequenininho,mas ele dizia que tinha umas alpercatas, e aíele botava uma pena de caneta - de escreverno tinteiro, uma pena pontuda - ele enfiavaa pena no pé e ficava cutucando o calcanhardo menino da frente. O menino reclamoupara a professora, e ela escreveu no qua-dro: "Otacílio ..." e o resto papai não sabia,porque ele não sabia ler, só sabia o nomedele. Ele perguntou para um colega: "O queé que tá escrito ali?" E o colega: "Otacílio vaiser preso na latrina". Papai pulou a janela enunca mais quis saber de escola! (risos)

Gustavo - Você fala que na atualidadenão tem produzido tantos sonetos comoantigamente. Você credita essa questão so-mente ao fato de ter adquirido esse conhe-cimento técnico?

Sânzio - Olha, eu diria que isso aí contri-buiu, mas na verdade há um pouco de fal-ta de incentivo ou preguiça. Porque eu vouconfessar uma coisa aqui que vai parecerque eu vou me desdizer, mas eu vou dizerapenas a verdade: uma vez ou outra, a genteforçando, sai alguma coisa. O Virgílio Maia,que é poeta, meu amigo, tinha um jornalzi-nho chamado O Pão, em homenagem ao OPão da Padaria (Espiritual). e eu colaborava.Quando foi um dia, ele arranjou uma gravu-ra de um navio a crayon (carvão) desenha-do por um judeu prisioneiro de Auschwitz(campo de concentração nazista localizadonuma região que hoje faz parte da Polônia).Ele pediu para várias pessoas fazerem umpoema sobre aquilo. Eu fiz um soneto dizen-do que o judeu estava preso, imaginandotodo o povo judeu dentro daquele navio. Eaté que não saiu um soneto tão ruim assim,

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porque eu pus no meu livro (Cantos da An-tevéspera). Quer dizer, um poema feito porencomenda. Aliás, é a tal história: se eu en-tendesse de sair forçando, talvez até saísse- não sei se prestava! Mas eu não gosto deforçar, nesse ponto eu acredito muito nisso,na predisposição. Eu só escrevo quando te-nho idéia de escrever; se não, eu não soucapaz de ficar ... E outra mais: eu acho que jáescrevi tanto que já está bom de parar.

Lucíola - Sânzio, quando o seu amigoCarvalho Nogueira faleceu, em 2001, vocêescreveu um artigo para o Diário do Nordes-te (jornal cearense fundado em 1981 peloempresário Edson Oueiroz) dizendo que,quando recebeu essa notícia, sentiu algocomo se lhe arrancassem um pedaço da ju-ventude. E, falando do seu passado, vocêsempre se refere a pessoas que já falece-ram, pessoas próximas, amigos ... Ao longodo tempo, como você aprendeu a lidar comgrandes perdas?

Sânzio - (Emocionado) Olha ... Como eujá disse, eu tenho 70 anos. Nessa idade, apessoa tem que aprender a lidar com as per-das, e eu já venho lidando há muito tempo.Quando eu era ainda bem jovem, eu ... Umacoisa curiosa: eu sempre tive propensão ater amigos mais velhos do que eu. Inclusiveperto lá de casa tinha uns pedreiros, pinto-res de parede ... Havia uma coisa nas pare-des antigas que se chamava roda pé, era de(cor) roxo-terra. E para fazer esse roda pé, ti-nha que ser uma coisa bem reta. Pegava umfio de barbante, sujava no pó do roxo-terra ebatia, aí formava aquela listra. Alguém tinhaque vir com o pincel, com uma mão muitofirme e pintar, para dali pintar o resto. Haviadois pedreiros, eram o Chico do Caroço eo Nicim, toda vez que eles iam pintar umacasa, chegava a hora de fazer o rodapé:"Cadê o Rafael pra fazer o rodapé?" Eles mechamavam, eu fazia a listrinha do rodapé eeles faziam o resto (risos). Então, eles erambem mais velhos que eu. Cada um que iamorrendo era uma perda pra mim.

Tinha um deles chamado Onofre, por si-nal irmão da minha primeira namorada, elatinha 25 anos e eu 14 (todos riem). O Onofreera um camarada muito valente, um rapazaté bonitáo, valente, moreno. Um dia tomouveneno e morreu. Suicidou-se. Isso eu tinhaquantos anos ...? Quando ele se suicidou eutinha uns 16, 17 anos. Então é isso, ao longodo tempo a gente vai vendo pessoas mor-rendo. Sem falar parentes, né? Tia Maria,irmã de papai, quando morreu eu era meni-no ... Meu pai e minha mãe, eu já era adulto.Amigo, amigo assim mesmo, mais de perto,eu nem me lembro qual foi o primeiro queeu perdi, não. Agora o Carvalho Noguei-

ra. realmente ... Apesar de eu falar com elemais só por telefone ultimamente. A gentevai deixando de se encontrar. Mas foi umbaque. E o Ribamar Lopes morreu agora,ano passado, eu acho, no meio da rua, caiumorto no meio da rua. Agora mesmo (nasemana anterior à entrevista) morreu JoséAlcides Pinto (poeta, contista e romancistacearense, autor de Os Verdes Abutres daColina), atropelado ...

Síria - Você se refere o tempo todo apessoas do passado e a coisas e costumesantigos. Inclusive você não usa computa-dor, você prefere máquina de escrever. Euqueria saber se você se considera um ho-mem do passado.

Sânzio - (Risos) Olha, pensando bem,quando eu dou aula ou quando eu estouaqui com vocês dizendo essas graças, euaté que não me acho muito do passado, não.Mas realmente eu sou muito preso às raízes.Porque, por exemplo, alguém já me disse:"Não, mas hoje não dá mais para escreversem o computador ...n Eu digo: peraí ... Eu jáescrevi 23 livros, todos escritos à máquina- de certo tempo para cá eu escrevo primei-ro a mão e depois passo para a máquina - oque me custa mandar digitar por alguém,por que eu tenho que digitar? Então, se euvivi até hoje sem computador, por que eusou obrigado a ficar com o computador?Não é que eu queira ser velho, não.

Talita - Sânzio, depois de 35 anos demagistério, você vai deixar as salas de aulada UFC...

Sânzio - (Interrompendo) Trinta e cinco, é?Talita - É... (risos de todos)Lucíola - De 1973 até hoje dá 35 anos.Sânzio - Só que aí tem uns interregnos

pelo meio, uns dois anos que eu não deiaula. Mas tudo bem.

Talita - Inclusive a sua esposa nos con-tou que um grupo de 500 alunos da Letrasfez um abaixo-assinado para que você nãodeixasse de lecionar ...

Sânzio - (Interrompendo) Quem contou?Talita - A Fernanda. Do que você mais

vai sentir falta desse período em que você

"Eu até que nãome acho muito dopassado, não. Masrealmente eu soumuito preso às

raízes."

SÂNZIO DE AZEVEDO I 85

No caminho ate o local,Sânzio se mostrou preo-cupado por não ter trazi-do anotações. "Não temproblema. A entrevista ésobre você! E não inventede falar dos outros!", sen-tenciou Alinne.

Ao fim da entrevist,Sânzio percebeu quecelular de Ivna estava nchão. Apesar de insistpara que ele não se incrmodasse, ele só sossegaquando o entregou rumãos da aluna. Um getleman!

Page 25: Sânzio de Azevedo - UFC

No dia seguinte à en-trevista, Sânzio ligou paradestacar que o abaixo-as-sinado feito pelos alunosfoi levado ao então reitorda UFC, Ícaro Moreira, fa-lecido em 17 de abril, queadmirou a iniciativa.

Na pós-produção, pro-curamos Sânzio para tiraralgumas dúvidas da entre-vista: ele disse frases emFrancês, alemão e o nome::le muitas pessoas querão estão nos livros - nem10 Google!

esteve na UFC?Sânzio - Olha, eu vou dizer uma coisa

para vocês: eu, de vez em quando, talvezaté para me preparar ou para enganar a mimmesmo, eu digo que estou doido para quechegue o fim do ano, para eu me livrar. .. Eufico pensando só nas coisas ruins, comocorrigir prova, ver lista de presença, aquelascontas que eu acho chato ... Mas na verdadeeu acho que vou sentir muito, viu? Eu achoque vou sentir profundamente. Porque nes-ses intervalos (depois da aposentadoria, em1994, Sânzio passou alguns anos sem daraula antes de voltar como professor visitan-te) eu sentia, eu ficava assim, imagine ago-ra. Eu estou sentindo, naturalmente - deveser por causa da minha idade -, um carinhomuito maior dos alunos, é uma zoada ondeeu chego. E outra coisa: alunos que eu nãosei nem quem é me cumprimentando (ri-sos)! Toda hora, e todo mundo querendoser meu aluno. É, fazem uma propagandadanada.

Agora não, porque eu pedi ao (Roberto)Arruda (coordenador do curso de Letrasda UFC) que controlasse, mas no semestrepassado eu tive uma turma de 64 alunos.Nem cabia na sala. Quando era dia de prova- porque não vem todo dia todo mundo -,mas quando era dia de prova, eu tinha quepedir a um rapaz bolsista para ele ficar to-mando conta da outra metade da turma emoutra sala.

Gustavo - Sânzio, qual é o seu maiorprazer em dar aula?

Sânzio - Rapaz... (pausa) É difícil dizer,mas um dos maiores prazeres que eu sinto équando eu vejo que o que estou dizendo é al-guma coisa original, entende? Por exemplo,eu chegar e dizer que Machado de Assis teveuma fase romântica e outra realista, isso estáem todos os livros, todo mundo sabe dis-so. Mas eu ensinar, por exemplo, coisas deTeoria do Verso, que pouca gente conhece,ou então sobre Literatura Cearense ... Eu ficofeliz em apresentar um autor bom, Joaquimde Sousa. Joaquim de Sousa é um poetacearense que nasceu em 1855 e suicidou-seno Rio de Janeiro em 1876, com 21 anos deidade. É um poeta que dizia assim: "Não foi

meu coração que dispersou-sei No desertoperdido peregrinol Foi a sina fatal que consu-mou-sei Eu nasci já maldito do destino". Umpoeta desses não é pouca coisa!

Então, eu gosto quando eu vejo os alunosescreverem sobre isso e gostarem disso. Equando eu vejo um ex-aluno meu, como Mi-guel Leocádio Araújo - que não é mais, masjá foi professor substituto (da UFC) - dandoaula, falando de Joaquim de Sousa ... Então,essas coisas assim que eu apresento comosendo mais ou menos originais, eu gosto dever a repercussão, eu tenho muito prazer emapresentar. Sim, e o prazer que eu tenho dever que os alunos sentem que o poeta vale apena. Porque ficar desencavando coisas sóporque o poeta é desconhecido não vale apena, né? Nesse caso do Joaquim de Sousaé porque é um poeta realmente de efeito.

Lucíola - Em um poema seu chamadoÂnsia, do livro Cantos da Longa Ausência,você diz assim: "Ânsia de ter o inatingível!Ânsial de atravessar, num passo, essa dis-tância que me separa da almejada metal quebusca, há muito, o meu ideal de poeta!",isso em 1966. Tantos anos depois, qual éhoje a maior ânsia de Sânzio de Azevedo?

Sânzio - (Risos) Hoje vocês estão comcada pergunta ... (risos) Minha ânsia hoje é(pausa) ... Sossegar. .. (pausa) Minha ânsiaagora seria eu conseguir publicar um resu-mo que eu tenho da Padaria Espiritual, umensaio que eu tenho sobre o Rodolfo Teófilo(fez parte da segunda fase da Padaria Espi-ritual, foi da Academia Cearense de Letrase farmacêutico sanitarista) e eu acho quesó. Eu não tenho mais do que isso. DoutorMartins Filho chegou para mim pouco an-tes de morrer e disse assim: "Sânzio, você éum historiador, um historiador da Literatura,você tem que entrar no Instituto (do Ceará,sociedade de caráter científico, com ênfasenos estudos de História, Geografia e Antro-pologia)". Aí eu fui sincero: "Doutor Martins,se eu entrar no Instituto vai ser mais umaentidade para eu não freqüentar" (risos).

Porque eu sou da Academia (Cearensede Letras), gosto muito da Academia, estouà disposição da Academia, fiz a antologia daAcademia no centenário, faço parte da co-missão da Revista, sempre que precisam demim eu estou a postos, faço até conferên-cia; mas dia de sessão - hoje mesmo estáhavendo uma sessão - eu não piso lá, e ses-são solene eu só vou muito raramente.

Então, eu não iria ao Instituto do Ceará.E isso que eu disse foi muito sincero, maseu não disse tudo. O resto que eu poderiadizer, mas talvez até ele não gostasse, é queeu já tive vontade de entrar no Instituto doCeará. Porque quando eu entrei em 73 na

REVISTA ENTREVISTA I 86

Page 26: Sânzio de Azevedo - UFC

Academia Cearense de Letras, o Institutodo Ceará parece que convidava - não era apessoa se candidatando não, eles convida-vam - e eu tinha vontade de ser chamado,que eu já tinha publicado uns livrinhos dehistória literária etc e tal. Mas com o tempo,com a idade, hoje Deus me livre e guarde!Não, não tenho mais. Passou o tempo. Masa outra coisa que eu não disse é que eu játinha tido vontade, hoje não tenho mais.

Thiago - A gente agradece pela entrevista ...

(Todos aplaudem)

Sânzio Mas vocês pesquisaram,não foi? Descobriram até um artigo sobre oCarvalho Nogueira ... Ave Maria, do arco-da-velha ...

SÂNZIO DE AZEVEDO I 87

Sobre ter falado alemão,Lucíola tentou resolverpedindo para que AlanSantiago, um amigo queestudava aquele idioma,traduzisse a frase. Em tro-ca, ele ganharia uma janelana revista. Valeu, Alan!

Conversando na saiode Sânzio, um alarme decarro soava: "Esse é o ba-rulho da imbecilidade demundo moderno: nunca vum alarme disparar quan-do o carro está realmentesendo roubado!", disse.

Page 27: Sânzio de Azevedo - UFC

Números publicados da revista

Nº 01Ciro Ferreira GomesBlanchard GirãoFrancisco José Lima MatosMarcos Passerine e EJizeu de SousaRosemberg Cariry

Nº 02Francisco Gilmar de CarvalhoJosé Maria Moreira CamposJosé Dias de MacedoRaquel de QueirozDedé de Castro

Nº 03Ângela da Silveira BorgesMaria Luiza FontenelleAdriano EspínolaAntônio Marques dos Santos Neto (Lino Villaventura)Antônio Gonçalves da Silva (Patativa do Assaré)

Nº04Juraci MagalhãesMiguel Ângelo de Azevedo (Nirez)Luiza de Teodoro VieiraFrancisco Magalhães de Barbosa (Zé Pinto)José Tarcísio Ramos

Nº 05Fausto NiloManfredo Araújo de OliveiraJosé AlbanoHeloísa Juaçaba

Nº 06Agostinho GóssonKátia FreitasZé de LimaEduardo Campos

Nº 07Antonieta NoronhaNarcélio LimaverdeXyco TheóphiloLuizianne Lins

Nº 08Tom BarrosBeatriz FurtadoFirmino HolandaMaurício Silva

Nº 09Joaquim dos Santos Rodrigues (Seu Lunga)Irapuan LimaHarbans Lal AroraLira Neto

Nº10Inácio ArrudaPatrícia GomesRaimundo Fagner

eno CavalcanteJosé Amaro Sobrinho (Bodinhol

Nº 11Sebastião BelminoAlemberg QuindinsIrmãos AniceteSimião MartinianoMainhaOrlando Sena

Nº12ManassésTasso JereissatiGeneral Torres de MeioMuriçoca

Nº13Raimundo RosélioMarcílio MacielFrei BettoNiéde Guidon

Nº14Luis-Sérgio SantosEdilmar NorõesGuilherme NetoÁgueda Passos

Nº15Oswald BarrosoPadre Haroldo CoelhoJoão Inácio JúniorRené Shaerer

Nº16Wolney OliveiraChico do CaranguejoDemitri TúlioGlória Diógenes

N° 17Paulo DiógenesJawdat-Abu-EI-HajFlávio SampaioJoão Alfredo

Nº18Peregrina CapeloChristiano CâmaraFrancisco SimãoHermínio Macêdo Castelo Branco (Mino)David Duarte

Nº19Themístocles de Castro e SilvaJoaquim de SousaJosé Hamilton RibeiroAlexandre FlemingCid Ferreira GomesKarim Amouz

Nº 20Terezinha MapurungaWaldonysCaco BarcelosSânzio de Azevedo

Page 28: Sânzio de Azevedo - UFC

A revista Universidade PúbJicaestá de cara nova.

Mudanças na identidade visual, modernização da logomarca. A revista

Universidade Pública mudou, preservando sua essência. Temos agora uma

leitura mais agradável, mas não abrimos mão de continuar trazendo bons temas

e textos sobre a vida universitária, o ensino, a pesquisa e a extensão, pois é o

que tem, ao longo de nossosoito anos, consolidado a UPcomo um importante

veículo de comunicação dentro e fora da Universidade Federaldo Ceará.