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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA MESTRADO EM LITERATURAS PORTUGUESA E AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EDUARDO SILVA RUSSELL SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, LEITORA DE POETAS Niterói, março de 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA

MESTRADO EM LITERATURAS PORTUGUESA E AFRICANAS DE LÍNGUA

PORTUGUESA

EDUARDO SILVA RUSSELL

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN,

LEITORA DE POETAS

Niterói,

março de 2017

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EDUARDO SILVA RUSSELL

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, LEITORA DE POETAS

Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura. Linha de Pesquisa: Literatura, Teoria e Crítica Literária

Área de Concentração: Literatura Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa

Orientadora

Profª. Drª Ida Maria Santos Ferreira Alves

Niterói,

março de 2017 �2

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

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R962 Russell, Eduardo Silva.

Sophia de Mello Breyner Andresen, leitora de poetas / Eduardo Silva Russell. – 2017.

150 f. Orientadora: Ida Maria Santos Ferreira Alves. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literaturas) – Universidade

Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2017. Bibliografia: f. 100-108.

1. Poesia portuguesa - Século XX – História e crítica. 2. Andresen, Sophia de Mello Breyner, 1919-2004. 3. Torga, Miguel, 1907-1995. 4. Camões, Luis de, 1524?-1580. 5. Meireles, Cecília, 1901-1964. I. Alves, Ida Maria Santos Ferreira. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

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EDUARDO SILVA RUSSELL

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, LEITORA DE POETAS

Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura. Linha de Pesquisa: Literatura, Teoria e Crítica Literária.

Área de Concentração: Literatura Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________

Profª. Drª Ida Maria Santos Ferreira Alves – UFF (Orientadora)

___________________________________________________________________________

Profª. Drª Claudia Fernanda Chigres – PUC/RJ

___________________________________________________________________________

Profª. Drª Mônica Genelhu Fagundes – UFRJ

___________________________________________________________________________

Profª. Drª Paula Glenadel Lima – UFF (Suplente)

___________________________________________________________________________

Profª. Drª Sofia Maria de Sousa Silva – UFRJ (Suplente)

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Aos meus pais, que me deram asas.

Aos meus professores, que me ensinaram a voar.

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AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), pelo incentivo financeiro que

viabilizou o desenvolvimento desta pesquisa.

À Universidade Federal do Rio de Janeiro, que me abriu as portas da poesia.

À Universidade Federal Fluminense, que me ensinou a melhor ver a poesia.

À Mônica Fagundes, minha primeira grande professora de Literatura Portuguesa, por me

apresentar a riqueza do além-mar, um encantamento.

À Sofia Silva, minha primeira orientadora, por me ajudar a caminhar, por me mostrar os

caminhos por onde andar, por compartilhar a sua paixão pela poesia andreseniana, por me

mostrar um mundo novo.

À Ida Alves, minha orientadora, por me abraçar do outro lado da Baía de Guanabara, por

amenizar as minhas angustias, por me ensinar com humanidade, respeito, cuidado e rigor.

Aos meus pais, pelos valores que me deram, pelos conhecimentos que me proporcionaram,

pelas discordâncias que tivemos, pelo amor mais puro que sinto.

Aos professores(as) Célia Pedrosa, Claudia Chigres, Diana Kingler, Paula Glenadel, Luís

Maffei, Vera Lins, pelas aulas, conversas e sugestões que me ajudaram nesta dissertação.

À Emanuelle, minha irmã, pelo afeto e pelos laços impagáveis.

À Selena, minha psicanalista, por segurar em minha mão e me manter firme.

Aos meus amigos – todos eles! –, pelo que construímos sobre amor e eternidade.

Ao Fillipe, por me trazer as cores que faltavam.

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Mar, metade da minha alma é feita de maresia

Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,

Que há no vasto clamor da maré cheia,

Que nunca nenhum bem me satisfez.

E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia

Mais fortes se levantam outra vez,

Que após cada queda caminho para a vida,

Por uma nova ilusão entontecida.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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RESUMO

O presente trabalho, concentrando-se na escrita ensaística de Sophia Andresen, e sem deixar

de examinar sua poesia, objetiva discutir as relações que se podem estabelecer entre sua obra

com a de outros autores a quem dedica ensaios. Para isso, os textos assinados pela poeta sobre

“A poesia de Cecília Meireles”, “Miguel Torga, os homens e a terra” e “Luís de Camões:

ensombramento e descobrimento” são os eixos em torno dos quais se desenvolve a

dissertação que tem como propósito demonstrar como Sophia lê a poesia de determinados

poetas e por que os lê. Em paralelo, examinar-se-á o texto ensaístico como produção

específica e, em particular, o andreseniano como cena reflexiva e criativa sobre o próprio

lirismo. Além disso, interessa observar o eco da voz de Sophia nos poetas sobre os quais se

debruça, ou seja, como algumas das temáticas valorizadas pela poetisa na obra dos outros

autores comparecem em sua própria poética.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia portuguesa do século XX; Sophia de Mello Breyner Andresen;

Miguel Torga; Luís de Camões; Cecília Meireles; modernidade; crítica de poesia; ensaísmo �8

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ABSTRACT

The present work’s goal, by focusing on Sophia Andresen’s essay writing while also

taking her poetry into account, is that of discussing the connections that can be

established between her work and that of other authors to whom she has dedicated

essays. To that end, the poet’s “A poesia de Cecília Meireles”, “Miguel Torga, os

homens e a terra”, and “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento” are the

bases upon which this dissertation will be presented, as a way of showing how

Andresen interpreted certain poets’ poetry and why she read it. At the same time, I will

examine the essay as a specific production and particularly Andresen’s work in the field

as a reflective and creative setting for lyricism itself. Furthermore, I aim to look into the

echo of Andresen’s voice among the poets she addresses, i.e., to analyze how some of

the subjects she cherishes within other authors’ oeuvre can be noticed in her own

poetics.

KEYWORDS: Portuguese poetry of the 20th century; Sophia de Mello Breyner

Andresen; Miguel Torga; Luís de Camões; Cecília Meireles; modernity; Poetry

criticism; Essayism

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 12

2. SOPHIA, POETA CRÍTICA 18

3. A POÉTICA DE SOPHIA 28

4. SOPHIA, LEITORA DE POETAS 38 4.1 “Só em poesia se pode falar de poesia”: Sophia lê Cecília 41

4.2 “A busca da aliança sem mácula”: Sophia lê Torga 61 4.3 “O tempo duma profunda tomada de consciência”: Sophia lê Camões 77

5. CONCLUSÃO 95

6. BIBLIOGRAFIA 100 6.1. De Sophia de Mello Breyner Andresen 100

6.2 Entrevista a 100 6.3 Sobre Sophia de Mello Breyner Andresen 101 6.4 Dos poetas 104

6.5 Teórico-crítica 104

7. ANEXOS 110

7.1 Hölderlin ou o lugar do poeta 110 7.2 Poesia Revolução 114 7.3 A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda 118 7.4 A poesia de Cecília Meireles 121

7.5 Torga: os homens e a terra 135

7.6 Luís de Camões: ensombramento e descobrimento 139

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_________________________________________________________________Introdução

Era preciso cantar a Terra toda

Mas mais que tudo as praias e as

florestas

Onde incessantemente se renovam

Desertos desumanos e desumanas festas

Sophia de Mello Breyner Andresen

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1.INTRODUÇÃO

Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto, em Portugal, em 1919 e

publicou seus primeiros livros na década de 40: Poesia, em 1944; Dia do Mar, em

1947. Mesmo não sendo filiada a nenhum grupo específico, apesar de publicar com

outros autores, como Jorge de Sena, nos Cadernos de Poesia, e também ter produzido

textos para as revistas Árvore e Távola Redonda, são os livros de poesia da autora os

apontados como vetores das transformações poéticas pelas quais a literatura portuguesa

passa na década de 50. Em uma entrevista publicada na Revista do Instituto de Cultura

de Língua Portuguesa, Eduardo Prado Coelho assinala que os poemas de Sophia

mostram a “soberania da palavra poética, exigência de uma palavra pura e justa,

vinculação da justeza do poema à justiça da cidade, retorno de uma infinita exigência de

sacralidade expansiva” (COELHO, 60:1986). Após esses livros, publicou Coral (1950),

No tempo dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto

(1962), Geografia (1967), Dual (1972), O Nome das Coisas (1977), entre outros

inúmeros textos, como os ensaios, que estão espalhados por diversos jornais e revistas.

A leitura atenta da produção escrita de Sophia de Mello Breyner Andresen é

capaz de delimitar um caminho que a autora percorreu em busca de respostas (ou

perguntas) para si e para a sua poesia. O intitulado “No poema”, do Livro Sexto, nesse

sentido, pode ser destacado como uma síntese da tarefa fundamental da escritora mesmo

diante das vicissitudes da sua obra.

NO POEMA

Transferir o quadro o muro a brisa A flor o copo o brilho da madeira E a fria e virgem liquidez da água Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar de decadência morte e ruína O instante real da aparição e de surpresa Guardar num mundo claro O gesto claro da mão tocando a mesa (ANDRESEN, 453: 2015)

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Uma das questões que atravessa a obra poética andreseniana tem a ver com a

busca por um mundo claro, um mundo em que a pureza e a beleza da arte sejam

preservadas em seu instante, um mundo possível na poesia e que deve servir de

referencial para o homem. Sophia assume a missão de manter a arte em um campo

superior ao mundano, mas que ao mesmo tempo se posicionasse contra o fascismo que

afligia o seu tempo. Isto é, a arte deveria situar-se em um lugar que dialogasse com o

humano sem que os problemas políticos e ideológicos, por exemplo, atingissem (ou se

confundissem com) aquilo que seria o poético. Nesse sentido, é importante dizer que o

projeto de Sophia Andresen se funda, sobretudo, na busca pela beleza e pureza da arte

conjugadas à justiça e à justeza desta. É possível perceber em seus textos que o poeta

precisa exercitar a reflexão a respeito do trabalho do artista – em particular em tempos

de censura – para que o trabalho poético seja capaz de transformar o mundo. Na obra da

autora, há um esforço de escrita para que os versos não se percam na linguagem comum

e nas experiências irrefletidas do cotidiano.

A presença tão marcante da natureza e das coisas, além do uso preciso e exato

das palavras, que tanto defende, por exemplo, pode ser entendido como estratégia de

preservação desse lugar que seria o do poético. Esse lugar, porém, não deixa de ser

revolucionário e ligado às questões humanas, já que cantar o mundo ideal configura um

posicionamento diante de uma comunidade. A necessidade de escrever sobre um mundo

novo, um mundo pressentido e habitável advém, sobretudo, da verificação da pouca

humanidade entre os homens na sociedade em que efetivamente vive.

Além de escrever poemas, a autora dedicou parte de sua produção à prosa,

contos infantis, peças teatrais, traduções e ensaios. Examinando, particularmente, o

último gênero textual citado, objetivamos apresentar o modo pelo qual a formulação de

premissas críticas por parte de Sophia sobre a obra de outros poetas de língua

portuguesa auxilia na compreensão de seu próprio entendimento sobre a poesia. E,

nesse sentido, é importante ressaltar que a produção ensaística da autora não tem sido

examinada e, por isso, a dedicação a esses materiais tem como pressuposto explorar

uma nova vertente de leitura crítica da obra andreseniana. Cecília Meireles, Miguel

Torga e Luís de Camões são alguns dos poetas sobre os quais escreveu ensaios. Ora

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diversas, ora semelhantes, as reflexões a respeito desses escritores auxiliam na

compreensão do universo poético andreseniano, como se, ao falar deles, estivesse

falando de si mesma. Por isso, acreditamos que estudar seu ensaísmo crítico pode ajudar

a entender os valores que movem a poeta.

Visto que esta pesquisa se baseou na análise e reflexão de dados obtidos a partir

da leitura de poemas e ensaios da referida escritora portuguesa, o recorte da fortuna

crítica a respeito de sua obra foi realizada com o objetivo de investigar, particularmente,

a relação que a sua produção ensaística constrói com a poética, explorando, para isso, as

características da escrita deste gênero textual e, ainda, a importância destes textos para a

obra andreseniana.

Desse modo, o nosso trabalho confronta os textos críticos em prosa e textos em

versos da própria Sophia, procurando explorar um itinerário de escrita que seja capaz de

apresentar os interesses artísticos da autora ao longo de suas publicações. Por meio dos

estudos já realizados sobre os livros de poemas da autora, sabemos que a tônica dos

primeiros livros publicados ainda na primeira metade do século XX se distancia dos

livros publicados na segunda metade, por exemplo. Por esse motivo, portanto, queremos

ler Sophia por seus textos críticos, por seus interesses de leitura, pelos poetas sobre os

quais se debruçou em determinados momentos de escrita, mostrando, a partir desses e

outros textos que selecionamos. a recorrência de temas que se fazem ver em sua obra.

No intuito de compreender o desenvolvimento da produção ensaística de Sophia

de Mello Breyner Andresen, utilizaremos também seus textos de caráter mais teórico,

que são aqueles em que medita sobre o papel do poeta, como as "Artes Poéticas".

Acreditamos que esses textos são fundamentais à nossa hipótese de que Sophia fala

sobre si a partir de outros autores no intuito de pensar a sua poesia e a sua escrita diante

do mundo. Sobre isso, é de grande relevância apontar que os ensaios que escolhemos

para esta análise são aqueles escritos sobre três grandes poetas de Língua Portuguesa,

poetas que possuem vozes e temáticas que ecoam bastante nos países lusófonos, em

especial. Cecília Meireles, Miguel Torga e Luís de Camões, os quais são lidos pela

autora de Coral como nomes que treinaram sua dicção, como mestres que a ensinaram a

ler, escrever poesia e, ainda, a entender o peso da língua que usam e compartilham.

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Assim, os textos sobre esses três poetas nos interessam, pois eles se ligam, entre

outros fatores, ao código linguístico (e tudo que este carrega) de Sophia, porque foram

esses escritores os selecionados e prestigiados pela crítica de Sophia, porque foram

esses nomes que a guiaram e que serviram como sua base de estudo. Por isso, mesmo

que existam outros textos críticos, como o escrito sobre Hölderlin – que, aliás, não será

desconsiderado em nossa leitura – preferimos, nesta dissertação, pensar sobre os que

foram escritos sobre os autores que escreviam na língua materna da autora, porque

acreditamos que há nesse processo de seleção de poetas realizado por Sophia um

objetivo de reflexão que passa também pela linguagem, não só pelo código linguístico,

mas também pela expressividade e força do seu idioma.

Esclarecemos que há um número pequeno de ensaios de autoria de Sophia de

Mello Breyner. Não existe, até hoje, uma compilação que reúna a obra em prosa (a

crítica e a reflexiva) da autora. Algumas edições de livros de poemas incluem as "Artes

Poéticas", algumas edições fazem, na parte dedicada à listagem de obras da autora,

menção aos ensaios críticos, algumas apontam uma produção mais vasta do que aquela

que está realmente publicada e editada, mas poucas são as fontes disponíveis para

consulta desse acervo específico deixado pela poeta. Diante disso, é evidente que existe

certa dificuldade no estudo detalhado desses textos críticos. Os ensaios que

conseguimos vieram de pesquisadores que se dedicam academicamente à obra

andreseniana, como a professora de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Sofia Maria de Sousa Silva. Outros ensaios foram encontrados em

periódicos do acervo do Real Gabinete de Leitura Português e no site da Biblioteca

Nacional de Lisboa. Aliás, como contribuição a futuras pesquisas, apresentamos nesta

dissertação um anexo que reúne alguns dos ensaios andresenianos que utilizamos. E,

apesar de serem poucos os ensaios, observamos o quão flagrante é a relação destes

quatro poetas. E é instigante compreender como esses textos em prosa podem receber

uma leitura mais atenta, sugerindo, dessa forma, novos questionamentos para a leitura

da obra de Sophia, contribuindo para a sua fortuna crítica, o que permite, portanto,

traçar uma outra face de seu trabalho, a de poeta-crítica. “A poesia de Cecília Meireles”,

“Miguel Torga, os homens e a terra” e “Luís de Camões: ensombramento e

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descobrimento” serão os ensaios que conduzirão nossa reflexão sobre a produção

poética e ensaística de Sophia.

Preliminarmente, pode-se dizer que os poemas da autora são perspectivados,

segundo Maria de Lourdes Belchior, no texto “Itinerário Poético de Sophia”, publicado

no 89º número da Revista Colóquio Letras, a partir de uma determinada recorrência de

temas em um período de tempo . Dessa forma, mesmo sabendo que o texto ensaístico 1

não se enquadra em uma determinada categoria linear e clara de gênero textual, nem

mesmo prescinde de divisões categorizantes que o subdividam em si, e, ainda, sabendo

que estamos diante de um gênero intranquilo, como analisa o professor João Barrento

no livro O género intranquilo: anatomia de um ensaio e fragmento, publicado em 2010,

aprofundaremos nossa análise da produção ensaística de Sophia Andresen a partir da

comparação de textos líricos com os ensaios da autora, uma vez que determinados

temas se fazem presentes nos poemas, nos textos críticos (sobre poemas) e nos textos

teóricos (sobre poesia) de Sophia.

“Desde a publicação de Poesia (em 1944) que o itinerário poético de Sophia de Mello Breyner 1

Andresen se esboçou com nitidez, contendo, incipientes, quase todos os elementos que vão constituir-se como característico do seu mundo.” (BELCHIOR, 1986: 36)

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Sophia, poeta-crítica

Tu me é uma dança em que procuro

A posição ideal, Seguindo o fio dum sonhar obscuro Onde invento o real.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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2. SOPHIA, POETA-CRÍTICA

Sophia de Mello Breyner Andresen, apesar de ser amplamente conhecida por

seus poemas, foi também uma grande ativista política, particularmente no movimento

de resistência à ditadura salazarista, período em que publicou importantes manifestos

políticos em Portugal. Além disso, peças teatrais, traduções e até mesmo cartas fazem

parte de um amplo acervo de textos produzidos pela autora. No entanto, nem todos os

gêneros textuais de sua autoria receberam a atenção da crítica, fazendo com que muitas

das suas publicações em editoras menos expressivas no cenário português e também em

jornais e revistas, por exemplo, ficassem à margem de estudos acadêmicos e críticos.

Em entrevista concedida à Lúcia Sigalo, na Revista Vida Mundial, observamos

que a autora de Navegações aponta o interesse mercadológico de determinadas editoras,

que especulam o potencial econômico de obras artísticas, como um desserviço para

difusão e repercussão de determinada publicação de sua autoria. Por muitas vezes partir

do pressuposto de que a divulgação de objetos, pessoas e nomes deve obedecer

majoritariamente à lógica de mercado consumidor, as estratégias de divulgação de

determinados textos produzidos por grandes autores foram incipientes, fazendo com que

o trabalho de tradução que Sophia escreveu se deparasse com um certo descaso, seja das

editoras, seja dos leitores. O fragmento abaixo, retirado da entrevista, traz à tona, nas

palavras da própria Sophia, o sentimento que paira em relação à questão da divulgação:

Actualmente, em Portugal, o escritor só chega ao grande público através do anúncio e da propaganda. Eu vejo – quando traduzi e publiquei o “Hamlet” não houve nenhuma crítica. Houve uma nota de leitura um pouco mais elaborada de Agustina Bessa Luís. De tal maneira que os meus amigos escritores não sabiam. E, passados tempos, diziam-me: “O quê? Publicaste a tradução do Hamlet?!” E não sabiam. O editor não tinha posto nenhum anúncio, as pessoas não sabem. Ora o livro tem de ter possibilidade de chegar até ao público. Actualmente, está-se a criar uma situação muito falsa. (ANDRESEN, 1989:101)

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No momento em que escreveu, certamente, os mecanismos de publicidade não

deram importância à tradução desenvolvida, nem julgavam, a partir da ótica de compra

e venda, o texto interessante. Sophia relata que a sua produção, apesar de publicada,

ficou praticamente escondida nas estantes, uma vez que a divulgação foi praticamente

inexistente. Ainda que o livro tenha sido vendido, a falta de propaganda colaborou para

a não leitura por parte de possíveis interessados pela sua escrita ou pela de Shakespeare.

E mesmo sendo esse um caso pontual, Sophia nos apresenta uma de suas preocupações

no que tange à formação do público leitor. O tom de denúncia que dá à afirmação com a

qual termina a citação acima pode servir de exemplo para confirmar o quão importante

é para a autora a garantia de divulgação de obras, a garantia de acesso às obras.

Refletindo sobre isso, por, provavelmente, não ser prioridade da editora a exposição do

trabalho realizado, verificou-se a formação de um hiato entre o artista e o público, já

que o alcance limitado deste em relação à obra daquele reforçou a formação de

fronteiras entre o escritor e o leitor. Agindo, muitas vezes, em prol da possibilidade de

aquisição monetária, a crítica atuou de modo dito falseado, atendendo demandas

capitalistas e não propriamente prestando um serviço de informação para a população. A

super divulgação de obras outras, entre as quais os Best-sellers, em detrimento da não

divulgação da tradução de uma obra clássica – e de grande relevância para a sociedade

ocidental – contribuiu para que a sociedade fosse afastada de tal texto e, por assim ser,

privada da leitura e reflexão.

Frente a essa reflexão, não é estranho vir à cabeça a memória da grande chaga

portuguesa do século XX, que é, entre as outras diversas situações problemáticas, a

censura imposta aos meios jornalísticos, artísticos e sociológicos. Por ter cruzado a

maior parte século XX sob a fiscalização da Polícia Internacional e Defesa do Estado

(PIDE), Portugal possuía um grande número de alienados políticos. As escolas

fiscalizadas, as cidades sitiadas e a gestão ditatorial (e intransigente) dos mecanismos de

informação por parte do regime salazarista fez com que uma massa da sociedade

desconhecesse princípios de liberdade que despertavam pelo mundo e também fez com

que diversos portugueses ficassem à parte dos levantes armados e lutas em reação ao

regime de exceção que ocorriam nas colônias em África, por exemplo.

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É possível notar, portanto, que a confluência de opções (sejam as seguidas na

época do totalitarismo português, sejam as seguidas pela imprensa no pós-fascismo)

corrobora o discurso de “situação muito falsa” que Sophia de Mello Breyner, na

entrevista referida, articula para analisar o cenário nacional de direitos e deveres com os

quais as estratégias de poder que rondam o país se identificam. Isto é, se por um lado as

editoras têm o interesse de atender mais propriamente à demanda da oferta e procura, e

por outro lado a PIDE objetivava ocultar fatos em defesa da manutenção de políticas de

opressão, o que se vê, em terras lusitanas, é a formação de uma mídia escorada, ao

longo do tempo, em preceitos que impedem a liberdade de circulação de obras, opiniões

e assuntos de interesse artístico e social. O interesse pela conscientização e divulgação

de objetos, pessoas e artes não parte do compromisso que teoricamente deveria ser

assumido entre o jornalismo e o povo, mas, sim, de questões outras que não o dever

ético de informar e conscientizar a população. A dependência de comandos, militares ou

financeiros, torna a atuação da grande imprensa irresponsável, transbordando, pois, a

sua irresponsabilidade para a sociedade, que permanece à margem das notícias e livros.

Em um texto datilografado, disponível no acervo da Biblioteca Nacional de

Lisboa, encontramos em meio aos materiais andresenianos inéditos, o ensaio intitulado

“A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda (resposta a um inquérito)”, datado em 12

de junho de 1975, para o jornal “O Expresso”, que apresenta reflexão sobre a situação

da leitura, da cultura e da arte, em geral, mostrando o posicionamento que conduz a

visão político-ideológico da escritora em relação ao quadro português no que diz

respeito à valorização e acessibilidade da arte.

Não penso que exista uma arte para o povo. Existe sim uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado através dos meios de comunicação. Primeiro os “aedos cantaram no palácio dos reis gregos o canto venerável e antigo.” Era uma arte profundamente aristocrática. Depois os rapsodos cantaram esse mesmo canto na praça pública. E Homero foi, como se disse, o educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta em comum. E por isso os gregos inventaram a democracia. A cultura começa muito antes da política. Penso que em nenhum socialismo real será possível se a cultura não for posta em comum.

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Quando o aedo, ou o poeta medieval cantavam na praça o seu poema era ouvido por todos, mesmo pelo analfabeto. E viajava por todo país e de país em país: por isso o mirandês canta Mirandolim-Marlbourg. Depois a cultura fechou-se em livros e os analfabetos e os pobres foram rejeitados. Tudo se tornou mais complexo e complexado. As comunidades foram divididas e cada homem foi divido dentro de si próprio. (ANDRESEN, 1975:S/P)

Diversas considerações poderiam ser suscitadas a partir desse fragmento, visto o

número de questões políticas, artísticas, sociais, entre outras, que aí se apresentam.

Porém, é fácil perceber, após sua análise, que o primeiro grande obstáculo que a leitura

enfrenta é a seleção feita pelos meios de comunicação social ou pelas empresas que

manuseiam as artes e, por isso, estabelecem procedimentos que, de algum modo,

excluem certas camadas sociais do acesso à leitura. Para além das polêmicas que

poderíamos levantar, é importante observar que há por trás do processo de escrita e

leitura, uma demarcação classicizante, que, de alguma maneira, cria espaços para alocar

aquele que escreve e aquele que lê. Esses espaços, quando não barreiras, afastam e

segregam as pessoas, já que impedimentos fazem com que o acesso à leitura ou à escrita

seja limitado.

Diante desse quadro, sinalizamos que não se pode atribuir única e

exclusivamente às mídias ou às editoras a pouca atenção aos textos em prosa de Sophia

de Mello Breyner Andresen. Sabe-se que outros diversos fatores concorrem para a

repercussão ou não de uma obra. Aliás, apontamos que não há, aqui, o objetivo de

definir um ou mais pontos que justifiquem a não divulgação e análise de alguns textos

da autora de Dual. Na verdade, quer-se convocar à reflexão as indagações que surgiram

durante o desenvolvimento deste estudo sem que, com isso, determinemos, de modo

raso, uma visão que leve ao esgotamento da discussão.

É evidente que um poeta é um escritor, alguém que, com a palavra, desenvolve a

sua arte. Um escritor, porém, mesmo ao se dedicar e se aprimorar em uma forma de

escrita, não se limita a ela. No caso de Sophia de Mello Breyner Andresen, é possível

observar que a sua visão poética é anterior à leitura e à escrita formal. Na “Arte Poética

V”¸ Sophia diz:

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Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura. Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstancias ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio. (ANDRESEN, 2015: 898)

Certamente, o poema é o gênero textual que mais interessa à Sophia. No

entanto, os gêneros em prosa também se fazem ver no acervo de publicações da autora.

Os textos ensaísticos, em particular, situam-se num entre lugar não apenas do cânone

literário de modo mais geral, mas também no conjunto da obra andreseniana. A

professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Vera Lins, no texto intitulado

“Poetas críticos”, aponta que

Desde Baudelaire, na modernidade, o poeta é crítico e exerce no poema um pensamento que é reflexão, pensamento sobre o pensamento que se dá em ato. E é também desde Baudelaire que o poeta se desdobra em ensaísta, exercendo a crítica como reflexão sobre a literatura e as artes em geral. (LINS, 2014: 109)

Ao estudar, particularmente, a atividade literária dos meados do século XX, no

Brasil, Vera Lins percebe que o trabalho de escrita na modernidade é redefinido,

mostrando que a relação entre a composição do ensaio e do poema se constroem de

maneira simbiótica. Nota-se que o poeta crítico é aquele para quem o ato de poetar se

torna problemático. A produção poética é algo a ser refletido, algo questionado (ou

problematizado), algo a ser reinventado desde suas bases. Nesse cenário, o ensaio

alimenta-se do poema e o poema alimenta-se do ensaio. Este, com conteúdos vários e

formas assimétricas, então, passa a situar-se no intervalo entre o poético e o filosófico.

Para a professora, os “poetas-críticos como críticos-poetas conseguem, talvez pela

forma, dizer algo a mais ou outro. Há alguma coisa no seu trabalho com o conceito que

difere, quando a sua reflexão extrapola o poema e se estende ao ensaio crítico.” (LINS,

117:2014). Pensando o pensar, “Costa Lima, comentando Lukács, diz que no ensaio de

tal modo queimam as questões que não há espaço possível para que em formas se

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resolvam”(LINS, 117: 2014). O ensaio, segundo Schlegel, seria um “poema

intelectual”. (Idem).

Dessa forma, estudar Sophia não só como poeta, mas também como uma poeta-

crítica pressupõe redefinir arestas e tensionar as análises – que já são muitas – sobre o

trabalho artístico da autora. Nesse aspecto, sinalizamos que o estudo que parte de uma

análise qualitativa – muitas vezes perspectivada pelo juízo altamente subjetivo do gosto

– de um texto pode cometer injustiças, desprezando o esforço e até mesmo a

originalidade de um escritor em prol de categorias classificatórias engessadas. Desse

modo, acreditamos que os ensaios de Sophia podem (e devem) ser estudados à luz da

leitura reflexiva, que exige uma atenção cadenciada, uma atenção à forma, ao conteúdo,

aos temas e assuntos que convocam o leitor para a aventura do texto.

Apesar dos diversos prêmios atribuídos aos livros de Sophia e de já há um tempo

seu nome fazer parte do cânone literário português, vê-se que a ensaísta não foi

estudada inteiramente em sua vertente crítica e teórica. Uma rápida conferência nos

bancos de teses de mestrado e doutorado confirma a ausência de estudos a respeito dos

textos críticos e teóricos de Sophia. Diversos são os trabalhos que meditam sobre seus

poemas, que exploram os diálogos de sua poesia com a de outros poetas. Porém, o seu

lugar enquanto crítica literária é, ainda, desconsiderado. É bem verdade que não há uma

publicação que reúna a sua produção crítica, mas os textos existem, circulam e, apesar

de difícil acesso, servem de material para os pesquisadores que se dedicam à autora.

Recupera-se, então, com o presente trabalho o espaço do ensaísmo como uma

atividade que está ligada ao exercício intelectual de pensar o valor das ideias, de refletir

sobre determinadas questões que já foram pensadas ou preconcebidas em momentos

diversos da vida de um escritor. Ora, se em um texto ensaístico se fala de uma teoria ou

de um artista, por exemplo, se o autor traz ao corpo do material que escreve comentários

x e, não, y acerca de uma arte ou artista, podemos pensar que o ato de escolha dessas

reflexões é motivado, entre outros motivos, por experiências externas à leitura das

obras. Isto é, a produção de um ensaio já está fadada ela mesma à subjetividade, fadada

à seleção de aspectos textuais que obedecem ao conhecimento e à experiência de mundo

de um escritor. Ensaiar – aproximando, propositalmente, o verbo ao substantivo

“ensaio” – seria, pois, exercitar a individualidade através de um diálogo com algo 23

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maior, ou seja, através daquilo que já é conhecido e já foi, de alguma forma, ponderado

por quem escreve. Se o indivíduo é marcado pelas mais diversas experiências, se a

construção do eu é fortemente marcada pelas experiências acumuladas ao longo da vida,

o que é escrito corresponde a um todo que envolve não apenas a matéria analisada, mas

também questões ideológicas e intelectuais que transformam o ensaio em algo

especular. Fala-se da coisa, falando, assim, de quem fala sobre a coisa.

Tomando como base as teorias levantadas por Theodor Adorno, no texto “O

ensaio como forma”, pode-se destacar que tal gênero textual é feito por meio de

reflexão e também através de um árduo processo de interpretação que não tem como

objetivo chegar, necessariamente, a uma compreensão meramente lógica e total sobre

determinado assunto. Na verdade, o ensaio não segue os moldes científicos, mas

“assume em seu próprio proceder o impulso anti-sistemático e, sem cerimônias,

introduz ‘imediatamente’ conceitos tais como os recebe e concebe” (ADORNO: 2003:

176).

Ao contrário do pensamento axiomático, portanto, “o ensaio se torna verdadeiro

em seu avanço, que o empurra para além de si mesmo, e não na obsessão por

‘fundamentos’ como quem cava em busca de tesouros” (ADORNO, 2003:177). Assim,

por ser elaborado, muitas vezes, a partir da produção do outro, esse texto parte da

experiência particular que cada autor tem diante do objeto que examina. Essa

experiência, escorada em um contexto concernente ao momento em que é redigido,

consiste em

uma referência a toda história; a experiência apenas individual, como a que tem início a consciência como aquilo que lhe é mais próximo, está ela mesma já mediada pela experiência mais abrangente da humanidade histórica; e a concepção de que, ao invés disso, a experiência da humanidade histórica seja mediada, mas o individual seria em cada caso o imediato, isso é mero auto-engodo da sociedade e da ideologia individualistas. (ADORNO, 2003:174)

À luz dessa reflexão, pode-se dizer que Sophia, enquanto ensaísta, não apresenta

pura e simplesmente as suas impressões sobre a obra de outros autores sem que haja,

por trás disso, uma construção meditativa acerca da arte. Em meio às publicações de 24

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seus ensaios, é possível verificar que o motor condutor de seus textos vai para além da

caracterização dos poetas e das ponderações sobre as produções deles. Um universo

maior, que tenta verificar o papel da arte e do artista, estabelecer caminhos para poesia,

dialogar com a história, entre outros, é paulatinamente construído por suas palavras.

A título de exemplo, podemos notar que, na “Arte Poética I”, de 1962, quando

Sophia escreve sobre a “ânfora de barro pálido” (o próprio poema), que está diante de

um tempo em que há a “aliança ameaçada”, a “aliança quebrada” e o “reino vulnerável”

(menções aos tempos de opressão salazarista? menção à condição frágil da civilização

ocidental?), é possível notar que seu texto anseia, grosso modo, manter a arte dentro de

um campo diferente do mundano, mas que, ao mesmo tempo, se posicione contra os

problemas do seu tempo:

Olho para ânfora na pequena loja de barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol. Olho para ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível. Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis, nem Deméter, nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino. (ANDRESEN, 1995: 835)

Sobre isso, a professora Helena Carvalhão Buescu, da Faculdade de Letras de

Lisboa, que dedica parte dos seus estudos à Literatura Portuguesa do século XX,

esclarece que no “país” de Sophia de Mello Breyner Andresen há “uma espécie de

biografia que não é apenas biografia circunstancial – mas uma certa forma de atestação

existencial de valores estéticos que são, intrinsecamente, também éticos” (BUESCU,

2005:47). Ao usar “biografia” para estabelecer o eixo que conduzirá sua reflexão acerca

da poesia de Sophia, Helena Buescu salienta que

faz e não faz sentido falar de biografia: não faz se a pensarmos apenas como escalonamento de uma existência pessoal, que se cumpre em datas e factos designáveis; mas faz sentido, se acompanharmos o

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pensamento de Sophia e pensarmos que uma certa impessoalidade não é incompatível (não pode ser) com uma forte presença de um humano perante os outros humanos, as coisas e a história que com ele habitam o mundo. Essa presença não é uma presença abstracta – antes pelo contrário, resolve-se na concretude e na imediatez do dia, tal como ele se apresenta e é vivido por cada um. E por isso, se não podemos falar de uma biografia ao modo romântico, em que a sobreposição torna indistinta (ou quer tornar indistinta) a fronteira entre vida e escrita, e em que esta se apresenta fundamentalmente como uma modalidade marcada daquela, podemos apesar de tudo falar de uma instância biográfica que é implicada pela escrita, não no sentido em que pessoaliza e subjectiviza, tornando única a experiência, mas no sentido em que atesta a presença de uma dimensão vivencial que torna tal experiência comunicável e partilhável. (BUESCU, 2005:47)

Nessa perspectiva, então, a obra de Sophia poderia ser examinada a partir de

diversos vieses: a investigação de como sua arte aponta para uma tomada de consciência

própria sobre o que é fazer poesia e a relação da sua poesia com o mundo, como

confirma o poeta e ensaísta Joaquim Manuel Magalhães:

A poesia de Sophia Andresen vive de um sortilégio peculiar: o do conflito entre a aspiração e uma plenitude silenciosa, um retorno fulgurante ao sentido espiritual profundo da existência e a declaração ética diante de uma comunidade, o rumor insistente e partilhável em busca de uma justiça acreditada, de uma viabilização da utopia pressentida. (MAGALHÃES, 1981:59)

Portanto, partindo do pressuposto de que as leituras de ensaios aludem às

disposições individuais que motivaram a autora portuguesa no processo de

desenvolvimento desses textos, é possível dizer que a sua concepção poética é trazida à

luz por um processo de reflexão, no qual enquanto leitora de poetas, Sophia pode

também ser lida.

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A poética de Sophia

O JARDIM E A CASA

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.

Continuam as noites e os poentes

Que escorreram na casa e no jardim

Continuam as vozes diferentes

Que intactas no meu ser estão suspensas.

Trago o terror e trago a claridade,

E através de todas as presenças

Caminho para a única unidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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3. A POÉTICA DE SOPHIA

Como já nos referimos, Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu “Artes

Poéticas” que meditam sobre a criação artística. Nas cinco “Artes Poéticas”, como

destacamos a seguir, é possível perceber que, para a autora, o poeta precisa ser

sobretudo:

A) LEITOR

ARTE POÉTICA II

A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. (...) O artista, mesmo aquele que se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. (ANDRESEN, 2015: 891)

B) ESCUTADOR

ARTE POÉTICA V

Fernando Pessoa dizia “Aconteceu-me um poema.” A minha maneira de escrever fundamental é muito próxima deste “acontecer”. O poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto. É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de, na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas. Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento

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natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir. Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador. (ANDRESEN, 2015: 886)

C) ESPECTADOR

ARTE POÉTICA I

Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar. A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética. (ANDRESEN, 2015: 889)

D) CRIADOR

ARTE POÉTICA IV

Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora e mais nítido, ora mais confuso), é minha maneira de escrever. Assim algumas vezes o poema aparece desarrumado, desordenado, numa sucessão incoerente de versos e imagens. Então faço uma espécie de montagem em que geralmente mudo não os versos mas a sua ordem. A esta intervenção não é propriamente “inter-vir” pois só toco no poema depois de ele se ter dito até ao fim. O poema “Crepúsculo dos Deuses” (Geografia) é um exemplo desta maneira de escrever. É uma montagem feita com um texto caótico que arrumei: ordenei os versos e acrescentei no final uma citação de um texto histórico sobre Juliano, o Apóstata. (ANDRESEN, 2015: 896)

ARTE POÉTICA V

No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim me ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização. Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas – coloquei-me no centro do teatro e disse em

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voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim. (ANDRESEN, 2015: 898)

Diante dos destaques, é possível perceber que há no processo de escrita das

“Artes Poéticas” de Sophia de Mello Breyner uma preocupação com o refletir sobre

determinadas tarefas do artista. A tônica desses textos, em particular, e também de

outros da autora mostra que a sua escrita avança no sentido da meditação sobre o ato de

escrita em si, sobre si mesma enquanto artista e sobre o mundo. Na “Arte Poética IV”,

Sophia diz que “É difícil descrever o fazer de um poema. Há sempre uma parte que não

consigo distinguir, uma parte que se passa na zona onde eu não vejo.” (ANDRESEN,

2015: 895). Pode-se observar que a dificuldade sinalizada a respeito da descrição do

fazer poético não é exposta de modo a redirecionar a motivação do poeta. Na verdade,

na sequência, percebe-se que a dificuldade é o estímulo que incita o treinamento dos

sentidos do artista (nesse caso, o do olhar) na busca por uma forma de fazer poesia.

Eduardo Prado Coelho, sobre a obra de Sophia, escreveu:

Poesia, mistério repassado de claridade, a poucos poetas contemporâneos se aplica tão óbvia e viva evidência como a Sophia de Mello Breyner Andresen, aquela a que nós todos, seus amigos e leitores subjulgamos há muito, chamamos apenas Sophia. Há nomes predestinamos. Ou talvez nomes que foram para os seus ocasionais suportes uma luz íntima que os guiou com infalível presciência para o lugar e a posse do que no nome mágico já se anunciava. Sophia – sabedoria mais funda do que o simples “saber”, conhecimento íntimo, ao mesmo tempo atônito e luminoso do essencial, comunhão silenciosa e sem cessar reverberante com tudo aquilo que, por original, a reflexão e seus intérminos labirintos deixarão intacto. (COELHO, 20:1980)

A originalidade da poesia de Sophia – em meio às publicações na corrente do

século XX em Portugal – é lida por Eduardo Prado Coelho, no texto “Sophia: a lírica e a

lógica”, como um marco exponencial das produções artísticas em Portugal, sendo a sua

poesia rica não só pela força dos versos, mas por sua plasticidade. O leitor, diante dos

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versos de Sophia, admirado, paralisa-se, fica mudo diante deles . A anotação hiperbólica 2

do leitor e crítico Eduardo Lourenço vem confirmar a potência da dicção andreseniana,

que, de fato, ressignificou a produção artística portuguesa. Não bastassem os diversos

prêmios atribuídos às suas obras, diversos autores, como Agustina Bessa-Luís, Cecília

Meireles, Miguel Torga, Jorge de Sena e João Cabral de Melo Neto reconhecem a

importância do trabalho poético de Sophia. Desse modo, como forma de desenvolver

uma leitura que explore o emergir da voz poética de Sophia em Portugal, buscamos a

relação que a poeta desenvolveu com o seu contexto histórico como forma de apresentar

aquilo que vem a ser o catalisador de sua poética.

Recorremos, para tal, às teorias literárias desenvolvidas nos séculos

predecessores ao de Sophia. No século XVIII, Immanuel Kant, utilizou-se dos livros e

textos deixados pelo professor e filósofo Alexander Gottlieb Baumgarten para

aprofundar seu estudo sobre o termo “estética”, que fora trazido à luz e descrito pela

primeira vez por Gottlieb. Os estudos kantiano permitiram que os movimentos 3

artísticos encontrassem no conceito de “estética” um porto para a reflexão e pesquisa

sobre determinadas questões da ordem da criação poética. A partir daí, em um

movimento de leitura e pensamento teórico e crítico, a “estética” torna-se uma das bases

para o estudo gnosiológico, sendo esta analisada por Kant a partir de seus diferentes

vieses: a estética como uma espécie de crítica do gosto ou filosofia da arte, e, ainda, a

estética como uma ciência de uma sensibilidade. Frente à profusão do pensamento

crítico-literário que se difunde por toda a Europa, logo nas primeiras décadas do século

XX, a modernidade portuguesa parece se erguer dando sequência, particularmente, à

leitura kantiana de insubordinação da arte a valores morais, por exemplo.

Pedro Duarte, no livro O estio do tempo: Romantismo e estética moderna,

analisa, entre outros assuntos, a emergência filosófica da arte no século XX, partindo de

“Paralisar a crítica – deixá-la muda de admiração. (...) Porque a limpidez desta linguagem dificilmente 2

autoriza a sua duplicação sob a forma de comentário.” (LOURENÇO, 1980: 20)

“A disciplina acadêmica da estética começa tão somente no século XVIII, com a investigação do 3

filósofo alemão Alexander Baumgarter (1714 – 1762). Antes dele, as estéticas sempre estavam integradas em abordagens sistemáticas da filosofia, confundindo-se muitas vezes com reflexões auxiliares e iluminando problemas éticos ou a teoria do conhecimento.” (ROSENFIELD, 2013: 8)

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uma citação de Fernando Pessoa, que em certa ocasião proferiu que “no

desenvolvimento da metafísica, de Kant a Hegel, alguma coisa se perdeu” (PESSOA,

1986: 334). Para o professor Pedro Duarte, Immanuel Kant foi o filósofo que se dedicou

à crítica, mas

Criticar, para ele, não era atacar nada, mas discernir, delimitar. Kant limita a pretensão do conhecimento humano. O sentido negativo da crítica está em que ele nega a chance de alcançarmos a verdade absoluta. Nós só aprenderíamos os fenômenos, ou seja, as coisas como aparecem para nós, e não como são em si mesmas. (...) Ou seja, não pensamos diretamente sobre as coisas, mas sobre as instituições que temos delas. O termo instituição designa um acesso imediato às coisas que é apenas sensível, enquanto a ação de nosso intelecto só chega a tais coisas já pela mediação dessa sensibilidade. (DUARTE, 2011: 27)

Nesse aspecto, a linha que se desenha entre Kant e Hegel é utilizada com a

finalidade de explorar as contribuições que esses estudiosos forneceram aos trabalhos

literários. O fato de Kant estar no marco zero da trajetória filosófica apontada por

Fernando Pessoa é importante para que possamos construir um raciocínio em relação às

correntes teóricas que se fazem presentes no universo dos poetas do século XX. Como é

possível perceber, Kant representa um grande avanço no que diz respeito ao pensamento

sobre o juízo do gosto, sobretudo por propor uma visão da experiência estética como

atividade autônoma, porque “Kant consolida, na era moderna, seu contexto de cisão:

intelecto e liberdade, conhecimento e moral, teoria e prática, finito e infinito, sujeito e

objeto.” (DUARTE, 2011: 27).

Nesse sentido, é preciso dizer que os poetas que se reuniram ao redor da revista

Orpheu celebraram fortemente essa independência da arte, uma vez que permitiu

ampliar e explorar as fronteiras da criação. Cada vez menos submetida a uma moral, a

arte e o seu papel, além do artista e sua missão, passam a ser questionados, sobretudo

por poetas portugueses das décadas subsequentes, como Sophia de Mello Breyner, Jorge

de Sena, Carlos de Oliveira, Mario Cesariny, Adília Lopes. Poetas declaradamente

neorrealistas, como Alexandre Pinheiro Torres, foram alguns dos que vincularam a

poesia à história, exigindo mais explicitamente um comprometimento e subordinação da

arte às questões sociais. 32

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Deve-se salientar que a experiência dos totalitarismos que emergiram na Europa

desde finais dos anos 1920 aos anos 1940, e, no contexto português, a instalação do

Estado Novo, estimulou Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros autores, a se

deparar com a tarefa de buscar um novo sentido para o fazer poético em meio ao caos.

Nesse contexto, desde a publicação de seu primeiro livro, em 1944, Sophia se viu diante

de tal missão, pondo-se a pensar a arte de modo particular e, por assim ser, alternativo

às correntes poéticas do orfismo e presencismo, por exemplo. Pensando sobre a questão,

Helena Malheiro, no livro O enigma de Sophia, aponta que

Se nos três primeiros livros de poesia – Poesia (1944), Dia do Mar (1947) e Coral (1950) – Sophia se vira para um tempo vivido através duma relação originária de pura fruição do real, a partir de No tempo dividido (1954), o sujeito evolui da pura embriaguez temporal, densa e totalizante, para uma consciência ontológica que lhe permitirá reconhecer-se como entidade trágica. Nesta obra, em Mar Novo (1958) e sobretudo em Livro Sexto (1962), Sophia afirma a sua missão de poeta comprometido com a realidade de um presente que urge denunciar. A partir de Geografia (1967) e sobretudo em O nome das coisas (1977), Sophia retomará, embora de forma mais velada e menos realista, a sua luta pela defesa da justiça e dos direitos fundamentais do homem. (MALHEIROS, 2008: 77)

Como é frequentemente analisada pela crítica como uma poeta que fala sobre

vento, mar, pedras, tem-se que ressaltar que a autora em questão tenta encontrar um

caminho entre o comprometimento e a autonomia para sua criação, não configurando a

temática da natureza, por exemplo, um ato de alienação à circunstância histórica em que

se encontra . Sobre isso nos fala a própria Sophia em sua “Arte Poética III”. 4

Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: que não somos apenas animais acossados na

Silvina Rodrigues Lopes no texto “A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen”, aponta que “em 4

Poesia, Dia do Mar e Coral é dominante a nostalgia e desejo de regresso à natureza.” (LOPES, 1990: 18).

Alexandre Pinheiro Torres em “Sophia de Mello Breyner Andresen também no caminho do concreto” diz ser “O mundo do mar, do silêncio, do vento, do luar, da noite, dos deuses, o mundo que Sophia pacientemente edifica nos seus primeiros livros”. (TORRES, 1966:32).

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luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.” (ANDRESSEN, 2011: 525)

Tendo em vista as diretrizes que conduzem o projeto poético de Sophia,

podemos dizer que os seus textos, como as próprias “Artes Poéticas”, tentam apresentar

um painel do que seria sua compreensão a respeito da arte. Pensando não só a estética,

mas também o compromisso com o mundo e a transformação deste, os ensaios e

poemas andresenianos incitam a discussão de como é possível conciliar o trabalho com

a linguagem sem que isso exclua uma meditação crítica acerca da situação de Portugal,

em particular, e da humanidade em geral. A vasta obra da autora, assim, nos possibilita

observar como se dá esse enlaçamento do “pensar poesia” e “transformar pela poesia”.

Autora também de metapoesia, Sophia constrói textos que revelam as

disposições individuais que a motivaram no processo de desenvolvimento deles. Para

chegarmos, então, ao entendimento de como é feita a conjugação de algumas das

diversas direções que a poesia andreseniana busca é válido ressaltar que, ao assinalar as

tarefas do poeta em diversos momentos de sua obra poética, a autora fala de si própria,

muitas vezes, por meio do recurso à terceira pessoa pronominal referente à figura de um

poeta. A título de exemplo, cito o poema “Escrita”, do livro Ilhas, de 1989:

A escrita

No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho Lord Byron usava as grandes salas Para ver a solidão espelho por espelho E a beleza das portas quando ninguém passava

Escutava os rumores marinhos do silêncio E o eco perdido de passos num corredor longínquo Amava o liso brilhar do chão polido E os tectos altos onde se enrolavam as sombras E embora sentasse numa só cadeira Gostava de olhar vazias as cadeiras

Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital Mas a escrita exige solidões e desertos E coisas que se vêem como quem vê outra coisa

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Podemos imaginá-lo sentando à sua mesa Imaginar o alto pescoço espesso A camisa aberta e branca O branco do papel as aranhas da escrita E a luz da vela – como em certos quadros – Tornando tudo atento. (ANDRESEN, 2011:748)

Uma breve análise desse poema, começando pelo título, já revela que há nele

uma natureza metapoética. Ao falar sobre Lord Byron, Sophia observa que ele é um

poeta que se volta à visualização da pureza e da beleza das coisas. Observa que a

solidão é uma condição para a escrita. Observa, ainda, que estar atento é fundamental

para o preenchimento do papel em branco. Indo um pouco além, notamos que o espaço

da escrita é o da casa, do quarto, talvez. O verso “A camisa aberta e branca” sugere

(ANDRESEN, 2011:748) um despojamento típico de um homem em seu aposento de

descanso. A mesa e os espelhos, ainda, poderiam, facilmente, compôr tal cenário. Além

de outros aspectos, importa-nos mostrar como que, falando sobre algum ele podemos

explorar um eu. Para isso, observemos o poema “Arte poética”, que pertence ao livro O

Búzio de Cós e Outros Poemas, de 1997:

Arte poética

A dicção não implica estar alegre ou triste Mas dar minha voz à veemência das coisas E fazer do mundo exterior substância da minha mente Como quem devora o coração do leão

Olha fita escuta Atenta para a caçada no quarto penumbroso (ANDRESEN, 2011:808)

Também com um título que indica a construção de um poema que reflita sobre o

próprio poema, os versos desse texto mostram que o eu que escreve tem como objetivo

“dar [...] voz à veemência das coisas” (ANDRESEN, 2011: 808). Podemos confirmar

isso através da utilização do pronome possessivo minha, que está vinculado à primeira

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pessoa do discurso eu. O metapoema mostra, ainda, que quem escreve está “Atenta para

a caçada no quarto penumbroso” (ANDRESEN, 2011: 808). Na penumbra, na solidão,

no quarto, o eu lírico mostra-se atento à caçada. Se considerarmos, pois, essa “caçada”

como um produto da procura pela poesia, já que estamos lendo um poema intitulado

“Arte poética”, podemos verificar que a procura empreendida por esse eu dentro de um

quarto é feita de tal forma que poderíamos dizer que o eu de “Arte poética” está para o

ele de “Escrita”.

Esse exemplo, portanto, nos ajuda a dizer que a concepção poética da autora é

trazida à luz por uma estratégia de escrita pela qual, enquanto leitora de poetas, por

exemplo, Sophia pode ser lida.

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Sophia, leitora de poetas

Não te chamo para te conhecer Eu quero abrir os braços e sentir-se Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês Um pouco de ti mesmo onde eu habite

Sophia de Mello Breyner Andresen

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4. SOPHIA, LEITORA DE POETAS:

Silvina Rodrigues Lopes, em Exercícios de aproximação, diz que “A poesia de

Sophia, como toda poesia moderna, pensa-se a si própria e é, em larga medida, o

pensamento da sua própria possibilidade, isto é, da possibilidade de uma relação própria

com as coisas e com os outros” (LOPES, 2003:52). Isso justificaria, em alguma medida,

o ato de seleção de autores por parte dessa poeta, mostrando que, ao se debruçar sobre

outros autores, convergências podem ser indicadas, além, é claro, de podermos estudar a

forma como essa relação se estabelece. Importa aqui explorar, em especial, os pares que

Sophia forma junto com a poeta brasileira e com os poetas portugueses. Dessa forma,

seguindo a ordem cronológica de publicação dos ensaios sobre esses escritores,

navegaremos pelos textos de modo a convocar questionamentos e verificar o eco das

vozes dos poetas em Sophia.

Tendo em vista que os ensaios “A poesia de Cecília Meireles”, “Miguel Torga:

os homens e a Terra”, “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento” foram

publicados, respectivamente, em 1957, 1972 e 1980, acreditamos que, a partir deles,

seja possível demonstrar como Sophia dá sequência ao que chamaríamos de reflexão

poética a partir de outros poetas.

Utilizando-nos do “Itinerário poético de Sophia”, de Maria de Lourdes Belchior,

verificamos que o universo de Andresen é marcado por elementos que vão se tornando

característicos ao longo de sua obra, como a presença da natureza, a denúncia das

mazelas sociais, o esforço de trabalhar a linguagem e pensar a poesia, entre outros. A

partir do que diz Belchior, que analisa as características de cada livro publicado pela

autora desde Poesia (1944) até Navegações (1983), ficam evidentes as mudanças pelas

quais a poesia de Sophia passou. Notamos que os ensaios, por sua vez, também

transformaram-se, exibindo, junto com os livros de poemas, temáticas recorrentes em

determinados contextos, e, ainda, explorando uma perspectiva mais engajada a partir de

certo momento.

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Nesse sentido, se encaramos os poemas como construções envolvidas por um

plano teórico (“Artes Poéticas”, por exemplo), poderíamos conjecturar que as

transformações por que passam os versos andresenianos seriam observadas também em

seus textos em prosa, pois as publicações destes ocorrem, muitas vezes, em

concomitância com as publicações daqueles.

Assim, vamos a 1956, quando Sophia escreve e publica um ensaio sobre a

poesia de Cecília Meireles, no qual, além de analisar poemas, aponta determinados

valores da poeta brasileira. No intitulado “A poesia de Cecília Meireles”, Sophia declara

que “A beleza e a verdade dum poema de Cecília Meireles têm que ser

vivida” (ANDRESEN, 1956: 61) e, só assim, “a limpidez da sua linguagem, a

densidade de cada palavra, a exatidão das suas imagens, a nudez do seu pensamento, a

serenidade da sua atitude, a ressonância grave e profunda da sua voz” (ANDRESEN,

1956: 61) poderiam revelar “qual é a sua atitude em frente do mundo e qual é a sua

atitude frente de si própria” (ANDRESEN, 1956: 61). Contudo, ao confessadamente

expor que é necessário viver a poesia de Cecília, ela se une e se confunde com a autora,

o que subsidia a afirmação de que, ao pensar a arte ceciliana, Sophia reflete sobre seus

próprios valores líricos.

Além de Cecília, Miguel Torga comparece aos estudos da escritora e, em 1976,

há a publicação de “Torga, os homens e a terra”, em que mais uma vez se pode observar

um diálogo entre poetas. Para explorar a relação dos dois, recorro ao ensaio intitulado

“Hölderlin ou o lugar do poeta”, no qual Sophia atribui tarefas ao que quer ser poeta,

dizendo ser essencial para o encontro com o inteiro “fazer com que o terrestre não se

perverta em mundano” (ANDRESEN, 1967: 02), o que se aplicaria, nas palavras dela

mesma, a Miguel Torga. No ensaio sobre este, ela diz que a poesia de Torga é

“fundamentalmente a busca da fidelidade no Terrestre, a busca da aliança sem mácula

do homem com o Terrestre; a busca da inteireza do homem no Terrestre (ANDRESEN,

1976: 01). O que é dito sobre Torga, portanto, serviria também a Sophia, uma vez que

suas convicções expressas no ensaio a respeito do lugar do poeta estão em consonância

com o projeto do autor que examina.

Em 1980, para o “Ciclo de Colóquios Camonianos”, na Universidade de

Coimbra, Sophia escreve sobre Luís de Camões. Apesar da referência direta ao poeta no 39

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ensaio “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”, ressalta-se que não é

apenas nesse texto que a autora o cita. Na verdade, ao longo de suas publicações, são

vários os momentos em que se pode ver a presença do lírico do desconcerto. Isabel

Almeida, aliás, em “Se nenhum amor pode ser perdido: Sophia e Camões” nos diz que:

Relacionar Sophia de Mello Breyner Andresen e Camões tem por base uma convicção e uma evidência. A convicção de que Camões é um autor canônico e clássico, e a evidência de que a poesia se faz também de poesia. Em abstracto, teoricamente, justifica-se sem custo uma busca de laços, a prática de Sophia convida a explorá-la. São laços apregoados em títulos “Gruta de Camões”, “Um soneto à maneira de Camões”, “Camões e a tença”. (ALMEIDA, 2013:252)

Também sobre esse autor é possível ver que muitas das observações feitas no

texto a ele dedicado estão em conformidade com as observações da autora de Dual em

suas “Artes Poéticas”. Sobre isso, podemos notar que logo no início do ensaio sobre

Camões, Sophia adverte que a “poesia é o contrário de uma instituição”. Porém, essa

advertência vem seguida da constatação de que o autor d’Os Lusíadas foi transformado

em uma instituição para atender às demandas do regime salazarista. No intuito de

entender essa denúncia, é válido lembrar que, durante o governo de Salazar, houve a

tentativa de reanimar a economia portuguesa para diminuir a defasagem de

desenvolvimento industrial e tecnológico que separava o país do resto da Europa. Além

de investimentos no segundo setor, o projeto do Estado Novo português contava com a

censura, mas, só isso não era suficiente para efetivação do plano. Era preciso que a

população acreditasse no discurso do progresso econômico e aderisse à ideia disso,

mesmo diante de todos os obstáculos que as circunstâncias impunham. Os Lusíadas

podiam representar bem um imaginário de poder e ousadia.

Ao refletir acerca dessa apropriação de Camões pela ditadura, Sophia de Mello

Breyner Andresen diz no ensaio que, ao poeta, “aconteceu mesmo não só ter sido

transformado em instituição, mas também – e para vergonha de todos nós – ser uma

instituição usada e manipulada ao longo dos tempos pelas diversas estratégias do

poder”. (ANDRESEN, 1980:150). Sua denúncia parte do pressuposto de que um poema

não pode servir a um propósito utilitarista, ainda mais se a este poema for atribuído a 40

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função de mantenedor de atitudes agressivas e repressoras, como eram as do Estado

Novo. A vergonha que a autora revela sentir não fica restrita apenas ao fato de que

houve um uso inadequado da obra de Camões, mas também tem a ver com a utilização

da poesia para fins contrários aos dos poetas. Deve-se lembrar que o projeto poético de

Sophia se baliza, entre outras coisas, na busca por uma poesia que mostre a “relação

pura do homem com as coisas. Isto é: uma relação do homem com a realidade,

tomando-a na sua pura existência” (ANDRESEN, 1960:3).

O que se percebe, portanto, é que um compromisso poético é revelado no

processo de escrita analítico-crítica, uma vez que Sophia não apenas escreve sobre

artistas de Língua Portuguesa, mas observa o eco de sua voz na obra deles. Desse modo,

o que se verifica é que, ao falar sobre Cecília Meireles, Miguel Torga e Luís de Camões,

ela experimenta uma situação de reconhecimento, vendo-se através de outras escritas,

de outras líricas. Assim, é possível ver nas anotações da autora de Poesia um gesto de

leitura atenta e condicionada, subjetivada e interessada, uma vez que os temas que

ressalta nos ensaios dialogam com seus poemas datados em períodos próximos aos dos

ensaios.

Portanto, diante dos vários estudos que se podem realizar sobre essa poeta

incontornável da cultura portuguesa, convidaremos leituras e leitores que nos ajudem

com a missão de analisar a encenação da escrita poética-crítica dos seus ensaios sobre

autores de Língua Portuguesa. De antemão, acreditamos que essa teatralização da

linguagem configura um procedimento caro à obra ensaística desta poeta, uma vez que,

ao escrever sobre o outro, o que vem à tona é a dramatização de um eu que empresta a

sua voz a terceiros.

4.1. “Só em poesia se pode falar em poesia”: Sophia lê Cecília

O texto, cujo título é “A poesia de Cecília Meireles”, apesar de conciso,

apresenta algumas breves leituras que Sophia faz da artista e de sua obra poética,

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abrindo caminho para que se possa discutir não só Cecília, mas também a poesia de

Sophia, que se constrói a partir da sua interação com o outro. A atenção que esta dedica

à arte brasileira, dessa forma, mostra-se como um dos caminhos pelos quais é possível

acessar a produção literária da poeta portuguesa. De fato, Sophia de Mello Breyner

Andresen, em Portugal, sempre esteve atenta à literatura e à história do Brasil. Uma

rápida análise do índice de sua obra poética, por exemplo, nos coloca diante de títulos

que reforçam o interesse da poeta pelos que estão no além mar. O capítulo “Brasil ou do

outro lado do mar”, do livro Geografia, em que estão presentes os poemas

“Descobrimento”, “Manuel Bandeira”, “Brasília” e “Poema de Helena Lanari”; além de

outros, como “Carta de Natal a Murilo Mendes”, do livro O nome das coisas, são

exemplos. Porém, esse interesse não é visto apenas nos poemas, mas também nos

ensaios, como é o intitulado “A poesia de Cecília Meireles”. Nesse texto, reflexões

acerca da produção escrita da autora brasileira são realizadas de modo bastante

significativo no que diz respeito, sobretudo, à constatação da importância que a obra de

Cecília Meireles teve para a de Sophia Andresen.

Preliminarmente, ressalta-se que a relação entre Portugal e Brasil, ainda pouco

explorada nos estudos comparativos de literatura, é de grande relevância para o

aprofundamento das discussões acerca das obras dos mais variados autores. Apesar de

ser evidente o afastamento geográfico entre os países, o que atrapalha a aquisição e

divulgação das artes produzidas entre o além e o aquém-mar, as dificuldades geradas

pelos hiatos que se formam entre as publicações de poemas e afins não prejudicam as

relações que se constroem entre os poetas daqui e os de lá, uma vez que há no processo

de leitura comparativa a possibilidade de renovação de teorias sobre determinadas obras

e artistas, expandindo-se, assim, o território da análise crítica e também os limites

estabelecidos à prática poética de um autor.

No que diz respeito aos estudos andresenianos, existem diversos tabalhos que

foram feitos sobre os poemas da autora, bem com são diversos os diálogos que são

realizados entre os textos dela e os de outros poetas. A tese de Jussara Rezende,

defendida na Universidade de São Paulo, que estuda Sophia e Cecília Meireles; na

Pontifícia Universidade Católica, as teses de Sophia Silva e a de Rita Barbosa analisam,

respectivamente,a relação entre Sophia e Adília, e a interface entre a poesia e a política 42

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nas obras da poeta. A tese de Marcia Barbosa, defendida na Universidade de Passo

Fundo, verifica a relação que a obra andreseniana possui com Camões, Cesário Verde e

Fernando Pessoa. Esses estudos são exemplos, aqui no Brasil, das leituras que já foram

realizadas sobre os textos deixados por Sophia Andresen. Notamos que, apesar de

alguns ensaios de Sophia aparecerem nesses trabalhos, o foco dos estudos foi dado aos

poemas. Nós, enveredando-nos por um outro caminho, pudemos perceber que os

ensaios produzidos por Sophia de Mello Breyner revelaram-se fontes de grande

relevância para os estudos que vêm sendo feitos sobre a autora, sendo possível examinar

a forma como Sophia interage com Cecília, por exemplo.

Um breve olhar para a vida de artista de Cecília Meireles nos mostra que as idas

da autora a Portugal eram frequentes, fato que era um facilitador para a divulgação de

seus textos, e, além disso, as primeiras publicações de seus livros de poemas foram

anteriores as de Sophia. Esta, por sua vez, interagiu, evidentemente, com os poemas

daquela, interagiu de modo a apropriar-se de versos e títulos, por exemplo. O poema

“Mar Absoluto”, de Cecília Meireles, por exemplo, certamente, inspirou o livro

intitulado Mar novo, de Sophia de Mello Breyner, vide a marcante relação entre as

palavras e os temas. Esse poema, aliás, é citado e analisado no ensaio intitulado “A

poesia de Cecília Meireles”.

Como ponto primeiro dessa reflexão, é interessante observar que diferentes

leituras incidem sobre determinadas obras e, por esse motivo, perspectivas e momentos

díspares moldam, torcem e contorcem determinadas ideias engessadas sobre alguma

arte a partir de novas possibilidades e resignificações que podem ser exploradas,

propiciando, assim, múltiplas leituras e um não esvaziamento delas. Esclarece-se que

isso é ressaltado devido ao fato de que as fronteiras entre Sophia de Mello Breyner

Andresen e Cecília Meireles já terem sido reduzidas por alguns estudos acadêmicos . 5

Porém, é possível, ainda assim, apresentar um ponto de vista novo, a partir de uma nova

ótica, que, nesse caso, tem como propósito particular o de exibir a maneira como a

BACKES, Karin Lilian Hagemann. Mar de poeta: a metáfora do oceano nas líricas de Cecília 5

Meireles e Sophia Andresen. Tese de doutorado. Rio Grande do Sul: PUC - Porto Alegre, 2009. REZENDE, Jussara Neves. A Simbolização nas imagens poéticas de Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen: tempo e paisagem. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.

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autora portuguesa se relacionou com a autora brasileira em seus poemas e ensaio,

explorando, com isso, os fatores que motivaram a leitura desta por aquela e, também, a

forma como essa leitura foi feita.

A atração de Sophia pelo Brasil não se restringe somente aos poetas, arquitetura

ou natureza. Em uma entrevista concedida ao Jornal Contemporâneo, datado em 19 de

março de 1989, Sophia mostrava a sua atração e respeito pela língua portuguesa e pela

poesia brasileira:

Eu tenho uma grande admiração pelo J.C. de Melo como poeta, acho-o um poeta extraordinário, um dos maiores escritores vivos no mundo inteiro. Se não fosse um escritor de língua portuguesa, já tinha ganho três prémios Nobel. Mas ele é brasileiro... As línguas dominantes são línguas dos países ricos e muito industrializados, onde as pessoas estão, aliás, a perder a fala. Nesses países as crianças já não sabem ouvir uma história, as pessoas estão a perder muito certas qualidades de comunicação... (ANDRESEN, 1989: 12)

Além disso, na rica análise do “Poema de Helena Lanari”, feita por Eucanaã

Ferraz, no texto intitulado “Ouvir o poema”, publicado na Revista Relâmpago de

número 9, o professor atenta para os versos:

Gosto de ouvir o português do Brasil Onde as palavras recuperam sua substancial total Concretas como frutos nítidas como pássaros Gosto de ouvir a palavra com as suas sílabas todas Sem perder sequer um quinto de vogal Quando Helena Lanari dizia ‘coqueiro’ O coqueiro ficava muito mais vegetal” (ANDRESEN, 2011:517),

Em leitura, Ferraz ressalta a amizade e ternura com a qual Sophia, olhando para

a linguagem, repara na terra e no idioma. Ela, perceptivelmente, declara-se admiradora

do português falado no Brasil, como mostra o professor, quando diz que

Os versos, pelo menos à primeira vista, não apresentam “as palavras” como entidade subjetivada ou em sua qualidade poética. Antes, localiza-as numa atividade específica: a fala. Ou, ainda, longe de toda abstração, o poema mostra-as como matéria do funcionamento

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linguístico no discurso oral. Assim, assistimos, inicialmente, a uma espécie de exame da fonação, a emissão apenas, considerada sob o aspecto articulatório e acústico, sem se levar em conta o valor da forma linguística, reunião de significante e significado. Dizer que o português do Brasil – e não há dúvidas de que aqui se faz uma comparação com o português de Portugal – as palavras são articuladas com suas sílabas todas/sem perder sequer um quinto de vogal”, donde a recuperação de uma “substância fônica total” é modo singular de dizer que a fonologia analisaria em termos de descrição dos fonemas em suas variantes posicionais e combinações. O “ouvido” de Sophia, digamos assim, confirma observações de cunho científico – a realização (fonética) anterior da vogal brasileira em oposição à realização mais recuada, mais central, do português europeu – num poema onde o ponto de partida é tão explícito e asseverado quanto singelo: “gosto de ouvir”. (FERRAZ, 2001: 32)

Desse modo, mesmo com as várias reflexões que possam ser feitas sobre o

poema e a análise, interessa-nos apontar que esse “gostar de ouvir”, se levado às últimas

consequências, pode ser entendido para além do simples gesto de apreciar a língua ou a

cultura. Na verdade, a relação que se pode estabelecer, nesse momento, tem a ver

também com as particularidades que se fazem ver no universo poético andreseniano. Se

a ela importa as falas e os versos brasileiros, as referências que a conduz são orientadas

por individualidades, que a aproxima dos elementos que seleciona para falar sobre. O

que se quer dizer é que as motivações pessoais que estimularam a escrita da autora se

escoram em uma espécie de identificação com o objeto que é estudado. No que diz

respeito ao ensaio “A poesia de Cecília Meireles”, nota-se que, apesar de aparentemente

ser apenas crítico, o texto possui um quê artístico, justamente por apresentarem forte

subjetividade, que é percebida nas escolhas vocabulares e até mesmo na forma como as

considerações levantadas sobre a escritora de Viagem são realizadas.

No ensaio, o fluxo de leitura é, de fato, ondulante, a escrita não é feita de modo

esquemático e linear. A experiência da escrita ensaísta, aqui, é feita para ser uma

experiência, de fato, isto é, não se deseja classificar ou esgotar o material de estudo.

Deseja-se convidar a reflexão e deixar que o leitor participe de uma navegação sem um

rumo preestabelecido. A experiência da navegação é o que importa. No ensaio de

Sophia, é dito:

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A poesia de Cecília Meireles é uma poesia construída sobre dualidades. É um equilíbrio de oposições e uma harmonia de contrários. É uma poesia ao mesmo tempo clássica e romântica, objectiva e subjectiva, serena e desesperada, intemporal, desligada, distante e humamente cheia de paixões e lágrimas. (ANDRESEN, 1999: 62)

A observação que Sophia faz sobre a poética de Cecília parte da verificação da

dualidade sobre a qual a escrita da autora brasileira se funda. As oposições estão entre

clássica e romântica; objetiva e subjetiva; serena e desesperada; intemporal, desligada,

distante e humana; paixões e lágrimas. As oposições listadas, ao longo do texto,

encontram pares, formando grupos maiores em que se agregam, em grandes grupos, as

dualidades da poética de Cecília. Os grandes grupos onde ocorrem os encontros são o da

poesia clássica e o da poesia romântica. Naquela, juntam-se a objetividade, serenidade;

nesta, o desespero, a paixão, a subjetividade.

No classicismo de Cecília Meireles há um eco de Camões. Isto não quer dizer que ela imite Camões nem mesmo que tenha sido particularmente influenciada por Camões. Mas Camões encontrou a objectividade da língua portuguesa, com uma tal exactidão que todo o poeta de inspiração clássica fatalmente, embora involuntariamente se encontra com ele. (...) Mas, ao mesmo tempo que é profundamente clássica a poesia de Cecília Meireles é também profundamente romântica. Clássica pelo equilíbrio da sua forma, pela nitidez das suas palavras, pela claridade e transparência da sua linguagem e pela serenidade e lucidez da sua atitude em frente do mundo, a poesia de Cecília é romântica pela ressonância nocturna da sua voz, pelo seu subjectivismo, pelo seu panteísmo, pela sua ligação com o sonho, pelo aspecto livre e fantástico das suas imagens. (ANDRESEN, 1999: 62, 63)

No texto, Sophia ilustra as suas afirmações com poemas de Cecília Meireles,

que não são examinados pela ensaísta. Apenas breves comentários, como “Eis aqui um

poema em que o classicismo de Cecília Meireles é particularmente

evidente” (ANDRESEN, 1999: 62) e “Eis aqui um poema que exprime o seu

romantismo” (ANDRESEN, 1999: 63). O ensaio, assim, não exaure a leitura que se faz

de Cecília. A estratégia de interpretação é feita em termos de um jogo de leitura, uma

vez que o leitor é convidado para a construção da análise, não dando um fim ou uma

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interpretação pronta da autora, mas propondo uma aventura – aventura essa com que

Sophia se encontra e enfrenta.

Em um poema do livro Coral, os versos “Ia e vinha/E a cada coisa perguntava/

Que nome tinha.” (ANDRESEN, 2015: 255) parecem se encontrar com Cecília, que,

nas palavras de Sophia, “é um poeta subjectivo na medida em que ela se busca a si

própria através de tudo, na medida em que ela é alguém que vai: ‘Dando e buscando

sempre a sua própria imagem’” (ANDRESEN, 1999: 64).

Nos versos, não se sabe ao certo se a pessoa do discurso é a primeira ou a

terceira. Na frase, sabe-se que é a terceira pessoa. O trabalho com a linguagem não é –

nem precisa ser – livre de ambiguidades. Dessa forma, pouco importa desvendar se é o

eu ou se é o ele que “a cada coisa perguntava/Que nome tinha”, uma vez que é possível

observar que é no exercício da escrita que o artista está “buscando sempre a sua própria

imagem”. A busca e a aventura no (e pelo) texto não se esgotam em si, portanto, mas

participam da interação e da atividade reflexiva que ruma para um centro de infinitas

possibilidades que descentraliza a escrita, propondo que se pense o próprio rumo, isto é,

a própria escrita e, assim, as próprias poetas.

Aproveitamos para lembrar que o ensaio enquanto gênero está, historicamente,

situado em um espaço sinuoso, turvo, indefinido. O ato de ensaiar, como o próprio

nome sugere, indica a ação de testar, de experimentar, de definir os contornos,

preliminarmente, para o produto final. Para o teatro e para a escrita, o ensaio possui

tanta (ou mais) importância que a materialização da obra final, já que é a dedicação ao

ensaio a responsável pela qualidade ou não da apresentação que se pretende fazer. A

semântica que o substantivo “ensaio” carrega, de certa forma, se soma com a posição

que tem o gênero textual, uma vez que a sua própria classificação é flutuante,

inclassificável, digamos assim. Não se podem definir caminhos para a escrita de um

ensaio. As leis que outros textos, como monografias, teses, tratados e afins, possuem

não se aplicam ao ensaio. Como nos adverte o professor João Barrento, “Assim, cada

ensaio é um texto singular, a que nunca se conseguirá chegar com uma sistemática de

géneros. O sistema tem o terror do aporético, o ensaio vive paredes meias com a

aporia”. (BARRENTO, 2010:27). Pode-se dizer que estamos diante de um gênero

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textual sem leis. Ensaiar não exige acertos e regras rígidas. Ensaiar exige tensionar e

exercitar as possibilidades.

Em “A poesia de Cecília Meireles”, é interessante observar que a dualidade

sobre a qual Sophia fala a respeito da poesia de Cecília Meireles é também observada

por Helena Malheiro no livro O enigma de Sophia na obra andreseniana. A

pesquisadora, logo no início do seu estudo, aponta que

Toda a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen é uma incessante busca da “inteireza” das coisas, dos seres e do universo. Incessante navegação de procura e de descoberta de si e do Outro, numa permanente tentativa de se explicar e de explicar o mistério do mundo que a rodeia, avançando pelo mar adentro como quem avança pela alma, numa viagem vertical, mítica viagem de conhecimento e de procura da unidade perdida dentro e fora de si, para chegar à essência do Ser.(...) Partindo sempre de uma crucial dicotomia da qual germina e estrutura, a obra da poetisa desenvolve-se em permanência entre dois polos opostos. Nascida da sombra rouca do Caos, da dissolução informe e dos seus medos e pavores, ela encaminham-se sempre, no entanto, para a luminosa unidade de uma aliança com o esplendor do universo, onde a palavra diz o espanto e a “veemência do visível”. (MALHEIROS, 2008: 20).

As palavras de Helena Malheiro sobre Sophia parecem espelhar as palavras

desta sobre Cecília. Nesse sentido, é interessante dizer que a autora de Mar Novo, na

posição de crítica, não tenta descobrir o sentido único da obra ceciliana, nem mesmo

Helena Malheiro faz isso em relação à poeta portuguesa. A visualização das dualidades

que recaem sobre as poéticas das autoras mostram que, no processo de leitura que se faz

do outro, Sophia não tem como objetivo examinar de maneira maniqueísta a poesia. Na

verdade, percebe-se que a crítica possibilita a ampliação e desdobramento da obra. O

ensaio de Sophia de Mello Breyner seria aquilo que Walter Benjamim articula em O

conceito de crítica de arte no Romantismo Alemão, quando expõe que

A tendência imanente da obra e o correspondente critério de sua crítica imanente são a reflexão que está em sua base e que se manifesta em sua forma. Esta reflexão, no entanto, na verdade não é tanto o critério do julgamento, mas, antes de mais nada e em primeira linha, o fundamento de uma crítica totalmente outra, não posta como

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julgadora, cujo centro de gravidade está não na estimação da obra singular mas na exposição de suas relações com todas as demais obras e, finalmente, com a Ideia de arte. (BENJAMIN, 2002: 83)

No papel de crítica, Sophia não propõe um acabamento, mas um complemento,

uma viagem na obra de Cecília. Torna-se lícito pensar, portanto, que o ensaio como

gênero textual é estratégico para a navegação em que se lança a autora de No tempo

dividido, uma vez que, nas palavras de Theodor Adorno,

O ensaio exige no menos, porém mais que o procedimento por definições, interação dos conceitos no processo de experiência espiritual. Nesta, eles não constituem nenhuma continuidade operacional e o pensamento não avança unilateralmente, mas os momentos se entretecem como num tapete. (ADORNO, 2003: 177)

A imagem do tapete, metáfora da forma pela qual o ensaio se entretece, acaba

por somar-se à análise proposta pelos românticos alemães acerca da função da crítica. O

ensaio e a crítica são constituídos por camadas, por partes que se ligam para ampliação

da arte, uma vez que

“a obra é incompleta”, como afirma Benjamin, já que, por si mesma, não é absoluta. Só que a falta é positiva para os primeiros românticos, já que “só o incompleto... pode levar-nos mais adiante”, enquanto “o completo é apenas fluído”, afirma Novalis. Daí a centralidade da crítica, apareça ela onde for, com quem for e como for não é apenas fruição estética da obra que está em primeiro plano, e sim correspondência a ela na linguagem crítica, que só ocorre porque a obra ainda não é completa por si. (DUARTE, 2011:97)

Dessa forma, seguindo o fluxo do nosso pensamento, podemos afirmar que,

quando Sophia diz que “É impossível isolar e exemplificar todas as dualidades que há

na poesia de Cecília Meireles” (ANDRESEN, 1999: 70), a crítica construída é

envolvida por fundamentos teóricos e filosóficos de estudos que formaram a autora

enquanto poeta-crítica. Aliás, basta olharmos a quem Sophia dedicou ensaios e poemas

para concluirmos que a sua formação como leitora é vasta. Quando diz que não se pode

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reduzir a obra de um autor a observações e conclusões particulares, a poeta nos dá

indícios de seu entendimento literário, de sua percepção lírica. Mesmo admitindo que a

escrita de Cecília não pode ser isolada, Sophia a analisa a partir de perspectivas

particulares, atentando para a natureza e para a plasticidade dos versos, particularmente.

Olhando para esses mundos, Sophia revela que a riqueza da poética de Cecília não se

reduz apenas à sua visão e à sua análise. Portanto, o que somos capazes de verificar no

ensaio é aquilo que em Cecília interessa mais à Sophia. A forma como aquela (e

também os outros poetas) é lida faz com que sejamos capazes de ver e refletir sobre

esta. Assim, mesmo que, aparentemente, o foco da escrita esteja em Cecília, o que

emerge no ensaio são as diversas leituras, as experiências de vida que involuntariamente

atravessam a produção andreseniana.

Sobre isso, é importante recordar que Sophia é uma autora moderna. E a

modernidade se ergue, entre outros pilares, pela autocrítica e reflexão. Além disso,

torna-se evidente a ligação que Sophia tem com o Romantismo Alemão. Poemas e

ensaios dedicados a Hölderlin, por exemplo, poderiam, ainda, ilustrar a atenção que ela

tem a tal movimento literário, no entanto o que aqui queremos ressaltar é o fato de ser

possível enxergar nos textos de caráter crítico da autora (e aqui não falamos apenas dos

ensaios, mas também dos poemas) procedimentos e técnicas que remetem aos

procedimentos e técnicas do Romantismo Alemão.

Nesse sentido, é de grande relevância lembrar que, durante do século XX, em

Portugal, os poetas que escreveram na corrente das décadas posteriores as dos anos

1920 se deparam com diversas perguntas, entre as quais: “qual o papel da arte em

tempos de fascismo?”, “como fazer poesia depois de Fernando Pessoa?”. Na esteira

dessa meditação, portanto, compreendemos que o exercício da crítica é mediado pela

autorreflexão e, por assim ser, pela autocrítica. Isso, por sua vez, traz à tona, no que diz

respeito à Sophia, algo caro à sua poética. Na tentativa de se conhecer a si mesma, na

tentativa de conquistar um lugar para si e para a sua poesia no contexto português, a

busca pelo autoconhecimento é verificada como uma das forças que movem a escrita

andreseniana.

Em O conceito de crítica de arte no Romantismo Alemão, de Walter Benjamim,

lemos que: 50

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Ser crítico implica elevar o pensamento tão acima de todas as conexões a tal ponto que, por assim dizer magicamente, da compreensão da falsidade das conexões, surgiria o conhecimento da verdade. Nesta significação positiva o procedimento crítico adquire uma afinidade muito próxima com o procedimento reflexivo. (BENJAMIM, 2002: 56)

E, ainda, vemos que:

Onde não há autoconhecimento, não há absoluto nenhum conhecer, onde há autoconhecimento, a correlação sujeito-objeto está superada, ou, se quiser: dá-se um sujeito sem objeto-correlato. Apesar disso, a realidade não forma um agregado de mônadas fechadas em si que não podem ter nenhuma relação real umas com as outras. Muito pelo contrário, todas as unidades no real, fora o absoluto, são apenas relativas. Elas estão tão pouco fechadas nelas mesmas e privadas de ligação que, antes, podem, via intensificação de sua reflexão, incorporar mais e mais ao próprio autoconhecimento outras essências, outros centros de reflexão. Este modo de representação romântico diz respeito, entretanto, não apenas aos centros de reflexão individuais e humanos. Não apenas os seres humanos podem estender seu conhecimento via intensificação do autoconhecimento na reflexão, mas, do mesmo modo, as assim chamadas coisas da natureza o podem. Nestas, o processo tem uma ligação essencial com aquilo que geralmente é denominado sem “ser conhecido”. Nomeadamente, a coisa, na medida em que aumenta a reflexão em si mesma abrange em seu autoconhecimento outras essências, irradia sobre estas seu autoconhecimento originário. (...) Portanto, tudo aquilo que se apresenta ao homem como seu conhecer de uma essência é reflexo nele do autoconhecimento do pensar nesta mesma essência. Então, não existe um mero ser-conhecido de uma coisa, tampouco, no entanto, a coisa ou a essência está limitada a um mero ser-conhecido apenas através de si. A intensificação da reflexão, antes, supera na coisa os limites entre ser conhecida através de si mesma e através de um outro, e, no médium-de-reflexão, a coisa e a essência cognoscente se interpenetram. (BENJAMIM, 2002: 62)

Pensando em Sophia, a busca por respostas parece se ancorar, entre outros

fatores, na meditação, na tarefa de pensar e repensar a escrita, a arte, o papel e a missão

do artista. Ao concentrar-se em Cecília Meireles, a quem podemos chamar de “objeto de

estudo”, Sophia Andresen, ao modo do Romantismo Alemão, se une e se confunde com

seu objeto. O que Sophia verifica na obra de Cecília retoma interesses, como o pela

natureza, que comparecem aos versos de Sophia.

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No ensaio “A poesia de Cecília Meireles”, por exemplo, diz que

A objectividade de Cecília Meireles está na forma real e exacta em que ela nos fala de estrelas, ondas e árvores. Está naquelas imagens dos seus poemas que nos mostram as coisas tais como elas são em si, na sua forma própria e na sua própria natureza. Cecília Meireles é um poeta objectivo porque nos diz que o mar é um “cavalo épico” e uma “anêmona suave”. Porque é um poeta que vê as coisas e não um poeta que as sonha. Porque quando ela nos fala do “vento liso”, da “clássica luz de Maio”, do “desequilíbrio dos oceanos”, a natureza nos mostra aquela sua face divina que o homem não lhe acrescenta pois ela a possui interiormente. (ANDRESEN, 1956: 64)

Tal colocação vai ao encontro do que Sophia fala em sua “Arte Poética III”:

Sempre a poesia foi pra mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. (ANDRESEN, 2011: 841)

Nos dois fragmentos, salta aos olhos a presença da natureza. Salta aos olhos a

forma como a natureza se faz presente na poesia de Cecília e também na de Sophia. Em

Poesia – primeiro livro de Sophia –, o poema “Cidade” pode ser lido como exemplo da

forma como a percepção dos elementos da natureza se constituem na obra da autora.

CIDADE

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas, Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta, Saber que existe o mar e as praias nuas, Montanhas sem nome e planícies mais vastas Que o mais vasto desejo, E eu estou em ti fechada e apenas vejo Os muros e as paredes, e não vejo Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

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Saber que tomas em ti a minha vida E que arrastas pela sombra das paredes A minha alma que fora prometida Às ondas brancas e às florestas verdes. (ANDRESEN, 2015: 74)

É possível verificar que o eu lírico vê a cidade como um espaço asfixiante, que o

afasta dos elementos da natureza. Percebe-se que o movimento das ruas faz com o eu

lírico não estabeleça a conexão com as ondas, as florestas verdes, com a praia e com o

mar. A cidade, nesse aspecto, apesar de ser o lugar da negação, que impede o

cumprimento da promessa de entrega à natureza, é também o artifício pelo qual a poeta

revela a necessidade de regressar à natureza, à natureza primeira, à natureza sem ação

do homem, à natureza que se assemelha à de Schelling.

No livro A filosofia da natureza, Márcia Gonçalves mostra que este filósofo

alemão pensa a natureza a partir da ideia de uma matéria auto-organizante. Para ele,

afirma a professora:

O princípio da produtividade imanente à natureza é em parte responsável por todo movimento existente, não enquanto primeiro motor contínuo – o que novamente traria a representação linear do movimento -, mas apenas na medida em que esse princípio se encontra em eterna relação dinâmica com seu princípio contrário, que é uma espécie de princípio antiprodutividade ou de obstáculo para a produção. É só a partir dessa dinâmica que o movimento de organização da natureza se fecha em um ciclo infinito. (GONÇALVES, 2006:41)

Assim, quando Sophia diz que “através de búzios, espaços e brisas, Cecília

Meireles busca não o próprio mar real, mas o seu mar, o mar que ela imagina, o mar que

lhe é necessário e esse mar que ela chama mar absoluto.” (ANDRESEN, 1999: 64),

percebe-se, dentro do que queremos mostrar, uma reflexão acerca da percepção de uma

natureza que é descrita em termos metafóricos, que foge ao detalhamento denotativo e

tátil. É essa a natureza – a desligada de uma visualização mensurável e referencial –

uma perseguição da sua poesia.

Quando Sophia diz que “Cecília Meireles busca não o próprio mar real, mas o

seu mar, o mar que ela imagina, o mar que lhe é necessário e é esse mar que ela chama

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de mar absoluto” (ANDRESEN, 1956: 64), o “mar”, que é um hipônimo da “natureza”,

pertence, como é possível notar, ao campo da idealização, da reflexão. A imaterialidade

deste mar (a ver a relação que é estabelecida, por meio das figuras de linguagem, entre

ele e o “cavalo épico” e a “anêmona suave”, por exemplo) é observada pela crítica

como um artifício artístico de projeção transcendental. Esse mar deve ser entendido

como um ato artístico de criação – a partir da palavra escrita e dita – de um universo

paralelo, diferente do universo acidentado do humano.

A atenção e visão de Cecília, segundo Sophia, não compõem, porém, um

alheamento da circunstância social, política ou histórica. Pelo contrário, a criação de um

mundo novo, aqui, pode ser entendida como um ato de redenção, uma libertação por

meio de um sacrifício, já que a busca pelo novo pressupõe, neste caso, a anulação, ou

melhor, a superação de algo imanente. Um espaço ideal é criado a partir do mundo dos

homens. Parece ser a dor a condição para a criação e, por isso, então, não se pode dizer

que haja nesse gesto de criação um abandono das causas e condições humanas.

Na “Arte Poética III”, aliás, quando Sophia parece delimitar as superfícies por

onde o poeta deve caminhar, isso fica mais claro quando ela diz que a natureza está

atrelada à justiça e à justeza. Ela diz que “mesmo que o artista escolha o isolamento

como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de

rigor, de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência

comum.” (ANDRESEN, 2011: 842).

Diante disso, parece-nos licito pensar que o processo de reflexão do outro é

também um processo de transfiguração do eu. Os poemas e interesses de Cecília

Meireles são descritos como os mesmos de Sophia de Mello Breyner. Sophia, ao

escrever sobre Cecília, descreve-se por meio daquilo que diz sobre a poeta brasileira.

Assim, é relevante dizer que o encontro das duas autoras não foi mero acidente. O

interesse que se faz ver pela obra de Cecília Meireles ultrapassa, na verdade, a definição

do que seria um encontro. Não se trata de uma colisão de corpos ou identidades ou

mesmo uma procura. Trata-se de uma possível fusão.

Sophia ao ler Cecília acaba por pensar-se a si própria, pensando assim, segundo

Silvina Rodrigues Lopes, a “sua própria possibilidade [...] de uma relação própria com

as coisas e com os outros. Esta relação [que] é quase sempre afirmada como uma 54

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questão de percepção. Nesta, o que é considerado verdadeiramente importante não é o

resultado, mas o ato de sentir e percepcionar, e sobretudo a colocação do mundo como

sensível-perceptível – não o percebido, mas as coisas na sua expectativa, no seu

apelo.” (LOPES, 2003:52).

No intuito de clarificar a análise que construirei mais à frente, apresentarei um

breve itinerário dos livros publicados por Sophia até os anos 60, além dos livros Viagem

e Mar Absoluto, de Cecília Meireles, que são citados pela autora portuguesa no ensaio

em questão.

Em 1939, no início da Segunda Guerra Mundial, Cecília Meireles publica o livro

Viagem. Neste, a autora apresenta, nas palavras de Miguel Sanches Neto, “uma

desleitura deste tópico, colocando a viagem dentro de uma perspectiva antigeográfica,

que remete à ideia de transitoriedade”. Este autor ressalta, ainda, que “O mundo por

onde o eu se move é marcado pela presença de elementos volúveis.”, entre os quais os

“mais recorrentes são flor, água, ondas, espuma, vento, nuvens, música, cigarra e

infância”. (2001:S/P)

Em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, Andresen publica seu primeiro

livro, intitulado “Poesia”. A crítica de Silvina Rodrigues Lopes aponta que o livro é

marcado por “uma nostalgia e um desejo de regresso à natureza de onde está quase

ausente a problemática das relações humanas” (1990:18).

Em 1945, Meireles publica outro livro: “Mar Absoluto”, que foi composto

durante os conflitos da Segunda Guerra Mundial. Miguel Sanches Neto diz que a autora

“continua vendo o mar não em sua historicidade (como palco de lutas terríveis), mas

dentro de sua gramática de infinito, solitude e melodia”.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, sabe-se que os conflitos

ideológicos e bélicos estavam longe de acabar. Em Portugal, a situação ainda era mais

agravante por conta do Estado Novo, além das perdas territoriais que o fim da Guerra

legou ao país, causando, obviamente, problemas sociais devido ao agravamento da

instabilidade financeira que se instaurou. No entanto, nem por isso os poemas dos livros

Dia do Mar (1947), Coral (1950), No tempo dividido (1954) e Mar novo (1958), de

Sophia, deixaram de conceder à natureza, nas palavras de Maria de Lourdes Belchior, os 55

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“suportes e estruturas da sua demanda da perfeição, da pureza e da

harmonia” (BELCHIOR, 1986: 49)

Abaixo, listamos quatro poemas – um de cada livro mencionado acima –, a fim

de construir uma breve reflexão sobre a natureza na lírica andreseniana.

A) Dia do Mar

Jardim Perdido

Jardim perdido, a grande maravilha Pela qual eternamente em mim A tua face se ergue e brilha Foi esse teu poder de não ter fim, Nem tempo, nem lugar e não ter nome.

Sempre me abandonastes à beira duma fome. As coisas nas tuas linhas oferecidas Sempre ao meu encontro vieram já perdidas.

Em cada um dos teus gestos sonhava Um caminho de estranhas perspectivas, E cada flor no vento desdobrava Um tumulto de danças fugitivas.

Os sons, os gestos, os motivos humanos Passam em redor sem te tocar, E só os deuses vieram habitar No vazio infinito dos teus planos. (ANDRESEN, 2011:144)

B) Coral

Neste dia de mar e nevoeiro É tão próximo o teu rosto.

São os longos horizontes Os ritmos soltos dos ventos E aquelas aves Que desdém o princípio das estações Fizeram ninhos e emigraram Para que num dia inverso tu as visses.

Aquelas aves que tinham Uma memória eterna do teu rosto E voam sempre dentro do teu sonho Como se o teu olhar as sustentasse. (ANDRESEN, 2011: 214)

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C) No tempo dividido

Eu falo da primeira liberdade Do primeiro dia que era mar e luz Dança, brisa, ramagens e segredos E um primeiro amor morto tão cedo Que em tudo que era vivo se encarnava. (ANDRESEN, 2011: 281)

D) Mar novo

Marinheiro Real

Vem do mar azul o marinho Vem tranquilo ritmado inteiro Perfeito como um deus, Alheio às ruas. (ANDRESEN, 2011: 343)

Uma sucinta leitura dos quatro poemas selecionados permite que alguns

apontamentos sejam realizados a fim de demonstrar uma determinada tônica que

perpassa a obra andreseniana particularmente no intervalo de tempo em que os livros

foram publicados. Os elementos da natureza não são utilizados apenas para uma

ambientação ou determinação de questões climáticas, geografias, circunstanciais; mas,

na verdade, podem ser interpretados como mote de uma reflexão poética, uma vez que a

“flor”, o “vento”, o “mar”, a “brisa”, as “ramagens”, a natureza, de maneira geral,

representam metáforas de um projeto artístico que tem como norte o retorno às origens

da vida, à ordem do universo estabelecida pela natureza. Emparelhadas a essas palavras,

sintagmas como “perdido”, alheio”, “desdém”, “vazio” marcam um contraponto à

beleza e à simetria proposta pela máxima platônica, da qual Sophia se serve, que assenta

os princípios filosóficos da natureza. A presença da figura humana é vista sob um ponto

de vista crítico, porque, aparentemente, por falta de treinamento da escuta, da visão, das

sensações, o interlocutor é convidado, direta e indiretamente, a perceber o mundo a sua

volta. É preciso se alinhar às coisas da poesia para que a concretização da perfeição

proposta pela natureza seja cumprida. O poeta Ruy Belo, no livro Na senda da poesia,

comenta:

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A minha poesia é, em primeira linha, quotidiana, e refere-se imediatamente a um certo espaço; mas vê esse dia e esse espaço “à transparência”, como diria Sophia de Mello Breyner Andresen, e eles funcionam como membro expresso da metáfora que esconde um outro dia e um outro espaço. O homem, tal como a arte o vê, é não só aquilo que é, mas também aquilo que será ou que poderia ser. (BELO, 2002: 17)

Isso, portanto, é mais um ponto de contato de Sophia e Cecília. Os seus livros,

aparentemente, escapavam das tensões que o momento em que foram produzidos

incitava. Porém, só aparentemente mesmo. Miguel Sanches observa em Cecília o que

também é dito por Silvina Lopes sobre Sophia: o afastamento das questões cotidianas e

a presença da natureza nas obras poéticas das autoras não configuram alheamento, mas,

sim uma tentativa de dar à poesia um lugar superior, além do mundano. A beleza dos

versos e as palavras que os envolvem não são isentas de dor e sentimento de exílio,

como observa Silvina a respeito de Sophia, mas podem ser entendidos como um projeto

de alcance da transcendência por meio do concreto, terreno.

Sobre Sophia, Maria de Lourdes Belchior diz que sua poesia “aponta para a

consciência da dignidade do ser, em última instância, a sua fidelidade à demanda de um

tempo não dividido”, dizendo que “Para lá das redutoras designações de poesia pura ou

poesia comprometida, poesia social ou poesia metafísica, a sua obra revela os desígnios

do poeta”. (BELCHIOR, 1986:41)

Visto isso, não parece ser à toa o interesse de Sophia por Cecília quando escreve

um ensaio sobre ela. Ao analisar especialmente os poemas dos livros Viagem e Mar

Absoluto inevitavelmente Sophia aperta o laço que existe entre sua poética e a de

Cecília, mostrando que a presença dos elementos que pertencem à natureza em sua obra

participa de uma aventura mítica, como Sophia repara na obra de Cecília. A natureza é,

para o poeta, um caminho para ultrapassar os acidentes humanos para que a sua própria

vida não seja um acidente.

Além disso, relembramos que na “Arte Poética III”, Sophia nos fala que

“Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos

isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência, mas que

somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser”. 58

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Assim, torna-se possível afirmar que Cecília Meireles representa, sim, uma

espécie de referencial pelo qual Sophia se guia. No ensaio, esta declara que é preciso

que a beleza e a verdade de Cecília Meireles sejam vividas e, só assim, “a limpidez da

sua linguagem, a densidade de cada palavra, a exatidão das suas imagens, a nudez do

seu pensamento, a serenidade da sua atitude, a ressonância grave e profunda da sua voz”

(ANDRESEN, 1956:61) podem revelar “qual é a sua atitude em frente do mundo e qual

é a sua atitude frente de si própria.” (Idem)

Em 1960, no ensaio “Poesia e realidade”, publicado na revista Colóquio, a

autora portuguesa apresenta o porquê de “fatalmente, embora involuntariamente, se

encontrar com [Cecília]” (Andresen, 1956:61), expondo um claro paralelismo entre

aquilo que é dito sobre a poesia de Cecília e aquilo que é dito sobre sua própria

concepção poética. A título de exemplo, percebe-se que Sophia considera a poesia da

Cecília:

tão naturalmente intemporal e distante, tão diafanamente pura, tão alheia a todos os problemas, acidentais, tão unicamente atenta ao que é essencial e poético que o seu caminho é por vezes um caminho de desligamento, de desprendimento, de pura e solitária desumanização.” (ANDRESEN, 1956:68)

Isso, visivelmente, vai ao encontro do que Sophia apresenta como sendo sua

compreensão sobre o que é poesia, no ensaio “Poesia e realidade”, no qual expõe que:

Se o poeta procura tanto a solidão, não é só para fugir ao rumor e à agitação, mas também para ver as coisas, quando elas estão sozinhas. A emoção que sentimos ao entrar numa casa deserta ou num jardim abandonado, é a emoção de vermos como as coisas existem, na sua própria realidade, em si. É como esse em si que o poeta quer entrar em relação.” (ANDRESEN, 1960: S/P)

Aparentemente, é como se um elo as unisse de alguma forma. Porém, isto não

quer dizer que ela a imite. Na verdade, ao viver a poesia de Cecília, Sophia, de alguma

forma, mostra ter sido particularmente impactada por ela, o que pode ser confirmado no

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poema (já citado na página 35 desta dissertação) “Arte poética”, de Sophia em que se vê

uma espécie de citação do poema “Motivo”, de Cecília.

A) Motivo Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. (MEIRELES, 2001: 227)

B)Arte Poética

A dicção não implica estar alegre ou triste

Mas dar minha voz à veemência das coisas

E fazer do mundo exterior substância da minha mente

Como quem devora o coração do leão

Olha fita escuta

Atenta para a caçada no quarto penumbroso (ANDRESEN, 2011: 808)

Se pouco importa(m) para o ser poeta ou para a dicção a alegria ou a tristeza,

confirma-se que “o prazer estético do artista novo emana [do] triunfo sobre o

humano” (ORTEGA Y GASSET, 2003:84). Há uma crença de que o afastamento do que

há de mais pessoal e íntimo é que pode conduzir à poesia, de que é preciso se

despersonalizar para chegar ao poético, fazendo da vida das coisas de que fala a sua

própria vida. Porém,

Não se trata de pintar algo que seja completamente distinto de um homem, ou casa, ou montanha, mas pintar um homem que se pareça o menos possível com um homem, uma casa que conserve de tal o

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estritamente necessário para que assistamos à sua metamorfose, um cone que saiu milagrosamente do que antes era uma montanha. (ORTEGA Y GASSET, 2003:84).

Isto é, dar “voz à veemência das coisas/E fazer do mundo exterior substância da

[mente]”, como diz Sophia em sua Arte poética.

Desse modo, Cecília Meireles é um desses nomes que guiaram com infalível

presciência Sophia. É com a poesia pura, exata, lisa e inumana de Cecília que Sophia

pode falar sobre a sua própria poesia. Assim, somos levados, pela suposição que nos

move, a advertir que, apesar de não se poder afirmar categoricamente que a presença da

natureza na poesia de Meireles é o que determina, verdadeiramente, o ato de leitura da

vida e obra da autora por Andresen, é lícito dizer que a análise desta sobre a utilização

do mar, da árvore, do ar, entre outros, por aquela é feita de modo muito similar, o que

subsidia a afirmação de que ao pensar a natureza na poética de Cecília, a escritora

portuguesa reflete sobre a sua própria. A poesia de uma, então, se encontra com a da

outra, o que nos faz pensar que, de fato, como Sophia aponta, “Só em poesia se pode

falar em poesia”.

4.2. “A busca da aliança sem mácula”: Sophia lê Torga

Em 1976, no Boletim da Secretária do Estado e Cultura, Sophia de Mello

Breyner publica o ensaio “Torga, os homens e a terra”. Não fossem os vários indícios

que os estudos acadêmicos apontam sobre a relação amigável e poética que existe entre

os poetas, o texto de 1976 poderia, por si só, reforçar os motivos que levam Sophia a

escolhê-lo.

A título de exemplo, em uma rápida análise da epígrafe, vê-se um processo de

apropriação. No ensaio de Sophia, são os versos de Torga que aparecem como epígrafe

(“No meu sangue corre, a pedir expressão, um rio de miséria e de

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doçura” (ANDRESEN, 1976:S/P)), que, portanto, antecedem a escrita da autora.

Lemos, antes das palavras de Sophia, as de Miguel Torga. Dessa forma, a expressão “no

meu sangue”, na qual o pronome meu reforça o sentido de posse, é utilizada de modo a

permitir uma reflexão acerca de uma possível mistura entre as pessoas do discurso: eu e

ele.

Frente a isso, apontamos que os versos em que o termo meu se relaciona com o

eu estão cercados por aspas, indicando que estes versos são de uma terceira pessoa, no

caso, Torga. Porém, por estes versos iniciarem o texto de Sophia, facilmente podemos

pensar que esse eu de quem se fala poderia ser, na verdade, o eu com quem se identifica

a autora, marcando, dessa forma, uma união, em que um se confunde com o outro. E é

essa união que se pretende observar aqui.

Ao selecionar seus escritores, Sophia traz à superfície, por meio do seu discurso,

os porquês que a levaram à eleição de Cecília Meireles e Miguel Torga, por exemplo.

Tal fato nos instiga a discutir algumas questões relacionadas com o afeto e também com

as escolhas afetivas. No texto sobre a “Ética”, Spinoza assinala que o afeto é uma

mudança decorrente da associação entre mente e corpo, mostrando que o modo como o

afeto sucede determina a vontade ou não do agir. Segundo o autor, o homem, ao tentar

explicar a natureza, determinava a perfeição ou imperfeição de um dado fenômeno a

partir do modo pelo qual era afetado por este.

Assim, a própria experiência ensina, de forma não menos clara do que a razão, que os homens se creem livres por serem conscientes de suas ações e ignorarem as causas que as determinam e que os decretos da Mente são os próprios apetites, que variam da mesma forma como variam as disposições do Corpo. Pois cada um governa tudo a partir de seus próprios afetos e os que são presa de afetos contrários, não sabem o que querem e os que não [são impulsionados por afeto algum] podem facilmente se mover ora para um lado, ora para outro. Tudo isso mostra claramente que tanto o decreto da Mente quanto o apetite e a determinação do Corpo existem juntos por natureza, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que chamamos decreto quando a consideramos e explicamos pelo atributo Pensamento e determinação, quando a consideramos pelo atributo extensão e a deduzimos das leis do movimento e do repouso. (SPINOZA, 2008: 40)

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Com esse contexto e com essa perspectiva, confirmamos, mais uma vez, que a

seleção de poetas para os quais Sophia dedica ensaios não é fruto do acaso. As

motivações pessoais que estimularam a escrita da autora se escoram em uma espécie de

identificação com os poetas observados. As escolhas que faz são movidas por interesses

pelas questões das poéticas das produções literárias de Cecília Meireles, Miguel Torga e

Luís de Camões que, de alguma forma, afetaram a formação crítica da autora.

A professora Luciana Di Leone, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no

livro Poesia e Escolhas Afetivas, discute a questão do afeto, mostrando que as reflexões

filosóficas acerca do tema, que tendem a reproduzir a lógica spinoziana, podem e devem

ser reavaliadas, uma vez que é preciso

pensar na definição que muitos poetas fazem das suas escolhas poéticas como afetivas, critério que tanto surge da experiência do convívio quanto opera na formação de grupos, na organização de coletivos de produção e nos mecanismos de consagração e visibilidade, através de revistas, editoras especializadas, oficinas, encontros. (LEONE, 2014: 27)

Voltando a nossa atenção para essa reflexão que nos convida, recordamos, nesse

momento, que na década de 40, no Porto, em uma conferência no clube Fenianos,

Sophia foi apresentada, como escritora de versos, por Fernando Valle Teixeira – amigo

em comum dos escritores –, a Miguel Torga. Este, segundo o professor Carlos Mendes

de Sousa, teria dito que devido à aparência física, não era preciso que escrevesse

versos . A isso, Sophia respondeu com uma espécie de enfurecimento momentâneo e, 6

“Algumas das intervenções mais interessantes deveram-se ao ensaísta Carlos Mendes de Sousa, que 6

soube entretecer considerações mais literárias com detalhes biográficos pouco conhecidos, como o do episódio

em que a jovem Sofia foi apresentada a Miguel Torga como autora de versos e este terá comentado: “A menina é tão bonita que não precisava de escrever poemas.” Uma tirada que a “deixou furiosa”, diz Carlos Mendes de Sousa, e a levou a enviar uma série de poemas a Torga. Este percebeu então que a “menina” era mesmo um poeta

para levar a sério e ajudou-a a imprimir o seu livro de estreia, Poesia (1944), nas gráficas da Coimbra Editora, onde ele próprio publicava os seus.” (https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/panteao-nacional-abre-hoje-as-portas-a-grandeza-poetica-e-civica-de-sophia-1661040)

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posteriormente, com o envio de 12 poemas ao escritor. Como é possível ver, no gesto de

Sophia, o de enviar poemas a Torga, o desejo de autoafirmação se faz notar, uma vez

que o seu lugar de escritora parece ser ameaçado ou diminuído pela sua aparência física

e, também, sua condição de escritora mulher. Em Portugal – e no mundo, de maneira

geral – as autoras mulheres eram (e ainda são!) poucas em relação aos homens e, muitas

vezes, vítimas de uma visão preconceituosa, tinham seus textos diminuídos, entre outros

fatores, por seleções e análises realizadas de maneira injusta, que avaliavam as

escritoras por critérios outros que não os que deveriam ser aplicados às suas obras.

Eram leituras (de mundo e de texto) machistas, as quais, muitas vezes,

supervalorizavam a aparência, por exemplo, em detrimento da função social de artista

que desempenhavam as mulheres. O comentário infeliz de Miguel Torga em relação à

Sophia, evidentemente, a incomodou muito, sobretudo pelo fato de ter configurado um

desrespeito e, também, por pôr em ameaçar o lugar de escritora a que pleiteava.

Frente a tal quadro, seria possível dizermos que a motivação por escrever um

ensaio sobre Miguel Torga teria nascido, também, da tentativa de um acerto de contas,

ou de um revide ou, ainda, da necessidade de comprovação da qualidade de sua escrita.

No entanto, essas interpretações, apesar de possíveis, não nos convencem,

principalmente por ser fácil perceber o quão Sophia é ligada ao seu tempo e aos seus

contemporâneos. Em “Torga: os homens e a Terra”, a autora mostra que, de fato, a

escolha por escrever sobre Miguel Torga está muito mais ligada à reflexão que a obra

dele propõe a ela (e à obra dela) do que um uma tentativa de comprovação da força de

sua escrita, por exemplo. Então, apesar de não serem exatamente poetas fechados em

grupo de iguais, a relação que se constrói entre eles, particularmente no ensaio, seria a

especular.

Percebe-se que quando a ensaísta portuguesa se debruça sobre Miguel Torga, há

aí o exercício intelectual de pensar o valor das ideias poéticas, de refletir sobre

determinadas questões que já foram ajuizadas ou preconcebidas em momentos diversos

da vida de um escritor – as influências de modo geral.

Nesse momento, trazemos à mesa Harold Bloom, que se dedicou ao tema da

influência por anos, sendo o trabalho A angústia da influência, de 1973, um dos maiores

legados de suas pesquisas. Nele, Bloom, que, aliás, é leitor e defensor da poesia 64

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romântica, como Sophia, discute as relações passivas de intertextualidade, mostrando

como cada autor, por mais que lute contra seus precursores e contemporâneos, é

involuntariamente influenciado por eles . Ao abordar o tópico da originalidade da 7

escrita, o crítico nova-iorquino traz à tona uma rica análise sobre a angústia da

influência, verificando, particularmente, a impossibilidade de a escrita ser totalmente

original, única, uma vez que, para ele, sempre será possível encontrar em cada obra, por

mais clássica que pareça, traços de outras obras.

O que percebemos é que muito mais do que um exame sobre influências entre

poetas, Bloom propõe pensarmos a cultura ocidental – a qual é atravessada por valores

irrecusáveis e temas incontornáveis – como o motor da escrita artística dos poetas. O

curioso, portanto, não é apenas olhar aquilo que está simplesmente dado, escrito, mas

também especular sobre aquilo que não está. Nesse sentido, Sophia, por mais que não

use em seus ensaios verbos que reforcem de modo mais literal os elos existentes entre a

sua escrita e a dos autores sobre os quais escreve, ela pode ser estuda justamente por aí,

pelo que não diz. O que queremos dizer, na verdade, é que há a tentativa de verificar,

nas semelhanças entre os poetas, as circunscrições que a poesia deles demarca conforme

a mão dela se move, isto é, no exercício de escrita, Sophia verifica em Cecília, em

Torga, em Camões aquilo que lhe importa. E somos levados a pensar que, certamente, a

força de seus poemas é oriunda justamente do exercício constante de leitora e crítica

que seus ensaios exibem, ou seja, de suas influências.

Voltando ao ensaio, quando Sophia diz que “Torga não é propriamente um poeta

que nos fala do povo português, mas antes um poeta em cuja obra o povo português nos

fala. Fala, emerge, aparece.” (ANDRESEN, 1976: S/P), observamos que, agora, o que

salta aos olhos da escritora, entre as várias “entradas” da obra do autor português, é um

Torga porta-voz do povo.

De fato, sabe-se que a relação de Sophia e Torga se dá, entre os vários motivos,

pelo tempo, circunstância, local e experiências que compartilharam. Ambos foram

poetas em Portugal meio às difíceis questões políticas e ideológicas que, sem dúvidas,

comprometeram a liberdade artística nas quatro décadas do regime ditatorial. Os poetas

BLOOM, 1991: 307

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viveram de perto os efeitos do salazarismo e suas imposições. Para além desse fator, a

poesia desses dois poetas, nas palavras da professora Elisabete Carvalho Peiruque,

é representativa de uma dupla relação identitária, na medida em que seus poemas falam, ainda que metaforicamente, do Portugal onde vivem, e assim, como poetas, constituem elementos formadores da identidade cultural portuguesa. Contudo, em vez de uma poesia laudatória, Miguel Torga e Sophia, paradoxalmente, falam de um Portugal em negativo, o Portugal da ditadura, já que sua poesia mostra que não aceitam a miséria e a repressão política, essa, de certa forma, encobrindo aquela, de vez que falar nas questões sociais era considerado indício de tendências comunistas. Sua obra poética dá voz àqueles milhares que se opuseram ao regime do Estado Novo, clamando por justiça e por liberdade. (PEIRUQUE, 2007: 01)

A reflexão de Elisabete Peiruque, nesse caso, se soma com a nossa hipótese. Ao

observar as semelhanças entre Sophia e Torga, mostrando que na poética deles há a

concessão de um espaço à voz daqueles que estavam em Portugal, do povo, por

exemplo, reforçamos a ideia de que a poeta portuguesa se encontra com a obra do outro

autor por existir uma afinidade temática e até mesmo semelhanças quanto ao seu projeto

poético.

No ensaio em análise, podemos observar que Torga é aquele para quem “a

poesia é fundamentalmente a busca da fidelidade no Terrestre, a busca da aliança sem

mácula do homem com o Terrestre; a busca da inteireza do homem no

Terrestre" (ANDRESEN, 1976: S/P). Indo ao encontro do que fala sobre o poeta

português, Sophia, em “Hölderlin ou o lugar do poeta”, texto de caráter mais teórico, no

qual ela atribui tarefas a quem quer ser poeta, diz que o que é essencial para o encontro

com o inteiro é “fazer com que o terrestre não se perverta em mundano” (ANDRESEN,

1967: 02). Isso, então, confirmaria a tese de que o que a poeta portuguesa fala sobre sua

missão artística se aplicaria, nas palavras dela mesma, a Miguel Torga.

Há aí um claro processo de identificação. Ela e ele possuem um projeto

parecido, ou melhor, ela busca na obra do outro um referencial que conduza a leitura

interessada dela. Interessada e particular, a leitura de Sophia é aquilo que Vincent Jouve

diz ser, em “A leitura como retorno a si: sobre o interesse pedagógico das leituras

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subjetivas”, “uma parte constitutiva de subjetividade” (JOUVE, 2004: 53), afirmando

que “A leitura de um texto também é sempre leitura do sujeito por ele

mesmo” (JOUVE, 2004: 53).

É-nos lícito pensar, então, que, em 1976, quando Sophia vê em Torga as alianças

que ele firma com os homens e com a terra, quando repara a denúncia que ele faz ao

tempo em que vive, ela traz à luz questões que pulsam dentro de si e também em sua

obra. Nesse sentido, é válido recordar que Sophia de Mello Breyner, desde a publicação

do Livro Sexto, mostra uma face mais explicitamente politizada e crítica. “A sua

exigência ética viriliza-se” (TORRES, 1966: 34), como afirma Alexandre Pinheiro

Torres, no texto intitulado “Sophia de Mello Breyner Andresen também para o caminho

do concreto”, que foi lido no evento de entrega do prêmio ao livro publicado em 1962.

Sobre esse maior engajamento, a professora Maria de Lourdes Belchior, no

“Itinerário poético de Sophia” também destaca, acerca dos poemas que estão na corrente

dos anos 1960, que há um amadurecimento dos livros da poetisa, “onde topamos com

poemas onde os valores éticos se exprimem em beleza e plenitude” (BELCHIOR,

1986:41). Belchior mostra que, em 1977, ano da publicação de O nome das coisas,

Sophia quer, evidentemente, “dar nome às coisas [e], de certo modo, conhecê-las e

emprestar-lhes sentido” (BELCHIOR, 1986:41) em uma atitude de não “só ligá-las ao

universo como, em certa medida, exorcizá-las e denunciá-las, chamando-as pelo seu

nome” (Idem).

O ato de nomear, de trazer à superfície aquilo que está naufragado, é, de certa

maneira, o ato de fazer emergir e aparecer – verbos que aparecem no texto a respeito do

propósito poético de Torga. Segundo Sophia, na obra do poeta “O longínquo povo das

montanhas de isolamento e de dis tância , de subido diz-nos a sua

identidade” (ANDRESEN, 1976: S/P). Na sequência, ela esclarece que

Nestes tempos de turismo e folclore encomendado e estilizado, onde a criação popular é tão facilmente degradada e manipulada pelos circuitos comerciais ou pelas propagandas políticas, Torga invoca o povo das aldeias como povo da antidegradação, povo que, em seu despojamento e pobreza isolada, permanece o guardião da pura fidelidade às raízes da vida. Eles são aqueles para quem nada é decorativo. Aqueles que duramente cercados pela estreita necessidade

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prática de sobreviver guardam abertos como identificação da vida o espaço do sonho. (ANDRESEN, 1976: S/P)

Essa reflexão, na verdade, é feita em termos próximos a de uma denúncia.

Denúncia essa que é direcionada, explicitamente, às estratégias de poder que atuam em

Portugal. O jogo político e o capitalismo concorrem para o esquecimento da cultura

portuguesa, por exemplo. Resgatar em Torga a atenção pelo povo das aldeias é, para

Sophia, o resgate do que há de primitivo e autêntico. Sabe-se, aliás, que o regresso à

palavra primitiva, ao mundo dito real e poético faz parte do projeto poético

andreseniano.

Em um poema intitulado “Che Guevara”, datado em 1972, no livro O nome das

coisas, os versos “De pôster em pôster a tua imagem paira na sociedade de consumo/

Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas” meditam sobre a

transfiguração que o capitalismo faz. A imagem de Che Guevara, um revolucionário

exemplar, cujos propósitos eram alheios ao consumismo, é utilizada como item

mercadológico, propagandeado e estampado de modo trivial, desobrigando, muitas

vezes, as pessoas da história que o rosto dele representa. O mesmo parece acontecer

com Cristo que teve seu papel traído. É importante lembrar que Salazar se utilizou das

fontes religiosas – inclusive Cristo, que representaria compaixão, afeto e acolhimento –

para justificar a opressão nas colônias africanas, por exemplo.

Embora não seja apropriado afirmar que não existam denúncias nos poemas

publicados por Sophia em décadas anteriores aos anos 1960, é, para este trabalho e

hipótese, importante destacar que, na segunda metade do século XX, possivelmente por

causa das guerras de libertação colonial na África, há mais nitidamente denúncias de

cunho político e social, que não são tão agudas nos primeiros livros da autora. Um fato

interessante também deve ser sinalizado: por ter sido publicado em um momento

posterior ao Estado Novo português e, por assim ser, um período em que já não havia

mais a censura institucional, o ensaio a respeito do poeta português medita sobre o fazer

poesia a partir de outro contexto. Sophia e Torga, artistas que compartilharam as

conturbadas questões impostas à arte pela ditadura, se deparam a possibilidade de

repensar a escrita. No entanto, os anos que se seguem no pós 1974 não atendem aos

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projetos idealizados. É evidente que Sophia, entusiasmada com a recuperação da

democracia e com as expectativas elevadas para a resolução de graves problemas

sociais, espere por tempos melhores dos que aqueles que realmente vieram. Para

refletirmos sobre isso, vejamos o poema “Nestes últimos tempos”, datado em 1976,

apesar de publicado em 1977, no livro O nome das coisas.

Nestes últimos tempos

Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo – de seu Viscoso gozo da nata da vida – que diremos De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos de sua sábia e tácita injustiça Que diremos de seus conluios e negócios E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa e eficaz expedita Degradação da vida que a direita pratica?

Junho de 1976 (ANDRESEN, 2011: 661)

Olhando para o poema e partindo da ideia de que a deposição da ditadura

salazarista, certamente, faz crescer, entre os portugueses, a esperança de tempos de

liberdade e paz, verificamos que não é exatamente isso que ocorre. O poema de Sophia

e, do mesmo modo, o manual de História de Portugal, de José Medeiros Ferreira,

mostram que os conflitos advindos da relação entre facções políticas de esquerda e

direita atrasam esses tempos esperados.

Diante disso, ressaltamos que Sophia, trazendo, então, à superfície discussões de

caráter mais marcadamente político, já que referências diretas são feitas a posições

ideológicas, podemos mostrar que ocorre, de fato, uma espécie de “virada” de sua 69

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poesia. Se na década de 1940 e 1950 a natureza era a tônica de seus versos, nas décadas

de 1960 em diante, apesar de a natureza não deixar de comparecer aos poemas de

Sophia, coincidem o “mar”, as “pedras” e o “vento”, por exemplo, com uma temática

mais compromissada e direcionada às questões históricas e sociais.

Dessa forma, quando a poeta e ensaísta portuguesa expõe que “o povo que na

obra de Torga fala nunca é o povo abstracto dos demagogos nem o povo idealizado dos

profissionais do nacionalismo” (ANDRESEN, 1976: 02), somos levados a pensar que é

ela também uma escritora que nunca fala de um povo “idealizado dos profissionais do

nacionalismo”. Ela observa em Torga um poeta que nunca canta para uma corporação

que impõe o nacionalismo. Ele canta para um povo que não é “demagogo”. Se

recorrermos ao dicionário Novíssimo Aulete, encontramos como um dos significados

para esse termo o seguinte: “político que se vale da demagogia”, isto é, da

“dominação” (FERREIRA, 2008: 201). Se Sophia observa que Torga não dirige seu

canto para essa classe de pessoas e se ela também não dirige seu canto para essas

pessoas, como veremos a seguir no poema “Esta gente”, de Geografia, o povo é para

quem ela canta. E é “em frente desta gente/Ignorada e pisada” (ANDRESEN, 2011:

458) que o canto dela “se renova” (Idem). Assim, podemos dizer que, falando sobre

Torga, Sophia nos mostra mais uma vez a sua face.

Esta gente

Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco Ora me lembra escravos Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abutre e a cobra O porco e o milhafre

Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome

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E em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada

Meu canto se renova E recomeço a busca De um país liberto De uma vida limpa E de um tempo justo (ANDRESEN, 2011: 458)

No ensaio sobre Torga, o trecho “Pois a aliança com a terra não é apenas a

aliança com o país natal, com o chão de um lugar ou de uma pátria” (ANDRESEN,

1976: S/P) é mais um indício da relação entre os poetas, pois vemos uma alusão clara à

“Arte Poética I”, em que a palavra “aliança” aparece para marcar o desejo de união com

o sol e a impossibilidade de fazê-lo devido ao mundo que oferece “coisas diferentes”,

que nada têm em comum com o sol ou com o artista. Torga, para Sophia, é o poeta que

quer, como ela mesma diz em sua “Arte Poética I”, estabelecer uma aliança com “Este

reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da

cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão” (ANDRESEN, 2011: 838), ou

seja, estabelecer uma aliança com a terra.

Além disso, os próprios poemas destes autores parecem se cruzar. O poema de

Torga a que Sophia faz referência no ensaio a respeito do autor, intitulado “Correio”,

estabelece um diálogo com um poema do livro Mar novo, de 1958.

A) Correio

Carta de minha mãe Filho E o que seguir se lê É de uma tal pureza e de tal brilho Que até da minha escuridão se vê. (TORGA, IN ANDRESEN, 1976: S/P)

B) Perfeito é não quebrar A imaginária linha

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Exacta é a recusa E puro é o nojo (ANDRESEN, 2011: 307)

As imagens paradoxais que são apresentadas nos dois poemas (onde a pureza e

brilho mostram a escuridão – poema de Torga; onde a recusa é exata e o nojo é puro –

poema de Sophia) se parecem. Nos versos dos poetas, reparamos que a pureza, o brilho,

a exatidão são acompanhados da escuridão, da recusa e do nojo. As palavras que fazem

parte de um universo semântico positivos se encontram com as de um universo

negativo. No que diz respeito à poética de Sophia, o seu projeto se escora, entre outras

premissas, na busca pela transcendência a partir da imanência. A tomada de consciência

dos problemas que assolam o universo terreno, por meio do esforço de conhecimento e

propagação deste, não deve impedir a idealização de um espaço harmônico e justo. Na

“Arte Poética III”, Sophia diz que alguém que é capaz de ver o espantoso esplendor do

mundo também é capaz de ver o sofrimento deste lugar. (ANDRESEN, 2011: 841). Isto

é, a dor sentida não deve ser esquecida ou apagada, mas, sim, vivida, lembrada para que

a partir dela novos tempos possam ser projetados.

O poema que Sophia seleciona dentro da obra de Torga (“Correio”) para ilustrar

o ensaio que escreve sobre o autor é também uma evidência da ligação dos poetas.

Ainda que não possamos afirmar com precisão, temos a convicção de que poesia

também se faz de poesia, e, por isso, é possível dizer que Sophia escolhe um poema em

que Torga versa sobre a atividade de escrita – já que o poema fala sobre uma carta lida –

em linhas próximas ao que ela já havia escrito em anos anteriores, na “Arte Poética III”

e no poema de Mar Novo.

Em seus ensaios, é possível verificar que o motor condutor vai para além da

caracterização do poeta e das ponderações acerca das produções dele. Um universo

maior, que tenta verificar o papel da arte e do artista, estabelecer caminhos para a

poesia, dialogar com a história, entre outros, é abrangido por suas palavras. Ao lermos o

ensaio sobre Cecília e, agora, Torga, portanto, lemos, principalmente, Sophia. O ensaio,

assim, assume status artístico, sobretudo por desenvolver elementos de ordem estética e

comunicativa.

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Revendo a década de 1970, em 12 de julho de 1975, encontramos, no jornal O

expresso, um ensaio de Sophia intitulado “A cultura é cara, a incultura é mais cara

ainda”. Além disso, nos primeiros exemplares do livro No tempo dividido, que fora

publicado pela primeira vez no ano de 1977, na contracapa, há um prefácio , assinado 8

pela autora, que fora feito para a ocasião do I Congresso de Escritores Portugueses, em

10 de maio de 1975, cujo título é “Poesia e revolução”. Entre 1975, ano de escrita de

“Poesia e revolução”, e 1977, ano de publicação desse ensaio, Sophia publica, em 1976,

o ensaio sobre Miguel Torga.

Na linha do que queremos apresentar, é preciso dizer que esses três ensaios

apresentam questões que podem sustentar a nossa ideia de que Sophia fala de si a partir

do outro. Vejamos alguns dos trechos que selecionamos e que podem nos auxiliar nesta

tarefa.

A) Poesia e revolução

Pois a poesia busca o verdadeiro estar do homem na terra e não pode por isso alhear-se dessa forma do estar na terra que a política é. Assim como busca a relação verdadeira do homem com a árvore ou com o rio, o poeta busca a relação verdadeira com os outros homens. Isto o obriga a buscar o que é justo, isto o implica naquela busca de justiça que a política é.

E porque busca a inteireza, a poesia é, por sua natureza, desalienação, princípio de desalienação, desalienação primordial. Liberdade primordial, justiça primordial. O poeta diz sempre:

“Eu falo da primeira liberdade”

Dessa unidade fundamental da liberdade e da justiça o poeta formou o seu projecto oposto à divisão.

Se queremos ultrapassar a cultura burguesa – ou seja o uso burguês da cultura – é porque vemos nele o reino da divisão, o fracasso do projecto da inteireza. Sem dúvida grandes poetas nasceram e criaram dentro do mundo da cultura burguesa. Mas sempre viveram esse mundo como exílio e viuvez, como poetas malditos. (ANDRESEN, 1977: 77)

Apesar de não ser de nosso interesse analisar os motivos disto, sinalizamos que o prefácio em questão 8

foi retirado das edições posteriores da antologia. 73

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B) A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda

Razões por que a arte deve ser livre

I – A arte deve ser livre porque o acto de criação é em si um acto de liberdade. Mas não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a Arte não é livre o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade de liberdade. Onde o artista começa a não ser livre, o povo começa a ser colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e abstracta. Se o ataque à liberdade cultural me preocupa tanto é porque falta de liberdade cultural é um sintoma e significa opressão para um povo inteiro.

A arte do povo, o saber do povo: uma arte ou a arte?: levar a arte ao povo, trazer o povo à arte.

II - Não penso que exista uma arte para o povo. Existe sim uma arte para todos à qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilidade através dos meios de comunicação. Primeiro, os aedos cantaram no palácio dos reis gregos “o canto venerável e antigo.” Era uma arte profundamente aristocrática. Depois os rapsodos cantaram esse mesmo canto na praça pública. E Homem foi, como se disse, o educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta em comum. E por isso os gregos inventaram a democracia. A cultura começa muito antes da política.

Penso que nenhum socialismo real será possível se a cultura não for posta em comum.

Quando aedo, ou o poeta medieval cantavam na praça o seu poema era ouvido por todos, mesmo pelo analfabeto. E viaja por todo país e de país em país: por isso o mirandês canta Mirandopolitano.

Depois a cultura fechou-se em livros e os analfabetos e os pobres foram rejeitados. Tudo se tornou mais complexo e complexado. As comunidades foram divididas e cada homem foi dividido dentro de si próprio. (ANDRESEN, 1975: S/P)

C) Torga, os homens e a terra

A terra a quem Torga fala é simultaneamente o solo do país natal e a Terra-mãe de toda a vida humana, o grande Demeter, a Gea de que Hesíodo invoca nos versos da Teogonia:

“A terra de largos flancos, chão firme Oferecida para sempre aos vivos”

(...)

Pois Torga, poeta da “Terra de largos flancos”, poeta que tantas vezes nos parece um contemporâneo de Hesíodo, é um contemporâneo da “morte de Deus”.

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A sua poesia é uma poesia da plenitude e da inteireza do reino do homem no Terrestre – mas esse reino cortado e rodeado de ausência e silêncio. Rodeado pelo abismo, que, como Hesíodo nos diz, é anterior à Terra. (ANDRESEN, 1976: S/P).

A cronologia das publicações nos instiga a delinear uma linha do tempo e, a

partir dela, somos capazes de perceber que os ensaios dialogam entre eles. Não fossem

as datas dos textos, as temáticas (a política, a social e a artística) que dão corpo às

reflexões da autora, já seriam suficientes para nos oferecer materiais para o estudo.

Como é possível notar, o ensaio “Poesia e revolução” medita sobre a missão do artista,

estabelecendo, de certa forma, a postura que um poeta deve ter diante de uma

comunidade. O princípio de justiça e o comprometimento com o povo – caros à poética

de Sophia – são levantados como nortes na condução do projeto de um artista. Esse

projeto, ao modo romântico, tem como finalidade a libertação do povo, no aspecto

político, social e também artístico. A inteireza pretendida pelo poeta precisa ser a da

desalienação popular e, para isso, é preciso superar a divisão da sociedade, o uso

burguês da cultura, a transfiguração política para fins contrários ao da democracia, que

segregam a sociedade.

Ainda concentrada nessa divisão da sociedade, Sophia, no texto “A cultura é

cara, a incultura é mais cara ainda”, denuncia o sintoma da opressão no povo. Na

posição de artista, a autora aponta os perigos que as estratégias de poder vigentes

oferecem à arte, mostrando que a liberdade e criação do poeta e, por assim ser, a do

povo estão ameaçadas. A provável manipulação dos meios de comunicação (a seleção

de artes a ser divulgada pelos órgãos políticos, por exemplo, como já comentamos

quando analisamos o ensaio “A poesia de Cecília Meireles”), entre outros fatores, é

percebida como empecilhos para a conscientização dos mais pobres e analfabetos, em

particular. Além disso, nota-se que há um apelo à valorização da cultura em seu aspecto

universal e democrático. A necessidade de profusão das manifestações artísticas e do

acesso a elas são visualizados dentro de uma ótica também política, por serem

importantes para a construção do senso crítico da população de modo geral.

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Em “Torga, os homens e a terra”, Sophia parece festejar o encontro com o poeta

que, segundo a descrição que sugere, segue o seu princípio poético. Notamos que se

considerarmos “Poesia e revolução” como um texto de caráter mais teórico, “A cultura é

cara, a incultura mais cara ainda”, um manifesto, e “Torga, os homens e a terra”, um

texto de teor mais crítico; podemos dizer que os meandros estabelecidos pelo projeto

poético de Sophia – que podem ser delimitados pela linha reflexiva e teórica que ela

institui e segue – e, ainda, a declaração pública, divulgada no jornal O expresso – que

traz à tona a posição artística e ideológica da escritora –, estão em consonância com a

crítica feita a Miguel Torga. Como se esse poeta fosse não só um exemplo, mas uma

máscara, Sophia parece reconhecê-lo como inspiração e também como paradigma para

uma autorreflexão. Sophia e Torga, segundo a própria Sophia, mesmo diante da

degradação política se mantêm fiéis à vida, ao povo e à arte

Quando falamos sobre a relação de Sophia Andresen com Cecília Meireles,

recorremos a alguns autores para explorar a forma como o encontro ocorria. Dessa

forma, no intuito de estender a análise, vamos oferecer mais uma visão crítico-teórica

no que diz respeito à leitura do outro. Por isso, recorremos a Octavio Paz, em Os filhos

do barro, na seção “Analogia e Ironia”, que analisa a poesia moderna e sua relação com

o romantismo alemão e, também, com o inglês, dizendo ser característica dessa

produção o seu enviesamento crítico. Para o autor, os poetas modernos, a fim de ligar os

extremos, diminuíram as fronteiras entre arte e vida, teoria e prática, poesia e poética,

antiguidade e história contemporânea. Como já mostramos, Sophia de Mello Breyner,

poeta moderna, serve-se dessa tradição. No entanto, interessa-nos observar que os

românticos, segundo Friedrich Von Schlegel, “não propunham somente dissolução e

mistura de gêneros literários e das ideias de beleza, mas, [...] buscavam a fusão entre

vida e poesia” (Apud PAZ, 2013: 67). E é essa junção que vemos nos ensaios de Sophia

e, em particular, no que dedica a outros autores, como o escrito sobre Miguel Torga.

Assim, por mais que haja um hiato temporal, por exemplo, entre os românticos e os

modernos,

todos eles concebem a experiência poética como uma experiência vital da qual participa a totalidade do homem. O poema não é apenas uma

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realidade verbal: também é um ato. O poeta diz e, ao dizer, faz. Esse fazer é antes de mais nada um fazer a si mesmo: a poesia não é só autoconhecimento, mas também autocriação. (PAZ, 2013: 68)

Se o exercício do poeta passa, entre outras questões, pelo esforço do

autoconhecimento, sabe-se que as considerações levantadas nos textos que escreve são

frutos do estudo empreendido também para uma autoafirmação, na busca por um lugar,

no qual os limites, inspirações, temas e interesses de sua poesia se assentem, criando,

assim, uma identidade que o particularize. O autoconhecimento e a autocriação,

portanto, são as máximas que conduzem o poeta, romântico ou moderno, permitindo,

dessa maneira, que compareçam em seus textos estudos sobre a obra de outro artista.

Olhar para o outro, buscando nele diferenças e semelhanças, é um gesto comparativo,

que separa e une a partir da ótica com a qual o exame é realizado.

4.3. “O tempo duma profunda tomada de consciência”: Sophia lê Camões

Nesse fluxo de reflexões, chegamos ao texto que Sophia de Mello Breyner

escreve sobre Luís de Camões. É importante mostrar, preliminarmente, que, neste

último ensaio que lemos, que encerra as análises de ensaios andresenianos propostas por

esta dissertação, é possível confirmar algumas das hipóteses levantadas até aqui. O fato

de Cecília Meireles, Miguel Torga, entre outros autores de Língua Portuguesa, se

encontrar com Sophia no texto “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento” nos

mostra que, de alguma maneira, as vozes desses poetas são ecos da voz camoniana, que

é, sem dúvida, um dos principais pilares que formam a literatura lusófona. Ao promover

tal encontro consigo, percebemos um desejo de Sophia em ocupar um lugar no cânone

português, uma vez que ela é, como já mostrei, formada pelas influências e trocas que

desenvolveu com outros poetas e, principalmente, com Cecília, Torga e Camões.

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No ensaio, logo no início, adverte-se que a “poesia é o contrário de uma instituição”.

Porém, essa advertência vem seguida da constatação de que Camões foi transformado

em uma instituição para atender às demandas do regime salazarista. No intuito de

entender essa denúncia, é preciso lembrar que durante o governo de Salazar houve a

tentativa de reanimar a economia portuguesa para diminuir a defasagem de

desenvolvimento industrial e tecnológico que separava o país do resto da Europa.

(FIGUEIREDO, 1976:35). Além de investimentos no setor secundário, o projeto do

Estado Novo português contava com práticas de expansão territorial semelhante àquelas

descritas n’Os Lusíadas. Em nome da “Fé” e do “Império”, o discurso de grandiosidade

nacional proferido por autoridades institucionais legitimava ações criminosas na África,

por exemplo, a fim de angariar recursos financeiros para desenvolvimento, sobretudo

infraestrutural do país colonizador. A censura, nesse aspecto, era fundamental para a

efetivação do plano salazarista, uma vez que a atuação da Polícia Internacional e de

Defesa do Estado (PIDE) selecionava e modificava textos, cartazes e até mesmo cartas

pessoais de modo a adequar esses materiais à demanda imposta pelo regime de exceção.

Era preciso que a população acreditasse no discurso do progresso econômico e aderisse

à ideia dele, mesmo diante de todos os obstáculos que as circunstâncias impunham.

Essas estratégias, que são de opressão e cerceamento de liberdade, impedem a reflexão

crítica por parte da população e operam de modo a manter a ordem fascista.

A pobreza, atraso industrial e abismo educacional eram evidentes. Soma-se a

isso o fato de que a sistematização de tratos comerciais com o continente era

complicada e escassa, já que a posição geográfica de Portugal dificultava o contato com

os outros países, sobretudo por estar voltado para o mar à esquerda e coberto pela

Espanha à direita. Todas as evidências, portanto, concorriam para uma maior

dificuldade na realização do plano salazarista de reavivamento socioeconômico. Assim,

a fim de influenciar a população portuguesa, o regime ditatorial precisava superar as

circunstâncias no intuito de estimular a esperança no progresso.

Para isso, Salazar revisitou as fontes culturais, religiosas e literárias portuguesas,

interpretando-as de modo a legitimar seu discurso. Antônio Figueiredo, no ensaio

“Salazar – o seminarista e o nacionalista”, confirma isso, dizendo que

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Salazar não estava apenas condicionado pela sua educação a aceitar a herança da ideologia nacionalista – ele aderiu a ela. A sua visão do passado de Portugal, como um povo escolhido para levar a cabo uma missão civilizadora nos quatro cantos do mundo, como o possessor de um império, contém elementos emocionais semelhantes àqueles de outras ideologias nacionalistas, pelas quais os jovens e os ingênuos estão preparados para morrer. (FIGUEIREDO, 1976: 38)

Também em reflexão sobre a utilização pelo Estado Novo das fontes literárias

portuguesas, Jorge Fernandes da Silveira, em Portugal Maio de Poesia 61, faz um rico

trabalho de análise de alguns recursos da obra camoniana utilizados pelo Estado Novo

Português, mostrando que (vamos nos permitir uma longa citação):

A obra de Camões, durante o fascismo, deixa de ser o objeto literário, que é, para ser transformada num sujeito activo “braço às armas feito” lado a lado com o governo salazarista. Veja-se a introdução à História de Portugal para a 4º classe, livro obrigatório em todos os liceus nos tempos da ditadura: Nas páginas que vão seguir-se contamos-te uma história, a história de uma pátria:

‘E que Pátria! A mais formosa e linda Que ondas do mar E a luz do luar Viram ainda!’

Mas essa história não foi imaginada, não foi feita por um contista. Foi feita, sim, por Homens de raras virtudes. Não foi escrita com penas, mas como acções. Esses homens sofreram, lutaram, morreram para que tu possas dizer bem alto e com orgulho:

SOU PORTUGUÊS!

A história que vais ler é a história da tua Pátria, a história de um POVO que nasceu pequenino, cresceu e tornou-se grande, tão grande que o mundo todo foi pequeno para conter seus feitos, porque: ‘Se mais mundo houvera, lá chegara.’ (SILVEIRA, 1986: 45)

Jorge Fernandes da Silveira nota que

nesta terrível oração aos miúdos deturpa-se a interpretação da história e nega-se explicitamente o valor do trabalho intelectual na construção

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do país. Este ocultamento da realidade social, confirma Marilena Chauí, chama-se ideologia. Aqui a ideologia veiculada é a de português forte e patriota por natureza. Decerto este desrespeito pela cultura, louva, por via transversa, a acção da censura. Afinal, letras e artes não valem nada... Apagadas as marcas dos escritores, ofendido o seu trabalho, os versos de Camões, deliberadamente tornados “surdos” e “endurecidos”, estão também a dirigir o colonialismo mental e, literalmente, político do regime.

Compara-se mais uma página da “sebenta” com estrofes célebres d’Os Lusíadas:

“Os Portugueses, ao iniciarem a epopéia dos descobrimentos e conquistas, não tinham em vista somente o alargamento territorial, animava-os, também, o ardente desejo de espalhar a doutrina cristã entre os povos que iam pertencendo à comunidade portuguesa. Ao lado do soldado e do marinheiro, seguia o missionário. Enquanto que o soldado impunha a presença de Portugal, através da língua, dos usos e dos costumes, o missionário procurava conquistar almas para Deus. Os seus métodos eram suaves e baseavam-se na bondade. Tratavam os doentes, amparavam os velhos e acarinhavam as crianças. Só assim se compreende que um país tão pequeno, como era Portugal, criasse um tão grande Império." A nossa língua e as nossas leis, baseadas na igualdade de direitos entre ocupantes e ocupados, fizeram desses povos, de raças tão diferentes, uma nação única, indivisível, apesar de o seu território estar espalhado pelas cinco partes do mundo.

Não há duvida de que a “prosa” colonialista é um pastiche dos versos camonianos: [...]

O crime em Lisboa e a matança em Luanda têm, portanto, um insuportável sinal de semelhança, a irmanar a metrópole a colônia no ano de 1961. Quer o português combatente, quer o angolano guerrilheiro são abatidos à sombra d’Os Lusíadas, em nome da “Fé” e do “Império”. Os dois acontecimentos fazem pensar na apropriação criminosa da obra de Camões e nos levam a chamar a atenção para apologia da morte gloriosa em favor da Pátria. [...] 9

Em suma, na mão direita, a cruz; na esquerda, a espada. Por trás de toda essa retórica, Os Lusíadas deixam de ser o título de uma obra, e um texto épico com interesses específicos, para se irem transformando em nome próprio dos ditadores e de suas atrocidades. (SILVEIRA, 1986: 45)

Frente a isso, entende-se que não é à toa que o ideal nacionalista de Salazar se

escora no poema épico de Camões. Ora, Os Lusíadas narram, grosso modo, as glórias

Neste momento do texto, Jorge Fernandes da Silveira concentra-se na atuação da ditadura 9

salazarista em África. 80

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do povo português, que mesmo ante as dificuldades impostas pela natureza, pelos

deuses ou pela inveja humana, conseguem alcançar com êxito seu destino de

conquistador de terras para Portugal e dilatador da Fé Católica. Oliveira Salazar, no

século XX, também diante de dificuldades, quer mostrar ao povo que as dificuldades

podem ser superadas e, tal como na história das navegações, podem render

reconhecimento e, sobretudo desenvolvimento. Mais do que isso, infelizmente, o

discurso salazarista tinha também como objetivo sustentar o regime opressor da

ditadura, além de conservar colônias na África.

Ao refletir acerca dessa apropriação de Camões pela ditadura, Sophia de Mello

Breyner Andresen diz no ensaio que ao poeta “aconteceu mesmo não só ter sido

transformado em instituição, mas também – e para vergonha de todos nós – ser uma

instituição usada e manipulada ao longo dos tempos pelas diversas estratégias do poder”

(ANDRESEN, 1981: 151).

Sua denúncia parte do pressuposto de que um poema não pode servir a um

propósito utilitarista, ainda mais se for a ele for atribuída a função de mantenedor de

atitudes violentas e repressoras, como eram as do Estado Novo. A vergonha que a autora

revela sentir não fica restrita apenas ao fato de que houve um uso inadequado da obra de

Camões, mas também tem a ver com a transfiguração da poesia para fins contrários aos

dos poetas. Deve-se notar que o projeto poético de Sophia se baliza, principalmente, na

busca por uma poesia que mostre a “relação pura do homem com as coisas. Isto é: uma

relação do homem com a realidade, tomando-a na sua pura existência” (ANDRESEN,

1960: 53), como ela mesma nos diz no ensaio “Poesia e realidade”. Por assim ser, a

poesia, ainda que pura, deveria interferir na desordem do cotidiano, não para agravá-la,

mas para revertê-la em ordem, como confirma a autora dos ensaios em sua “Arte

poética III”:

O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência comum. (ANDRESEN, 2011: 842)

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Sob a visão dela, se Camões é utilizado com a finalidade de atender aos desejos

ditatoriais, sua posição de artista é traída, devendo ser denunciada.

É, para Sophia, legítima a reivindicação de que a poesia atenda a princípios

morais e éticos, à justiça e à justeza. Nessa ótica, então, verifica-se mais uma

semelhança entre o que é dito a propósito do poeta épico e o que é a poesia para a

autora. O ato de denunciar o uso de Camões e igualmente o de se debruçar sobre ele

representaria, para este trabalho, uma estratégia andreseniana de falar do eu por meio do

ele, isto é, um artifício literário de pensar e construir para si própria um entendimento

do que é poesia a partir da produção de outro, no caso, de Camões. Para aclarar e

ratificar a hipótese, destacamos três momentos dos textos da autora portuguesa: A)

fragmento do ensaio “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”, B) fragmento

do ensaio “Poesia e realidade”, C) parte da “Arte poética III” e D) o poema “A forma

justa”, publicado no livro O nome das coisas.

A) Camões resiste e, porque resiste, sofre, vê e denuncia essa desatenção, essa surdez asfixiante. Ele vê e denuncia uma atitude que é simultaneamente moral e cultural e que, através dos séculos e das variações políticas, continua. A sua crítica ao seu tempo aplica-se ao nosso. (ANDRESEN, 1981: 157)

B) De facto, um homem que precisa de poesia precisa dela, não para ornamentar a sua vida, mas sim para viver. Precisa dela como precisa de comer ou beber. Precisa dela como condição de vida, sem a qual tudo é apenas acidente marginal e cinza morta. (ANDRESEN, 1960: 53)

C) E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. (ANDRESEN, 2011: 841)

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D) A forma justa

Sei que seria possível construir o mundo justo As cidades poderiam ser claras e lavadas Pelo canto dos espaços e das fontes O céu, o mar e a terra estão prontos A saciar a nossa fome do terrestre A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia Cada dia a cada um a liberdade e o reino - Na concha na flor no homem e no fruto Se nada adoecer a própria forma é justa E no todo se integra como palavra em verso Sei que seria possível construir a forma justa De uma cidade humana que fosse Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo (ANDRESEN, 2011: 660)

Percebe-se, nos trechos selecionados, que quando Sophia enxerga em Camões

um poeta que não se silencia diante das adversidades, já que ele, ao testemunhar a

tirania e a imoralidade, acaba por denunciá-las, mais um elo passa a conectar esses dois

poetas. Se olharmos para a “Poesia e realidade” e para a “Arte poética III”, que teorizam

sobre o projeto artístico andreseniano, e se olharmos o poema “A forma justa”

percebemos que a construção de um mundo justo, da forma justa, depende, entre outras

coisas, da busca pela restituição do que está rompido, do que está quebrado. A

restituição, por sua vez, só pode ser realizada por meio da percepção do erro, pois será o

reconhecimento da falha o motor que levará à projeção de um mundo ideal e,

consecutivamente, à restituição das alianças puras, fiéis e necessárias aos poetas, que

estão desfeitas pelo mundo que não é um reino, que não é capaz de se religar com o sol

e lua, mundo que teve sua aliança quebrada . 10

Ora, se a crítica feita por Camões se aplicaria ao tempo de Sophia, como ela

mesma confirma em “Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”, somos

Arte poética I – Andresen, 2011:83710

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levados a pensar que o épico é uma espécie de eixo condutor pelo qual a poetisa se guia,

“porque nele [ama] e [busca] o poeta real” (ANDRESEN, 1981: 153), como ratifica em

seu ensaio. Frente a isso, nota-se que a contração da forma ele com a preposição em,

formando nele, sugere a noção de pertença, fomentando outra vez a ideia de que há um

processo de despersonalização na escrita andreseniana. Como se a poetisa saísse de si e

vivesse e experimentasse Camões, falando através dele sobre si própria, o ensaio a

respeito do poeta épico poderia ser lido como uma arte poética da autora, visto os fortes

elementos relacionáveis entre si que levantamos até aqui.

Na sequência do ensaio, é feita a afirmação de que Camões sofre, mas não

sucumbe, e, sim, resiste e denuncia a asfixia que o angustia. Essas são atitudes de cunho

moral e cultural. E essas atitudes são aquilo que a poesia é para a Sophia: “a poesia é

uma moral. (...) E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de

toda obra poética” (ANDRESEN, 2011:841). Para ela, “a obra do artista vem dizer-nos

isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que

somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e dignidade do ser” (ANDRESEN,

2011:842). Observando, então, o que é dito sobre o autor d’Os Lusíadas, conseguimos

verificar mais um outro reflexo e eco da voz de Camões em Sophia.

Ainda em vigência, o regime fascista fazia uso do autor da epopeia portuguesa,

quando em 1972 – ano da comemoração do 4º centenário de publicação d’Os Lusíadas

– Sophia publica Dual, no qual o poema “Camões e a tença” reitera a(s) denúncia(s) em

questão.

Camões e a tença

Irás ao paço. Irás pedir que a tença Seja paga na data combinada Este país te mata lentamente País que tu chamaste e não responde País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram Calúnias desamor inveja ardente E sempre os inimigos sobejaram A quem ousou seu ser inteiramente

E aqueles que invocaste não te viram Porque estavam curvado e dobrados

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Pela paciência cuja mão de cinza Tinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao paço pacientemente Pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente (ANDRESEN, 2011:592)

Os versos desse poema meditam sobre uma questão que será abordada no ensaio

“Luís de Camões: ensombramento e descobrimento”, e que tem a ver com a causa da

morte do poeta. Em “Camões e a tença”, um olhar sobre a posição de pedinte na qual

Camões se encontra (“Irás pedir que a tença/Seja paga na data combinada”) é lançado

de modo a construir uma crítica acerca da posição da arte e do poeta através do tempo,

sendo as marcas verbais – que variam entre passado, presente e futuro – indícios dessa

confusão temporal, que não distancia Camões do século XVI de um artista do século

XX.

A “tença” (uma pensão dada por serviços prestados) a que Sophia se refere é

estudada por Virgínia Boechat no texto “Aquele que recebeu em paga: acerca de um

Camões no poema de Sophia” (BOECHAT, 2010:105) a partir das acepções que o

honorário poderia denotar. Ao notar o valor monetário e material, e o valor sentimental

e honroso que perpassam pelo termo “tença”, Virgínia Boechat explica que, para além

da quantia em moedas que Camões receberia, o que deve ser discutido à luz do poema

de Dual é a questão da recepção da arte e, ainda, a posição do artista. Dessa forma,

está em outro pagamento, outro valor, a tença que ele irá pacientemente reivindicar junto ao governo, junto a um palácio real, num tempo futuro ainda intangível, inalcançável, mas que uma data que fosse, uma data combinada que fosse cumprida, seria capaz de tornar a realidade palpável e recompensa, ou melhor, de tornar uma tença que é de insulto e morte numa tença de valorização, de entendimento, de justa recepção do canto. (BOECHAT, 2013:114)

Por meio de verbos que aproximam Camões do tempo presente, portanto, a

autora portuguesa assinala os desenganos camonianos em seu texto de modo a instigar o

leitor crítico a refletir sobre uma provável ponderação da experiência sentida no

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momento da escrita, isto é, no século XX. Sabe-se que o livro no qual “Camões e a

tença” foi publicado em 1972, período em que o Estado Novo ainda estava em vigência

e, evidentemente, um período de repreensão artística, social e política. Sabe-se, ainda,

que, para Sophia, a poesia não pode ser tratada como instituição. Tendo, pois, esses

indicativos, o poema corrobora a crítica do ensaio “Luis de Camões: ensombramento e

descobrimento”, denunciando também a injúria que sofrem os artistas e a surdez

delegada a eles através do tempo.

A denúncia fica ainda mais evidente no momento em que, no poema, o país,

lentamente, mata o poeta. Levado à morte, o poeta perde a voz e aquilo que seria o seu

potencial de nomear as coisas. Nesse sentido, é importante ressaltar que nomear as

coisas é um dos esforços a que poesia de Sophia se dedica. Se não há nome, não há a

denúncia da ambição, da infâmia e dos demais crimes. Se não se nomeia, não se podem

ligar as coisas ao universo, não se pode dar substância àquilo que aparentemente não é

nomeável, visível, audível e explicável no mundo. Na poética andreseniana, as coisas

que respiram da abstração metafísica pertencem ao sensível e, em sua exceção, são

apresentadas por substantivos, por nomes. Sophia “ia e vinha/ e a cada coisa

perguntava/ que nome tinha” (ANDRESEN, 2011:207) no esforço de trabalhar a

linguagem, de explorar os sentidos estéticos e éticos que a sua poesia poderia produzir.

A liberdade, a felicidade, as cores, as paisagens, os objetos, entre outros, recebem

nomes para serem trazidos à realidade através de sua pulsação primeira. Em sua “Arte

poética II”, Sophia aclara que

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz “obscuro”, “amplo”, “barco”, “pedra”, é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação comas coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade,

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pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. (ANDRESEN, 2011:839)

Dessa forma, Camões, que mesmo nomeando não é capaz de fazer nascer um

país, passa por um sofrimento. Se ele tem o canto impedido, se ele nomeia e o país não

nasce, percebemos que a sua missão como artista não está sendo cumprida. A urgência

com que o texto andreseniano ressalta tal aspecto acaba por revelar a sua missão,

enquanto poeta, frente ao mundo em que se encontra. Mostrando a imoralidade que há

no tempo de enunciação do seu canto através da reflexão sobre um poeta que no

passado e também no presente sofre com a mudez, uma vez que sua obra foi recortada

para fins diversos, e com a surdez, já que não são todos que valorizam a condição

intelectual do poeta, Sophia nos traz a sua condição de poeta maldita, tal como Camões

é, segundo o ensaio que ela escreve. A apropriação da figura camoniana, então, serve

para uma tomada de consciência sobre as dificuldades de ser artista no século XX, pois,

se o épico é destruído pelas estratégias de poder, ela e sua obra também são atingidas

por essas forças.

Quando recorremos à história, lembramos que a censura é um dos vetores que

condicionam quase toda a história portuguesa. No século XVI, época em que a primeira

versão d’Os Lusíadas foi publicada, a obra foi, segundo José Saraiva e Óscar Lopes, em

seu clássico manual História da Literatura Portuguesa,

barbaramente mutilada (...). Foi expurgada e alterada pela Censura Inquisitorial, que dela eliminou a designação de “deuses” atribuída às personagens da mitologia e cortou numerosas estrofes como as alusivas aos Jesuítas, e as de mais viva vibração erótica, sobretudo no episódio da Ilha dos Amores. (LOPES e SARAIVA, 1950: 339)

Os dois estudiosos ainda dizem que a épica portuguesa

se propõe a imortalizar (...) a consciência de estar a fazer uma revolução no mundo, revolução de que o poeta não vê significado social, embora julgue ver o significado político, religioso, científico e estético – o que é suficiente para se orgulhar como humano. (LOPES e SARAIVA, 1950: 329)

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Dessa forma, se a censura atua sobre a ideologia d’Os Lusíadas, há o

impedimento da representação de povo que o poeta desejara mostrar. Sintomática, a

repreensão inquisitorial, no século XVI, portanto, alterou a épica, negligenciando o

canto do artista e atribuindo à obra efeitos contrários aos pretendidos pelo autor.

Diante do poema de Dual, recordamos que a sobreposição de tempos em

“Camões e a tença” denota um imbricamento das sensações, sobretudo por ser

recuperada, por marcas verbais no presente, a situação da surdez por parte da população

dirigida ao canto do poeta no século XVI e que se perpetua. Nesse sentido, poderíamos

dizer que a volta ao tempo, ou melhor, a transposição da condição camoniana para a

circunstância histórica em que Sophia Andresen vive ao longo do século XX é mais

uma marca aproximativa entre ela e o poeta português. Tendo em vista os apontamentos

feitos no poema e ensaio sobre Camões, nota-se que Sophia explora a condição de um

artista que experimenta a surdez da sociedade, de modo a incitar, a partir de seus textos,

a comparação da circunstância histórica e social do século XVI com a do século XX.

No tempo de Sophia, como já havíamos dito, a censura ferrenha é a causa de

muitos medos, temores e desrespeito com as artes e com a cultura, por exemplo. As

evidências históricas do século em que a autora escreve, então, nos permitem verificar

que mais do que delatar a apropriação criminosa da obra camoniana pelo Estado Novo –

voltando-se, nesse aspecto, a uma denúncia centrada mais propriamente no contexto

histórico – podemos explorar as relações intertextuais das produções literárias do poeta

épico e da poetisa moderna, uma vez que, a partir da obra épica e seu uso, Sophia

pondera, em seus textos, sobre o que é fazer poesia em meio à opressão.

Se olharmos, por exemplo, para os poemas do livro de Navegações, de 1983,

reparamos logo no título que os versos glosarão a temática dos descobrimentos

portugueses. E, como é de se esperar, dialogarão com a épica portuguesa. De fato, é esse

o motor dos textos que compõem a obra. A própria Sophia diz isso no posfácio das

Navegações: “Escrevi as Navegações exactamente porque o Conselho da Revolução,

em 1977, me convidou a ir a Macau tomar parte da celebração do Dia de

Camões” (ANDRESEN, 2011: 699).

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É, nesse momento, importante notar que não são feitas apenas denúncias na obra

de 1983. Podemos ver, em diversas partes, questões outras que envolvem os poemas

andresenianos sem perder de vista a empreitada camoniana. A título de exemplo,

destacamos aqui o poema “VIII”, de Navegações (transcrito abaixo), que fala da visão –

e, nesse sentido, do descobrimento – de modo similar ao que é dado aos navegantes

portugueses da épica lusitana, no canto V, estrofe 3 e 4 (transcritos abaixo), que narram

o momento de distanciamento da costa portuguesa e, desse modo, mostram o momento

da entrada no mundo novo a se ver.

Sophia conta:

Vi as águas os cabos vi as ilhas E o longo baloiçar dos coqueirais Vi lagunas azuis como safiras Rápidas aves furtivos animais Vi prodígios espantos maravilhas Vi homens nus bailando nos areais E ouvi o fundo de suas falas Que já nenhum de nós entendeu mais Vi ferros e vi setas e vi lanças Oiro também à flor das ondas dinas E o diverso fulgor de outros metais Vi pérolas e conchas e corais Desertos fontes trémulas campinas Vi o rosto de Eurydice das neblinas Só do Preste João não vi sinais

As ordens que levava não cumpri E assim contanto tudo que vi Não sei se tudo errei ou descobri (ANDRESEN, 2011: 243)

Camões narra:

Já a vista, pouco e pouco, se desterra Daqueles pátrios montes, que ficavam; Ficava o caro Tejo e a fresca serra De Sintra, e nela os olhos se alongavam. Ficava-nos também na amada terra O coração, que as mágoas lá deixavam. E já despois que todo se escondeu, Não vimos mais, enfim, que mar e céu.

Assi fomos abrindo aqueles mares, Que geração alguma não abriu,

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As novas Ilhas vendo e os novos ares Que o generoso Henrique descobriu; De Mauritânia os montes e lugares, Terra que Anteu num tempo possuiu, Deixando à mão esquerda, que à dereita Não há certeza doutra, mas suspeita. (CAMÕES, 2011:193)

Ciente de que estamos diante de uma autora de metapoesia e lembrando que

poesia também se faz de poesia, é lícito raciocinar que o poema intitulado “VIII” (V e

III), que trata, grosso modo, de um momento inicial, de desvendamento; que se utiliza

do verbo ver dentro de uma coletânea de versos que meditam sobre as navegações

portuguesas, faz, possivelmente, uma menção ao canto V, estrofe 3, d’Os Lusíadas. Ora,

nesse canto e nessa estrofe, nos deparamos com o momento em que os portugueses

embarcados deixam de ver a terra conhecida para ver mar e céu. Nesse momento da

obra, o narrador nos situa no espaço limítrofe em que se deixa de ver o Tejo para que

Ilhas e novos ares subam aos olhos. Assim, se somos movidos pela ideia de que Sophia

se vê em Camões, confirmamos, a partir de mais essa ligação, que o poeta é mais do que

um emblema ou símbolo do qual a poetisa se vale para denunciar os crimes de seu

tempo. Na verdade, é ele valorizado e reconhecido por ela. É ele o espaço de escrita

dela. E percorrendo-o, Sophia se familiariza, passa a pertencer, apropria-se das

experiências lidas para, assim, se fazer em Camões e construir e pensar poesia.

Nessa corrente de reflexões, observamos que no texto “Luís de Camões:

ensombramento e descobrimento”, a autora diz ser ele um cantor dos “portugueses que

navegaram a frente, para ver o que havia” (ANDRESEN, 1981:159), fazendo alusão a

dois versos do Canto I d’Os Lusíadas (“Os portugueses somos do Ocidente/Imos

buscando as terras do Oriente”). Sophia se identifica com ele ao perceber que ambos

pertencem “à cultura da terra do Ocidente, e, dentro da lógica dessa cultura, [a] tarefa

específica é ir para além das próprias fronteiras, e indagar tudo, ver

tudo” (ANDRESEN, 1981:159). A empreitada de desocultar, de celebrar o surgir das

navegações é muito parecida com a tarefa de nomear as coisas, de trazê-las à superfície,

descobrindo-as, a que Sophia se presta. Camões seria também uma inspiração para ela,

pois a busca a que ele se dedica, de alguma forma, se parece com a dela.

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Além disso, percebe-se, mais adiante, no ensaio dedicado ao poeta, que a autora

põe-se a pensar sobre a expressão “gente surda”, que aparece na estrofe 145 do canto

décimo d’Os Lusíadas.

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Dhua austera, apagada e vil tristeza. (CAMÕES, 2011:353)

Ela diz que “Camões identifica aquela muito especial desatenção que a

sociedade portuguesa dispensa àqueles que ousam uma atitude de liberdade e de

criação” e, na sequência, aponta que “a surdez não é dedicada apenas ao poeta, mas

igualmente ao músico, ao pintor, ao arquiteto, ao sábio” (ANDRESEN, 1981: 156). Se o

canto do poeta não pode ser ouvido, se a surdez não permite a efetivação da

comunicação a que o poeta se propõe, a asfixia e isolamento do poeta são sintomáticos

da sua morte.

Percebe-se, mais uma vez, que Sophia se debruça sobre Camões para construir

uma correlação entre a arte feita no tempo dele e a do seu tempo. A rouquidão com que

o poeta tem de se haver diante da existência de “gente surda e endurecida” é observada

em termos que poderiam ser aplicados ao século XX, principalmente por existir a

atuação do fascismo, que calava o artista e impedia a partilha da cultura. Dessa forma, a

acusação que Camões dirige à surdez é observada na sociedade portuguesa a que Sophia

pertence. Isso lhe permite pensar que o impedimento do canto do poeta persiste através

do tempo.

Camões acaba por ser uma espécie de modelo poético para autora de Dual. Se

ele “resiste e, porque resiste, sofre, vê e denuncia essa desatenção, essa surdez

asfixiante”, não está em uma torre de marfim. Mesmo falando das conquistas e

descobrimentos do povo português, ele não deixa de ver o ensombramento que o rói, já

que tem a consciência de que a cobiça comparece no poema e que o discurso para

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dilatar a Fé é apenas uma máscara que esconde essa ambição. De modo similar, Sophia,

falando de mar, pedras e demais elementos naturais, não se coloca à parte do mundo,

isolada no sentido de alheia à realidade e aos fatos. Na verdade, ela mesma diz ser o

isolamento, por vezes, uma condição para a criação, não uma preferência diante da

realidade. Ou seja, não significa que o caos exija do poeta abstração ou desatenção

diante da realidade vivida e experimentada, tornando-se alheio; mas, a arte, no seu

processo de criação, requer um espaço superior ao mundano e cotidiano, precisando,

assim, de um espaço diferente daquele em que se vive.

Mais ao final do ensaio sobre o poeta português, Sophia faz uma consideração

interessante a respeito de sua poesia lírica. Voltando sua atenção para o lirismo, a autora

vê em Camões alguém que se pôs a pensar, tal como ela, a poesia. Isso pode ser visto no

momento em que diz que:

A poesia de amor de Camões é escrita dentro de uma tradição de poesia do amor impossível, que vem quase até aos nossos dias. Na maioria dos seus poemas líricos corre esse longo pranto do amor inacessível. Num mundo de madrugadas e névoas, de separações, de ausências e de naufrágios, passam os rostos das amadas mortas, distantes, negadas, inatingíveis, afogadas no Índico. No entanto, nos poemas líricos não encontramos a mesma amargura radicalmente sombria que encontramos nos poemas de acusação social. Encontramos dor, sofrimento, mágoa, mas ainda nimbados pelo maravilhamento do encontro. E o rosto das amadas não foi apenas negação e morte, ou engano, ou distância, mas também enlevo, encantamento, amor vivido. (ANDRESEN, 1981:158)

Ela, que sempre esteve atenta à necessidade de pensar o universo poético,

escreveu um ensaio, intitulado “Poesia e realidade”, publicado em 1960, que além de

mostrar sua concepção sobre a poesia, vai ao encontro das considerações feitas acerca

da poesia camoniana:

O poeta não tem curiosidade do Real, mas sim necessidade do Real. A verdadeira ânsia dos poetas é uma ânsia de fusão e de unificação com as coisas. Esta fome de encontro absoluto com a Poesia está presente em todos os poetas, com mais ou menos força, com mais ou menos evidência. A união com a Poesia e não o poema é a finalidade do poeta.

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Mas por mais real que seja o encontro, nunca é total; por mais funda que seja a união, nunca é absoluta. A relação do homem com as coisas nunca é uma túnica sem costura. Há sempre uma lacuna. Essa lacuna o poeta leva-a como uma ferida na carne ou, como diz Hölderlin, como um espinho no seu peito. (...) É nessa lacuna que o poema surge como um medianeiro. (ANDRESEN, 1960:54)

Pode-se dizer que, sob a ótica de Sophia Andresen, Camões pensa o fazer

poético no poema, sendo ele também um pensador da poesia. Assim, a comparação

desses dois trechos escritos pela autora revela o enlaçamento de sua arte com a de

Camões. Quando fala sobre a poesia amorosa dele, ela observa que o motor é

simultaneamente a distância e a presença da amada, o encontro e o engano, a vida e a

morte. Ao falar da sua poesia, Sophia, nos diz que o motor é ao mesmo tempo o desejo

de fusão com a realidade a impossibilidade da realização total desta.

Ora, se a poesia lírica caminha por um caminho diverso em relação à épica,

Camões estabelece limites para sua poesia, escrevendo poemas que acabam por falar

sobre sua própria composição. Sophia, quando fala sobre poesia no ensaio “Poesia e

realidade”, revela que a sua criação também é feita através da reflexão sobre a própria

escrita, seja a relativa ao papel do poeta ou da poesia.

De algum modo, parece que eles sabem que, ainda que seus poemas falem de

amores, mitos e natureza, a dor de estar diante de uma circunstância hostil, real e

humana não pode deixar de ser sentida. Suas palavras escondem os sangramentos, mas

nem por isso as dores não são sentidas. Pode-se dizer que a dor de Camões, em seu

tempo, é a mesma dor de Sophia no século XX.

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Conclusão

É da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o obstinado rigor do poema. 94

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Sophia de Mello Breyner Andresen

5. CONCLUSÃO

Muito marcada por dualidades, a poesia de Sophia indagou sobre outras poéticas

como forma de buscar não só apoio, mas alianças, descobertas. Não só pelas

semelhanças, mas também pelas diferenças, os poetas eleitos participaram do projeto de

crítica e de autocrítica da escrita andreseniana, contribuindo certamente para a

importante produção que nos deixou. Nesse sentido, por mais que o seu ensaísmo seja

menos marcante quando comparado às composições líricas, é deveras interessante

perceber que aquele mantém relações com estas, permitindo que outros estudos de sua

obra sejam desenvolvidos.

A confirmação da relação entre as obras de Sophia de Mello Breyner Andresen

com os outros autores, então, vem, principalmente, da publicação dos ensaios em que

Sophia descreve a poesia de Cecília Meireles, Miguel Torga e Luís de Camões em

termos que se poderiam aplicar à sua própria poesia. A partir da análise desses textos,

pudemos aprofundar o estudo das composições ensaísticas da autora, traçando não

apenas um mapeamento da leitura, mas dando a ver o diálogo que construiu com outros

poetas e, é claro, arriscando novos caminhos para que mais reflexões possam ser feitas

sobre a obra da poeta.

Pensando nisso, recorremos ao poema “Tecendo a manhã”, composição de João

Cabral de Melo Neto – poeta estimado por Sophia de Mello Breyner Andresen –, que

medita sobre a construção da manhã, que seria, entre outras possibilidades, uma

metáfora para a construção do poema. Detendo-se no processo de surgimento dessa

manhã, nota-se que a condição para seu surgimento é o som da voz de mais de um

cantor (ou galo, se pensamos na imagem do poeta). Chegamos, assim, à ideia de

coletividade que envolve a construção de uma compreensão artística.

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Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorporando em tela, entre todos, Se erguendo tenda, onde entrem todos, Se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo, de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. (MELO NETO, 2008:319)

É preciso entretendender, “entretendo” e “entendendo”, a fim de trazer a

claridade e anular a escuridão. No poema, o neologismo “entretendendo” é, de fato, caro

à Sophia e a este trabalho, porque a hipótese que levantamos até aqui foi a de que

poderíamos ver nos textos andresenianos sobre outros autores palavras, imagens e ideias

que caracterizariam a poética dela mesma. Há o esforço de fazer poesia a partir da

reflexão sobre outros autores. Nessa perspectiva, os verbos entreter e entender, que dão

corpo ao neologismo de João Cabral de Melo Neto, são também máximas dos ensaios

de Sophia, pois pudemos verificar que, ao se entreter com a textualidade sobre a qual

escreve, Sophia tenta entender sua própria empreitada poética.

Ao verificamos que a obra da autora portuguesa sofreu mudanças ao longo das

publicações, fomos instigados a confrontar seus ensaios com os poemas, tentando criar

relações entre as temáticas de seus versos produzidos em determinados momentos com

as abordagens levantadas sobre outros autores em seus ensaios de períodos próximos.

Assim, por meio de comparações não apenas considerando a construção interna dos

ensaios, mas, a partir deles, especulamos sobre os modos como a autora compôs seus

poemas, constatando que a poesia andreseniana também é feita reflexivamente a partir

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da leituras de poetas, de considerações críticas sobre outras vozes que marcam seu

pensamento de poesia.

Por isso, seja na década de 1950, quando Sophia se encontra com a natureza de

Cecília, identificando nesta o espaço orgânico do mar, do vento como um porto para

pensar a sua poesia; seja na década de 70, quando, com Miguel Torga, tem a

possibilidade de refletir sobre o trabalho artístico e político de modo alternativo; ou,

ainda, na década de 80, quando, diante de Camões, tem a possibilidade de reparar uma

dívida secular que a sociedade deixou com o poeta; os estudos sobre os ensaios e

poemas foram capazes de mostrar que as relações entre os autores e seus

contemporâneos é também simbiótica, de troca, apesar de termos, neste recorte

dissertativo, analisado somente a forma como Sophia desenvolveu a sua leitura.

Percorremos criticamente os vários textos que chegaram até nós, estabelecemos

comparações e diálogos entre textos de prosa e poesia, entre poetas e críticos, entre artes

e teorias, como forma de desenvolver nossas hipóteses de leitura a respeito da trajetória

crítico-ensaística de Sophia. E, por mais que tenhamos optado em focar no como e no

por quê Sophia interagiu com determinados poetas, esperamos ter contribuído também

para que futuros estudos a serem feitos sobre os escritores dialogantes aqui destacados

possam se valer de nossas leituras e dos ensaios de Sophia reunidos em nosso anexo.

Aproximando-nos do fim de redação desta dissertação, mas não de nossa

pesquisa, convém dizer que, de fato, muitas perguntas ainda existem. Dificilmente,

poderíamos responder e solucionar todos os pontos que foram levantados. E nem era

nossa pretensão. Não podemos afirmar ainda, nem queremos, por exemplo, que os

ensaios são esboços, encenações, rascunhos para a realização de seus próprios poemas.

Ou mesmo que esses são os únicos ensaios que a autora escreveu, até porque não há

ainda uma reunião editada desse material, como já explicamos. No entanto, somos

capazes de defender que o exercício poético de Sophia se direciona em busca de uma

relação justa entre a arte e o homem e, por isso, o diálogo viabilizado pela leitura-escrita

de e para poetas formou Sophia enquanto poeta, crítica e ensaísta.

Portanto, mais do que chegar a conclusões, reforçamos que navegar por entre os

textos de Sophia, refletindo e construindo leituras, objetiva, também, instigar a

incessante curiosidade por sua obra, para que se amplie cada vez seu sentido no rico e 97

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diversificado panorama da poesia portuguesa do século XX. É o legado de artista, de

poeta, de política, de mulher, de crítica, de leitora, de amor à arte, à cultura e à Língua

Portuguesa que queremos manter no tempo, ressignificando e impactando a vida

daqueles que têm a oportunidade de sentir a força de suas palavras.

Dessa forma, nada mais justo, então, do que, agora, devolver a voz à poeta,

permitindo que a sua voz continue a ecoar entre nós.

O Poema

O poema me levará no tempo

Quando eu não for a habitação do tempo

E passarei sozinha

Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá

Às searas

Sua passagem se confundirá

Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará

O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes

Suas sílabas redondas

( Ó antigas ó longas

Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará

Uma praia onde quebrar as suas ondas 98

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E entre quatro paredes densas

De funda e devorada solidão

Alguém seu próprio ser confundirá

Com o poema no tempo. (ANDRESEN, 2015: 457)

____________________________________________________________

Bibliografia

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Entrevista de Miguel Serras Pereira. In JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 135, 5

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Anexos

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7. ANEXOS 11

7.1. Hölderlin ou o lugar do poeta

No entanto para Hölderlin não houve, no tempo em que viveu, um lugar.

Ele rola como uma pedra solta. A sua profissão é preceptor de crianças de

famílias ricas e numa carta a sua mãe escreve: “Um preceptor... é por toda a

parte a quinta roda dum carro”.

A quinta roda dum carro isto é: a roda da qual o carro não precisa para

andar. Entre Hölderlin poeta do sagrado e a sociedade burguesa não existia

Sabemos que os ensaios também se constituem pela forma como são escritos porém, devido ao fato de 11

muitos dos textos que aqui reproduzimos terem sido extraídos de jornais, de cópias datilografadas e, muitas

vezes, de impressões de baixa qualidade, a reprodução fidedigna dos textos, no seu aspecto visual, é impossível. Por esse motivo, neste anexo, optamos por reproduzir os ensaios de Sophia de M. B. Andresen analisados nesta dissertação em formatação livre, apenas dando destaque aos poemas e citações.

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nenhuma necessidade, nenhum nexo. As humilhações sofridas foram tantas que

no tempo da sua loucura ele assinava:

Submissamente

Scardanelli

No entanto sabemos bem que, naquela consciência das coisas e do ser que

vem de Homero aos nossos dias, Hölderlin é um dos testemunhos mais

luminosos, mais perfeitos, mais puros. E também sabemos bem que, nos seus

fundamentos, a Alemanha é essencialmente aquele país natal onde se ergueu o

canto e a busca deste poeta.

Do não ser necessário, da solidão, do abandono Hölderlin tem aquele

profundo conhecimento que se exprime na pergunta do poema “O pão e o

vinho”:

... e para quê poetas em tempos de indigência

É verdade que nos mesmos tempos a mesma sociedade acolheu outros

poetas. Mas acolheu-os porque eles eram também homens de letras, pilares

duma cultura oficial. Porém Hölderlin era o poeta em estado puro. A poesia era

nele uma forma de santidade. Era a vocação total do sagrado. Por isso ele era

incompatível com um mundo dessacralizado, incompatível com tudo quanto não

tivesse sentido divino.

A humanidade fabrica estruturas que a deserdam e a maior parte dos

homens aceita esse roubo da sua herança considerando que ele faz parte do

terrestre. Aceita a perda da sua pureza, a decadência do seu ser como um preço

do estar na terra, como um imposto de habitação.

Mas Hölderlin é um daqueles homens que afirma a santidade da criação, a

dignidade do terrestre. Foi esta a lição que ele aprendeu com os Gregos e foi por

isso que ele aprofundou e revolucionou toda a visão que a idade moderna tinha

do mundo helénico. É por isso que W. Dilthey diz:

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Hölderlin, por seu lado, cantava o ponto mais fundo da

concepção grega do mundo: a ideia da afinidade entre natureza,

homens, heróis e deuses. Os helenos representavam para ele a

ideia da nossa interior comunidade de ser com a natureza.

Justamente porque é um anunciador do terrestre o poeta não tem nenhuma

conivência com o mundano. Hölderlin opõe com clareza o terrestre ao mundano.

Ele sabe desde o princípio que será destruído pelo “tempo de indigência” do

mundano.

E numa passagem do “Arquipélago” ele mostra-nos essa indigência duma

humanidade que ainda é a humanidade dos nossos dias:

Mas , ai!, a nossa raça sem divino vagueia na noite

E vive como no Orco. Presos só ao próprio labor,

Na forja bramante cada um se ouve só a si próprio,

E com braço possante muito trabalham os bárbaros,

Sem descanso, mas sempre e sempre estéril,

Como as Fúrias é labuta desses pobres.

(trad. Paulo Quintela)

É no meio deste mundo de fúria estéril que Hölderlin busca o seu caminho.

Regressando ao ponto de partida dos Gregos ele dá ao terrestre uma atenção

religiosa. Ele é o poeta salvador do terrestre, aquele que busca o encontro com o

divino no plano da criação.

Por isso no seu poema “A Hölderlin” Rilke escreve:

Se um tal, eterno, houve um dia, porque é que nós desconfiamos

ainda do terrestre?

Mas a busca da transparência das coisas só é possível no reino terrível da

pureza. Só aquele que tiver vivido com pureza o terrestre poderá suportar o

fulgor do divino, o raio do pai. 112

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Fazer com que o terrestre não se perverta em mundano é esta uma das

tarefas essenciais do poeta. Por isso ele busca o encontro inteiro, livre e criador

com as coisas.

É esse o encontro que Hölderlin canta quando no “Arquipélago” diz:

Pois a vida se encheu toda de sentido divino.

Palavras difíceis de entender num tempo de indigência que é um

compromisso ambíguo e retórico entre o mundano e a transcendência.

Como o Kouros é belo para propiciar os deuses também o poeta é puro

para invocar e propiciar a plenitude do ser. É essa vocação da poesia que

Hölderlin invoca no hino “Aos poetas”.

Mas a nós cabe, sob a trovoada do deus,

Ó poetas! permanecer de cabeça coberta,

E com a própria mão agarrar o raio do Pai,

O próprio raio e, oculta na canção,

Oferecer ao povo a dádiva celeste.

Pois se nós formos puros de coração

Como crianças, e as nossas mãos sem culpa,

O raio do Pai, puro, não o queimará...

(trad. de Paulo Quintela)

Para o poeta, pureza e beleza estão ligadas. Pois a beleza mostra a ordem,

o acerto do universo, a verdade que nos seres e nas coisas se manifesta. Na

beleza lemos algo que responde ao nosso destino, a significação do nosso estar

na terra. A beleza que está na estrutura duma flor, a beleza que está na estrutura

do corpo humano, a beleza que está na concha que apanhamos na praia afirmam

o gesto criador donde emergem. A missão do poeta é decifrar, revelar, mostrar e

invocar essa ordem.

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Hölderlin foi esse decifrador, esse revelador, que nos ensina a dar a todas

as coisas uma atenção sagrada pois que em todas elas está comprometida a nossa

salvação.

A sua poesia parte da imanência, mas essa imanência está aberta à

plenitude da transcendência.

O que aqui somos pode acabá-lo além um Deus

Com harmonia, prémio eterno e paz.

(trad. de Paulo Quintela)

E assim Hölderlin foi verdadeiramente, como diz Rilke, “invocador

magnífico” e foi como diz Victorino Nemésio o “prumo do templo”.

Mas só a pureza, só a transparência tornam o homem apto à leitura das

coisas, à leitura do gesto criador que nas coisas se mostra. Apto a ouvir o apelo

do ser. E é por isso que W. Dilthey diz de Hölderlin:

A única coisa que queria era manter a sua alma pura. Desta

pureza de alma nascia o que nele havia de vidente.

A Alemanha romântica é um estio maravilhoso do tempo. Mas este estio

não consegue deter os caminhos da civilização ocidental, não consegue deter os

homens que trabalham incessantemente como as fúrias. Pois a Alemanha

romântica não é uma época, é apenas alguns homens. E poderão alguns homens

salvar o mundo?

A poesia cada vez mais é para nós aquilo que Hölderlin ensinou: mestra do

ser, conhecimento que precede todo o conhecimento, escolha que precede todas

as escolhas.

7.2 Poesia e Revolução

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O amor positivo da vida busca a inteireza. Porque busca a inteireza do homem a

poesia numa sociedade como aquele em que vivemos é necessariamente revolucionária

– é o não-aceitar fundamental. A poesia nunca disse a ninguém que tivesse paciência.

O poema não explica implica. O poema não explica o rio ou a praia: diz-me que a

minha vida está implicada no rio ou não praia. Como diz Pascoaes:

Ah se não fosse a bruma da manhã

E esta velhinha janela onde me vou

Debruçar para ouvir a voz das coisas

Eu não era o que sou

É a poesia que me implica, que me faz ser no estar e me faz estar no ser. É a

poesia que torna inteiro o meu estar na terra. E porque é a mais funda implicação do

homem no real, a poesia é necessariamente política e fundamento da política.

Pois a poesia busca o verdadeiro estar do homem na terra e não poder por isso

alheiar-se dessa forma do estar na terra que a política é. Assim como busca a relação

verdadeira do homem com a árvore ou com o rio, o poeta busca a relação verdadeira

com os outros homens. Isto o obriga a buscar o que é justo, isto o implica naquela busca

de justiça que a política é.

E porque busca a inteireza, a poesia é, por sua natureza, desalienação, princípio

de desalienação, desalienação primordial. Liberdade primordial, justiça primordial. O

poeta diz sempre:

“Eu falo da primeira liberdade”

Dessa unidade fundamental da liberdade e da justiça o poeta formou o seu

projecto oposto à divisão.

Se queremos ultrapassar a cultura burguesa – ou seja o uso burguês da cultura –

é porque vemos nele o reino da divisão, o fracasso do projecto da inteireza. Sem dúvida

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grandes poetas nasceram e criaram dentro do mundo da cultura burguesa. Mas sempre

viveram esse mundo como exílio e viuvez, como poetas malditos.

A arte da nossa época é uma arte fragmentária, como os pedaços de uma coisa

que foi quebrada.

“Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir”, disse Fernando

Pessoa que aqui, no extremo ocidente, percorreu até seus últimos confins os mapas da

divisão e letra por letra os disse.

E caminhar para a frente é emergir da divisão. É rejeitar a cultura que divide,

que nos separa de nós próprios, dos outros e da vida.

Sabemos que a vida não é uma coisa e a poesia outra. Sabemos que a política

não é uma coisa e a poesia outra.

Procuramos o coincidir do estar e do ser. Procurar a inteireza do estar na terra é a

busca de poesia.

Por isso rejeitamos o uso burguês da cultura que separa o cérebro da mão. Que

separa o trabalhador intelectual do trabalhador manual. Que separa o homem de si

próprio, dos outros e da vida.

E porque desalienar, conquistar a inteireza de cada homem é a finalidade radical

de toda a política revolucionária, o projecto de uma política real é por sua natureza

paralelo ao projecto da poesia. Mas olhando com atenção vemos que a tarefa específica

da política é criar as condições em que a desalienação é possível. Em rigor, a política

não cria a desalienação mas sim a sua possibilidade.

É a poesia que desaliena, que funda a desalienação, que estabelece a relação

inteira do homem consigo próprio, com os outros, e com a vida, com o mundo e com as

coisas. E onde não existir essa relação primordial limpa e justa, essa busca de uma

relação limpa e justa, essa verdade das coisas, nunca a revolução será real.

Pois é a poesia que funda. Por isso Hölderlin disse: “Aquilo que permanece os

poetas o fundam”.

E por isso a política não pode nunca programar a poesia.

Compete à poesia, que é por sua natureza liberdade e libertação inspirar e

profetizar todos os caminhos da desalienação.

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E quando a palavra da poesia não convier à política, é a política que deve ser

corrigida. Por isso é da verdade e da essência da revolução que sempre a poesia possa

criar livremente o seu caminho.

E é muito importante que se compreenda claramente que a arte não é luxo nem

adorno. A história mostra-nos que o homem paleolítico pintou as paredes das cavernas

antes de saber cozer o barro, antes de saber lavrar a terra. Pintou para viver. Porque não

somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência.

E se a política deve desalienar a nossa vida política e a nossa económica, é a

poesia que desaliena a nossa consciência.

Porque propõe ao homem a verdade e a inteireza do seu estar na terra toda a

poesia é revolucionária.

Por isso a forma mais eficaz que o poeta tem de ajudar uma revolução é ser fiel à

sua poesia. Escrever má poesia dizendo que se está a escrever para o povo, é apenas

uma forma nova de explorar o povo.

Quem está realmente empenhado num país melhor e numa sociedade melhor,

luta pela verdade da cultura. Aquele que é conivente da mediocridade é inimigo de uma

sociedade melhor, mesmo que apregoe grandes princípios revolucionários. A revolução

da qualidade é radicalmente necessária a uma revolução real.

Onde a poesia não estiver nada de real pode ser fundado.

Não é por acaso nem por uma particularidade do seu temperamento que o Mao-

Tsé-Tung é poeta. Não é por acaso que Marx e Trotsky amaram a poesia. A poesia é

primordial e anterior à política. Por isso nenhum político por mais puro que seja o seu

projecto pode programar uma poética.

Mas nenhuma revolução será real se a poesia não lhe for fundamento e não

permanecer sua irmã.

Mas da participação na revolução do escritor, cada escritor deve decidir por si.

Cada um pode propor o seu caminho ou a sua hipótese aos outros sem que ninguém seja

obrigado a segui-lo. No entanto, há alguns princípios que me parecem objectivamente

intrínsecos à condição do escritor. Esses princípios são:

– Lutar contra a demagogia que é a degradação da palavra. Como disse Malarmé

“dar um sentido mais puro às palavras da tribu” é uma missão do poeta. 117

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– Lutar contra os slogans. Um provérbio Burundi diz: “Uma palavra que está

sempre na boca transforma-se em baba”.

– O escritor como todo homem consciente deve exercer uma acção crítica. E

deve lutar por um ambiente em que a crítica seja possível. Assim, neste momento o

escritor deve lutar por um ambiente são – isto é por um ambiente onde aquele que

critica não seja acusado de reacção ou de fascismo.

– Lutar contra a promoção do medíocre. Lutar desde já, imediatamente, por uma

revolução de qualidade. E, porque queremos que a cultura seja posta em comum, lutar

pela revolução da qualidade em todos os meios de comunicação social.

Na raiz da sociedade capitalista está o uso burguês da cultura que separa o

homem de si próprio, dos outros e da vida, que divide os homens em trabalhadores

intelectuais e trabalhadores manuais. Na raiz da sociedade capitalista está a cultura que

divide.

Por isso nenhum socialismo real poderá ser construído se revolução cultural.

Para que o socialismo seja real é preciso que a cultura seja posta em comum.

A revolução não é a fase final de um processo de revolução socialista, mas sim

um dos seus fundamentos.

10 de Maio de 1975

(Texto lido no I Congresso de Escritores Portugueses)

7.3 A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda

Razões por que a arte deve ser livre

1 – A arte deve ser livre porque o acto de criação é em si um acto de liberdade.

Mas não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a Arte

não é livre o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural unidade da

liberdade. Onde o artista começa a não ser livre, o povo começa a ser colonizado e a

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justiça torna-se parcial, unidimensional e abstracta. Se o ataque à liberdade cultural me

preocupa tanto é porque a falta de liberdade cultural é um sintoma e significa sempre

opressão para um povo inteiro.

A arte do povo, o saber do povo: uma arte ou a arte?: levar a arte ao povo, trazer o

povo à arte.

2 – Não penso que exista uma arte para o povo. Existe sim uma arte para todos à

qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado através dos

meios de comunicação. Primeiro os “aedos” cantaram no palácio dos reis gregos “o

canto venerável e antigo”. Era uma arte profundamente aristocrática. Depois os

rapsodos cantaram esse mesmo canto na praça pública. E Homero, foi, como se disse, o

educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta em comum. E por isso os gregos

inventaram a democracia. A política começa muito antes da política.

Penso que nenhum socialismo real será possível se a cultura não foi posta em

comum. Quando o aedo, ou poeta medieval cantavam na praça o seu poema era ouvido

por todos, mesmo pelo analfabeto. E viajava por todo o país e de país em país: por isso

o mirandês canta Mirandolim-Marlbourg.

Depois a cultura fechou-se em livros e os analfabetos e os pobres foram

rejeitados. Tudo se tornou mais complexo e complexado. As comunidades foram

divididas e cada homem foi dividido dentro de si próprio.

Será preciso um enorme, paciente e múltiplo e obcecado esforço para construir o

mundo de outra maneira. E é preciso que nenhum dirigismo esmague esse esforço.

É evidente que no mundo atual encontramos a par da arte uma meta-arte. O

cubismo é uma meta pintura, uma pintura sobre a pintura. Arte e meta-arte alimentam-se

e inspiram-se mutuamente e penso que este é um dos caminhos, uma das possibilidades.

Foi a ler Proust e Rimbaud que aprendi a escrever para crianças. O simplismo e o

populismo nunca conduzirão a nada. Se João Cabral de Melo é capaz de escrever uma

obra como “Morte e Vida Severina” é porque é capaz de escrever “Uma Faca só

Lâmina”. “Morte e Vida Severina” é um poema que todos entendem, mas nele as

imagens são tão precisas e os versos tão densos como em “Uma Faca só Lâmina.”

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Creio que o “poema para todos” é, dentro da cultura em que estamos, o poema

mais difícil de escrever. Creio que esse poema é necessário e por isso tenho procurado

encontrar um caminho para ele. Por isso em “Livro Sexto” invoquei:

“O canto para todos

Por todos entendido.”

Mas sei que esse poema não se programa. E por isso, já depois do 25 de Abril

escrevi:

“Um poema não se programa

Porém a disciplina

Sílaba por sílaba

O acompanha”.

Mas a disciplina do poema não é a da política. O poema é disciplinado pela sua

própria necessidade.

Nem o próprio artista se pode programar a si próprio. O Ministro da Comunicação

Social disse que os períodos revolucionários não eram propícios às artes de vanguarda.

Não podemos esquecer que também Hitler e Salazar não se entendiam bem com a arte

de vanguarda e que ambos a perseguiam. Um verdadeiro período revolucionário está

aberto a todas as formas de criação.

Coerência (ou não) da política cultural até agora seguida pelos poderes políticos.

3 – É evidente que há incoerência. As campanhas de dinamização são mais

políticas do que culturais. Fazem um doutrinamento político que deve ser feito pelos

partidos. Pois não há doutrinamento apartidário. Não há angelismo político. Um

doutrinamento político que se apresenta como apartidário é necessariamente ambíguo.

Vivemos no pluralismo. Mas não queremos viver na ambiguidade. Queremos que

o pluralismo seja nítido e declarado com clareza. Que todo aquele que exerce uma

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atividade de doutrinamento político diga aos outros o partido a que pertence ou que

apoia.

Queremos uma revolução clara. Queremos a clareza e a coerência dessa clareza.

Este país tem neste momento uma intensa consciência da necessidade de clareza.

A política é um capítulo da moral. O povo que somos votou conscientemente e

quer a política que escolheu. Queremos justiça social concreta mas sabemos que essa

justiça só se poderá construir na liberdade e na verdade.

Sabemos muito claramente o que não queremos. Não queremos a violência, não

queremos que a liberdade seja sofismada. Não queremos nem inquisições nem

perseguições. Não queremos política da terra queimada. Não queremos política imposta.

E no plano da cultura queremos acima de tudo que a política não seja anti-cultura.

A demagogia é a traição cultural da revolução. Porque a demagogia é a arte de

ensinar um povo a não pensar.

Um provérbio africano diz: Uma palavra que está sempre na boca transforma-se

em baba.

Não queremos continuar a suportar a baba dos slogans.

Querer fazer política cultural quando os meios de comunicação estão inundados

de demagogia é uma incoerência radical. O ministro da comunicação referiu-se ao facto

de o trabalho dos artistas ser agora pago pelo povo. Também muitos jornais são agora

pagos pelo povo e todos os dias custam ao povo uma despesa escandalosa.

A cultura é cara. A incultura acaba sempre por sair mais cara. E a demagogia custa

sempre caríssimo.

7.4 A poesia de Cecília Meireles

A poesia de Cecília Meireles é uma poesia tão puramente lírica, tão naturalmente

desligada de toda a espécie de problemas, que é impossível explicá-la. Creio que as

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interpretações que se façam da obra dum poeta como Cecília Meireles serão quase

sempre artificiais e literárias.

A beleza e a verdade dum poema de Cecília Meireles têm que ser vividas

imediatamente e sem explicações, como a beleza e a verdade de uma rosa.

Do que a sua poesia é falou Cecília Meireles perfeitamente naquele poema

chamado ""Motivo" que é o segundo poema da “Viagem”. Este poema está no centro de

inspiração de Cecília Meireles e é a melhor introdução à sua obra, pois nele ela nos diz

qual é a sua atitude em frente do mundo e qual é a sua atitude em frente de si própria.

E também neste poema encontramos tudo aquilo de que é feita a beleza dos versos

de Cecília Meireles: a limpidez da sua linguagem, a densidade de cada palavra, a

exactidão das suas imagens, a nudez do seu pensamento, a serenidade da sua atitude, a

ressonância grave e profunda da sua voz. É um poema onde Cecília Meireles exprime

com tanta perfeição a sua mensagem e a sua imagem que basta conhecê-lo para a

conhecer.

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Metamorfoses

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

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– não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

– mais nada.

A poesia de Cecília Meireles é uma poesia construída sobre dualidades. É um

equilíbrio de oposições e uma harmonia de contrários.

É uma poesia ao mesmo tempo clássica e romântica, objectiva e subjectiva, serena

e desesperada, intemporal, desligada, distante e humanamente cheia de paixão e

lágrimas.

É uma poesia suspensa entre reinos divididos que tem de procurar constantemente

a sua unidade, resolver a sua divisão, reunir os seus membros dispersos.

Esta busca está presente em toda a obra de Cecília Meireles.

No classicismo de Cecília Meireles há um eco de Camões. Isto não quer dizer que

ela imite Camões nem mesmo que tenha sido particularmente influenciada por Camões.

Mas Camões encontrou a objectividade da língua portuguesa, com uma tal exactidão

que todo o poeta de inspiração clássica fatalmente, embora involuntariamente se

encontra com ele.

Eis um poema em que o classicismo de Cecília Meireles é particularmente

evidente:

Epigrama nº 2

És precária e veloz, Felicidade.

Custas a vir e, quando vens, não te demoras.

Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,

e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa: 123

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Fizeste para sempre a vida ficar triste:

Porque um dia se vê que as horas todas passam,

e um tempo despovoado e profundo, persiste.

Mas, ao mesmo tempo que é profundamente clássica a poesia de Cecília Meireles

é também profundamente romântica. Clássica pelo equilíbrio da sua forma, pela nitidez

das suas palavras, pela claridade e transparência da sua linguagem e pela serenidade e

lucidez da sua atitude em frente do mundo, a poesia de Cecília é romântica pela

ressonância nocturna da sua voz, pelo seu subjectivismo, pelo seu panteísmo, pela sua

ligação com o sonho, pelo aspecto livre e fantástico das suas imagens.

Eis aqui um poema que exprime o seu romantismo.

Estrela

Quem viu aquele que se inclinou sobre palavras trêmulas,

de relevo partido e de contorno perturbado,

querendo achar lá dentro o rosto que dirige os sonhos,

para ver se era o seu que lhe tivessem arrancado?

Quem foi que o viu passar com seus ímãs insones,

buscando o pólo que girava sempre no vento?

– Seus olhos iam nos pés, destruindo todas as raízes

líricas,

e com suas mãos sangrava o pensamento.

E era o seu rosto, sim, que estava entre versos andróginos,

preso em círculos de ar, sobre um instante de festa!

Boca fechada sob flores venenosas,

e uma estrela de cinza na testa.

Bem que ele quis chamar pelo seu nome em voz muito alta

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– mas o desejo não foi além do pescoço.

E ficou diante de sua cabeça, estruturando-se

como o frio dentro de um poço.

E não pôde contar a ninguém seu fim quimérico.

A ninguém. Pois a língua que fora sua estava morta,

e ele era um prisioneiro entre paredes transparentes,

entre paredes transparentes, mas sem porta.

Disto ele soube. O que nunca entendeu, porém, e o que lhe

amarra

o coração com ardentes cordas de desgosto

é aquela estrela cinza – aquela estrela grande e plácida –

derramando sombra em seu rosto.

Objectividade e Subjectividade:

A objectividade de Cecília Meireles está na forma real e exacta em que ela fala de

estrelas, ondas e árvores. Está naquelas imagens dos seus poemas que nos mostram as

coisas tais como elas são em si, na sua forma própria e na sua própria natureza. Cecília

Meireles é um poeta objetivo porque nos diz que o mar é um “cavalo épico” e uma

“anêmona suave”. Porque é um poeta que vê as coisas e não um poeta que as sonha.

Porque quando ela nos fala do “vento liso”, da “clássica luz de Maio”, do “desequilíbrio

dos oceanos”, a natureza nos mostra aquela sua face divina que o homem não lhe

acrescenta pois ela a possui interiormente.

Mas Cecília é um poeta subjectivo na medida em que ela se busca a si própria

através de tudo, na medida em que ela é alguém que vai:

“Dano e buscando sempre a sua própria imagem”.

Na sua poesia, objectividade e subjectividade cruzam-se constantemente sem

nunca se misturarem. A natureza está nela mais como uma passagem do que como um

alimento imediato. Por exemplo na poema “Mar absoluto” – poema construído com

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tantas imagens objectivas e concretas – através de búzios, espaços e brisas, Cecília

Meireles busca não o próprio mar real, mas o seu mar, o mar que ela imagina, o mar que

lhe é necessário e é a esse mar que ela chama mar absoluto.

Mar absoluto

Foi desde sempre o mar,

E multidões passadas me empurravam

como o barco esquecido.

Agora recordo que falavam

da revolta dos ventos,

de linhos, de cordas, de ferros,

de sereias dadas à costa.

E o rosto de meus avós estava caído

pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,

e pelos mares do Norte, duros de gelo.

Então, é comigo que falam,

sou eu que devo ir.

Porque não há ninguém,

tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

E tenho de procurar meus tios remotos afogados.

Tenho de levar-lhes redes de rezas,

campos convertidos em velas,

barcas sobrenaturais

com peixes mensageiros

e cantos náuticos.

E fico tonta.

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acordada de repente nas praias tumultuosas.

E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-

ventos.

"Para adiante! Pelo mar largo!

Livrando o corpo da lição da areia!

Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!"

Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.

A solidez da terra, monótona,

parece-nos fraca ilusão.

Queremos a ilusão grande do mar,

multiplicada em suas malhas de perigo.

Queremos a sua solidão robusta,

uma solidão para todos os lados,

uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar

do mundo,

e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,

que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

O mar é só mar, desprovido de apegos,

matando-se e recuperando-se,

correndo como um touro azul por sua própria sombra,

e arremetendo com bravura contra ninguém,

e sendo depois a pura sombra de si mesmo,

por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra,

ele que, ao mesmo tempo,

é o dançarino e a sua dança.

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Tem um reino de metamorfose, para experiência:

seu corpo é o seu próprio jogo,

e sua eternidade lúdica

não apenas gratuita: mas perfeita.

Baralha seus altos contrastes:

cavalo, épico, anêmona suave,

entrega-se todos, despreza ritmo

jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado,

cego, nu, dono apenas de si,

da sua terminante grandeza despojada.

Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:

água de todas as possibilidades,

mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.

Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,

e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele,

nem por dentro de si:

mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo

dom.

Não me quer arrastar como meus tios outrora,

nem lentamente conduzida.

como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:

plástica, fluida, disponível,

igual a ele, em constante solilóquio,

sem exigências de princípio e fim, 128

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desprendida de terra e céu.

E eu, que viera cautelosa,

por procurar gente passada,

suspeito que me enganei,

que há outras ordens, que não foram ouvidas;

que uma outra boca falava: não somente a de antigos

mortos,

e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,

mas outro, que se parece com ele

como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.

E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,

e encontro tudo sobre-humano.

E este mar visível levanta para mim

uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.

E é logo uma pequena concha fervilhante,

nódoa líquida e instável,

célula azul sumindo-se

no reino de um outro mar:

ah! do Mar Absoluto.

Para Cecília Meireles a natureza está impregnada da sua presença e atenta à sua

passagem. Ela utiliza as formas do mar e das estrelas para que elas lhes sirvam de forma

de expressão. O encontro que ela busca é o encontro consigo própria e a sua espera é a

espera da sua própria vinda: O poema chamado “Explicação” diz:

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O pensamento é triste; o amor, insuficiente;

e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.

Deixo que a terra me sustente:

guardo o resto para mais tarde.

Deus não fala comigo - e eu sei que me conhece.

A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.

A estrela sobe, a estrela desce...

- espero a minha própria vinda.

(Navego pela memória

sem margens.

Alguém conta a minha história

E alguém mata os personagens.)

Para Cecília Meireles céus, mares, ventos participam da sua aventura. Ela é o seu

próprio mito.

Assim como o corpo humano está construído à sua volta do seu esqueleto assim

também toda a poesia possui interiormente um mito que a mantém de pé, que lhe dá a

sua permanência e que determina ou exprime a atitude vital do poeta em frente do

mundo. É através dos seus mitos que o poeta ultrapassa os acidentes para que a sua

própria vida não seja um acidente, Cecília diz:

Procurei minha forma entre os aspectos das ondas

para sentir na noite o aroma da minha duração

Mas Cecília Meireles fala deste mito de si própria com uma tal exactidão, com

uma tal distância que o desliga de si, que o coloca em sua frente como um objeto e que

finalmente trata o seu subjectivismo duma maneira tão objectiva, que tudo se passa

como se ela estivesse falando não de si própria mas sim da essência de todas as coisas.

No poema “Retrato Obscuro”, Cecília diz:

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(...)

Perguntam-me por ela.

Tão triste, responder!

(...)

Ela vai sempre na frente.

Sozinha. Com um silêncio de bússola e deusa.

Livre de encontros, paradas, limites,

anda leve como as borboletas

e segura como o sol no céu.

E é diante de suas mãos que se sente

esta miséria taciturna,

a obrigação do horizonte,

o curto espaço entre o nascimento e a morte.

Choro porque ela está por estar – assim perto e entre nós,

e comigo – sem mim.

Sua presença animando e enganando minha forma,

não me deixando ver até onde sou ela,

e desde onde a outra que a acompanha,

sabendo-a e sem a saber.

Vede a cor de seus olhos

como desmaia, desaparece, límpida e liberta,

por firmes ou oscilantes horizontes.

Sei, quando ela fala, que é diferente de todos,

e, mesmo quando se parece comigo, fico sem saber se sou

eu.

E quando não diz nada, sofro, perguntando o que a detém,

por lugares que apenas sinto,

e não a posso ajudar a amar nem a sofrer, 131

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porque nem sofre nem ama

e é pura, ausente e próxima.

Quem poderá dizer alguma coisa certa a seu respeito?

Quem poderá dizer alguma coisa certa a seu respeito?

Ela mesma pararia, ouvindo-se descrever,

atônita.

Seu rosto inviolável é como o das estrelas,

quando os homens explicam:

“Aquela é Sírius... Aquela, Antares... Aquela...”

E como as estrelas

a levo e me leva – incomunicável,

suspensa na vida,

sem glória e sem melancolia.

A poesia de Cecília Meireles é tão naturalmente intemporal e distante, tão

diafanamente pura, tão alheia a todos os problemas, acidentais, tão unicamente atenta ao

que é essencial e poético que o seu caminho é por vezes um caminho de desligamento,

de desprendimento, de pura e solitária desumanização.

É desse caminho que Cecília Meireles fala no poema “Despedida”:

Por mim, e por vós, e por mais aquilo

que está onde as outras coisas nunca estão

deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:

quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.

E como o conheces? – me perguntarão.

– Por não Ter palavras, por não ter imagem.

Nenhum inimigo e nenhum irmão.

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Que procuras? Tudo. Que desejas? – Nada.

Viajo sozinha com o meu coração.

Não ando perdida, mas desencontrada.

Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.

Voou meu amor, minha imaginação...

Talvez eu morra antes do horizonte.

Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.

(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!

Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.

Mas ao lado deste caminho distante, e desumano, há em Cecília Meireles

momentos de pura humanidade trespassada de lágrimas, como por exemplo no

“Epigrama nº 8” da “Viagem”:

Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.

Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,

fiquei sem poder chorar, quando caí.

É impossível isolar e exemplificar todas as dualidades que há na poesia de Cecília

Meireles. Também ela como o mar “baralha seus altos contrastes”.

Mas creio que de todas essas dualidades, a mais profundamente sua, a que é mais

característica da sua inspiração, a que determina o tom único e inconfundível da sua voz

é o maravilhoso encontro de serenidade e desespero que estão presentes em cada uma

das suas palavras.

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No poema “Elegia”, que me parece o poema mais belo, mais perfeito e mais

austero que há em toda a obra de Cecília Meireles, vemos como o seu desespero se

resolve e se objectiva em pura serenidade. É tal a calma e a lucidez com que ela

enfrenta o rosto dos desastres que as palavras parecem libertar e apaziguar a própria

saudade dos mortos:

Elegia

Perto de tua sepultura,

trazida pelo humilde sonho

que fez a minha desventura,

mal minhas mãos na terra ponho,

logo estranhamente as retiro.

Neste limiar de indiferença,

não posso abrir a tênue rosa

do mais espiritual suspiro.

Jazes com a estranha, a muda, a imensa

Amada eterna e tenebrosa

pelas tuas mãos escolhida

para teu convívio absoluto.

Por isso me retraio, certa

de que é pura felicidade

a terra densa que te aperta.

E por entre as pedras serenas

desliza o meu tímido luto,

com uma quieta lágrima, apenas,

– esse humano, doce atributo.

Em frente da grande beleza dos versos de Cecília Meireles, devemos lembrar-nos

que o que o poeta busca através do poema é a verdade. A beleza é uma consequência,

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uma coisa que acontece como por acaso. E buscando unicamente a verdade o poeta

deixa a beleza para quem o lê.

Falar dum poeta é como querer apanhar água com as mãos. Prendemos só as

nossas próprias palavras, enquanto o poeta nos foge. Só em poesia se pode falar de

poesia. Eis como um poema de Manuel Bandeira fala de Cecília Meireles:

Improviso

Versos de Manuel Bandeira

Cecília, és libérrima e exata

Como a concha,

Mas a concha é excessiva matéria,

E a matéria mata.

Cecília, és tão forte e tão frágil

Como a onda ao termo da luta,

Mas a onda é água que afoga:

Tu, não, és enxuta.

Cecília, és, como o ar,

Diáfana, diáfana,

Mas o ar tem limites:

Tu, quem te pode limitar?

Definição:

Concha, mas de orelha;

Água, mas de lagrimas;

Ar com sentimento.

– Brisa, viração

Da asa de uma abelha.

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7.5 Torga: os homens e a terra

Numa das páginas do Diário, vol. II, Torga escreve:

“No meu sangue corre, a pedir expressão, um rio de miséria e de doçura”.

Pois Torga não é propriamente um poeta que nos fala do povo português, mas

antes um poeta cuja obra o povo português nos fala. Fala, emerge, aparece. O longínquo

povo das aldeias do Norte, fechado em suas montanhas de isolamento e distância, de

súbito diz-nos a sua identidade.

Nestes tempos de turismo e folclore encomendado e estilizado, onde a criação

popular é tão facilmente degradada e manipulada pelos circuitos comerciais ou pelas

propagandas políticas, Torga invoca o povo das aldeias como povo da antidegradação,

povo que, em seu despojamento e pobreza isolada, permanece guardião da pura

fidelidade às raízes da vida. Eles são exatamente aqueles para quem nada é decorativo.

Aqueles que duramente cercados pela estreita necessidade prática de sobreviver

guardam abertos como identificação da vida o espaço do sonho.

Daí nasce a extrema gravidade tantas vezes posta nos gestos mais quotidianos e

que é a extrema fidelidade à responsabilidade humana perante a vida.

É isto o que nos aparece no poema que abre o II volume do Diário.

Aqui vemos a mulher da aldeia escrevendo para o filho distante. Escreve devagar,

não só porque escreve com certa dificuldade, mas também porque há nela um grande e

grave respeito pela palavra escrita, a palavra que atravessará a distância e a separação.

CORREIO

Carta da minha Mãe

“Filho” 136

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E o que a seguir se lê

É de uma tal pureza e de um tal brilho

Que até da minha escuridão se vê.

E este poema me leva a lembrar o conto chamado Maria Lionça, que é o mais

extraordinário retrato da mulher da literatura portuguesa, texto linear e emblemático

onde tudo obedece à lei da frontalidade e onde a simplicidade da estrutura e da dicção

deixa a nu o caráter trágico da história que nos é contada. Na mulher que traz no

comboio o filho morto para o enterrar no chão da aldeia em que ele e ela nasceram

reconhecemos a cariátide que suporta sobre os seus ombros um país inteiro. E

reconhecemos como a Tragédia é inerente a toda responsabilidade humana. Como a

Antígona de Sófocles, Maria Lionça diz-nos que ela é aquele que se opõe ao mal, isto é:

à destruição e à degradação. E, na história Terrestre dos homens que a rodeiam, homens

errantes e emigrantes, homens fracassados e náufragos, acossados pela penúria e

desemprego mas igualmente roídos pela própria instabilidade, o texto aparece-nos

também como o pano da Verónica onde um povo deixa desenhado o rosto do seu

sofrimento.

Mas o povo que na obra de Torga fala nunca é o povo abstracto dos demagogos

nem o povo idealizado dos profissionais do nacionalismo. É um povo concreto que

Torga invoca com Amor e Ternura, mas com ternura rude e amor sem disfarce. Se nos

mostra a sua dimensão trágica, mostra-nos também o seu sentido de humor, a sua ironia

as suas astúcias, obstinações, querelas.

Esta relação com o povo das aldeias do Norte é também uma relação com a terra

natal, em suas vinhas e serras, seus campos e suas casas, seus ritos e lugares sagrados,

suas culturas e sua cultura. É o testemunho apaixonado de uma identidade.

“Para cá do Marão mandam os que cá estão.”

E constantemente aqui é invocada a aliança do homem com a terra. Essa aliança

ora nos aparece como esse acto fundamental da cultura (...) {palavra ilegível, texto

retirado de um jornal} é a agricultura, aliança que no poema Bucólica é dita:

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“... ver esta maravilha

Meu Pai a erguer uma videira

Como uma Mãe que faz a trança à filha”

Ora nos aparece como escolha da terra, escolha do Terrestre, escolha que o poema

Viriato proclama:

O meu nome de ibero é Viriato

O princípio de ti, ó Mãe, sou eu

Eu é que fiz o acto

De namorar a terra em vez do céu.

Pois a aliança com a terra não é apenas a aliança com o país natal, com o chão de

um lugar ou de uma pátria.

A terra a quem Torga fala é simultaneamente o solo do país natal e a Terra –mãe

de toda a vida humana, a grande Demeter, a Gea de que Hesíodo invoca nos versos da

Teogonia:

“A terra de largos flancos, chão firme

Oferecida para sempre aos vivos”

A sua poesia fundamentalmente a busca da fidelidade no Terrestre, a busca da

aliança sem mácula do homem com o Terrestre; a busca da inteireza do homem no

Terrestre.

No entanto esta busca não é o paganismo. Para o homem grego o divino é interior

ao universo.

Mas o divino que aparece na obra de Torga não mora na imanência, à qual se

opõe, mas sim na transcendência. E mais do que Cristo, é o Jeová bíblico que envia a

sua lei, mas não se mostra. Em frente desse Deus a atitude de Torga ora é a atitude

desafio de “Corvo" dos “Bichos”, ora é o conflito pessoal de um Job sem paciência, ora

é a acusação ao Deus ausente, ao Deus que parece ter renunciado à própria existência,

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ao Deus que se retirou para o fundo do seu silêncio. Por isso no seu túmulo Teresa de

Ávila diz:

E Deus que prometeu ter-me a seu lado

Tem-me aqui.

Pois Torga, poeta da “Terra de largos flancos”, poeta que tantas vezes nos parece

um contemporâneo de Hesíodo, é um contemporâneo da “Morte de Deus”.

A sua poesia é uma poesia da plenitude e da inteireza do reino do homem no

terrestre – mas esse reino cortado e rodeado por ausência e silêncio. Rodeado pelo

abismo, que, como Hesíodo nos diz, é anterior à Terra.

7.6 Luís de Camões: ensombramento e descobrimento

A poesia é, por sua natureza, o contrário de uma instituição.

No entanto, às vezes, acontece que um poeta se torna célebre, e a sua obra

e o seu nome passam a ser tratados como instituições.

E a Camões aconteceu mesmo de não só ter sido transformado em

instituição, mas também – e para vergonha de todos nós – ser uma instituição

usada e manipulada ao longo dos tempos pelas diversas estratégias do poder.

Na sociedade em que estamos, o que é real nunca é oficial, e a poesia

quando, às vezes, por milagre, está na rua é rapidamente empurrada para dentro

de casa.

E seria grave esquecermos que Camões teve uma aguda e precisa e

veemente consciência da sua condição de poeta maldito. Uma trágica e amarga

consciência de sua solidão.

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De um extremo ao outro da sua obra, ele afirma e grita essa consciência.

Por isso, em frente de qualquer centenário ou homenagem que lhe sejam

dedicados, deveremos recordar um poema que – talvez pensando em Camões,

talvez pensando em Fernando Pessoa, talvez pensando em si próprio – Carlos

Queiroz escreveu:

Do poeta já morto, o claro nome

Ergueram como estandarte

E a sua obra desfraldaram

Oh, deixem-no incompreendido

Sozinho como na vida,

Como na vida esquecido...

Sabemos pouco da vida de Camões, e as interpretações pouco nos ajudam.

Será melhor entendermos a sua poesia literalmente:

O dia em que eu nasci, moura e pereça

não o queira jamais o tempo dar,

não torne mais ao mundo, e, se tornar,

eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,

mostre o mundo sinais de se acabar,

nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,

a mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,

as lágrimas no rosto, a cor perdida,

cuidem que o mundo já se destruiu.

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Ó gente temerosa, não te espantes,

que este dia deitou ao mundo a vida

mais desgraçada que jamais se viu!

Mas se não aceito que Camões seja tratado como instituição, que seja

tratado abstractamente como poeta oficial, é porque nele amo e busco o poeta

real.

E desse poeta real poderemos dizer, parafraseando Fernando Pessoa, que

ele foi

“não português mas Portugal”.

Pois Camões assume a Pátria sua e nossa, duplamente. Assume-a como

palavra e assume-a como História.

Carlos de Oliveira disse um dia que Camões é a aleluia da língua

portuguesa. Ele não vem apenas, como diria Mallarmé, dar um sentido mais

puro às palavras da tribo. Camões encontra e constrói a objectividade da língua

portuguesa. E cria a ressonância e o eco, encontra o justo peso das sílabas, o

espaço do silêncio, a articulação justa.

Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano,

Já que a minha presença não te agrada,

Que te custava ter-me neste engano,

Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?

(Os Lusíadas, canto V, 57)

Mas não sou professor de Literatura nem de Linguística. A análise e a

discussão e a teoria não são a minha especialidade, e por isso, não irei falar

sobre a dicção camoniana, sobre o acerto das suas vogais, sobre a musicalidade e

a ressonância dos seus versos. Antes procurarei mostrar o meu entendimento

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dessa musicalidade e dessa ressonância, lendo alguns dos seus poemas. Até

porque acredito que a inteireza da palavra é oral e não escrita.

A respiração da musicalidade de Camões – musicalidade fundada em

ressonâncias como a voz de um búzio – está presente nos seus sonetos (“Aquela

triste e leda madrugada...”), e atravessa Os Lusíadas:

Descobre o fundo nunca descoberto

As areias ali de prata fina;

Torres altas se vêem, no campo aberto,

Da transparente massa cristalina;

Quando se chegam mais os olhos perto

Tanto menos a vida determina

Se é cristal o que vê, se diamante,

Que assim se mostra claro e radiante.

(Os Lusíadas, canto VI, 9)

A nitidez da dicção camoniana é particularmente evidente nas redondilhas

(“Descalça vai para a fonte...”).

Camões assume Portugal no plano da História. Não apenas porque escreve

Os Lusíadas, mas porque vive tão exemplarmente a sua condição de português, e

nele Portugal se vive.

Como Portugal, ele é simultaneamente realização e frustração, encontro e

desencontro, ensombramento e descobrimento.

Como Portugal, ele volta de África estropiado, vencedor e vencido, e da

Índia regressa deslumbrado e naufragado. Como Portugal, ele conhece a livre

respiração dos longos mares e a asfixia entre provincianas intrigas.

Como Portugal, de todas as riquezas volta pobre.

São muito poucos os documentos que temos sobre a vida de Camões, e os

seus biógrafos são discutidos. Mas para além de factos imaginários, supostos ou 142

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presumíveis, a sua obra diz-nos literalmente aquela muito especial amargura à

portuguesa que, então como agora, Portugal tece em redor daqueles que o

assumem.

Em todos os países, como diria Fernando Pessoa, “os deuses vendem o que

dão”. Mas em Portugal vendem mais caro. A amargura que encontramos nos

poemas camonianos não precisa de ser documentada por velhos papéis e antigos

biógrafos, pois ela continua a ser documentada pela vida quotidiana.

No seu livro Novas Andanças do Demônio, Jorge de Sena publicou um

conto que tem como tema o final da vida de Camões, e se intitula “Super

Flumina Babylonis”. Este texto é uma das mais puras obras-primas da língua

portuguesa, e é também o pano da Verónica da poesia portuguesa.

Pode-se discutir se alguns dos factos narrados por alguns biógrafos do

poeta, nos quais Jorge de Sena, no seu conto, se inspira, são verdadeiros ou

fantasiosos. Mas há neles, como no conto, o tom da verdade, e essa verdade o

próprio Camões a documenta:

Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Duma austera, apagada e vil tristeza.

Devemos meditar na expressão “gente surda”: nestas duas palavras,

Camões identifica aquela muito especial desatenção que a sociedade portuguesa

dispensa àqueles que ousam uma atitude de liberdade e de criação. Pois a surdez

não é dedicada apenas ao poeta, mas igualmente ao músico, ao pintor, ao

arquitecto, ao sábio. O poeta é mesmo aquele que resiste melhor, pois pode criar 143

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quase sem apoio social. É por isso que, entre nós, a poesia é a mais rica das

tradições culturais.

Camões resiste e, porque resiste, sofre, vê e denuncia essa desatenção, essa

surdez asfixiante.

Ele vê e denuncia uma atitude que é simultaneamente moral e cultural e

que, através dos séculos e das variações políticas, continua. A sua crítica ao seu

tempo aplica-se ao nosso:

Vede, Ninfas, que engenhos de senhores

O vosso Tejo cria valerosos,

Que assim sabem prezar, com tais favores,

A quem os faz, cantando, gloriosos!

Que exemplos a futuros escritores,

Para espertar engenhos curiosos,

Para porem as cousas em memória

Que merecerem ter eterna glória!

(Os Lusíadas, canto VII, 82)

E, mais adiante, ele retrata os oportunistas da sua época, que continuam a

ser nossos contemporâneos. Ele diz-nos que não cantará

Nenhum que use de seu poder bastante

Para servir a seu desejo feio,

E que, por comprazer ao vulgo errante,

Se muda em mais figuras que Proteio.

A poesia de amor de Camões é escrita dentro de uma tradição de poesia do

amor impossível, que vem quase até aos nossos dias.

Na maioria dos seus poemas líricos corre esse longo pranto do amor

inacessível. Num mundo de madrugadas e névoas, de separações, de ausências e

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de naufrágios, passam os rostos das amadas mortas, distantes, negadas,

inatingíveis, afogadas no Índico.

No entanto, nos poemas líricos não encontramos a mesma amargura

radicalmente sombria que encontrámos nos poemas de acusação social.

Encontramos dor, sofrimento, mágoa, mas ainda nimbados pelo maravilhamento

do encontro. E o rosto das amadas não foi apenas negação e morte, ou engano,

ou distância, mas também enlevo, encantamento, amor vivido.

Como vemos no soneto que diz a botticelliana beleza de não sei que

amada:

Ondados fios d’ouro reluzente,

que agora da mão bela recolhidos,

agora sobre as rosas estendidos,

fazeis que sua beleza s’acrescente.

Pois a poesia de amor camoniana é também a expressão de uma intensa

vitalidade que, como o próprio poeta diz, “em várias flamas variamente ardia”.

E em muitas das redondilhas, o poemas de amor é poema do jogo do amor:

Dama d’estranho primor

se vos for

pesada minha firmeza,

olhai, não me deis tristeza,

porque a converto em amor.

Se cuidais

de me matar quando usais

de esquivança,

irei tomar por vingança

amar-vos cada vez mais.

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E nalguns poemas como a maravilhosa obra-prima que são as Endechas a

Bárbara, escrava, encontramos aquele misto de abandono e de felicidade que é o

encontro do aventureiro com a sua própria vida.

Os Lusíadas, poema do descobrimento, poema da possibilidade humana,

são a antítese do ensombramento. Para além da asfixia que começa a crescer,

para além do gosto da cobiça e da vileza, Camões canta os portugueses que

navegaram para a frente, para ver o que havia. Logo no Canto I diz:

Os portugueses somos do Ocidente

Imos buscando as terras do Oriente...

Nestes dois versos, o poeta nos identifica: pertencemos à cultura da terra

do Ocidente, e, dentro da lógica dessa cultura, a nossa tarefa específica é ir para

além das próprias fronteiras, e indagar tudo, ver tudo. Somos a gente do estar

duplo. Gente que tem uma pátria, mas vai a caminho.

Camões celebra o surgir, o aparecer, aquilo a que os gregos chamaram

“aletheia”. Celebra os homens que buscam a desocultação, o emergir do

fenómeno, a escrita da terra.

Celebra sem mentir, em pura verdade, a coragem e a perícia do povo a que

pertence: uma coragem prática que ele viu. Canta uma arte de enfrentar o

abismo:

Alija, disse o mestre rijamente,

Alija tudo ao mar, não falte acordo!

Vão outros dar à bomba, não cessando;

À bomba, que nos imos alagando!

Correm logo os soldados animosos

A dar à bomba; e, tanto que chegaram,

Os balanços que os mares temerosos

Deram à nau, num bordo os derribaram.

Três marinheiros, duros e forçosos, 146

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A menear o leme não bastaram:

Talhas lhe punham, duma e doutra parte,

Sem aproveitar dos homens força e arte.

Os Descobrimentos não são apenas uma obra cultural, mas um acto

cultural. Camões sabe, por isso, que traz uma poética nova, que a fonte da sua

inspiração não está no mito nem no oculto, nem num outro mundo, mas sim no

exposto e no actual e no mundo em que estamos. Nos Lusíadas, o lugar do

poema é o vivido.

Os Lusíadas são uma epopeia cantada por um homem que

aventurosamente a viveu.

Heródoto diz-nos que Homero e Hesíodo foram os educadores da Grécia.

Será Camões um educador dos portugueses?

Quando vemos que a maioria dos portugueses, mesmo letrados, comem as

sílabas, é evidente que não os podemos considerar discípulos da dicção

camoniana. A forma como a língua portuguesa é normalmente falada leva-nos a

pensar que os leitores de Camões são poucos.

Essa lição de falar camoniano é nos poetas que a vamos encontrar. Na

nitidez de Cesário Verde ou na subtileza chinesa de Camilo Pessanha:

Passou o Outono já, já torno o frio...

– Outono de seu riso magoado...

Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado...

– O sol, e as águas límpidas do rio.

Águas claras do rio! Água do rio,

Fugindo sob o meu olhar cansado,

Para onde me levais meu vão cuidado?

Aonde vais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos dela, flutuando,

E debaixo das águas fugidias, 147

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Os seus olhos abertos e cismando...

Onde ides a correr, melancolias?

– E, refractadas, longamente ondeando,

As suas mãos translúcidas e frias...

Em poemas escritos em diversas épocas, em diversos climas e por diversos

poetas, algo de familiar e fundamental, aqui e além emerge: é o tom da voz

camoniana que regressa. Como neste poema de Cecília Meireles:

És precária e veloz, felicidade

Custas a vir e quando vens não te demoras

Foste tu que ensinaste aos homens

Que havia tempo

E para te medir

Se inventaram as horas.

E também em Torga encontramos o silabado silêncio camoniano:

Chove uma grossa chuva inesperada,

Que a tarde não pediu mas agradece.

Chove na rua, já de si molhada

Duma vida que é chuva e não parece.

O rigor, a densidade e a inteligência da arte poética de Camões brilham em

Fernando Pessoa:

Vossa formosa juventude leda,

Vossa felicidade pensativa,

Vosso modo de olhar a quem vos olha,

Vosso não conhecer-vos.

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Tudo quanto vós sois, que vos semelha

À vida universal que voz esquece

Dá carinho de amor a quem vos ama

Por serdes não lembrando

Quanta igual mocidade a eterna praia

De Cronos, pai injusto da justiça,

Ondas, quebrou, deixando à só memória

Um branco som de espuma.

E a nitidez da dicção camoniana, o entendimento da exacta possibilidade

de cada palavra encontram a sua sequência na dicção sem falha de João Cabral de

Melo:

Está no caixão exposto

Como uma mercadoria

À mostra para vender

Quem antes tudo vendia.

E a voz de Camões, com seu tumulto rouco, sua paixão e sua veemência

ecoa neste poema de Jorge de Sena:

Cendrada luz enegrecendo o dia,

tão pálida nos longes dos telhados!

Para escrever mal vejo, e todavia

a dor libérrima que a mão me guia

essa me vê, conforta meus cuidados.

Ao fim terrível que me espera extenso,

nenhum conforto poderei pedir.

Da liberdade o desdobrado lenço

meu rosto cobrirá. Nem sei se penso

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ou pensarei quando de mim fugir.

Perdem-se as letras. Noite, meu amor,

ó minha vida, eu nunca disse nada.

Por nós, por ti, por mim, falou a dor.

E a dor é evidente – liberdade.

(As Evidências XXI)

Creio profundamente que toda a arte é didáctica, creio que só a arte é

didáctica.

Camões propõe-nos palavras ditas sílaba por sílaba. Propõe-nos a contínua

acusação do gosto da cobiça e da vileza, a contínua acusação da surdez, da

asfixia, do opaco. Ensina-nos a não aceitar o ensombramento que nos rói.

Ensina-nos uma atitude de crítica constante. Ensina-nos a procurar a diversidade

do mundo em que estamos. Propõe-nos uma imagem exigente de nós próprios

que nunca mais nos deixará sossegar.

Abril, 1980

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