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Scarlett Alexandra Ripley Título original: Scarlett http://groups.google.com/group/digitalsource

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ScarlettAlexandra Ripley

Ttulo original: Scarletthttp://groups.google.com/group/digitalsource

I

Perdida nas trevas

1"Isso vai acabar em breve e depois posso voltar para casa, para Tara." Scarlett O'Hara Hamilton Kennedy Butler estava de p, sozinha, um pouco afastada dos outros, no funeral de Melanie Wilkers. Estava chovendo e os homens e mulheres vestidos de preto erguiam guarda-chuvas negros por cima da cabea. Apoiavam-se uns nos outros e as mulheres choravam, partilhando o desgosto e o abrigo. Scarlett no partilhava nem o chapu, nem a sua mgoa com ningum. Rajadas de vento empurravam a chuva para debaixo do chapu, formando fios de gua gelada, que a picavam e lhe escorriam pelo pescoo, mas ela no se dava conta. No sentia nada, estava atordoada pela perda. Choraria mais tarde, quando fosse capaz de suportar a dor. Mantinha-a afastada de si, a dor, os sentimentos, e os pensamentos. S no afastara as palavras que se repetiam uma e outra vez na sua cabea, as palavras que prometiam a cura da dor que estava para vir e fora para sobreviver at estar curada. "Isso vai acabar em breve e depois posso voltar para casa, para Tara." "... as cinzas retornam s cinzas, o p ao p..." A voz do pastor penetrou a concha do seu entorpecimento, e as suas palavras ficaram gravadas. "No!", gritou Scarlett para dentro. "Melly, no. Aquele no o tmulo de Melly, grande demais, ela to pequenina, os seus ossos no so maiores que os de um passarinho. No! Ela no pode estar morta, no possvel." Scarlett abanou a cabea com fora, negando a cova aberta e o caixo de pinho sem ornamentos que estava sendo descido. Na madeira macia viam-se pequenos semi-crculos, marcas deixadas pelos martelos que tinham pregado os pregos para fechar a tampa sobre o rosto em forma de corao, suave e cheio de amor de Melanie. "No! No podem, no devem fazer isto, est chovendo, no podem p-la na chuva, vai molh-la. Ela to sensvel ao frio, no podemos deix-la no frio e na chuva. No consigo olhar, no agento, no posso acreditar que ela se foi. Ela me ama, minha amiga, a minha nica amiga verdadeira. Melly me ama, no ia me deixar agora, exatamente quando mais preciso dela." Scarlett olhou para as pessoas que rodeavam a sepultura e foi invadida por uma clera ardente. "Nenhum deles se importa como eu, nenhum deles perdeu tanto quanto eu. Ningum sabe como eu a amo. Mas Melly sabe, no sabe? Sabe, tenho de acreditar que sim." "No entanto, eles nunca acreditaro nisso. Nem Mrs. Merriwether, nem os Meades, nem os Whitings, nem os Elsings. Olhem para eles, amontoados volta de ndia Wilkes e Ashley, parecem um bando de corvos molhados nas suas roupas de luto. verdade que esto a confortar a tia Pittypat, embora todo mundo saiba que ela chora horrores por tudo e por nada, at mesmo quando deixa queimar uma torrada. Nem lhes passa pela cabea que talvez eu tambm precise de um pouco de carinho, que era mais chegada a Melanie que qualquer deles. Agem como se eu nem estivesse aqui. Ningum me ligou nenhuma vez. Nem sequer Ashley. Ele sabia que eu estive l, durante aqueles dois dias horrveis depois de Melanie morrer, quando precisou de mim para arranjar as coisas. Todos sabiam, at ndia, berrando para mim que nem uma cabra. 'Como que que havemos de fazer com o funeral, Scarlett? E a comida para as pessoas? E o caixo? E os carregadores? E o talho no cemitrio? E a inscrio da pedra tumular? E a notcia para o jornal?' Agora amparam-se uns aos outros, chorando e gemendo. Bem, no lhes vou dar o prazer de me verem chorar, aqui sozinha, sem ningum em quem me encostar. No posso chorar. Aqui no. Ainda no. Se comeo a

chorar, talvez no seja capaz de parar. Quando chegar a Tara j posso chorar." Scarlett ergueu a cabea, cerrou os dentes para impedir que batessem de frio e para agentar os soluos que lhe subiam garganta. "Isso vai acabar em breve e depois j posso voltar para casa, para Tara." Ali, no cemitrio Oakland de Atlanta, Scarlett via-se rodeada pelos pedaos quebrados que constituam a sua vida desfeita. A alta espiral de granito, uma pedra cinzenta coberta de gua cinzenta, era um sombrio monumento a um mundo que desaparecera para sempre, o mundo despreocupado da sua juventude, antes da guerra. Era o Monumento da Confederao, smbolo orgulhoso da coragem impensada que mergulhara o Sul na destruio, carregando os seus estandartes brilhantes. Representava tantas vidas perdidas, os amigos da sua infncia, os gals que lhe tinham implorado valsas e beijos, nos tempos em que o maior dos seus problemas era saber qual dos vestidos de baile, com grandes saias rodadas, devia usar. Representava o seu primeiro marido, Charles Hamilton, irmo de Melanie. Representava os filhos, os irmos, os maridos, os pais de todos os presentes, que, encharcados, se juntavam na pequena colina onde Melanie estava sendo sepultada. Havia outras sepulturas, outras marcas. Frank Kennedy, o segundo marido de Scarlett. E o pequeno, terrivelmente pequeno, tmulo com uma pedra onde se lia Eugenie Victoria Butler e, por debaixo, Bonnie. A sua ltima filha, e a mais amada. Estava rodeada de vivos e de mortos, mas mantinha-se parte. Parecia que metade de Atlanta estava ali. A multido no coubera na igreja e espalhara-se, formando um largo crculo, irregular e sombrio, em volta daquela amarga mancha de cor sob a chuva cinzenta, a sepultura aberta, cavada no barro vermelho da Gergia para o corpo de Melanie Wilkes. Na primeira fila estavam aqueles que tinham sido mais ntimos. Brancos e negros, todos, menos Scarlett, tinham o rosto coberto de lgrimas. O velho cocheiro, o tio Peter, formava, juntamente com Dilcey e Cookie um negro tringulo protetor volta de Beau, o confuso filho de Melanie. Estava l a velha gerao de Atlanta, com os poucos descendentes que tragicamente lhe restava. Os Meades, os Whitings, os Merriwethers, os Elsings. Estavam as suas filhas e genros, estava Hugh Elsing, o nico filho vivo, aleijado, estava a tia Pittypat Hamilton e o irmo, o tio Henry Hamilton, tendo esquecido a sua zanga de anos no desgosto comum pela morte da sobrinha. Mais nova, mas parecendo to velha como os outros, ndia Wilkers protegia-se no interior do grupo e observava o seu irmo Ashley com uns olhos sombreados pelo desgosto e pela culpa. Como Scarlett, ele estava sozinho. Tinha a cabea descoberta, chuva, sem se dar conta dos chapus que lhe estendiam para se abrigar, sem se aperceber da chuva gelada, incapaz de aceitar a finalidade das palavras do pastor ou o estreito caixo que estava a ser descido para a cova lamacenta e avermelhada. Ashley, alto, magro e sem cor, o seu cabelo louro-plido, agora quase grisalho, o rosto plido e marcado to vazio como os olhos cinzentos, que olhavam em frente, sem nada verem. Mantinha-se direito, numa atitude de saudao, a sua herana dos anos em que usara a farda cinzenta de oficial da Confederao. Estava imvel, sem sentir, nem compreender. Ashley. Ele era o centro e o smbolo da vida arruinada de Scarlett. Por amor a ele, ignorara a felicidade que tivera mo. Afastara-se do marido, sem ver o seu amor por ela, sem admitir que o amava, porque o seu desejo por Ashley se metera sempre no meio. E agora Rhett partira, marcando apenas a sua presena ali com um ramo de flores, quentes e douradas como o Outono, um ramo entre os demais. Atraioara a sua nica amiga, desprezara o amor leal e persistente de Melanie. E agora Melanie partira.

E at mesmo o amor de Scarlett por Ashley desaparecera, pois compreendera - tarde demais - que o hbito de am-lo h muito que substitura o prprio amor. No o amava, nem voltaria a amar. E, agora, quando ela j no o queria, Ashley pertencia-lhe, a herana que Melanie lhe deixara. Prometera a Melanie que tomaria conta dele e de Beau, o filho deles. Ashley era a causa da destruio da sua vida. E a nica coisa que lhe restava dela. Scarlett mantinha-se parte, sozinha. Entre ela e as pessoas que conhecia em Atlanta s havia uma distncia fria e cinzenta, distncia essa que Melanie preenchera em tempos, afastando-a do isolamento e do ostracismo. Sob o guarda-chuva, no local onde Rhett devia estar para proteg-la com os seus ombros largos e o seu amor, havia apenas um vento mido e frio. Manteve o rosto erguido, enfrentando o vento, aceitando a sua investida sem senti-lo. Tinha todos os sentidos concentrados nas palavras que constituam a sua fora e a sua esperana. "Isso vai acabar em breve e depois j posso ir para casa, para Tara." - Olhe para ela - sussurrou uma senhora com um vu negro para a companheira que partilhava o seu chapu. - Dura como pedra. Disseram-me que durante todo o tempo em que esteve tratando do funeral, nem sequer verteu uma lgrima. Toda negcios, a Scarlett. E sem corao. - Sabe o que dizem as pessoas - respondeu-lhe um murmrio. - Tem corao que chegue para Ashley Wilkes. - Acha que eles chegaram mesmo a... As pessoas que estavam perto mandaram-nas calar, mas ambas pensavam a mesma coisa. Todos pensavam. Ningum conseguia ver a dor nos olhos ensombrados de Scarlett ou o seu corao desfeito sob a luxuosa pelica de pele de foca. O tenebroso som cavo da terra caindo na madeira fez Scarlett cerrar os punhos. Tinha vontade de tapar os ouvidos, de gritar bem alto - qualquer coisa que a impedisse de ouvir o terrvel som da sepultura que se fechava sobre Melanie. Mordeu dolorosamente os lbios. No ia gritar, nunca. O grito que estilhaou a solenidade do ato veio de Ashley. - Melly... Mell... eee! - E novamente: - Mell... ee. - Era o grito de uma alma atormentada, cheia de solido e medo. Avanou aos tropees para o fundo buraco lamacento, como um homem subitamente cego, as mos procurando a pequena e suave criatura que fora toda a sua fora. Mas no havia nada para agarrar a no ser a chuva fria, que caa em fios prateados. Scarlett olhou para Tommy Wellburn, para o Dr. Meade, para ndia, para Henry Hamilton. "Por que que no fazem nada? Por que que no o agarram? Algum tem de o fazer parar!" - Mell... eee... "Pelo amor de Deus! Vai partir o pescoo e eles esto ali de p, olhando estupidamente, vendo ele balanar na beira da cova. - Ashley, pra! - gritou ela. - Ashley! - comeou a correr, escorregando e resvalando na erva molhada. O guarda-chuva, que atirara para o lado, rolou pelo cho, empurrado pelo vento, at ficar preso no amontoado de flores. Agarrou Ashley pela cintura e tentou afast-lo do perigo. Ele lutou com ela. - Ashley, no faa isso. - Scarlett lutava contra a fora dele. - Agora Melly j no pode te ajudar. - A sua voz era dura, tentando penetrar a dor surda e demente de Ashley. Ele parou, deixando cair os braos. Gemeu baixinho e depois o corpo abateu-se nos braos de Scarlett, que o amparou. S quando estava quase a larg-lo, devido ao

peso, que o Dr. Meade e ndia seguraram os braos inertes de Ashley para o erguerem. - J podes ir, Scarlett - disse o Dr. Meade. - J no h mais nada para arruinares. - Mas eu... - Olhou para os rostos que a rodeavam, os olhos vidos de ms sensaes. Depois voltou-se e afastou-se no meio da chuva. A multido recuou, como se receasse que as saias dela, ao tocar-lhe, a conspurcasse. Eles no podiam saber que se importava, no deixaria que vissem como a conseguiam magoar. Scarlett levantou o queixo num desafio, deixando que a chuva lhe escorresse pela cara e pelo pescoo. Manteve as costas e os ombros direitos at chegar aos portes do cemitrio, ficando fora de vista. Ento, agarrou-se a um dos vares de ferro. Sentia-se tonta de cansao, sem firmeza nos ps. O cocheiro, Elias, correu para ela, abrindo um chapu que ergueu sobre a sua cabea curvada. Scarlett caminhou at carruagem, ignorando a mo que se estendera para a ajudar. No interior da caixa forrada de felpa, deixou-se cair num canto e puxou a coberta de l. Estava gelada at aos ossos, horrorizada com o que tinha feito. Como que fora capaz de envergonhar Ashley daquela maneira em frente a todo mundo, quando h apenas algumas noites tinha prometido a Melanie que tomaria conta dele e o protegeria, como Melly sempre tinha feito? Mas que outra coisa poderia ter feito? Deix-lo atirar-se para dentro da cova? Tinha que det-lo. A carruagem oscilava de um lado para o outro, com as enormes rodas enterradas nos profundos sulcos de lama barrenta. Scarlett quase caiu no cho. Bateu com o cotovelo na janela, fazendo com que uma dor aguda lhe percorresse o brao. No passava de uma dor fsica. Isso podia ela suportar. A outra dor, uma dor adiada, retardada, sombria e negada, que ela no agentava. Ainda no, no aqui, no quando estava to s. Tinha mesmo que ir para Tara. Mammy estava l. Mammy poria os seus braos escuros volta dela, Mammy a abraaria, embalaria a sua cabea, encostando-a no peito onde chorara todas as suas mgoas infantis. Nos braos de Mammy podia chorar, chorar at ficar vazia, sem dor; podia descansar a cabea no peito de Mammy, podia descansar o seu corao ferido no amor de Mammy. Mammy a abraaria e lhe daria amor, partilharia a sua dor e a ajudaria a suport-la. - Depressa, Elias - disse Scarlett -, depressa. - Ajuda-me a tirar estas coisas molhadas, Pansy - ordenou Scarlett criada. - Rpido. - O seu rosto estava de uma palidez mortal, fazendo que os olhos verdes parecessem mais escuros, mais brilhantes, mais assustadores. Com o nervoso, a jovem negra atrapalhou-se. Depressa, eu disse. Se me fizeres perder o trem, te dou uma chicotada. No podia fazer isso, Pansy sabia que no podia. Os tempos da escravatura tinham acabado. Miss Scarlett j no era dona dela, podia ir embora quando quisesse. Mas o brilho febril e desesperado dos olhos verdes de Scarlett fez com que Pansy duvidasse dos seus prprios conhecimentos. Scarlett parecia capaz de tudo. - Pe na mala o merino de l preta, vai esfriar - disse Scarlett. Examinou a mala aberta. L preta, seda preta, algodo preto, sarja preta, veludo preto. Podia continuar de luto at ao fim dos seus dias. Ainda estava de luto por Bonnie, e agora por Melanie. "Devia arranjar alguma coisa ainda mais escura que o preto, alguma coisa mais pesarosa, para pr luto por mim mesma. No vou pensar nisso, pelo menos agora, se o fizer, enlouqueo. Penso nisso quando chegar a Tara. L, consigo agentar." - Vestete, Pansy, Elias est esperando. E no te atrevas a esquecer-te do fumo para o brao. Esta casa est de luto. As ruas que se cruzavam em Five Points pareciam um pntano. Carroas, charretes e carruagens estavam enterradas na lama. Os condutores amaldioavam a chuva, as ruas, os cavalos e os outros condutores que lhes impediam o caminho.

Ouviam-se gritos, o som de chicotes a estalar e o barulho das pessoas. Em Five Points havia sempre uma multido, pessoas com pressa, que discutiam, se queixavam e riam. Five Points fervilhava de vida, de dinamismo e de energia. Five Points era a Atlanta de que Scarlett gostava. Mas no naquele dia. Nesse momento, Five Points impedia-lhe o caminho, Atlanta puxava-a para trs. "Tenho que apanhar aquele trem, se o perder, morro, tenho de ir para Tara, para Mammy ou vou-me abaixo." - Elias - gritou ela -, no quero saber se precisa chicotear os cavalos at a morte, no me interessa se tiver que atropelar todo mundo desta rua. Chegue estao. Os seus cavalos eram os mais fortes, o seu cocheiro o mais hbil, a sua carruagem a melhor que o dinheiro podia comprar. Era melhor que nada se atravessasse no seu caminho, nada mesmo. Apanhou o trem muito a tempo. A chamin do trem lanou uma baforada de vapor. Scarlett susteve a respirao ao ouvir o barulho das rodas indicando que o trem estava em movimento. Ali ele ia. Outra vez. E outra ainda. A vago rodou sacudindo. Estava finalmente a caminho. Tudo ia ficar bem. Ia regressar a Tara. Imaginou-a ensolarada e luminosa. A casa branca e resplandecente; as cortinas brancas esvoaando nas janelas abertas, por cima das cintilantes folhas verdes dos arbustos de jasmim, cheios de rebentos muito brancos. Quando o trem deixou a estao, uma forte chuva negra escorria copiosamente pela janela ao seu lado, mas no fazia mal. Em Tara haveria uma lareira acesa na sala de estar. Ouvir-se-ia o crepitar das pinhas atiradas para junto dos troncos e as cortinas estariam fechadas, impedindo a entrada da chuva, da escurido e do mundo. Deitaria a sua cabea no largo e macio peito de Mammy e lhe contaria todas as coisas horrveis que tinham acontecido. Estaria, ento, em condies de pensar, de resolver tudo. O silvar do vapor e o rudo agudo das rodas fizeram estremecer a cabea de Scarlett. Seria j Jonesboro? Devia ter dormitado, o que no admirava, tal era o seu cansao. No tinha sido capaz de dormir durante duas noites, nem mesmo com o brande para lhe acalmar os nervos. No, a estao era Rough and Ready. Faltava ainda uma hora para Jonesboro. Pelo menos a chuva parara, havia mesmo sinais de cu azul l na frente. Talvez o sol estivesse brilhando em Tara. Imaginou o caminho verde e a casa amada no topo do monte. Scarlett suspirou profundamente. A sua irm Suellen era agora a dona da casa. Ah! Melhor seria chamar-lhe a choramingas da casa. Tudo o que Suellen fazia era lamentar-se, era tudo o que sempre tinha feito desde que eram crianas. Agora ela tinha as suas prprias crianas, to choronas quanto ela costumava ser. Os filhos de Scarlett tambm estavam em Tara. Wade e Ella. Tinha-os mandado com Prissy, a ama deles, quando recebeu a notcia de que Melanie estava morrendo. Provavelmente, deveria t-los consigo no funeral de Melanie. Isso dera s bisbilhoteiras de Atlanta mais um motivo de conversa. Era uma me desnaturada. Deix-las dizer o que quisessem. No teria conseguido passar aqueles horrveis dias e aquelas pavorosas noites depois da morte de Melanie se tambm tivesse tido que aturar Wade e Ella. No pensaria neles, tudo. Ia para casa, para Tara e para Mammy, e simplesmente no se permitiria pensar em coisas que a aborrecessem. "Deus sabe que j tenho coisas que me aborream o suficiente. No preciso met-los tambm nisto. Estou to cansada..." Inclinou a cabea e fechou os olhos. - Jonesboro, ma'am - disse o condutor. Scarlett pestanejou e endireitou-se.

- Obrigada. - Olhou em volta da cabine procura de Pansy e das suas malas. "Esfolo aquela rapariga viva se ela anda vagueando noutro vago. Oh!, se ao menos uma senhora no tivesse que andar acompanhada todas as vezes que pe o p fora de casa. Faria tudo muito melhor sozinha. L est ela." - Pansy! Tira essas malas da rede. J chegamos. - "Agora j s faltam cinco milhas para Tara. Em breve estarei em casa. Em casa!" Will Benteen, o marido de Suellen, estava espera na plataforma. Ver Will foi um choque; os primeiros segundos eram sempre um choque. Scarlett gostava de Will e respeitava-o genuinamente. Se pudesse ter tido um irmo, como sempre desejara, gostaria que fosse como Will. Sem a perna de pau e sem fazer tanto barulho, claro. No era possvel confundi-lo com um cavalheiro; era manifestamente classe baixa. Ela esquecia-se disso quando estava longe dele, e esquecia-o depois de estar com ele um minuto, por ser um homem to bom e to gentil. Mesmo a Mammy tinha Will em grande conta, e ela era o mais rigoroso juiz quando se tratava de ver quem era um cavalheiro ou uma senhora. - Will! - Ele caminhou na sua direo, naquele seu porte oscilante. Ela atirou os braos em volta do pescoo dele e abraou-o com fora. - Oh, Will, estou to contente de te ver que quase choro de alegria. Will aceitou o abrao sem emoo. - Tambm estou contente de te ver, Scarlett. J faz tanto tempo. - Demais. vergonhoso. Quase um ano. - Parecem dois. Scarlett estacou. Tinha passado tanto tempo? No admirava que a sua vida estivesse num estado to lamentvel. Tara sempre lhe tinha dado uma nova vida, uma nova fora quando precisava dela. Como podia ter passado tanto tempo longe dela? Will fez sinal a Pansy e dirigiu-se carroa do lado de fora da estao. - E melhor irmos andando se queremos chegar antes que escurea - disse ele. Espero que no se importe com esta viagem incmoda, Scarlett. J que vinha cidade, resolvi levar algumas provises. - A carroa estava cheia de sacos e pacotes. - No me importo nada - disse Scarlett com sinceridade. Estava de volta ao lar e qualquer coisa que a levasse l era boa. - Sobe nesses sacos de rao, Pansy. Na longa viagem para Tara, permaneceu to silenciosa quanto Will, absorvendo a quietude do campo, refrescando-se com ela. O ar estava fresco, como se tivesse sido lavado, e o sol da tarde batia quente nos seus ombros. Tinha feito bem em vir para casa. Tara lhe daria a paz e a proteo de que precisava. E com a ajuda de Mammy seria capaz de reconstruir o seu mundo em runas. Inclinou-se para a frente quando viraram para o caminho familiar, sorrindo na expectativa. Mas quando a casa apareceu, deixou sair um grito de desespero. - Will, que aconteceu? - A fachada de Tara estava coberta de trepadeiras, com longos e feios cordes de folhas mortas; quatro das janelas tinham portadas soltas, e duas delas nem isso tinham. - o Vero, Scarlett. Trato dos reparos da casa no Inverno, quando no houver colheitas para fazer. Comearei nas portadas daqui a algumas semanas. Ainda no estamos em Outubro. - Oh, Will, por que no me deixas lhe dar algum dinheiro? Poderia contratar algum para ajud-lo. Pode ver-se o tijolo atravs do cal. D um aspecto to miservel. Will respondeu pacientemente. - No se arranja ningum para trabalhar, nem por amor, nem por dinheiro. Aqueles que querem trabalhar sempre arranjam que fazer, e quem no quer no me

serviria de nada. Eu e o Big Sam j nos arranjamos. O teu dinheiro no preciso. Scarlett mordeu o lbio e engoliu as palavras que queria dizer. J antes tinha tido que lidar freqentemente com o orgulho de Will, e sabia que ele era irredutvel. Estava certo, as colheitas e o gado tinham que vir primeiro. Exigiam cuidados imediatos; e uma nova aguada de cal podia esperar. J podia ver os campos, estendendo-se atrs da casa. Estavam sem ervas daninhas, aparados a pouco. Sentia-se o cheiro leve, mas rico do estrume na terra, preparando-a para a prxima plantao. A terra vermelha parecia quente e frtil, e ela descontraiu-se. Este era o corao de Tara, a sua alma. -Tem razo - disse a Will. A porta da casa abriu-se e o alpendre encheu-se de pessoas. Suellen estava frente, segurando o filho mais novo nos braos, acima da barriga inchada que repuxava as costuras do seu desbotado vestido de algodo. O xale tinha cado sobre um dos braos. Scarlett forou uma alegria que no sentia. - Meu Deus, Will, a Suellen vai ter outro beb? Vais ter de construir mais quartos. Will riu com prazer. - Ainda estamos tentando ter um rapaz. - Levantou a mo para saudar a mulher e as trs filhas. Scarlett acenou tambm, desejando ter se lembrado de comprar alguns brinquedos para trazer s crianas. "Oh! Deus, olhem para eles." Suellen estava com um ar carrancudo. Os olhos de Scarlett correram pelas outras faces, procurando as faces negras... Prissy estava l; Wade e Ella escondiam-se atrs das suas saias... e a mulher de Big Sam, Delilah, segurava na mo a colher com que devia ter estado mexendo o tacho... l estava. Como era o nome dela? Ah!, sim, Lutie, a ama das crianas de Tara. Mas onde estava Mammy? Scarlett chamou os filhos. - Ol, queridos, a me est aqui - Depois voltou-se para Will e apoiou a mo no brao dele. - Onde est a Mammy, Will? Ela no est to velha que no possa vir me receber. - O medo oprimia as palavras na garganta de Scarlett. - Est de cama, doente, Scarlett. Scarlett saltou da carroa ainda em movimento, tropeou, recomps-se e correu para a casa. - Onde est a Mammy? - disse para Suellen, surda s saudaes agitadas das crianas. - Que belo cumprimento, Scarlett, mas no pior do que eu esperaria de ti. Em que estavas pensando para mandares Prissy sem sequer uma palavra, quando sabe que j tenho trabalho de sobra? Scarlett levantou a mo pronta para esbofetear a irm. -Suellen, se no me disser onde est a Mammy, desato aos gritos. Prissy puxou a manga de Scarlett. - Eu sabe onde est a Mammy, Miss Scarlett, eu sabe. Ela est muito doente, ento arranjamos aquele quartinho perto da cozinha para ela, aquele que era onde costumava estar todos os presuntos pendurados quando havia muitos presuntos. Estse l bem quentinho, perto da chamin. Ela j l estava quando eu vim, por isso no posso dizer que tambm arranjei o quarto, mas eu trazi uma cadeira para l para haver lugar para uma pessoa se sentar se ela quisesse levantar-se ou se houvesse visitas... Prissy falava para o ar. Scarlett estava porta do quarto de Mammy, apoiando-se na ombreira. Aquilo... aquela... coisa na cama no era a sua Mammy. A Mammy era uma mulher grande, forte e farta de carnes, com uma quente pele castanha. Tinham passado pouco mais de seis meses desde que Mammy deixara Atlanta, no era tempo

suficiente para a ter desgastado daquela maneira. No podia ser. Scarlett no podia suportar. Aquela no era a Mammy, no acreditava. Esta criatura estava cinzenta e encarquilhada, mal se notando o seu vulto por debaixo da manta de retalhos que a cobria. Os dedos retorcidos moviam-se lentamente entre as dobras. A pele de Scarlett arrepiou-se toda. Ento ouviu a voz de Mammy. Estava fraca e vacilante, mas era a voz adorada da Mammy. - Missy, no disse minina para no pr o p fora de casa sem usar um chapu e levar uma sombrinha? Disse e tornei a dizer... - Mammy! - Scarlett caiu de joelhos ao lado da cama. - Mammy, a Scarlett. A tua Scarlett. Por favor, Mammy, no adoeas, eu no posso suportar, tu no. - Pousou a cabea na cama, ao lado dos ombros magros e chorou copiosamente, como uma criana. Uma mo sem peso acariciou a sua cabea curvada. No chora, minina. No h nada to mau que no possa ser remediado. - Tudo... - lamentou-se Scarlett. - Correu tudo mal, Mammy. - V l, s uma xcara. E tem outro servio de ch, to bonito como esse. Ainda podes dar a tua festa, como a Mammy prometeu. Scarlett recuou, horrorizada. Olhou fixamente para Mammy e viu amor naqueles olhos encovados, olhos que no viam a ela. - No - murmurou. No conseguia agentar. Primeiro Melanie, depois Rhett e agora Mammy; todos os que amava a tinham deixado. Era cruel demais. No podia ser. - Mammy - disse em voz alta. - Mammy, me ouve. a Scarlett. Agarrou a ponta do colcho e tentou aban-lo. - Olha para mim - suspirou. - Para mim, para o meu rosto. Tem que me reconhecer, Mammy. Sou eu, Scarlett. As grandes mos de Will agarraram-lhe os pulsos. - No faa isso - disse ele. A sua voz era doce, mas segurava-a com mos de ferro. - Ela fica feliz quando est assim, Scarlett. Est outra vez em Savannah, tomando conta da tua me quando ela era pequena. Esses foram tempos felizes para ela. Era jovem; era forte; no tinha dores. Deixa estar. Scarlett lutou para se libertar. - Mas eu quero que ela me reconhea, Will. Eu nunca lhe disse o que ela significa para mim. Tenho que lhe dizer. - Vai ter a tua oportunidade. Muitas vezes ela est diferente, conhece todo mundo. Sabe tambm que est morrendo. Assim melhor. Agora vem comigo. Esto todos tua espera. A Delilah ouve a Mammy da cozinha. Scarlett deixou Will ajud-la a pr-se de p. Toda ela estava paralisada, at o corao. No sentia nada. Seguiu-o em silncio at sala de estar. Suellen comeou imediatamente a recrimin-la, retomando as suas queixas onde tinha parado, mas Will mandou-a calar-se. - Scarlett sofreu um duro golpe, Sue, deixa-a em paz. - Colocou usque num copo e o ps na mo de Scarlett. O usque ajudou. A sensao familiar de ardor espalhou-se pelo seu corpo, atenuando a dor. Estendeu o copo vazio a Will, e ele serviu-lhe um pouco mais. - Ol, queridos - disse aos filhos -, venham dar um abrao na me. - Scarlett ouviu a sua prpria voz; soava como se pertencesse a outra pessoa qualquer; mas, ao menos, estava dizendo o que devia. Passou todo o tempo que podia no quarto de Mammy, ao lado dela. Depositara todas as esperanas no conforto que os braos de Mammy lhe dariam, mas agora eram os seus jovens e fortes braos que seguravam a velha negra moribunda. Scarlett

levantava aquela massa informe para dar banho a Mammy, para lhe mudar os lenis, para a ajudar quando lhe custava respirar, para persuadi-la a deix-la meter-lhe algumas colheres de caldo na boca. Cantava as canes de embalar que Mammy lhe tinha cantado tantas vezes e quando ela, em delrio, falava falecida me de Scarlett, esta respondia-lhe com as palavras que pensava que a me teria dito. Por vezes, os olhos midos de Mammy reconheciam-na, e os lbios gretados da velha mulher sorriam com a viso da sua menina favorita. Depois, a sua voz trmula repreendia Scarlett, tal como tinha feito quando era criana. "O seu cabelo est todo despenteado, Miss Scarlett, agora v dar-lhe cem escovadelas como a Mammy lhe ensinou"; ou: "No devia vestir esse vestido todo amarrotado. V vestir alguma coisa limpa e engomada antes que algum a veja"; ou: "Tu parece plida que nem um fantasma, Miss Scarlett. Andaste pondo p-de-arroz na cara? V j lav-la imediatamente." O que quer que fosse que Mammy mandasse, Scarlett prometia fazer. No havia tempo suficiente para obedecer antes que Mammy ficasse de novo inconsciente ou voltasse a esse outro mundo de que Scarlett no fazia parte. Durante o dia, e noite, Suellen ou Dilcey, ou mesmo Will partilhavam a viglia, e Scarlett podia dormir uma meia hora de sono solto, enroscada na velha cadeira de balano. Mas noite fazia a viglia sozinha. Baixou a chama do candeeiro a leo e segurou nas suas as mos magras de Mammy. Enquanto a casa e Mammy dormiam, podia finalmente chorar, e as suas lgrimas de sofrimento aliviavam-lhe um pouco a dor. Uma vez, naquela hora calma antes do amanhecer, Mammy acordou. - Por que est tu chorando, querida? - murmurou ela. - A velha Mammy est pronta para pousar o seu fardo e repousar nos braos do Senhor. No preciso levar as coisas assim. - A sua mo agitou-se na de Scarlett, libertou-se e bateu na cabea curvada de Scarlett. - Pra, v. Nada to mau como voc pensa. - Desculpa - soluou ela. - No consigo parar de chorar. Os dedos retorcidos de Mammy puxaram o cabelo embaraado de Scarlett para trs. - Diga velha Mammy o que est a perturbar o seu cordeirinho. Scarlett olhou para aqueles queridos, sbios e velhos olhos e sentiu uma dor mais profunda do que j tinha alguma vez sentido. - Fiz tudo errado, Mammy. No sei como pude fazer tantas asneiras, no compreendo. - Miss Scarlett fez o que tinha que fazer. No pode ningum fazer mais do que isso. O bom Deus mandou-lhe alguns fardos pesados e voc carregou. No vale a pena perguntar por que que eles foram postos nos seus ombros ou o que lhe custou carreg-los. O que 't feito 't feito. No se aflija agora. - As pesadas plpebras de Mammy fecharam-se sobre as lgrimas que brilhavam na luz fraca, e a sua respirao irregular abrandou, at que adormeceu. "Como posso no me afligir?", quis Scarlett gritar. "A minha vida est destruda, e no sei o que fazer. Preciso de Rhett, e ele se foi embora. Preciso de voc, e est tambm me deixando." Levantou a cabea, limpou as lgrimas na manga e endireitou os ombros doloridos. As brasas do fogo estavam quase apagadas, e o balde do carvo estava vazio. Tinha que voltar a ench-lo, tinha que alimentar o fogo. O quarto estava comeando a gelar, e a Mammy tinha que estar sempre quente. Scarlett aconchegou a manta de retalhos j desbotada sobre a frgil forma de Mammy. Depois pegou o balde e saiu para a fria escurido do ptio. Apressou-se em direo ao depsito do carvo, desejando ter-se lembrado de pr um xale.

No havia luar, apenas um quarto crescente prateado e escondido por detrs de uma nuvem. O ar estava pesado com a umidade da noite, e as poucas estrelas que no estavam escondidas pelas nuvens pareciam muito longe e brilhavam como se fossem gelo. Scarlett estremeceu. A escurido sua volta parecia sem forma, infinita. Tinha corrido cegamente at o centro do ptio, e agora no conseguia distinguir as formas familiares da casa do fumeiro e do celeiro, que deviam estar perto. Voltou-se, subitamente em pnico, procurando a massa branca da casa que acabara de deixar. Mas tambm ela estava negra e sem forma. No se via luz em lado nenhum. Era como se estivesse perdida num mundo deserto e silencioso. Nada mexia na noite, nem uma folha, nem uma pena na asa de um pssaro. O terror abanou os seus nervos retesados e quis fugir dali. Mas para onde? Tudo ali era escurido desconhecida. Scarlett cerrou os dentes. Que idiotice era aquela? "Estou em casa, em Tara, e o vento escuro e frio ir embora logo que o Sol se levante." Tentou rir; o som agudo e pouco natural a fez dar um salto. "Dizem que sempre est mais escuro antes da madrugada", pensou ela. "Calculo que isto seja prova disso. Estou com uma enxaqueca, tudo. No vou ceder, no h tempo para isso, o fogo precisa de ser alimentado." Ps uma mo frente, apalpando a escurido, e caminhou em direo ao local onde o depsito do carvo deveria estar, perto da pilha de lenha. Uma cova no cho a fez tropear e caiu. O balde caiu com grande estrondo e se perdeu. Cada tomo exausto e assustado do seu corpo gritava-lhe que devia desistir. Devia ficar onde estava, abraando a segurana do cho invisvel debaixo de si, at que o dia raiasse e pudesse ver. Mas Mammy precisava do calor e da luz amarela e reconfortante das chamas que se viam atravs das janelas do fogo. Scarlett ps-se lentamente de joelhos e apalpou sua volta, procura do balde do carvo. Com certeza nunca tinha havido uma tal escurido no mundo. Nem mesmo uma noite com um ar to frio e mido. Abria muito a boca para respirar. Onde estaria o balde? Onde estaria a madrugada? Os seus dedos esbarraram com um metal frio. Gatinhou pelo cho em direo a ele. As mos abraaram as paredes enrugadas do balde. Sentou-se quieta e segurou-o junto ao peito, num abrao desesperado. "Oh, Senhor, estou completamente s avessas. No sei onde est a casa, muito menos a caixa do carvo. Estou perdida na noite." Olhou freneticamente em torno de si, procurando uma luz qualquer, mas o cu estava negro. At mesmo as frias e distantes estrelas tinham desaparecido. Por um momento, quis desatar a chorar. Gritar e gritar at acordar algum na casa, algum que acendesse uma luz, que viesse procur-la e a conduzisse para casa. O orgulho proibia-lhe isso. Perdida no seu prprio quintal, apenas a alguns passos da porta da cozinha! Nunca se esqueceria dessa vergonha. Passou a asa do balde pelo brao e comeou a rastejar desajeitadamente na terra escura. Mais cedo ou mais tarde iria de encontro a alguma coisa - casa, pilha de lenha, ao celeiro, ao poo e encontraria o caminho. Seria mais rpido levantar-se e caminhar. No se sentiria to idiota, mas podia cair de novo, e desta vez torcer um tornozelo, ou coisa do gnero. Ento, ficaria desamparada at que algum a encontrasse. No importava o que tivesse que fazer, qualquer coisa era melhor do que ficar ali sozinha, desamparada e perdida. - Onde haveria uma parede? Devia haver uma em algum lugar por ali. Parecia-lhe que tinha rastejado quase at Jonesboro. O pnico tocou-a levemente. E se a escurido nunca mais levantasse, se ela continuasse a rastejar e a rastejar para sempre, sem encontrar nada?

"Pra com isso!", disse a si prpria. "Pra com isso j!" A sua garganta fazia uns rudos abafados. Fez um grande esforo para se pr de p. Respirou lentamente e tentou que a cabea tomasse conta do seu corao sobressaltado. Era Scarlett O'Hara, disse a si prpria. Estava em Tara, e conhecia cada canto daquele lugar melhor que as suas prprias mos. Que mal fazia no conseguir ver dois palmos sua frente? Sabia o que l estava, tudo o que tinha a fazer era encontrar qualquer coisa. E faria isso pelos seus ps, no de gatas como um beb ou um co. Levantou o queixo e endireitou os ombros magros... Graas a Deus ningum a tinha visto estendida ao comprido na lama, avanando palmo a palmo, com medo de se levantar. Nunca em toda a sua vida tinha sido derrotada. Nem pelo exrcito do velho Sherman, nem pelo pior que os carpetbaggers (palavra com sentido depreciativo que designava pessoas vindas do Norte para tomar parte ativa na poltica no Sul dos Estados Unidos, entre 1860 e 1870.) podiam fazer. Ningum, nada poderia derrot-la, a no ser que ela o permitisse. Nesse caso, mereceria. A simples idia de estar com medo, no escuro, como uma qualquer choramingas covarde! "Acho que deixei as coisas me abaterem mais do que algum pode agentar", pensou com averso, e o seu prprio desdm reconfortou-a. "No deixarei que isto acontea de novo, nunca. No importa o que acontea. Uma vez que se foi at ao fundo, o caminho apenas pode melhorar. Se fiz da minha vida uma grande confuso, irei pr tudo em ordem. No vou ficar parada." Scarlett segurou o balde junto a si e caminhou em frente com passos firmes. Quase ao mesmo tempo o balde de lata bateu em qualquer coisa fazendo um barulho estridente. Riu alto quando sentiu o odor forte da resina nos pinheiros cortados pouco. Estava perto da pilha de lenha e o depsito do carvo era mesmo ali ao lado. Era exatamente o local onde tencionara ir. A porta de ferro do fogo fechou-se sobre as chamas renovadas. O estrondo da porta ao fechar fez Mammy agitar-se na cama. Scarlett apressou-se a aconchegar-lhe novamente a manta. O quarto estava frio. Mammy, por entre a sua dor, olhou de soslaio para Scarlett. - Tu tem a cara suja, e as mos tambm - murmurou com a voz enfraquecida. - Eu sei - disse Scarlett. - Vou j lav-las. - Antes que a velha mulher sucumbisse, Scarlett beijou-lhe a testa . - Amo-te, Mammy. - No precisa me dizer o que eu j sabe... - Mammy caiu de novo no sono, fugindo dor. - Sim, preciso - disse-lhe Scarlett. Sabia que Mammy no podia ouvi-la, mas falou alto, para si. - necessrio. - Nunca disse a Melanie, e nunca disse a Rhett, at que foi tarde demais. Nunca tive tempo para saber que os amava, nem a ti. Ao menos contigo no cometerei o erro que fiz com eles. Scarlett olhou fixamente para a cara cadavrica da velha mulher moribunda. - Amo-te, Mammy! - sussurrou. - Que vai ser de mim quando no te tiver para me amar?

2A porta do quarto da doente abriu-se com estrondo e a cabea de Prissy espreitou de lado. - Miss Scarlett? Mr. Will diz para eu vir ficar com a Mammy enquanto vai tomar o caf da manh. Delilah diz que tu vai se esgotar com toda essa viglia, e ela arranjoulhe uma bela fatia de presunto com molho para as suas papas de milho. - Onde est o caldo de carne para a Mammy? - perguntou Scarlett imediatamente - A Delilah sabe que tem de trazer um caldo quente logo de manh. - Tenho aqui mesmo na mo. - Prissy empurrou a porta com o cotovelo, o tabuleiro sua frente. - Mas a Mammy est dormindo, Miss Scarlett. Vai acord-la para beber o caldo? - Mantm tapado e pe o tabuleiro junto ao fogo. Dou-Ihe quando voltar. Scarlett sentiu-se esfomeada. O rico aroma que se evaporava do caldo deu-lhe clicas no estmago, de to vazio que estava. Lavou a cara e as mos na cozinha. O vestido tambm estava sujo, mas servia para agora. Vestiria um limpo depois de ter comido. Will estava mesmo levantando-se da mesa quando Scarlett entrou na sala de jantar. Os agricultores no podem perder tempo. O dourado sol da manh, do lado de fora da janela, prometia um dia radiante e quente. - Posso ajud-lo, tio Will? - perguntou Wade, esperanoso. Saltou da cadeira e quase a derrubou. Viu ento a me e o seu rosto perdeu o ar ansioso. Teria que ficar sentado mesa e usar as suas melhores maneiras, ou ela ficaria zangada. Movimentou-se lentamente para puxar a cadeira a Scarlett. - Que boas maneiras tens, Wade - disse Suellen, lisonjeira. - Bom dia, Scarlett, no se sentes orgulhosa do seu jovem cavalheiro? Scarlett olhou estupefata para Suellen e depois para Wade. Meu Deus, ele era apenas uma criana! Que diabo quereria Suellen com aquela doura forada? Pela maneira como falava, parecia que Wade era um parceiro de dana com o qual se podia namoriscar. Reparou com surpresa que ele era um belo rapaz. Era alto de mais para a sua idade; parecia ter 13 anos, apesar de ainda no ter 12. Suellen no acharia isso to bom se tivesse que comprar as roupas que lhe deixavam de servir to depressa. "Meu Deus! Que vou eu fazer sobre das roupas de Wade? Rhett que faz sempre o que preciso. No sei o que os rapazes vestem, nem onde comprar essas coisas. Os pulsos j saem fora das mangas, provavelmente, precisa de um tamanho maior. E rpido. A escola deve esta comeando, se que no comeou j. Nem sequer sei qual a data de hoje." Scarlett deixou-se cair na cadeira que Wade segurava. Esperava que ele fosse capaz de lhe dizer tudo o que precisava saber. Mas primeiro tomaria o caf. - Me d tanta gua na boca que me parece que estou gargarejando. Obrigada, Wade Hampton - disse de forma ausente. O presunto tinha timo aspecto. Era rosado e suculento e a gordura que o envolvia estava tostada e estaladia. Deixou cair o guardanapo no colo sem se preocupar em desdobr-lo e pegou a faca e o garfo. - Me? - disse Wade cautelosamente. - Sim? - Scarlett cortou o presunto. - Posso ir ajudar o tio Will nos campos, por favor? Scarlett quebrou uma regra de ouro das boas maneiras mesa e falou com comida na boca. O presunto estava delicioso.

- Sim, podes ir. - As suas mos estavam ocupadas cortando outro pedao. - Eu tambm - assobiou Ella. - Eu tambm - ecoou Susie, filha de Suellen. - No foi convidada - disse Wade. - O campo coisa de homens. As meninas ficam em casa. Susie desatou a chorar. - V o que fez! - disse Suellen a Scarlett. - Eu? No a minha filha que est fazendo essa barulheira toda. - Scarlett procurava sempre evitar as discusses com Suellen, quando vinha a Tara, mas os hbitos de uma vida inteira eram fortes demais. Tinham comeado a brigar desde que eram bebs e nunca tinham realmente parado. "No vou deix-la arruinar a minha primeira refeio. Sabe Deus h quanto tempo estou com fome", pensou Scarlett; e concentrou-se em espalhar manteiga sobre o monte brilhante formado pelas papas de milho no prato sua frente. Nem mesmo levantou os olhos quando Wade seguiu Will porta afora e os lamentos de Ellen se juntaram aos de Susie. - Calem-se as duas! - gritou Suellen. Scarlett deitou molho de presunto sobre as papas, amontoadas sobre outro pedao de presunto, e desfez o arranjo com o garfo. - O tio Rhett deixava-me ir - resmungou Ella. "No vou dar-lhe ouvidos", pensou Scarlett. "Vou fechar os ouvidos e saborear o meu caf." Encheu a boca de presunto, papas e molho. - Me... me, quando que o tio Rhett vem para Tara? - A voz de Ella penetrava de uma forma aguda nos seus ouvidos. Scarlett ouviu as palavras dela, apesar de tudo, e a deliciosa comida tornou-se serragem na sua boca. Que dizer? Como podia responder pergunta de Ella? "Nunca!" Era essa a resposta? No podia, nem ela prpria acreditaria nisso. Olhou com repugnncia para a face rosada da filha. Ella tinha estragado tudo. "No podia ao menos ter me deixado em paz at eu acabar o caf?" Ella tinha o cabelo ruivo e encaracolado do pai, Frank Kennedy. Os cabelos espetavam-se volta da sua face manchada pelas lgrimas como se fossem rolos de arame enferrujado. Por mais que Prissy os acamasse com gua, escapavam-se sempre das apertadas tranas que lhe fazia. O corpo de Ella tambm parecia feito de arame. Era muito magro e rgido. Era mais velha que Susie. Tinha quase sete anos, enquanto Susie tinha seis e meio. Mas Susie j tinha um palmo a mais de altura e era to mais forte que podia brigar com Ella impunemente. "No admira que Ella queira que Rhett venha", pensou Scarlett. "Ele gosta mesmo dela e eu no. Irrita-me, tal como Frank me irritava, e por mais que tente no consigo am-la." - Quando que o tio Rhett vem, me? - perguntou Ella, de novo. Scarlett arredou a cadeira da mesa e levantou-se. - Isso coisa de gente crescida - disse. - Vou ver como est a Mammy. - No suportava pensar em Rhett agora. Pensaria em tudo isso mais tarde, quando no estivesse to aborrecida. Era mais importante, muito mais, fazer a Mammy engolir o caldo. - S mais uma colherada, Mammy querida, vai fazer-me feliz. A velha mulher afastou a cabea da colher. - Cansada... - suspirou. - Eu sei - disse Scarlett -, eu sei. Dorme, ento, no te incomodo mais. Olhou para a tigela quase cheia. Mammy comia menos de dia para dia.

- Miss Ellen... - chamou Mammy debilmente. - Estou aqui, Mammy - replicou Scarlett. Ficava sempre magoada de cada vez que Mammy no a reconhecia, quando pensava que as mos que a tratavam to carinhosamente eram as mos da me de Scarlett. "No deveria deixar que isto me perturbasse", dizia-se Scarlett todas as vezes. "Foi sempre a me quem tratou dos doentes, no eu. A me era delicada para todos, era um anjo, uma perfeita senhora. Eu devia aceitar como um elogio o ser confundida com ela. Se calhar vou para o Inferno por ter cimes de a me a ter amado mais... s que j no acredito muito no Inferno... nem no Cu." - Miss Ellen... - Estou aqui, Mammy. Estou aqui, Mammy. Mammy entreabriu os seus olhos velhos, velhos. - Tu no Miss Ellen. - Sou a Scarlett, Mammy, a tua Scarlett. - Miss Scarlett... Eu quer Mist' Rhett. Uma coisa para dizer... Scarlett mordeu os lbios. Chorava silenciosamente. - Eu tambm o quero muito. Mas ele foi-se, Mammy, No posso dar o que tu queres. Reparou que Mammy tinha entrado de novo num estado prximo do coma e ficou imensamente agradecida. Pelo menos, Mammy no tinha dores. O seu prprio corao doa-lhe como se estivesse cravejado de facas. Como precisava de Rhett, especialmente agora que a Mammy se encaminhava cada vez mais para a morte. "Se ele estivesse aqui, comigo, sentindo a mesma mgoa que eu sinto..." Rhett amava Mammy e ela tambm o amava. Rhett dizia que nunca tinha se esforado tanto na vida por ter algum do seu lado, nem se tinha importado tanto com a opinio de algum quanto se importava com a dela. Ficaria desolado quando soubesse que Mammy tinha partido, desejaria tanto ter podido dizer-lhe adeus... Scarlett ergueu a cabea e arregalou os olhos. Claro. Que parva estava sendo. Olhou para aquela mulher velha e definhando, to pequena e leve debaixo da colcha. - Oh, Mammy, querida, obrigada - suspirou. - Vim para junto de ti em busca de ajuda, porque tu pes tudo de novo em ordem, e vais ajudar-me, tal como sempre fizeste. Encontrou Will no estbulo escovando o cavalo. - Oh, ainda bem que te encontrei, Will - disse Scarlett. Os seus olhos verdes lanavam fascas e as suas faces estavam naturalmente ruborizadas, mais do que com o rouge que costumava usar. - Posso usar o cavalo e a carruagem? Preciso ir a Jonesboro. A menos que estejas arrumando-a para ires a Jonesboro tratar de alguma coisa... Estavas? - susteve a respirao enquanto esperava pela resposta dele. Will olhou para ela calmamente. Entendia Scarlett melhor que ela pensava. - H alguma coisa que possa fazer por ti? Isto no caso de eu estar planejando ir a Jonesboro... - Oh, Will, s to adorvel. Preferia ficar com a Mammy, mas preciso muito de avisar Rhett do estado dela. Ela pergunta muito por ele e ele sempre gostou tanto dela, que eu nunca me perdoaria se no lhe fizesse a vontade. - Scarlett brincava com a crina do cavalo. - Ele est em Charleston tratando de negcios da famlia; a me mal pode dar um passo sem pedir o conselho de Rhett. Scarlett olhou para cima, para o rosto inexpressivo de Will, e virou a cara. Comeou a entranar pedaos da crina, atenta a essa atividade como se fosse de importncia vital.

- Se pudesses mandar-lhe um telegrama... eu dou-te o endereo. E melhor seres tu a envi-lo, Will. Rhett sabe o quanto eu adoro a Mammy. capaz de pensar que eu estava a exagerar a gravidade da doena dela - Ergueu a cabea e sorriu jovialmente. Ele acha que eu no tenho mais juzo que um besouro. Will sabia que aquela era a maior de todas as mentiras. - Acho que tens razo - disse lentamente. - Rhett deve vir o mais depressa que possa. Vou j a cavalo; mais rpido que de carruagem. As mos de Scarlett descontraram-se. - Obrigada - respondeu. - Tenho o endereo aqui no bolso. - Estarei de volta na hora do jantar - disse Will. Tirou a sela do local onde estava. Scarlett ajudou-o. Sentia-se cheia de energia. Estava certa de que Rhett viria. Poderia estar em Tara dentro de dois dias se sasse de Charleston logo que recebesse o telegrama. Passaram dois dias e Rhett no chegou. Passaram trs, quatro, cinco. Scarlett deixou de esperar o som das rodas ou o bater dos cascos na entrada. Estava exausta de tanto se esforar por ouvir esse som. E agora havia outro som que chamava toda a sua ateno, o som horrvel do esforo feito por Mammy para respirar. Parecia impossvel que aquele corpo frgil e gasto pudesse arranjar fora suficiente para fazer entrar ar nos pulmes e faz-lo sair de novo. Mas ela fazia-o, repetidamente. Os tendes do pescoo engelhado estavam tensos e tremiam. Suellen juntou-se viglia de Scarlett. - Ela tambm a minha Mammy, Scarlett - Os cimes e crueldades amontoados ao longo das suas vidas estavam agora esquecidos na necessidade conjunta de ajudar a velha negra. Trouxeram todas as almofadas da casa para a apoiar e mantiveram a chaleira sempre fervendo. Espalharam manteiga nos lbios gretados, meteram colheradas de gua entre eles. Mas nada aliviava a luta de Mammy. Ela olhava para ambas com piedade. - No se esgotem - respirou com dificuldade. - No podem fazer nada. Scarlett ps os dedos nos lbios de Mammy. - Chiu! - implorou. - No tentes falar. Guarda as tuas foras. - "Porqu, oh, porqu?" Enfureceu-se com Deus em silncio. "Por que no a pudeste deixar morrer com calma, quando ela vagueava no passado? Por que tiveste que acord-la e deix-la sofrer tanto? Foi boa toda a sua vida, fazendo sempre tudo pelos outros e nunca por si prpria. Merece melhor que isto, nunca mais curvo a cabea perante Ti enquanto viver." Lia alto a Mammy passagens da Bblia muito usada que estava na mesa-decabeceira. Lia os salmos, e a sua voz no dava sinal da dor e da raiva do seu corao. Quando a noite caiu, Suellen acendeu o candeeiro e substituiu Scarlett, lendo, virando as finas pginas, lendo. Ento, Scarlett tomava o seu lugar. E depois Suellen, at que Will a chamou para descansar. - Tu tambm, Scarlett - disse ele. - Eu fico com a Mammy. No sou um grande leitor, mas sei muitas passagens da Bblia de cor. - Recita, ento. Mas eu no deixo a Mammy. No posso. Sentou-se no cho e encostou as costas cansadas parede, escutando os aterradores sons da morte. Quando a primeira luz do dia surgiu nas janelas, os sons tornaram-se subitamente diferentes. Cada inspirao era mais ruidosa e maiores os silncios entre cada uma. Scarlett ps-se imediatamente de p. Will levantou-se da cadeira. - Vou chamar Suellen! - exclamou. Scarlett retomou o seu lugar ao p da cama.

- Queres que segure a tua mo, Mammy? Deixa-me pegar-lhe. A testa de Mammy enrugou-se com o esforo. - To... cansada. - Eu sei, eu sei. No te canses mais falando. - Queria... esperar por... Mist' Rhett. Scarlett engoliu em seco. No podia chorar agora. - No precisas esperar Mammy. Podes descansar. Ele no pode vir. - Ouviu passos apressados na cozinha. - Suellen vem a caminho. E Mister Will tambm. Estaremos todos aqui contigo, querida. Todos te amamos. Uma sombra caiu sobre a cama e Mammy sorriu. - Ela quer a mim - disse Rhett. Scarlett ergueu os olhos para ele, incrdula. - Sai da - disse ele delicadamente -, deixa-me chegar perto de Mammy. Scarlett ps-se de p. Os seus joelhos fraquejaram ao sentir a proximidade dele, a sua grandeza, a fora e a masculinidade. Rhett passou sua frente e ajoelhou-se ao p de Mammy. Ele viera. Tudo ia ficar bem. Scarlett ajoelhou-se ao seu lado. O ombro dela tocava-lhe no brao e Scarlett sentiu-se feliz, apesar da tristeza por causa de Mammy. Ele viera; Rhett estava ali. "Que idiota fui em ter perdido a esperana daquela maneira." - Quero que tu faa uma coisa para mim - dizia Mammy. A voz dela era forte, como se tivesse guardado as suas foras para aquele momento. A respirao era profunda e rpida, quase palpitante. - Tudo, Mammy - disse Rhett. - Farei o que quiseres. - Enterra-me com aquela combinao de seda vermelha que me deste. Trata disso Eu sei que a Lutie j anda com o olho nela. Rhett sorriu. Scarlett estava chocada. Como podia ele rir com a Mammy a morrer? Ento, percebeu que a Mammy tambm estava a rir, sem fazer qualquer som. Rhett ps a sua mo no peito. - Juro-te que Lutie nunca lhe por a vista em cima, Mammy. Vou fazer que ela v contigo para o cu. Mammy esticou as mos na direo dele, acenando-lhe para aproximar o ouvido mais prximo dos seus lbios. - Tome conta de Miss Scarlett - disse ela. - Precisa de carinho e eu no posso dar-lhe mais. Scarlett susteve a respirao. - Tomarei conta dela, Mammy - respondeu Rhett. - Jura isso - A ordem era tmida, mas firme. - Eu juro - replicou Rhett. Mammy suspirou calmamente. Scarlett deixou a sua respirao sair com um soluo. - Oh, Mammy querida, obrigada - gritou. - Mammy... - Ela no te pode ouvir, Scarlett, foi-se - Rhett passou a sua grande mo, com delicadeza, pelo rosto de Mammy e fechou-lhe os olhos. - Foi todo um mundo que se acabou, uma era. - Disse ele suavemente. - Que descanse em paz. - Amm - disse Will da entrada. Rhett ps-se de p e virou-se. - Ol, Will e Suellen. - O seu ltimo pensamento foi para ti, Scarlett! - exclamou Suellen. - Sempre foste a favorita dela. - Comeou a chorar copiosamente. Will tomou-a nos braos e abraoua contra o peito, dando-lhe pancadinhas nas costas. Scarlett correu para Rhett e ergueu os braos para o abraar.

- Senti muito a tua falta - disse ela. Rhett pegou-lhe nos braos e puxou-os para baixo. - No, Scarlett - disse ele. - Nada mudou. - A voz dele era calma. Scarlett era incapaz de tal constrangimento. - Que queres dizer com isso? - gritou. Rhett retraiu-se. - No me faas repeti-lo, Scarlett. Sabes muito bem o que quero dizer. - No sei. No acredito em ti. No podes deixar-me, no podes. No numa altura destas, em que preciso de ti to desesperadamente. Eu amo-te. Oh, Rhett, no olhes para mim assim. Por que no me abraas e me consolas? Prometeste Mammy. Rhett abanou a cabea com um sorriso desmaiado nos lbios. - s to infantil, Scarlett. J me conheces h tanto tempo e mesmo assim, quando queres, esqueces tudo o que aprendeste. Era uma mentira. Menti para tornar felizes os ltimos momentos de uma pessoa querida. Lembra-te, meu tesouro, eu sou um canalha, no um cavalheiro. Rhett caminhou em direo porta. - No vs Rhett, por favor - suplicou Scarlett. Colocou ambas as mos sobre a boca e calou-se. Nunca mais seria capaz de se respeitar se lhe implorasse de novo. Voltou a cabea decididamente, incapaz de suportar a viso da partida de Rhett. Viu nos olhos de Suellen uma alegria triunfante e nos de Will viu pena. - Ele vai voltar - disse ela, mantendo a cabea bem erguida. - Ele volta sempre "Se o disser muitas vezes", pensou, "talvez consiga acreditar. Talvez se torne verdade." - Sempre - disse ela. Respirou fundo. - Onde est a combinao de Mammy, Suellen? Quero ter certeza de que Mammy vai ser enterrada com ela. Scarlett conseguiu manter o controle at que a penosa tarefa de dar banho e vestir o corpo de Mammy terminou. Mas quando Will trouxe o caixo, comeou a tremer. Fugiu dali sem uma palavra. Encheu metade do copo com usque que tirou da garrafa de mesa, na sala de jantar. Bebeu-o em trs goles. O calor da bebida percorreu o seu corpo exausto e os tremores cessaram. "Preciso de ar", pensou. "Preciso de sair desta casa, para longe de todos eles." Podia ouvir as vozes assustadas das crianas, na cozinha. Os nervos gelaram-lhe a pele. Pegou nas saias, ergueu-as e correu para longe. L fora, o ar da manh era fresco e calmo. Scarlett respirou profundamente, saboreando a frescura do ar. Uma brisa leve levantou o cabelo que se pegara ao seu pescoo suado. Quando fora a ltima vez que escovara o cabelo cem vezes? No se lembrava. Mammy ficaria furiosa. Oh! Apertou os ns dos dedos contra a cabea, para conter o sofrimento, e tropeou nas ervas altas da pastagem, indo pela colina abaixo at aos bosques altos que marginavam o rio. Os pinheiros, com os seus altos picos, exalavam um cheiro doce. Faziam sombra sobre um fofo e espesso tapete de agulhas esbranquiadas, cadas dos pinheiros ao longo de centenas de anos. Abrigada por eles, Scarlett estava sozinha, sem que a pudessem ver da casa. Encolheu-se no cho almofadado, fatigada. Depois instalou-se numa posio confortvel, com as costas contra o tronco de uma rvore. Tinha que pensar; devia haver alguma maneira de salvar a sua vida da runa. Recusou-se a pensar de forma diferente. No conseguia impedir a sua mente de vaguear. Estava to confusa, to cansada. J antes se tinha sentido cansada. Mais cansada que agora. Quando teve que vir de Atlanta para Tara, com o exrcito ianque por todos os lados, no deixou que o

cansao a fizesse parar. Quando teve que roubar comida por todo o lado, no desistiu por as suas pernas e braos serem como dois pesos mortos puxando por ela. Quando apanhou algodo at as mos ficarem em carne viva, quando se agarrou ao arado como se fosse uma mula, quando teve que encontrar foras para continuar, apesar de tudo, no desistiu por estar cansada. No ia desistir agora. Desistir no estava na sua natureza. Olhou fixamente em frente, fazendo face a todos os seus demnios. A morte de Melanie... a morte de Mammy... Rhett a deix-la, dizendo que o seu casamento estava morto. Isso era o pior. A partida de Rhett. Era isso que tinha que encarar. Ouviu a sua voz. - Nada mudou. No podia ser verdade!... Mas era. Tinha que arranjar maneira de o reconquistar. Sempre tinha sido capaz de ter qualquer homem que quisesse, e Rhett era um homem como qualquer outro, no era? No, ele no era como outro homem qualquer, era por isso que o queria. Um medo sbito f-la estremecer. E se no ganhasse desta vez? Sempre tinha vencido, de uma maneira ou de outra. Sempre tivera o que queria, de alguma maneira. At agora. Um pssaro gritou roucamente. Scarlett olhou para cima e ouviu um segundo grito de escrnio. - Deixa-me em paz - gritou. O pssaro voou para longe, num bater de asas azulgarrido. Tinha que pensar, lembrar o que Rhett tinha dito. No nessa manh ou na noite anterior ou quando quer que Mammy morrera. "Que foi que ele disse em nossa casa, na noite em que deixou Atlanta? Ele falou e continuou a falar, explicando as coisas. Estava to calmo, to paciente quanto se pode ser com as pessoas com quem no nos importamos o suficiente para nos zangarmos com elas." A sua mente foi buscar uma frase quase esquecida, e alheou-se da sua exausto. Tinha encontrado o que precisava. Sim, sim, lembrava-o claramente. Rhett tinha-lhe oferecido o divrcio. Ento, depois da furiosa rejeio dela, tinha-o dito. Scarlett fechou os olhos, imaginando ouvir a voz dele. "Voltarei com a freqncia suficiente para impedir os mexericos." Ela sorriu. No tinha vencido ainda, mas havia uma hiptese disso acontecer. E isso era suficiente para continuar. Levantou-se, sacudiu as agulhas dos pinheiros dos cabelos e do vestido. Devia estar toda suja e amarrotada. As guas amarelas e barrentas do rio Flint corriam lenta e profundamente debaixo da salincia em que se encontravam os pinheiros. Scarlett olhou para baixo e atirou uma mo-cheia de agulhas de pinheiro. As agulhas foram corrente abaixo, fazendo remoinhos. - Sempre andando - murmurou. - Tal como eu. No olhes para trs, o que est feito, feito est. Vai em frente. - Olhou de soslaio para o cu. Uma fila de brilhantes nuvens brancas estava passando. Pareciam todas cheias de vento. "Vai esfriar", pensou automaticamente. " melhor arranjar algo quente para usar esta tarde, no funeral." Virou-se em direo casa. Tinha que voltar para l, para se arrumar. Estar arrumada era uma coisa que devia a Mammy. Irritava-se sempre quando Scarlett estava desarrumada.

3Scarlett desequilibrou-se. J devia ter estado assim to cansada alguma vez na vida, mas no se recordava. Estava cansada demais para se lembrar. "Estou farta de funerais, estou farta de mortes, estou farta de ver a minha vida ir por gua abaixo, pea por pea, deixando-me completamente s." O cemitrio de Tara no era muito grande. O caixo de Mammy parecia grande, muito maior que o de Melly, pensou Scarlett, sem nexo. Mas Mammy tinha encolhido tanto que provavelmente j no era to grande. No precisava de um caixo assim. O vento era cortante, apesar de o cu estar azul e o sol brilhar. Folhas amarelecidas rolavam no cho, sopradas pelo vento. "O Outono est chegando, se que no chegou j", pensou. Costumava adorar o Outono no campo. Enquanto andava a cavalo pelos bosques, a terra parecia coberta de ouro e o ar cheirava a cidra. "J l vai tanto tempo. No voltou a haver um cavalo como deve ser em Tara desde que o pap morreu." Olhou para as lpides. Gerald O'Hara, nascido em County Meath, na Irlanda. Ellen Robillard O'Hara, nascida em Savannah, na Gergia. Gerald O'Hara, Jr. Trs pedras minsculas, todas semelhantes. Os irmos que nunca tinha conhecido. Ao menos Mammy estava sendo enterrada ali, perto de "Miss Ellen", o seu primeiro amor, e no no pedao de terra em que os escravos eram enterrados. "Suellen gritou que se fartou, mas eu ganhei aquela briga, assim que Will se ps do meu lado. Quando Will se impe, a vontade dele prevalece. uma pena que ele seja to obstinado e no me deixe dar-lhe dinheiro. A casa tem um aspecto horrvel. O mesmo se passa com o cemitrio. H ervas daninhas por todo o lado, tem um aspecto desolador. Este funeral desolador, Mammy t-lo-ia detestado. Aquele pregador negro no pra de falar, e aposto que nem sequer a conhecia. Mammy no perderia tempo com as palavras dele. Ela era catlica romana, todos na casa Robillard o eram, exceto o av, e esse no tinha muito que dizer, a julgar pelas palavras de Mammy. Deveramos ter arranjado um padre, mas o mais prximo est em Atlanta e teria levado dias. Pobre Mammy. Pobre me. Morreu e foi enterrada sem padre. O pap tambm, mas isso tambm no importou muito a ele. Costumava dormitar enquanto a me fazia as oraes todas as noites." Scarlett olhou para o desleixado cemitrio e depois para a desoladora fachada da casa. "Ainda bem que a me no est aqui para ver isto", pensou, sentindo subitamente dor e fria ao mesmo tempo. "Isto destroar-lhe-ia o corao." Scarlett conseguiu, por um momento, ver a forma alta e graciosa da me to claramente como se Ellen O'Hara estivesse entre as pessoas que acompanhavam o funeral. A me estava sempre impecavelmente arranjada, com as suas brancas mos ocupadas costurando, ou enluvadas, pronta para sair numa das suas visitas de misericrdia. A voz dela era sempre suave e andava sempre ocupada na tarefa infindvel que era manter, sob a sua orientao, a ordem perfeita da vida em Tara. "Como que ela fazia isso?" Scarlett chorou silenciosamente. "Como conseguia tornar o mundo to belo, sempre que ali estava? ramos todos to felizes nessa altura. No importava o que acontecesse, a me conseguia que tudo estivesse bem. Queria tanto que ela ainda estivesse aqui! A me me abraaria e todos os problemas desapareceriam. No, no. No queria que ela aqui estivesse aqui. Ver tudo o que aconteceu a Tara, o que me aconteceu a mim, iria faz-la muito triste. Ficaria desapontada comigo e eu no poderia suport-lo. Tudo, menos isso. No vou pensar nisso, no devo. Pensarei em qualquer outra coisa. Ser que a Delilah teve o bom senso de arranjar alguma coisa para as pessoas comerem depois do enterro? Suellen no teria pensado nisso, e de qualquer modo mesquinha demais para gastar dinheiro numa refeio leve."

"No que isso lhe tivesse custado muito, no est aqui quase ningum. No entanto, o pastor negro tem ar de quem consegue comer por vinte. Se ele no pra de falar em repousar no seio de Abrao e na travessia do rio Jordo, dou um grito. Aquelas trs mulheres raquticas a que ele chama coro, so as nicas pessoas aqui que no parecem embaraadas. Que coro! Espirituais e pandeiros! A Mammy devia ter algo solene, em latim, e no Climbing Jacob's Ladder. Oh! tudo to pobre. Ainda bem que no est quase ningum aqui, s Suellen, Will, eu, as crianas e os criados. Pelo menos, todos ns amvamos realmente a Mammy e sofremos com a sua partida. Os olhos de Big Sam esto vermelhos de tanto chorar. Olhem para o pobre Pork, chorando muito tambm. Vejam s, o cabelo dele est quase branco; no o imaginava to velho. Dilcey no parece ter a idade dela, qualquer que seja; no mudou nem um pouco desde que veio para Tara..." A mente exausta e vagueante de Scarlett aguou-se subitamente. O que estavam Pork e Dilcey fazendo ali? J no trabalhavam em Tara havia anos; desde que Pork se tornara o criado de Rhett, e Dilcey, a mulher, fora para casa de Melanie, como ama de Beau. "Como apareceram aqui em Tara? No havia maneira de eles terem tido conhecimento da morte de Mammy, a no ser que Rhett lhes tivesse dito." Scarlett olhou por cima do ombro. Rhett teria voltado? No havia sinais dele. Assim que a cerimnia terminou, foi direita a Pork. Suellen e Will que lidassem com o fastidioso pregador. - um dia triste, Miss Scarlett. - Os olhos de Pork estavam ainda cheios de lgrimas. - sim, Pork - retorquiu Scarlett. No devia precipitar-se, ou, ento, nunca descobriria o que queria saber. Scarlett caminhou lentamente ao lado do velho criado negro, ouvindo as suas lembranas de Mist' Gerald, de Mammy e dos primeiros dias em Tara. Esquecera-se de que Pork tinha estado com o seu pai tanto tempo. Ele tinha vindo para Tara com Gerald, quando aqui no havia mais do que um velho edifcio queimado e os campos tinham se tornado matagais. "Bom, Pork deve ter setenta anos, ou mais." Aos poucos, foi arrancando as informaes que queria. Rhett tinha voltado a Charleston, para ficar. Pork tinha embalado e enviado todas as roupas de Rhett para a estao, a fim de serem embarcadas. Foi a sua ltima obrigao como criado de Rhett. Agora estava reformado, com uma penso que lhe dava para ter um pedao seu, onde quisesse. - Posso sustentar a minha famlia tambm - disse Pork com orgulho. Dilcey nunca mais precisaria trabalhar e Prissy teria algo a oferecer a qualquer homem que quisesse casar com ela. - Prissy no nenhuma beleza, Miss Scarlett, e j vai fazer vinte e cinco anos, mas com uma herana, pode arranjar marido to facilmente como qualquer rapariga bonita que no tenha dinheiro. Scarlett sorriu e concordou com Pork que "Mist' Rhett" era um distinto cavalheiro. Por dentro, Scarlett estava furiosa. A generosidade daquele distinto cavalheiro estava estragando-lhe tudo. Quem ia tomar conta de Wade e Ella, quando Prissy fosse embora? E como iria fazer para arranjar uma boa ama para Beau? Ele tinha acabado de perder a me, o pai estava meio doido com o sofrimento, e a nica pessoa com um pouco de juzo naquela casa ia embora tambm. Desejou poder partir e recomear, deixando tudo e todos para trs. "Me de Deus! Vim para Tara para descansar um pouco, para pr a minha vida em ordem, e s encontrei mais problemas para resolver. Ser que alguma vez terei paz?" Calma e firmemente, Will providenciou a Scarlett esse descanso. Mandou-a para a cama e deu ordens para que no fosse incomodada. Scarlett dormiu quase dezoito

horas e acordou com um plano claro por onde comear. - Espero que tenhas dormido bem - comentou Suellen quando a irm desceu para o caf da manh. A voz dela era doentiamente adocicada. - Devias estar terrivelmente cansada, depois de tudo o que passaste. - Agora que Mammy estava morta, as trguas tinham acabado. Os olhos de Scarlett brilharam perigosamente. Sabia o que Suellen pensava da cena vergonhosa que fizera, implorando a Rhett para no a deixar. Mas quando respondeu a Suellen, as suas palavras foram igualmente doces. - Mal pousei a cabea na almofada, adormeci. O ar do campo to calmante e revigorante - "Grande mazinha", acrescentou mentalmente. O quarto que ainda considerava seu pertencia agora a Susie, a filha mais velha de Suellen, e Scarlett sentiu-se uma intrusa. Tinha certeza de que Suellen tambm o sabia. Mas no importava. Precisava ficar bem com ela para prosseguir o seu plano. Sorriu irm. - Onde est a piada, Scarlett? Tenho uma mosca no nariz ou qu? A voz de Suellen irritou Scarlett, mas manteve o sorriso. - Desculpa, Suellen. Estava lembrando-me de um sonho idiota que tive a noite passada. Sonhei que ramos todos crianas outra vez e que a Mammy estava me aoitando as pernas com uma vara de pessegueiro. Lembras-te de como essas varas machucavam? Suellen sorriu. - Claro que me lembro. Lutie usa-as com as meninas. Quase posso sentir a dor nas minhas prprias pernas quando ela o faz. Scarlett olhou para o rosto da irm. - At me admira no ter um monte de cicatrizes - disse ela. - Era uma menina to m, no sei como que tu e Careen conseguiam me aturar - espalhou manteiga num biscoito como se isso fosse a sua nica preocupao. Suellen olhou-a com desconfiana. - Tu atormentavas-nos realmente, Scarlett. E arranjavas sempre maneira de as brigas parecerem ser provocadas por ns. - Eu sei. Eu era impossvel. Mesmo quando ramos mais velhas. Tratei-vos como mulas quando tivemos que apanhar o algodo depois dos ianques terem roubado tudo. - Quase nos mataste. Estvamos como mortas com a febre tifide, e tu arrastavas-nos da cama para nos mandares para os campos, torreira do sol... Suellen ia ficando mais animada e mais veemente, medida que repetia todas as recriminaes guardadas durante anos. Scarlett assentiu, encorajando-a com murmrios de contrio. "Como ela gosta de se lamuriar", pensou. "Precisa disso como de po para a boca." Esperou que a irm abrandasse, antes de dizer: - Sinto-me to mesquinha, mas no h nada que eu possa fazer para vos compensar por tudo o que vos fiz passar. Will est sendo preverso no me deixando dar-vos dinheiro. No fim de contas, para Tara, e Tara tambm a minha casa. - J lhe disse isso centenas de vezes - replicou Suellen. "Aposto que sim", pensou Scarlett. - Os homens so to teimosos - retorquiu. - Suellen, acabo de me lembrar de uma coisa. Diz que sim, era uma bno para mim se o fizesses. Will no poderia aborrecer-se com isso. E se eu deixasse a Ella e o Wade aqui e vos enviasse dinheiro para o sustento deles? A vida na cidade tornou-os preguiosos e o ar do campo lhes faria maravilhas. - No sei, Scarlett. Quando o beb nascer vamos ser demais aqui. - Suellen era gananciosa, mas prudente.

- Eu sei - murmurou delicadamente. - Alm disso, Wade Hampton come muito. Mas seria to bom para eles, pobres meninos da cidade. Acho que seriam precisos cerca de cem dlares s para os alimentar e comprar calado. Duvidava de que Will conseguisse arranjar cem dlares em dinheiro s com o seu duro trabalho em Tara. Notou com satisfao que Suellen estava sem palavras. Estava certa de que a voz dela voltaria a tempo de aceitar a proposta que lhe fizera. "Depois do caf vou passar um cheque bem gordo." - Estes so os melhores biscoitos que j provei - disse Scarlett. - Posso comer outro? Estava comeando a sentir-se muito melhor. Tinha dormido bem, tomara uma bela refeio e os filhos estavam entregues. Sabia que devia voltar para Atlanta - ainda tinha que tratar de Beau. Tambm tinha que tratar de Ashley, como prometera a Melanie. Mas pensaria nisso mais tarde; viera para Tara em busca da paz e do sossego do campo e estava determinada a no partir sem os encontrar. Aps o caf, Suellen saiu para a cozinha. Provavelmente, ia queixar-se de alguma coisa, pensou com crueldade. No se importava, isso permitia-lhe ficar sozinha e em paz... "A casa est to calma. As crianas devem estar comendo na cozinha. Will j h muito que deve ter ido para os campos, com Wade seguindo-o que nem um co, tal como costumava fazer desde que Will veio para Tara. Wade muito mais feliz aqui do que em Atlanta, principalmente agora que Rhett se foi. No, no vou pensar nisso agora. Fico maluca se o fizer. Vou aproveitar a paz e o sossego, que foi por isso que para c vim." Serviu-se de outra xcara de caf, no se importando por este estar apenas morno. A luz do sol entrava pela janela atrs de si, indo iluminar o quadro na parede oposta, por cima do velho aparador. Will tinha feito um timo trabalho de recuperao na moblia que os soldados ianques tinham partido. Mas nem mesmo ele conseguia remover as profundas marcas deixadas pelas espadas, nem o buraco feito pelas baionetas no retrato da av Robillard. O soldado que a golpeou devia estar bbado, imaginou. Falhou o ar arrogante, quase de escrnio, no rosto franzino da av, assim como os peitilhos que rodeavam o vestido barato que usava. Tudo o que fez foi cortar-lhe a orelha esquerda, e agora parecia muito mais interessante s com uma. A me da sua me era o nico antepassado que interessava realmente a Scarlett e sentia-se frustrada por ningum lhe ter contado o suficiente sobre a av. Tinha casado trs vezes, fora tudo o que conseguira saber pela me, nem mais um pormenor. E Mammy cortava todas as histrias sobre Savannah, exatamente quando comeavam a tornar-se interessantes. Tinha havido duelos por causa da av, e as modas do tempo dela tinham sido escandalosas, com as senhoras a molharem deliberadamente os finos vestidos de musselina para que estes se lhes colassem s pernas. E a outros lugares tambm, a julgar pelo aspecto das coisas no retrato... "Eu devia corar por pensar este tipo de coisas", disse Scarlett para si prpria. Ao sair da sala de jantar, olhou para o retrato, por cima do ombro. Como seria ela realmente? A sala de estar mostrava sinais de pobreza e uso constante por uma jovem famlia. Scarlett mal podia reconhecer a poltrona forrada de veludo em que se sentara, enquanto os galantes se declaravam. Tudo tinha sido mudado. Tinha de admitir que Suellen tinha o direito de arranjar a casa como entendesse, mas estava cada vez pior. Assim, no era realmente Tara. Ficava mais desapontada medida que ia de pea em pea. Nada estava na

mesma. De cada vez que vinha a casa havia mais mudanas e mais misria. Por que havia Will de ser to obstinado? Toda a moblia precisava ser recuperada, as cortinas estavam em farrapos, e podia ver-se o cho atravs das alcatifas. Podia arranjar coisas novas para Tara, se Will a deixasse. Assim, no lhe doeria o corao ao ver as coisas de que se lembrava, com um aspecto to lamentavelmente gasto. "Devia ser minha! Tomaria melhor conta dela. O pap sempre disse que me deixaria Tara. Mas ele nunca fez testamento. Era mesmo dele, nunca pensava no amanh." Scarlett franziu o sobrolho, mas no conseguia zangar-se com o pai. Nunca ningum se tinha zangado com Gerald O'Hara. Ele era como uma amorosa criana marota, mesmo quando j estava nos sessenta anos. "A nica com quem ainda estou zangada Carreen. Irm mais nova ou no, fez mal em fazer o que fez, e nunca vou lhe perdoar. Nunca. Foi teimosa que nem uma mula quando decidiu ir para o convento, e eu acabei por aceitar. Mas nunca me disse que ia usar a sua tera parte de Tara como dote. "Deveria ter me dito! Eu lhe teria arranjado o dinheiro de algum modo. Assim, seria dona de dois teros. No a totalidade, como deveria ser, mas pelo menos o controle claro. Desse modo teria uma palavra a dizer. Em vez disso, tenho que ficar calada enquanto vejo tudo ir por gua abaixo e a Suellen dar-se ares de rainha. No justo. Fui eu quem salvou Tara dos ianques e dos carpetbaggers. No importa o que a lei diz. minha, e um dia ser de Wade. Vou tratar disso e no me importa o que custe." No pequeno quarto a partir do qual Ellen O'Hara dirigira calmamente a plantao, Scarlett descansou a cabea na cobertura gasta do velho sof de couro. Depois de todos aqueles anos, parecia haver ainda um leve trao da gua de colnia de limo e verbena usada pela me. Era esta a quietude que tinha vindo procurar. No importavam as mudanas, a misria. Tara ainda era Tara; ainda era o seu lar. E o corao dela estava ali, no quarto de Ellen. O bater de uma porta quebrou o silncio. Scarlett ouviu Ella e Susie atravessarem o trio, discutindo sobre qualquer coisa. Tinha que sair dali; no podia suportar barulhos e conflitos. Correu para a rua; queria mesmo ver os campos. Estavam todos tratados, vermelhos e ricos, como sempre tinham sido. Caminhou rapidamente atravs do prado cheio de ervas e passou pelo telheiro das vacas. Nunca ultrapassaria a sua averso a vacas, nem que vivesse at os cem anos; eram umas coisas horrveis com chifres aguados. Junto ao primeiro campo debruou-se sobre a cerca e respirou o cheiro de amnio emanado do estrume e da terra remexida. " engraado como o estrume da cidade to malcheiroso e to sujo, enquanto no campo o perfume do agricultor. "Will com certeza um bom agricultor. Ele a melhor coisa que j aconteceu a Tara. O que quer que eu pudesse ter feito, nunca o conseguiramos se ele no tivesse parado aqui a caminho de casa, na Florida, e no tivesse decidido ficar. Apaixonou-se por esta terra da mesma maneira que outros homens se apaixonam por uma mulher. E nem sequer irlands! At Will aparecer, pensava que s um irlands, como o pap, pudesse amar tanto a terra." No lado oposto do campo viu Wade ajudando Will e Big Sam a consertarem um pedao de cerca que estava cado. Achou que era bom para ele estar aprendendo; era a sua herana. Durante alguns minutos ficou olhando para eles, trabalhando juntos. "Era melhor ir j para casa", pensou. "Esqueci-me de passar o cheque a Suellen." A assinatura no cheque era tpica de Scarlett. Clara e sem enfeites; sem borres ou linhas hesitantes, como os escritores experimentais. Uma assinatura direta, como as

usadas nos negcios. Olhou para ela por um momento antes de a secar com o mataborro, e voltou a olh-la depois disso. Scarlett O'Hara Butler. Quando escrevia mensagens pessoais nos convites, Scarlett seguia a moda da altura, fazendo enfeites complicados em cada letra maiscula e terminando com uma parbola de remoinhos por debaixo do nome. F-lo agora num pedao de papel de embrulho castanho. Depois, olhou para o cheque que acabara de escrever. Estava datado. Tivera que perguntar a data a Suellen e ficara surpresa com a resposta: 11 de Outubro de 1873. Tinham passado mais de trs semanas desde a morte de Melly. Estava em Tara h vinte e dois dias, cuidando de Mammy. A data tinha ainda outros significados. A morte de Bonnie ocorrera h mais de seis meses. Scarlett podia j deixar a monotonia do preto usado em luto pesado. Podia aceitar convites para acontecimentos sociais e podia convidar pessoas para sua casa; podia voltar ao mundo. "Quero voltar para Atlanta", pensou. "Quero alegria. Na minha vida tem havido demasiada dor, mortes demais. Preciso de vida." Dobrou o cheque para Suellen. "Tambm sinto falta da loja. Os livros de contas devem estar numa confuso medonha. Alm do mais, Rhett voltar a Atlanta 'para impedir os mexericos'. Tenho que l estar." O nico som que conseguia ouvir era o lento tique-taque do relgio por detrs da porta fechada. O silncio pelo qual ansiara durante tanto tempo estava agora, subitamente, a enlouquec-la. Levantou-se de repente. "Darei o cheque a Suellen depois do almoo, assim que Will voltar para os campos. Depois pego a charrete e vou fazer uma rpida visita aos amigos em Fairhill e Mimosa. Nunca me perdoariam se no passasse l para cumpriment-los. noite fao as malas e amanh apanho o trem da manh." "Volto para Atlanta. Por muito que ame Tara, j no a minha casa. Chegou a hora de partir." A estrada para Fairhill estava cheia de ervas e de sulcos. Scarlett lembrou-se de quando a estrada era alisada todas as semanas e borrifada com gua para no levantar p. "J l vai o tempo...", pensou com tristeza. "Havia pelo menos dez plantaes a curta distncia, e as pessoas visitavam-se a toda a hora. Agora s resta Tara e as plantaes dos Tarletons e dos Fontaines. Tudo o resto so chamins queimadas ou paredes caindo. Tenho mesmo de voltar cidade. Tudo no campo me pe triste." As molas da charrete e o velho e vagaroso cavalo eram quase to ruins como as estradas. Pensou na sua carruagem acolchoada, parelha a condizer, com Elias para conduzindo. Precisava realmente voltar para casa, em Atlanta. A ruidosa alegria que reinava em Fairhill tirou-a daquela disposio. Como de costume, Beatrice Tarleton no parava de falar nos seus cavalos e nada mais lhe interessava. Scarlett notou que os estbulos tinham um telhado novo. O telhado da casa tinha remendos novos. Jim Tarleton parecia velho, o seu cabelo estava branco, mas tinha tido uma boa colheita de algodo com a ajuda do genro maneta, o marido de Betsy. As outras trs raparigas continuavam velhas solteironas. - Claro que passamos os dias e as noites chorando por causa disso - disse Hetty, e todos se riram. Scarlett no os entendia de todo. Os Tarletons conseguiam rir de tudo. Talvez isso tivesse algo a ver com os seus cabelos ruivos. A inveja que sentiu no era nada de novo. Desde sempre desejara fazer parte de uma famlia to terna e brincalhona como os Tarleton. Abafou a inveja que sentia; estava sendo desleal com a me. Ficou muito tempo ali; estar com eles era muito divertido. Teria que visitar os Fontaine no dia seguinte. Era quase noite quando chegou

a Tara. Mesmo antes de abrir a porta, j podia ouvir o filho mais novo de Suellen chorando por qualquer coisa. Era realmente hora de voltar para Atlanta. Mas havia novidades que a fizeram logo mudar as suas decises. Suellen pegou a ruidosa criana e a fez calar-se mesmo quando Scarlett entrava pela porta. Apesar do seu cabelo em desalinho e do seu corpo informe, Suellen estava mais bonita que em criana. - Oh, Scarlett! - exclamou. - H grandes novidades, nem adivinhas... Vamos, querido, vou-te dar um belo pedao de osso ao jantar e podes mastigar vontade, para esse dente maroto no te machucar mais. "Se um dente novo uma grande novidade, nem quero sequer tentar adivinhar", apeteceu-lhe dizer. Mas Suellen nem lhe deu tempo. - Tony voltou! - disse Suellen. - Sally Fontaine veio aqui dizer-nos e acabou de sair. Tony est de volta! So e salvo. Vamos todos jantar na casa dos Fontaine, amanh noite, logo que Will acabe de tratar das vacas. Oh, Scarlett, no maravilhoso? - O sorriso de Suellen era radiante. - O condado est de novo enchendose de gente. Scarlett sentiu vontade de abraar a irm, um impulso que nunca sentira antes. Suellen estava certa, era maravilhoso ter Tony de volta. Receara que nunca mais ningum o visse; agora, a terrvel lembrana da ltima vez que o vira podia ser esquecida para sempre. Estava to exausto e preocupado, encharcado at os ossos e a tremer. Quem no estaria gelado e cheio de medo? Os ianques estavam mesmo atrs dele e ele corria, tentando salvar a vida, depois de ter morto o negro que maltratara Sally. Depois matara o miservel que encorajara o idiota do negro a ir atrs de uma branca. Tony voltara! Mal podia esperar pela tarde do dia seguinte. O County estava a voltar vida.

4A plantao dos Fontaine era conhecida por Mimosa por causa do pequeno bosque que rodeava a casa de estuque amarelo-desmaiado. As flores cor-de-rosa, parecidas com penas, tinham cado no fim do Vero, mas as folhas verdes como fetos estavam ainda nos ramos. Ondulavam como danarinas ao vento, fazendo manchas de sombra, sempre a mudar, nas paredes sarapintadas da casa cor de manteiga. A luz baixa e oblqua do sol dava-lhe um ar quente e acolhedor. "Espero que Tony no tenha mudado muito", pensou Scarlett um pouco nervosa. "Sete anos tanto tempo..." Os seus ps arrastaram-se quando Will a ajudou a descer da charrete. E se Tony estivesse velho e cansado e derrotado, como Ashley? Isso era mais do que conseguia suportar. Dirigiu-se devagar para a porta, atrs de Suellen e Will. A porta abriu-se de rompante e todas as suas apreenses se desvaneceram. - Quem vem l devagar, como se fosse para a igreja? No sabem correr para dar as boas-vindas a um heri acabado de chegar? A voz de Tony era alegre, tal como antes; o cabelo preto como nunca; o sorriso vivo e travesso. - Tony! Ests na mesma - gritou Scarlett. - s mesmo tu, Scarlett? Vem dar-me um beijo. Tu tambm, Suellen. No eras generosa com os beijos como a Scarlett, nos velhos tempos, mas o Will deve ter-te ensinado umas coisas depois de terem casado. Agora que estou de volta, quero beijar todas as mulheres com mais de seis anos do estado da Gergia. Suellen abafou o riso, nervosa, e olhou para Will. Um leve sorriso no seu plcido e fino rosto mostraria a sua autorizao, mas Tony no se deu ao trabalho de esperar. Agarrou-a pela cintura delgada e pregou-lhe um beijo nos lbios. Estava rosada de prazer e confuso quando ele a largou. Os arrogantes irmos Fontaine tinham prestado pouca ateno a Suellen nos anos anteriores guerra, anos de gals e belas meninas. Will ps o brao em volta dos ombros dela de uma forma forte e carinhosa. - Scarlett, querida! - gritou Tonny, de braos abertos. Scarlett deixou-se cingir e ps os braos volta do pescoo dele, num abrao apertado. -Ficaste muito mais alto, l no Texas! - exclamou. Tony sorria medida que beijava os lbios que ela lhe oferecia. Depois levantou a perna das calas para lhe mostrar as botas de taco alto que tinha caladas. - Todo mundo fica mais alto no Texas - respondeu Tony. - No me surpreenderia se fosse lei. Alex Fontaine sorriu por cima do ombro de Tony. - Vais ouvir mais do que podes sobre o Texas - disse Alex lentamente. - Isto , se Tony te deixar entrar em casa. Ele esqueceu-se de coisas como essas. No Texas todos vivem volta de fogos-de-campo debaixo das estrelas, em vez de terem telhados e paredes. - Alex resplandecia de felicidade. "Parece que ele prprio tem vontade de abraar e beijar Tony, e por que no? Enquanto cresciam eram unha com carne. Alex deve ter sentido muito a falta dele." Subitamente, os olhos encheram-se de lgrimas. O exuberante regresso de Tony era o nico acontecimento feliz no condado desde que as tropas de Sherman tinham devastado a terra e as vidas das pessoas que l viviam. Mal sabia como lidar com to sbita felicidade. A mulher de Alex, Sally, puxou-a pela mo quando entrou na decadente sala de estar. - Eu sei como te sentes, Scarlett - segredou-lhe Sally. - Quase nos tnhamos

esquecido como nos divertirmos. Houve mais sorrisos nesta casa hoje do que nos ltimos dez anos juntos. Esta noite vamos deitar a casa abaixo! - Os olhos de Sally estavam tambm cheios de lgrimas. A festa comeou. Entretanto, os Tarletons chegaram. - Graas a Deus voltaste inteiro, rapaz! - Foi assim que Beatrice Tarleton cumprimentou Tony. - Podes atirar-te a qualquer uma das minhas trs filhas. S tenho uma neta e estou ficando velha. - Oh, mam! -gemeram Hetty, Camilla e Miranda Tarleton em coro. Depois desataram a rir. A preocupao da me em criar cavalos e pessoas era suficientemente conhecida para fingirem embarao. Mas Tony estava vermelho que nem um pimento. Scarlett e Suellen vaiaram-nos. Beatrice Tarleton insistiu em ver os cavalos que Tony trouxera do Texas antes que a noite casse. Instalou-se uma acalorada discusso acerca dos mritos dos purosangue orientais contra os cavalos bravos da Califrnia, at que algum pediu trguas. - E uma bebida - disse Alex. - At consegui arranjar usque de verdade para celebrarmos. Jim Tarleton deu umas pancadinhas no ombro da mulher. - Beatrice, podes discutir isso com Tony durante os prximos meses. Anos at... Mrs. Tarleton franziu a testa e depois encolheu os ombros em sinal de derrota. Para ela, nada era mais importante que os cavalos, mas no faltariam oportunidades, e esta era a noite de Tony. Alm disso, ele tinha ido embora, seguindo Alex em direo mesa onde estavam os copos e o usque genuno. Scarlett desejou, no pela primeira vez, que tomar uma bebida no fosse um prazer do qual as senhoras estivessem automaticamente excludas. Teria gostado de tomar uma. Ainda mais, teria preferido falar com os homens em vez de ficar desterrada no outro lado da sala, falando de bebs e de economia domstica. Nunca tinha percebido, nem aceito a tradicional separao dos sexos. Mas esse era o modo como as coisas eram feitas, sempre tinham sido, e resignou-se a isso. Pelo menos, podia divertir-se vendo as meninas Tarleton fingir que no pensavam exatamente como a me. Se ao menos Tony olhasse para elas, em vez de ficar embrenhado naquilo de que os homens estavam falando! - O pequeno Joe deve estar felicssimo por ter o tio em casa - estava Hetty Tarleton dizendo a Sally. Hetty podia dar-se ao luxo de ignorar os homens. O seu marido, gordo e maneta, era um deles. Era a nica das filhas dos Tarleton que conseguira arranjar algum para casar. Sally respondeu a Suellen com pormenores acerca do filho, que aborreceram Scarlett terrivelmente. Perguntou-se se ainda faltaria muito para o jantar. No podia faltar muito; todos os homens eram agricultores e tinham que se levantar de madrugada no dia seguinte. Isso significava que a festa teria que acabar cedo. Estava certa quando pensou que o jantar seria cedo; os homens anunciaram que estavam prontos, depois de uma nica bebida. Mas enganara-se acerca do fim antecipado da festa. Todo mundo estava divertindo-se demais para a deixar acabar. Tony fascinou-os com histrias das suas aventuras. - Faltava pouco menos de uma semana para me juntar aos Texas Rangers! exclamou com uma risada. - O estado estava sob o controle militar dos ianques, tal como todo o Sul, mas com mil raios!... Desculpem minhas senhoras, aqueles casacas azuis no sabiam o que fazer com os ndios. Os Rangers tinham estado a combat-los, e a nica esperana que os rancheiros tinham era de que os Rangers os continuassem

a proteger. E foi isso que fizeram. Soube logo que estava entre os meus, e alistei-me. Foi magnfico! No havia uniformes, no havia marchas com o estmago vazio, para onde quer que um estpido general quisesse que fssemos, nada de exerccios, nada de "Sim, senhor!". Juntvamo-nos a um grupo de camaradas e amos em frente, luta! Os olhos pretos de Tony piscavam de entusiasmo. Os de Alex tambm. Os Fontaines sempre tinham gostado de uma boa luta, e odiavam a disciplina. - Como so os ndios? - perguntou uma das meninas Tarleton. - Eles torturam realmente as pessoas? - No vais querer ouvir isso - replicou Tony, com os olhos e o sorriso subitamente tristes. Depois riu. - So espertos como raposas, quando hora de lutar. Os Rangers aprenderam depressa que se queriam derrot-los, teriam que aprender o seu modo de fazer as coisas. Podemos encontrar a pista de um homem ou animal nas rochas ou mesmo na gua, melhor que qualquer co de caa. E viver de solas e ossos, se s houver isso. Nada pode vencer ou fugir a um Texas Ranger. - Mostra-nos o teu revlver de seis tiros, Tony - disse Alex. -Agora no. Talvez amanh, ou no dia seguinte. Sally no quer que eu lhe faa buracos na parede. - Eu no disse para disparares, pedi que o mostrasses - Alex arreganhou os dentes para os amigos. - Tem o punho cravado de marfim, gabou-se. - Esperem at que o meu irmozin