antologia terradamagia

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2 Terra da Magia

Terra da

magia

Gian Danton (Organizador)

Capa JJ Marreiro e Fernando Lima

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3 Terra da Magia

Terra da Magia

Antologia organizada por Gian Danton

Autores:

A.Z.Cordenonsi -Alexandre Lobão -Bruna Louzada

– Jefferson Nunes -Joe de Lima - Lucas Lourenço -

Roberta Spindler - Rodolfo Santos

DANTON, Gian. Terra da magia. Curitiba:

Quadrinhopole, 2014. E-book.

ISBN 978-85-917606-3-3

Page 4: Antologia terradamagia

4 Terra da Magia

Apresentação

Embora tenha antecedentes famosos,

entre eles os mitos de Gilgamesh e a Odisseia, a

literatura de fantasia moderna surge, não por

acaso, com o romantismo.

O romantismo aparece no contexto

ocidental como uma reação à estética neo-clássica

e ao racionalismo iluminista. O iluminismo

prometia tirar o homem das trevas e do

misticismo da Idade Média para colocá-lo numa

era de razão e progresso. Os românticos viam isso

como uma falácia. A razão não era o caminho para

a humanidade, mas o sentimento.

Não por acaso, um dos romances mais

importantes do período, e pedra fundamental do

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5 Terra da Magia

que viria a ser a ficção-científica era uma crítica à

ciência: Frankstein ou moderno prometeu

mostrava os perigos da razão sem ética.

A ficção científica só viria a se tornar um

gênero próprio, separado da fantasia, décadas

mais tarde, quando Júlio Verne, influenciado pelo

samsionismo, imaginou um mundo que

maravilhas podiam ser conseguidas através da

ciência, seja chegar à Lua, seja viajar ao fundo

mar.

O neo-clássico volta-se para a Grécia

antiga, berço da razão. A fantasia, em oposição,

volta-se para a Idade Média, época de misticismo

e mistério.

A Idade Média tinha forte tradição de

romances de cavalaria (uma mistura de mitologia

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cristã e pagã) repletos de misticismo, heróis,

feitceiros, espectros, animais místicos, objetos

mágicos e seres elementais, ligados à natureza e

vindos diretamente das tradições dos povos

bárbaros.

Ítalo Calvino no livro Contos Fantásticos

do Século XIX relaciona o conto fantástico com a

especulação filosófica do período:

“Seu tema é a relação entre a realidade

do mundo que habitamos e conhecemos por meio

da percepção, e a realidade do mundo do

pensamento que mora em nós e nos comanda. O

problema da realidade daquilo que se vê – coisas

extraordinárias que talvez sejam alucinações

projetadas por nossa mente; coisas habituais que

talvez ocultem, sob a aparência mais banal uma

segunda natureza inquietante, misteriosa,

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7 Terra da Magia

aterradora – é a essência da literatura fantástica,

cujos melhores efeitos se encontram na oscilação

de níveis de realidade inconciliáveis”.

Segundo Calvino, a literatura fantástica

nasceu com o romantismo alemão, mas se

espraiou por toda a produção do período. Difícil

encontrar autor romântico que não tenha

colocado o maravilhoso, o inexplicável em suas

obras, em especial Edgar Alan Poe, o pai da

literatura de gênero. No Brasil um autor que se

aventurou pelo fantástico foi Álvares de Azevedo.

Seu livro de contos Noite na Taverna é um dos

melhores exemplos disso.

Essa fuga para o passado irá se

transformar na alta fantasia, quase sempre

ambientada na Idade Média, real o ou imaginária,

ou na Espada e magia, ambientada em um

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8 Terra da Magia

passado ainda mais distante, como em Conan, ou

em mundos muito diversos do nosso, em que o

fantástico torna-se normal, como em Elric.

A ópera O anel de Nibelungo, de Richard

Wagner, obra-prima do romantismo, representa

essa tendência, e irá influenciar um dos maiores

nomes do gênero, Tolkien, até mesmo no tema do

anel de poder.

Tzevetan Todorov, no livro Introdução à

literatura fantástica explica que a fantasia ocorre

num mundo em que não é exatamente o nosso,

um mundo povoado por diabos, sílfides, vampiros,

no qual produz-se acontecimentos que não

podem ser explicados pelas leis de nosso mundo.

Diante dele, leitor e herói se vêm diante de duas

possibilidades: ou o que ocorreu é fruto da

imaginação, ou sonho (como Narizinho, que

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9 Terra da Magia

acorda no final do primeiro livro infantil de

Monteiro Lobato ou em Alice no país da

Maravilhas) ou o acontecimento é real e, nesse

caso, essa realidade é regida por leis que nos são

desconhecidas. O fantástico é essa hesitação

experimentada por um ser que só conhece as leis

naturais, diante de um acontecimento

aparentemente sobrenatural.

Para Todorov, portanto, o fantástico

implica não só a existência de um acontecimento

estranho, mas é preciso que o texto obrigue o

leitor a considerar o mundo das personagens

estranhas como um mundo de criaturas vivas e a

hesitar entre uma explicação natural e

sobrenatural. Essa hesitação é normalmente

experimentada por um dos personagens da

narrativa, muitas vezes o herói.

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10 Terra da Magia

Roberto de Sousa Causo, no livro Rumo

à Fantasia, cita a definição do The Oxford

Companion to English Language: “geralmente se

concorda que (a fantasia) é ambientada em um

mundo distante da experiência comum, alguns ou

todos os personagens são diferentes de qualquer

criaturas conhecidas, o mundo de fantasia tem as

suas próprias regras e lógica, e é normalmente

bem ordenado dentro delas, e qualquer

personagem quotidiano que entre nesse mundo

tem que se conformar ao novo modo de vida. De

modo semelhante, criaturas fantásticas podem

entrar no mundo familiar, e quando o fazem os

seus poderes frequentemente prevalecem”.

O mesmo Roberto Causo lembra que a

fantasia se consolidou como gênero literário no

mercado editorial a partir de 1923, com a criação

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11 Terra da Magia

da revista Weird Tales. Foi nela que surgiu o

gênero Espada e Magia, representado

principalmente por Conan, de Robert A. Howard,

que escreveu para essa e outras publicações.

A outra corrente famosa é a alta

fantasia, representada principalmente por J.R.R.

Tolkien de O Hobbit e O senhor dos anéis. Nessa

vertente, o autor cria todo um mundo próximo,

mas diferente do nosso. Esse mundo é descrito

em detalhes culturais, geográficos e históricos ao

longo da narrativa e o leitor se acostuma à regras

desse novo mundo (vale lembrar que Robert A.

Howard também definiu muito bem o mundo de

Conan, mas com outro enfoque).

Vários outros autores da época se

debruçaram sobre o gênero, com destaque para

As crônicas de Narnia, de C.S. Lewis, que colocou

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12 Terra da Magia

heróis humanos normais atravessando para um

mundo de contos de fadas, em que existem

duendes, centauros, magos, feiticeiras e muitos

outros, numa quase apresentação prática dos

princípios de Todorov.

Embora tenha feito um sucesso relativo

na época de sua publicação (1954-1955), a saga de

O senhor dos Anéis só se tornou um sucesso

estrondoso na década de 1960, quando um

editora americana aproveitou o fato de que o livro

não havia sido registrado nos EUA para lançar uma

versão não-autorizada e barata. O livro fez

enorme sucesso com os hippies, uma geração

muito parecida com a dos românticos do século

XIX que transformaram a fantasia em um gênero

literário. Como os românticos, a geração dos anos

1960 criticava o racionalismo e pregava uma volta

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13 Terra da Magia

a um mundo menos tecnológico e mais

sentimental.

O gênero ganhou ainda mais

popularidade com a criação do RPG Dungeons

and Dragons e da série televisiva derivada, A

caverna do dragão, um sucesso extraordinário até

hoje. A animação da Disney A espada era a lei

também merece destaque por retomar o mito

arturiano, assim como o filme História sem fim

(baseado no livro do escritor alemão Michael

Ende).

Finalmente, tivemos recentemente o

fenômeno Harry Potter e os filmes de O senhor

dos anéis, Crônicas de Narnia e Guerra dos

Tronos, que aumentaram ainda mais o interesse

pela fantasia fazendo com que ela concorra

fortemente com a ficção científica.

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14 Terra da Magia

Hoje duendes, dragões, sereias elfos

fazem parte do imaginário popular de milhões de

pessoas. Mas, se os primeiros escritores

germânicos que se debruçaram sobre o gênero

tinham uma rica mitologia para explorar, nós

também temos: mapinguaris, sacis, mãe-d´água,

cobra grande, os exemplos são muitos.

Infelizmente essa riqueza raramente

vem para a literatura. São raras as iniciativas de

utilizar a mitologia nacional para criar um universo

de fantasia.

Talvez falte um diálogo com a mitologia

clássica da fantasia, um encontro dos sacis com

hobbitts, de sereias com a mãe d´água, de dragões

com a cobra grande.

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15 Terra da Magia

Essa é a proposta da antologia Terra da

Magia: provocar um diálogo de duas mitologias,

criando histórias tipicamente de fantasia, mas

com um sabor regional.

Gian Danton

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16 Terra da Magia

O Despertar de Boiúna

Roberta Spindler

O sol era forte e o calor, tipicamente

equatorial, grudava as roupas no corpo. Mesmo

com aquele clima abafado, a praça daquela

metrópole amazônica estava movimentada. Vários

corredores se exercitavam, senhoras passeavam

com seus cachorros e as barracas de água de coco

fervilhavam. No meio de tanta gente, um homem

de cabelos cinzentos e olhos amarelados

descansava em um banco de madeira,

aproveitando a sombra de uma samaumeira. Era

impossível não notá-lo. Sua pele era de uma

palidez incomum, quase doentia, e as roupas que

usava não condiziam em nada com o verão local.

Page 17: Antologia terradamagia

17 Terra da Magia

Observava com curiosidade as garças que se

empoleiravam no topo da grande árvore, mas não

estava alheio aos comentários sussurrados e a

desconfiança daqueles que passavam ao seu lado.

— Não importa onde estamos, Liz, os

olhares são sempre os mesmo — comentou de

maneira casual, ainda com os olhos fixos nas

graciosas aves sobre sua cabeça.

O bolso da frente de seu casaco preto se

movimentou e uma cabeça minúscula com orelhas

pontudas apareceu. Olhos astutos percorreram a

praça em menos de um minuto e depois voltaram

a desaparecer no interior da veste.

— Ainda não compreendi o motivo de

estarmos aqui, Damian — a voz era fina e

delicada, mas demonstrava bastante irritação. —

Com tantas propostas de trabalho, por que

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18 Terra da Magia

aceitou justamente aquela que ficava do outro

lado do oceano?

O homem chamado Damian riu de

maneira divertida. Estava na capital paraense fazia

apenas algumas horas, mas sua pequena

companheira não parava de reclamar.

— Liz, você está se tornando uma fada

bastante irritante. Desse jeito vou ter que

procurar uma nova assistente.

— Você diz isso porque não está preso

em um bolso de couro que mais parece uma

sauna! E por falar nisso, quantas vezes tenho que

lembrá-lo de usar desodorante?

Aquela reivindicação fez Damian

gargalhar alto, atraindo olhares confusos dos

transeuntes próximos. Estava pronto para

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19 Terra da Magia

responder à altura, quando um inesperado tremor

tomou conta da praça.

As garças levantaram voo e as folhas das

árvores caíram, criando uma verdadeira chuva

verde. Os corredores pararam, as senhoras

gritaram e os cachorros uivaram. Nas ruas, carros

frearam bruscamente, alguns chegando a colidir.

O caos durou exatamente dois minutos e se foi

tão rápido quanto surgiu. Percebendo que o pior

tinha passado, as pessoas começaram a se

acalmar. Um vendedor de coco soltou uma

imprecação quando viu a maioria de sua

mercadoria espalhada pela calçada.

— Esse já é o terceiro terremoto essa

semana! Mas que diabos está acontecendo?

Damian estreitou os olhos ao ouvir

aquele comentário. Pensou em ir até o vendedor e

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20 Terra da Magia

questioná-lo sobre os tais tremores, mas sua

atenção acabou se voltando para a bela mulher

que caminhava em direção ao banco de madeira.

— Isso está ficando bem interessante —

ele abriu um sorriso e observou a beldade.

Ela tinha a pele morena, seus cabelos

lisos e negros quase ultrapassavam a cintura.

Vestia um jeans desbotado e uma camiseta

branca, trazia no pescoço colares feitos com

sementes de cores e formatos variados.

Demonstrando segurança e sensualidade, sentou-

se ao lado do estrangeiro e cruzou as pernas.

— Desculpa o atraso, caçador. Como

podes ver, a cidade está um tanto caótica — seus

olhos negros perscrutaram Damian com bastante

interesse. — Fico feliz que tenhas atendido ao

nosso chamado.

Page 21: Antologia terradamagia

21 Terra da Magia

Damian sentiu o efeito do olhar da

mulher misteriosa, mas conseguiu disfarçar. Em

seu bolso, Liz se movia com impaciência. Ela

sempre agia daquela maneira quando estava

diante de um ser mágico.

— A carta foi um tanto vaga, mas

conseguiu me deixar curioso — assumiu seu

habitual tom de negócios. — Espero que possa

esclarecer minhas dúvidas, senhorita...

— Yara, meu nome é Yara — os lábios

carnudos formaram um sorriso. — Vim até aqui

justamente para te levar até aquele que tem as

respostas.

Na garupa de uma moto, Damian foi

conduzido até um dos bairros mais antigos da

cidade. Os prédios tornaram-se mais escassos e as

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22 Terra da Magia

ruas se estreitaram. As casas comerciais eram

maioria, mutilando vários casarões coloniais. Os

azulejos portugueses que um dia embelezaram

diversas moradias agora eram escassos, roubados

ou destruídos por vândalos. O caçador logo

percebeu que estava entrando em um local

poderoso, onde a aura de magia ainda era forte

apesar da urbanização desenfreada e do descaso.

Quanto mais adentravam na chamada

Cidade Velha, Damian também percebeu que

aquela região fora a mais afetada pelos tremores.

O comércio estava de portas fechadas e vários

entulhos de casas desabadas tornavam as ruelas

ainda mais apertadas. Curioso, questionou Yara

sobre aquele estrago, mas a motorista

permaneceu calada até o final da viajem.

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23 Terra da Magia

A moto entrou em uma ruazinha de

paralelepípedos, cercada por casarões ou

destroços deles. Yara desligou o motor e

caminhou até uma casa de paredes descascadas.

Aproveitando a quietude do lugar, Liz

deixou o bolso do casaco. Suas asas bateram

rápidas e o corpo esguio agradeceu o vento

úmido. Pousou no ombro de Damian e confessou

suas preocupações:

— Não gosto da aura deste lugar e não

gosto do jeito que você olha para essa mulher.

Mesmo que aquela frase tenha sido

sussurrada, Yara conseguiu ouvi-la.

— Não precisa ficar com ciúmes, fadinha

— retirou uma chave de ferro das vestes e

destrancou a pesada porta de madeira. — Nossa

relação será estritamente profissional.

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24 Terra da Magia

Assim que a porta foi aberta, a aura

mágica aumentou subitamente e calou os

protestos de Liz. Quando entrou na casa, Damian

sentiu como se uma corrente elétrica passasse por

seu corpo. Sorriu. Adorava aquela sensação de

perigo iminente.

Adentrou na sala — de móveis

quebrados e ar mofado — e encontrou um grupo

bastante peculiar. Sentada em uma poltrona

bolorenta, uma velha com roupas pretas e cabelos

desgrenhados se distraia fumando um cigarro.

Encostado na parede ao seu lado, um jovem

atraente, vestido inteiramente de branco, ajeitava

o chapéu na cabeça para cumprimentar os recém-

chegados. Liz pareceu bastante impressionada

com aquela cortesia.

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25 Terra da Magia

Yara ignorou aqueles dois e se dirigiu

diretamente ao terceiro integrante do grupo. Um

homem de meia-idade, com pele morena e

cabelos da cor do carvão.

— Pajé, aqui está o estrangeiro.

O homem deu um sorriso fraco, parecia

não dormir fazia anos.

— Damian, o meio-elfo. Decapitador de

gigantes e exterminador de lobisomens. Carrasco

de Tiamati, a rainha dos dragões — nomeava

aquelas conquistas, mas não parecia

impressionado. — Espero que sua coragem e força

não sejam apenas histórias.

Damian deu de ombros e cruzou os

braços.

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26 Terra da Magia

— Pelo visto minha fama me precede —

forçou um sorriso. — Sou o melhor matador de

monstros que irá encontrar. Conte-me mais sobre

o monstro que move as entranhas dessa cidade e

eu irei destruí-lo.

A mulher fumante soltou um assovio e

depois deu uma risada seca.

— Vejo que ele é mais esperto do que

parece — soprou fumaça pela boca torta. — Mas

será mesmo capaz de deter Boiúna quando ela

despertar?

O poder que envolvia aquele nome

causou um mal-estar em todos na sala, até mesmo

Liz se encolheu. Ao observar o rosto aflito do pajé,

a ansiedade tomou conta de Damian. Os

momentos que precediam as caçadas eram

sempre os mais excitantes.

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27 Terra da Magia

O grande e derradeiro tremor atingiu

Belém logo após o nascer do sol. O centro da

cidade desmoronou como um castelo de cartas de

baralhos. Os prédios viraram uma cascata de

concreto e as casas encobertas pela poeira

sufocante. As ruas foram divididas em longos

veios, que seguiram seu caminho tortuoso até

chegar à catedral metropolitana. A secular igreja

da Sé — patrimônio histórico e religioso — teve

suas paredes alvas rachadas em alguns segundos.

No Largo da Sé, praça localizada bem em

frente à igreja, Damian observava a destruição

com uma calma incomum. Pessoas morriam ao

seu redor, gritos de socorro ecoavam por todos os

cantos, mas o caçador só estava interessado na

sua presa.

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28 Terra da Magia

— As armas, Liz — ele disse, enquanto

conjurava alguns símbolos de proteção.

Sem perder tempo, a fada abriu um

portal de luz no chão. Damian se agachou e

retirou uma reluzente espada de prata. Prendeu-a

nas costas e voltou a remexer no depósito mágico.

Dessa vez, extraiu da luz uma bazuca AT-4 e dois

fuzis.

— Fique preparada Liz, acho que vou

precisar de muita munição.

A catedral desmoronou, levantando

uma espessa fumaça branca. O sino da torre

atingiu o solo com um sonoro estrondo e ficou

badalando por alguns instantes, camuflando o

urro odioso da criatura das profundezas. A cobra

gigante se ergueu com uma graça incompatível ao

seu tamanho descomunal. A pele era negra e

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29 Terra da Magia

brilhante e os olhos vermelhos lampejavam

malícia.

Ao avistar a cabeça triangular de Boiúna,

Damian entendeu o desespero que havia se

abatido sobre o pajé que o contatara. E de

repente, a bazuca lhe parece quase um pedaço de

pau.

O ódio dela vai varrer tudo do mapa. As

palavras do pajé voltaram a sua mente, como um

aviso de mau agouro.

— Isso é um ser abissal, Damian! Nós

dois não estamos preparados para vencer algo

assim! — Liz gritou ao pousar em seu ombro.

— Então, ainda bem que não vamos

fazer isso sozinhos — ele se ajoelhou e preparou a

bazuca para o primeiro tiro. Ao seu lado, montada

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30 Terra da Magia

em um cavalo com chamas no lugar da cabeça,

Yara apareceu. Sorriu de maneira nervosa.

— Estamos prontos.

Damian meneou a cabeça em

consentimento e avistou seus companheiros de

batalha. A velha de cabelos desgrenhados estava

lá, juntamente com o homem de roupas brancas,

mas também havia caras novas. Eram mais de

vinte criaturas, uma mais bizarra que a outra.

Dentre elas, um homem de cabelos de fogo e pés

tortos e uma assustadora criatura de mais de dois

metros de altura — coberta por pelos vermelhos e

com uma boca que ia do peito até a barriga —

chamaram a atenção do caçador.

Sentindo a confiança de alguém que não

conhecia a derrota, Damian apertou o gatilho.

Aquela seria, sem dúvidas, a batalha mais

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31 Terra da Magia

fantástica de todos os seus duzentos e cinquenta

anos de vida.

Roberta Spindler nasceu em Belém do Pará, em 1985. Graduada em publicidade, atualmente trabalha como editora de vídeos. Nerd confessa, adora quadrinhos, games e RPG. Escreve desde a adolescência e é apaixonada por literatura fantástica. Tem contos publicados em diversas antologias e é coautora do romance Contos de Meigan – A Fúria dos Cártagos. Twitter: @robertaspindler Blog: www.ruidocriativo.wordpress.com

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32 Terra da Magia

Teatro do invisível Gian Danton

- Você pensa neles? De vez em quando você pensa neles?

Olhei para o homem à minha frente. Não parecia um louco. Estava bem vestido, embora de maneira informal. Usava uma calça jeans e camiseta branca. Nada de “Eu acredito em Ufos” ou “O fim está próximo, irmão!”. Apenas uma camisa branca. Eu não havia tido oportunidade de ver seus sapatos, mas acreditava que ele usasse um simplório tênis. Ainda assim aquele homem havia se sentado na minha frente na lanchonete e começado a falar coisas sem sentido.

- Pensar? Pensar em quem?

- Neles, nos duendes, fadas, sacis, mapinguaris, na mãe d´água...

- Por favor, eu já estou...

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33 Terra da Magia

Fiz sinal de levantar. Meu lanche estava no meio e eu estava disposto a sacrificar o resto para me livrar daquele maluco, mas ele me agarrou pelo ombro e me fez sentar.

- Não, eu não digo pensar da mesma forma que se pensa em uma lenda, ou em discos voadores. Eu digo pensar neles de fato, como seres que existem...

O homem era totalmente pirado. Olhei à volta em busca de um segurança, mas não achei nenhum.

- Sei o que está pensando.

- Sabe?

- Sim, você acha que sou louco. Não espero que acredite em mim, mas quero que ouça uma coisa, quero que ouça minha história e estará livre para ir embora.

Concordei e rezei para que a história fosse curta.

Page 34: Antologia terradamagia

34 Terra da Magia

Ele bebeu um pouco do refrigerante e me olhou diretamente nos olhos.

- Nós éramos todos crianças. Mas eu era o mais velho de nós. Bia tinha só o que? Uns oito anos? Provavelmente. Havia também o Bruno, com uns 9-10 anos. Todos primos. Estávamos de férias na casa de nosso avô. Hoje existe luz até nos lugares mais remotos, mas naquela época toda a luz que tínhamos no sítio de noite vinha de lamparinas ou, no máximo, uma lanterna. A luz elétrica matou o encanto. Dava medo. O senhor já entrou na mata à noite, senhor... senhor?

- Jonas.

- O senhor já entrou na mata de noite, senhor Jonas?

- Já fui no parque...

- À noite?

- Não, de dia.

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35 Terra da Magia

- Então o senhor não sabe o que é o medo. As crianças têm medo de dormir à noite no escuro do quarto e talvez esse medo ancestral seja uma lembrança do tempo em que morávamos na floresta e víamos o que nenhum humano deveria ver. E nós duvidamos da pequena Bia quando ela nos contou o que viu...

Um segurança da lanchonete se aproximou. Pensei em chamá-lo, mas o que diria? Que estava diante de um louco? A não ser que ele estivesse rasgando dinheiro, duvido que acreditassem em mim. Além disso, devo admitir, a história já começa a me intrigar.

- Bia, você disse? O que ela viu?

- Ela nos disse que acordou de noite e teve vontade de ir ao banheiro. Ninguém acreditou porque o banheiro ficava do lado de fora da casa, era necessário andar por uma ponte em pleno breu, mas hoje acho que foi exatamente o que ela fez. Ao invés de ir para o trapiche como todos nós fazíamos e fazer na água, ela foi na

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36 Terra da Magia

direção oposta. Crianças são assim, acho. Fazem o que lhes foi dito, mesmo que vá contra todos os seus medos. Pelo menos algumas crianças são assim. Pelo menos Bia. Enquanto andava pela ponte, ela sentiu alguma coisa, como olhos que a seguiam. E ouviu vozes.

- Vozes?

- Traga seus primos, diziam as vozes. Traga seus primos! Ela correu para dentro e se meteu na rede, cobrindo o rosto com o lençol. Só nos contou no dia seguinte. Como disse, ninguém acreditou. Mas a curiosidade é mais forte que tudo. Na noite seguinte, eu não encontrava posição para dormir. Traga seus primos, dizia a voz. O que era aquela voz? O que queria? Seria uma armadilha? Só havia uma forma de descobrir as respostas. Nosso avô estava dormindo, de modo que tive que tomar muito cuidado para surrupiar a lamparina.

Mas pelo jeito eu não fora o único a ter essa ideia. Mal comecei a andar e meus três

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37 Terra da Magia

primos estava atrás de mim. “Eles vão falar com a gente?”, perguntou Bia. “Não sei”, respondi. Eu não sabia de nada, mas podia sentir como que uma pontada no cérebro. Acho que chamam isso de intuição. Comecei a ouvir pequenos barulhos à nossa volta, como se uma multidão de pequenos animais estivessem na mata, espreitando-nos com seus olhos febris que apenas adivinhávamos.

Finalmente chegamos ao fim do trapiche que levava ao banheiro. O cheiro era forte e não havia porque continuar em frente, mas mesmo assim eu desci e segui pela terra. Olhei para trás, para dizer aos primos que não me seguissem, mas eles estava lá, logo atrás de mim. “Vamos?”, indagou Bruno. Era uma provocação. Se um fedelho de nove anos se sentia corajoso a ponto de querer continuar em frente, por que eu não faria o mesmo?

Hoje em dia eu penso: como poderíamos ter certeza de que nada nos iria acontecer? A mata era perigosa à noite, com ou sem seres fantásticos. Onças, cobras, aranhas... a

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38 Terra da Magia

quantidade de perigos era infindável, mas mesmo assim fomos em frente. A floresta foi se fechando à nossa volta e sons estranhos pareciam emergir dela. Um pássaro martelava seu piado de tempos em tempos. O vento dedilhava as folhas das árvores. A madeira das árvores estalava. Mas os sons mais perturbadores eram aqueles que não podíamos ouvir, mas apenas imaginar.

Nem sei como, mas quando demos por nós mesmos, estávamos no meio de uma clareira. E havia gente à nossa volta. Podíamos percebê-los por entre as folhas e a penumbra. Lá no alto, uma lua cheia despejava seus raios, que penetravam, poucos, por entre as folhas. Apesar da penumbra, podíamos observar uma incrível variedade de seres: havia alguns muito pequenos, mas não eram crianças, pareciam anões. Havia gigantes. Vi um cavalo que parecia normal até eu entrever um chifre sobre sua testa. De repente algo passou voando por entre nós. Pensei que fosse uma libélula enorme, mas Bia gritou: “É uma fada!”.

Page 39: Antologia terradamagia

39 Terra da Magia

Restabelecido do susto, percebi uma figura estranha, que parecia ter crescido tanto para o alto quanto para os lados. No meio do que deveria ser seu estômago, uma miríade de pequenos dentes afiados cintilavam à luz do luar.

Um dos seres se adiantou. Era difícil ver seu rosto, encoberto por uma luminosidade avermelhada. Pareciam cabelos da cor de fogo, mas logo percebi que era muito mais do que isso: de fato, todo ele estava em chamas, cada fio voluteando como a chama de uma vela. Ele andou até nós, suas pegadas deixando rastros ao contrário na terra, e se dirigiu primeiro à Bia: “Vejo que trouxe seus primos”. Ele falava e suas palavras pareciam o murmúrio das folhas na floresta. “Precisamos de vocês”, disse, mas olhava para mim. “Um de nós só pode ser salvo por humanos”. “Um de nós?” “Norato”.

Ele não falou nada além disso, mas nós soubemos. Era como um filme que passava diante de nós. Vislumbramos o nascimento de duas crianças índias. Mas eram crianças encantadas.

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40 Terra da Magia

Mal nasceram e uma transformação se operou sobre elas. Suas peles, antes rosadas e suaves, tornaram-se grossas e escuras, repletas de escamas. A cabeça se alongou, assim como o corpo. Como num filme, vimos os dois bebês se transformarem em cobras e se arrastarem para o rio. Eles cresceram e ganharam nome: o macho era Norato, a fêmea, Caninana.

Norato, apesar de sua aparência assustadora, era tinha um coração de ouro: salvava pessoas em naufrágios, impedia que seres malignos se aproximassem da casa dos ribeirinhos... Era um protetor.

Caninana era o seu oposto. A maldade corria em suas veias. Não havia barco ou canoa que passasse por ela que não experimentasse o chicote atordoante de seu rabo. Os pobres náufragos eram deixados à própria sorte, ou afogados. Caninana nadava pelos rios destruindo trapiches, comendo criações, alastrando o horror por onde passava.

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Mas Nonato era triste. Suas feições monstruosas não combinavam com sua personalidade e ele ansiava por ter novamente a pele macia com a qual nascera. Norato queria voltar a ser gente, mas só havia uma maneira disso acontecer...

A visão se desfez como uma névoa soprada pelo vento. À nossa frente apareceu o homem pequeno de pés tortos e cabelos em fogo. Na penumbra eu adivinhei um ser enorme, que respirava pesadamente e soltava lufadas de fogo a cada expiração.

- Só existe uma maneira de fazer isso... e deve ser feita por humanos... por vocês. – disse o rapaz de cabelos em fogo. Um de vocês deverá cortar a cabeça de Norato com um machado de fio virgem. O outro deverá verter por ele uma lágrima.

Eu e meus primos nos entreolhamos... estaríamos à altura dessa tarefa? Quem de nós

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empunharia o machado e quem verteria uma lágrima por uma cobra monstruosa?

Mas não tínhamos opção, tínhamos? Desde o início parece estar escrito que íamos nos envolver naquela jornada louca pela floresta em plena noite.

O senhor já viu uma gravura do mestre Goya? Na época eu não a conhecia, mas desde então, toda vez que vejo a imagem, lembro daquela noite. O título? “O sono da razão produz monstros”. E era exatamente o que acontecia naquela noite perdida.

Fomos de barco, enquanto os seres pareciam nos acompanhar, alguns por terra, pela margem. Outros pela água. Um boto passou por nós, rápido, e saltou sobre a canoa, como que a nos dizer que estava ali.

De resto, a viagem era silenciosa. O barco singrava calmamente as águas sem a necessidade de remos, como que puxado por uma

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força invisível. Não sabíamos para onde íamos ou quanto tempo levaria.

De repente, a floresta pareceu parar. Todos os ruídos cessaram, exceto o murmurejar tímido do rio. Olhei para baixo e levei um susto. Uma forma monstruosa se esgueirava lá embaixo, arrastando a pele grossa contra o casco do barquinho. Era Caninana, uma cobra tão grande que se tornava difícil dizer qual seu comprimento. Seu tronco era do tamanho de um tronco de árvore. Pensei que ela iria nos atacar, mas apenas passou por nós. Adivinhei seu objetivo: ela queria encontrar Norato antes de nós... e matá-lo.

Era um silêncio perturbador, o silêncio do medo que apavorava todos os animais da floresta e os colocava em sobreaviso. Até mesmo os seres fantásticos que nos seguiam pareciam saber que um desastre se aproximava.

Súbito ouvimos um estrondo e o rio se agitou. A canoa foi sacudida por uma mão invisível, mas continuou seu percurso. Lá na frente

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o estrondo se transformara numa algazarra de sons infernais. A luta começara. Ao dobrarmos uma enseada, nos deparamos com um espetáculo assombroso: as duas cobras gigantes se agitavam, se abocanhavam, suas caldas derrubando árvores, os corpos contorcidos provocando grandes ondas. A muito custo conseguimos chegar à margem. Ficamos lá, parados, hipnotizados pelo espetáculo dantesco que se desenrolava. Apesar da balbúrdia, era possível distinguir as duas cobras: Norato era de cor clara, com uma grande lista da cabeça ao rabo. Caninana era negra como a noite.

De repente Caninana cravou seus dentes agudos no pescoço do irmão, que soltou um guincho desesperado e depois estremeceu. Por fim, a cabeça caiu na margem do rio, à nossa frente. Era enorme, maior do que a de qualquer animal que jamais vi. Apesar disso, tinha um olhar triste. Ele nos olhou e soltou um som seco, um pedido de socorro.

- Precisamos ajudá-lo. Ele vai morrer se o encanto não for desfeito. – gritou Bia.

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Eu sabia disso, mas não conseguia me mexer. Estava paralisado, o machado na mão.

- Vocês não entendem? Ele vai morrer! – chorou Bia.

Isso me despertou: Bia estava chorando, as lágrimas escorrendo por seu rosto. De todos nós, só ela sentira de fato a alma boa de Norato. Isso me deu coragem para levantar o machado. O aço desceu sobre a testa do monstro e, surpreendentemente, encontrou pouca resistência. A massa encefálica se abriu para para receber as lágrimas de minha prima.

Eu achava que tinha visto os fatos mais estranhos de minha vida até então, mas a transformação que se operou superou todo o resto: a crosta escamosa foi se metamorfoseando em uma pele humana bronzeada. O corpo foi diminuindo de tamanho e ganhando membros. Logo a transformação se completou e um índio apareceu caído na lama da beira-rio enquanto a cobra fêmea se afastava pelas águas turbulentas.

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De repente, parecemos despertar de um sono. Estávamos todos nós no meio da floresta. Não havia dragões, cobras-grandes, curupiras, nenhum ser fantástico à nossa volta. Só a floresta, densa em seus mistérios.

Mas não era um sonho. Como poderiam quatro pessoas sonhar o mesmo sonho? E como explicar que estávamos em plena mata, e não em nossas redes? Não, aquilo aconteceu mesmo. Por mais fantástico que fosse, aquilo era real.

O homem mordeu o último pedaço do sanduiche e fez menção de se levantar. Mas mudou de ideia:

- Mas há uma coisa que penso, às vezes: será que aquilo tudo era realmente necessário? Será que eles precisavam realmente de nós para transformar Norato? Além disso, porque a presença de Bruno, que no final não teve importância nenhuma na transformação? De uns tempos para cá tenho pensado em uma outra

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explicação: talvez aquilo tudo fosse uma espécie de teatro.

- Teatro?

- Sim. Um teatro. Talvez os seres fantásticos tenham simulado toda a história.

- Por que eles fariam isso?

- Para que acreditássemos neles. Para que acreditássemos.

Gian Danton é roteirista de quadrinhos desde 1989. Entre os seus trabalhos mais importantes na área estão Família Titã (Opera Graphica), Manticore (Monalisa), Mad e MSP+50 (Paninin). Tem participado de diversas antologias de literatura de fantasia. É autor do livro Galeão (9Bravos). Seu blog: ivancarlo.blogspot.com

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O guardador de versos Lucas Lourenço

Os olhos do pequeno Crispanti saltaram das órbitas assim que a relva se abriu e ele adentrou o salão. Nunca tinham visto algo tão belo.

A vereda escura e estreita, ladeada pela mata densa de galhos pontiagudos, pela qual os captores lhe guiaram, de repente abriu-se em um círculo imenso e iluminado.

As árvores retorcidas e apertadas umas às outras ficaram para trás. Outras novas, muito mais altas, surgiram. As copas esmeraldas encontravam-se lá em cima, numa abóbada natural, permeada de cipós extensos. Macacos arteiros dependuravam-se por toda parte.

Filtrada pelas folhas verdes, a luz do sol chegava amena ao solo, recoberto por

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incontáveis folhas secas, que juntas formavam um vasto pátio. Por ele, antas gordas caminhavam sem medo ao lado das jaguatiricas, cotias vasculhavam as tocas das mais venenosas cobras e índios decorados com pigmentos azuis fosforescentes faziam cafuné na barriga das onças pardas.

Tucanos-tocos e as ararajubas batiam as asas e cruzavam despreocupados o átrio, de uma árvore a outra. Os cuxiús-pretos, suspensos pelas caudas, mastigavam suas sementes preferidas. Duas preguiças namoravam na paz e paciência de suas lerdezas.

E a batida das asas de todos os insetos, o craque-craque do jabiti-piranga caminhando sobre as folhas, o cacarejar do galo-da-serra, a jiboia roçando o couro entre os galhos mais altos, o gavião-real limpando as penas e livrando-se dos carrapatos, os uacaris dilacerando a casca das frutas – e todo barulho, cada sussuro, tapa, movimento brusco, canto, conversa, coçada, grito, raspagem, assovio, cada passo, tropeço,

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rajada de vento, ribombar, remelexo, risada ou lamento compunha a melodia inebriante daquele salão no meio da floresta, que invadia as menores frestas e sossegava a fúria mais escondida dos seres.

O som da vida penetrou os ouvidos de Crispanti e, feito mágica, tirou a angústia que lhe esmagava o coração.

Tudo, entretanto, fez silêncio, quando, do outro lado, o passo de um gigante ecoou. Na galeria, as criaturas encolheram-se atrás dos galhos e dentro das fendas. Os captores apertaram ainda mais os braços curtos de Crispanti, que despertou do torpor de paz e sentiu mais uma vez os pulsos doerem.

O grandalhão aproximou-se. De cada lado, trazia consigo duas onças-pintadas maiores que qualquer outra da espécie. À distância apropriada, parou e sentou-se no ar de pernas cruzadas, à vontade como se estivesse sobre uma almofada. Em seguida, fitou o pequeno detido

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com desprezo, arquejou o imenso corpo para frente e perguntou, com nojo.

- Quem és tu?

Crispanti sentiu as pernas tremerem a ponto de os captores terem de sustentá-lo em pé.

Tentou falar alguma coisa, mas o som das palavras não lhe saía da boca. Por mais que se esforçasse, era como se a presença à sua frente lhe impusesse um respeito opressor e tomasse conta de suas próprias vontades.

O ser imenso usava pintura semelhante à dos índios que caminhavam pelo salão. Mesmo de dia, os desenhos brilhavam em azul e davam a ilusão de deixarem rastros luminescentes no ar.

Diferença é que ele era o único a ostentar um imenso cocar no alto da cabeça, cujas penas coloridas feito o arco-íris desciam pelos ombros, até a altura do abdômen. E fosforesciam ainda mais que a tintura.

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- Responde ao filho de Tupã! – ordenou um dos captores, dando um chacoalhão no braço de Crispanti.

O gigante, no entanto, decidiu por outra ideia. Sem mudar de posição, sequer sem descruzar as pernas, levitou até a frente do pequenino, a menos de um palmo de distância.

Antes que Crispanti pudesse bater os cascos e recuar, Tibatatã, o caçula de Tupã, estendeu o braço direito e tocou, com a ponta do indicador, a testa do fauno.

O pequeno arregalou os olhos e permitiu que seu mundo se abrisse à divindade.

***

Um sujeito muito branco, dos cabelos louros penteados para trás, deitava-se na relva e abria braços e pernas, como uma estrela. A leste, o sol nascia. E o homem, de frente às cores turvas que se transformavam no céu, dava um sorriso.

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Nas árvores espaçadas do pasto em que se encontrava, o jovem ouvia o canto dos primeiros pássaros despertos. Da janela aberta do casebre onde morava, o café da velha tia-avó impregnava o ar. As flores pequeninas escondidas sob a grama alta abriam-se para receber a luz e aproveitar o dia. Na ribanceira da colina, a ovelha mais faminta despertou o restante do grupo com um berro.

O homem não moveu um músculo, sequer quando a noite já se recolhera por completo e o sol pôs-se a caminhar, chegando ao ponto mais elevado do céu. Era meio-dia, mas o sujeito não tinha relógio e só almoçava quando o estômago reclamava de fome. Dormia. Acordava. Brincava com uma formiga. Dormia outra vez.

Então, de repente, sacou do bolso um folheto de propaganda e um lápis mal apontado – e escreveu no verso do papel.

Pensar é estar doente dos olhos.

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De trás dos montes, escondido em posição privilegiada, Crispanti recolhia a luneta e, depressa, anotava em um caderno o verso recém-composto pelo outro, o 152º de sua lista.

O fauno tinha por hábito colecionar coisas belas. E os poemas do jovem eram sua nova paixão.

***

A camada mais profunda da noite abateu-se sobre as colinas do Ribatejo. O barulho dos grilos e de outros insetos da madrugada pingava aqui e ali. A brisa movia devagar as cortinas do quarto; deixara a janela aberta para se refrescar. Gotas finas começaram a chover, formando o clima ideal para se dormir. Ele, no entanto, não tinha sono e, imóvel, fitava sombras na parede sem reboco. No cômodo ao lado, a tia velha roncava.

- Da mais alta janela da minha casa, com um lenço branco digo adeus aos meus versos

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que partem para a humanidade – disse ele, repentinamente.

Do lado de fora, molhado, escondido atrás do beiral da janela, Crispanti dobrava-se para dar um jeito de escrever o recém-criado tesouro sem danificar o caderno. Logo se atrapalhou e permitiu que a lua projetasse na parede o vulto arredondado de seu corpo.

Desconfiou do erro. Encolheu-se de volta. Coração batendo forte. Era hora de ir embora, mas a curiosidade o fazia ficar.

- Quem és?

Um sujeito muito branco, debruçado na janela, observava-o com um sorriso boboca nos lábios.

***

Deitado, com as patas cruzadas e a cabeça recostada em um pedaço de lenha

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abandonado, Crispanti folheava o caderno. A tarde pachorrenta não o incomodava.

- O que nós vemos das cousas são as cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? – leu o fauno em voz alta.

Voltou a virar as páginas, até parar em outros versos.

- Acho tão natural que não se pense, que me ponho a rir às vezes, sozinho, não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa que tem que ver com haver gente que pensa...

Bocejou e deitou o caderno de lado. Aprendera a obedecer de imediato às vontades do próprio corpo. Há três dias não retornava para casa e não via isto como um problema. O conforto retangular e as tarefas múltiplas do Templo não o agradavam há um bom tempo.

De certa forma, a Natureza agora era sua religião. O fauno, porém, não pensava nela desta forma. A Natureza era o que se via,

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cheirava, ouvia, tocava, provava. Era o que era, e nada mais.

Apanhou novamente o caderno e folheou as páginas mais uma vez.

- Oxalá a minha vida seja sempre isto: o dia cheio de sol, ou suave de chuva, ou tempestuoso como se acabasse o Mundo.

Alguém lhe cutucou o ombro.

- Que lês?

Crispanti sorriu ao ver o semblante do amigo.

- Teu livro está pronto, creio eu.

Algo, entretanto, estava errado. Um amarelo baço encobria os olhos do poeta, que ficou nervoso com o olhar desconfiado do fauno e começou a tossir sobre um lenço, aflito.

- Que tens? – quis saber Crispanti, levantando de imediato, em prontidão para atender o amigo.

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- Falta um último poema – respondeu o outro, estendendo o pedaço de pano para o amigo.

Uma nódoa vermelha borrava a superfície branca.

***

Pesado cobertor repousava sobre o corpo magro do poeta. De olhos fechados, deitado de barriga para cima, apenas a luz oscilante de um toco de vela lhe fazia companhia. A tia velha batia o terço no altarzinho da cozinha. Crispanti mantinha o velho costume e escondia-se atrás do beiral da janela. Não gostava de aparecer para outros humanos. Assustavam-no.

Muito tempo se passou sem que nada se alterasse entre os três.

Até que um murmúrio chegou aos ouvidos do fauno.

Ele se levantou, olhou para os cantos e viu que o enfermo ainda estava só. O poeta

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esforçava-se para chamá-lo quando pressentiu a movimentação do outro e fez um sinal trêmulo para que Crispanti se aproximasse. Ele pulou a janela e, batendo de leve os cascos, prostrou-se à beirada da cama.

- Bom amigo, preciso de um favor teu antes que eu me vá – disse o poeta, os olhos azuis acesos de emoção.

- Não digas isso, cedo vais te recuperar.

O doente sacudiu a cabeça, em negativa e voltou a falar.

- Quero que queimes o teu caderninho e liberte os meus versos. Não os quero presos a papéis e às memórias de ninguém.

***

Tibatatã afastou o dedo da testa do fauno, que cambaleou e só não caiu pois foi sustentado pelos captores.

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60 Terra da Magia

Estava exausto. Antes de morrer, o poeta obrigou-o a destruir o caderno de versos nas chamas do toco de vela. As páginas crepitaram até que restasse apenas um chumaço negro nas mãos do fauno.

Aliviado, o enfermo sorriu em agradecimento e logo em seguida deu o último suspiro.

Crispanti sentiu o desespero tomar-lhe conta do coração. Perdera o único amigo, inspirador, que durante os meses de convívio ensinara-lhe a enxergar as coisas sem vesti-las com o véu da metafísica.

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério.

Crispanti, no entanto, sabia que, no fundo, não era bem assim e se lembrou dos versos de outro sábio, um bardo que conheceu séculos atrás, quando morava em um Templo próximo a Stradford.

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61 Terra da Magia

There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy.

Quando viu Crispanti pela primeira vez, o poeta do Ribatejo não se impressionou. Um anão com pernas e chifres de bode, o que pode ser isso?, poderia ter-se perguntado. Na ocasião, entretanto, o homem sorriu e pensou: eis um anão com pernas e chifres de bode. Como vai?

Já o fauno, quando deixou o Templo para um passeio descompromissado e por acaso se deparou com o poeta em plena criação espontânea, considerou os versos tão limpos e diretos e livres de preconceito que logo concluiu o óbvio: apesar da aparência, o poeta não era um ser humano comum. Na verdade, sequer era humano.

- Isto que tenho em mãos eram versos de uma divindade – disse Crispanti, tirando o

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caderninho destruído da algibeira e entregando-o a Tibatatã.

O filho de Tupã folheou as páginas negras e retorcidas. Não era possível ler palavra alguma, uma letra sequer.

O pequeno fauno, no entanto, sabia que em todo mundo aquela entidade gigantesca era uma das poucas capazes de recuperar as páginas. Crispanti cruzara o Atlântico e atravessara as terras selvagens do Brasil, pois sabia que tinha posse de um tesouro inestimável.

Quando um deus fala, os seres inferiores escutam, mesmo que não queiram.

- Não posso devolver a vida para este caderno – respondeu Tibatatã, entregando o objeto de volta ao fauno.

- Como não? Tu também és um deus!

- Não posso dar vida ao que nunca foi vivo – disse o gigante, sacudindo os ombros.

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63 Terra da Magia

Os olhos de Crispanti turvaram de decepção.

Antes que o fauno recuasse de temor, Tibatatã avançou e tocou mais uma vez a testa do pequeno, que cerrou os olhos.

- Mas, posso reviver o que já foi vivo – concluiu.

Entre córregos de pensamentos apressados e desconexos, a mente de Crispanti iluminou-se. E, sobre uma folha branca feita de luz, em letras negras e bem-feitas, os versos perdidos do poeta gravaram-se mais uma vez. Instantaneamente.

Lucas Lourenço é jornalista, escritor e desenhista. Já publicou contos e HQs em revistas e antologias nacionais. É autor da série infantojuvenil O Laboratório da Margô, à venda na Amazon e disponível no blog www.laboratoriomargo.blogspot.com. Também publica no blog www.epeste.blogspot.com, além de ser o responsável pelas tirinhas Pequeno Sertão, veiculadas em www.pequenosertao.blogspot.com e

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em www.facebook.com/pequenosertao. Quadros, desenhos e ilustrações emwww.lucaslourenco.blogspot.com. No twitter e instagram: @lucaslofer. Email:[email protected].

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65 Terra da Magia

O Uirapuru Negro

A.Z.Cordenonsi

Armênio se arrastou para fora do

avião com dificuldade. Sua cabeça estava zonza e

ele mal conseguia respirar. Ele sentia uma dor

latejante na coxa direita, mas não podia se

preocupar com isso agora. O cheiro inconfundível

do combustível gotejando do motor fumegante o

enchia de pavor. Ele precisava se afastar do

monomotor semidestruído antes que tudo fosse

pelos ares.

Trincando os dentes, Armênio se

levantou sobre os cotovelos e engatinhou para o

mais longe possível, deixando um rastro vermelho

de sangue e suor para trás. Então, o pequeno

monomotor explodiu e uma lufada de calor e

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66 Terra da Magia

destroços o cobriu como um vagalhão. Armênio

foi atirado contra uma árvore e sua cabeça bateu

violentamente contra o tronco. Ele apagou na

mesma hora.

Dia 1

A luz do sol tinha dificuldades para

passar por entre as folhas das copas das árvores.

Pássaros chilreavam enquanto um gotejar fino

escorria pelos galhos, fruto de uma chuva rápida

que irrompera junto com o crepúsculo matutino.

Armênio acordou sentindo a boca seca, apesar do

corpo molhado. Ele levou alguns minutos para

entender onde estava e se lembrar do acidente.

Piscando, imagens desconexas passavam pela sua

mente, como se flutuassem da berlinda da sua

percepção diretamente para a sua retina,

desaparecendo tão rápido quanto surgiam. O

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67 Terra da Magia

piloto, a pista de terra, a pane de motor, uma

explosão.

Armênio abriu completamente as

pálpebras, arfando. Ele olhou para a floresta

amazônica que se estendia até onde seus olhos

enxergavam. Com um misto de pânico e

incredulidade, ele puxou um dos medalhões que

trazia pendurado no pescoço e beijou a pequena

ferradura de ouro para trazer sorte. Enquanto sua

respiração lutava para voltar ao normal, ele sentiu

uma dor lancinante na sua coxa direita. Ele puxou

um pequeno punhal que trazia preso à cintura e

abriu a calça, revelando o estrago que o acidente

lhe causara. Havia um corte profundo ali, que lhe

rasgara boa parte dos músculos. Sangue

coagulado espalhava-se pela pele e uma boa dose

de sujeira estava entranhada junto ao ferimento.

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68 Terra da Magia

Apertando os lábios, ele conseguiu se

levantar. Armênio arrancou os restos da camisa de

linho branco e usou a água que ficara represada

nas folhagens para limpar as bandagens

improvisadas. Ele sabia o que estava fazendo,

afinal, sua avó era curandeira do seu grupo e ele a

ajudara por anos no tratamento de doenças e

machucados. Os romani não gostam de médicos,

dizia-lhe ela. Sua avó resmungava que o rapaz

tinha o dom para a cura, mas o garoto fez ouvidos

moucos a sua ladainha. Ele queria ver o mundo e

não ficar preso num carroção cheio de incenso. No

fim, Armênio fez valer sua vontade e ele foi

trabalhar com o seu pai.

O romani limpou o machucado o

melhor que pode e enrolou os restos da sua

camisa para fazer um torniquete. Suando, ele se

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69 Terra da Magia

atirou ao chão, exausto. Mas ainda restava uma

coisa a fazer. Tateando com os dedos grossos, ele

puxou outro amuleto do pescoço, que mostrava

uma reluzente lua engastada. Era um amuleto de

cura, sua avó lhe dissera, antes de preveni-lo:

somente quem possuía o dom poderia utilizá-lo.

Ele mordeu os lábios. Estava na hora de

ver se a velhota tinha razão.

Inspirando profundamente, Armênio

apertou o amuleto contra a perna e entoou um

antigo canto em romani. Ele sentiu as pontas dos

dedos formigarem e um calor incomum cobriu a

ferida. Ao abrir os olhos por um momento, uma

imagem fugaz passou por entre seus olhos. Era

uma moça, de traços finos e delicados. Seria sua

avó, quando jovem? Não saberia dizer. Logo

depois, ele desmaiou.

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70 Terra da Magia

Dia 2

Quando ele acordou, o sol nascia no

horizonte. Armênio sentiu dores horríveis pelo

corpo inteiro, estava fraco e com sede. Sua

primeira reação foi passar a mão na coxa. A

bandagem estava levemente avermelhada, mas a

dor excruciante havia sumido. Ele chegou a abrir

um sorriso invulgar quando notou o que havia à

sua frente.

O romani se assustou e se agarrou ao

tronco de uma figueira que crescia, imponente, às

suas costas. Uma folha de bananeira estava

estendida no chão, com uma cumbuca

improvisada da casca de cuietê cheia de água

fresca. Ao seu lado, uma pilha de frutas deixava

escorrer o suor gelado da madrugada.

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71 Terra da Magia

Armênio virou o pescoço para todas as

direções, mas não havia ninguém. Ele esperou sua

respiração voltar ao normal antes de se

aproximar. Seria algum tipo de armadilha? Estaria

a comida envenenada?

Ele franziu o cenho. Ninguém precisava

envenena-lo. Provavelmente, estaria morto em

poucos dias. Suspirando fundo, ele se aproximou

da folha de bananeira. Ele deu um beijo em uma

estrela de cinco pontas que estava tatuada no seu

pulso e agarrou a cumbuca. Logo, ele já tinha

esquecido seus receios e comia e bebia com

sofreguidão. As frutas não podiam estar mais

doces ou frescas, e o sumo viscoso escorria por

entre seus lábios enquanto Armênio devorava o

presente que a floresta lhe trouxera.

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72 Terra da Magia

Quando ele terminou, um calor

relaxante invadiu sua mente. Ele piscou os olhos e

as pontas dos seus dedos se tornaram úmidas. Ele

tentou focar a vista, mas não conseguiu. Sua

respiração se tornara leve como uma pluma e seus

músculos afrouxaram.

Então, ele percebeu algo. A floresta

havia silenciado. Desde que acordara, o zumbido

da mata estivera sempre lá, ao fundo, uma

miríade de sons que misturavam o gorjeio de

pássaros com o saltitar de macacos que

passeavam entre os galhos. Um vento leve fazia as

folhas rangerem baixinho, enquanto o gotejar

úmido escorria pelos troncos e caules. Agora, tudo

havia desaparecido, como que por encanto.

Armênio se levantou, assustado, a

imagem de um felino à espreita passando ao largo

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73 Terra da Magia

da sua mente. Então, ele ouviu. Um pio agudo e

triste, tão melancólico e longo, que o romani

sentiu seu coração se apequenar. Sem querer, ele

se viu arfando e uma tristeza profunda arranhou

sua alma. Poucos instantes depois, um pássaro

como ele nunca vira pousou num galho de um

ingá.

Ele ficou longos minutos fitando o

pássaro, encantado com sua beleza singular, sua

plumagem negra e sua garganta avermelhada. O

pássaro cantou por cerca de quinze minutos, mas

o romani mal viu o tempo passar. De repente, ele

parou e alçou voo, deslizando por alguns metros

até parar em árvore mais distante. Sem saber o

que estava fazendo, Armênio seguiu o pássaro.

Aquilo continuou por horas a fio. O

romani se aproximava e o pássaro fugia mais para

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74 Terra da Magia

dentro da mata, parando ao longe, sempre

esperando por ele. Armênio não saberia explicar o

que estava fazendo, nem por que. Mas, de alguma

forma, algo lhe dizia que ele precisava seguir o

pássaro.

Quando a tarde findou, o pássaro se

empoleirou no alto de uma tucumã e cessou seu

canto. O romani entendeu a deixa e, depois de

improvisar uma cama com as folhas de uma

palmeira que ele encontrou no local, adormeceu.

Dia 3

Quando Armênio se levantou, não

chegou a se assustar ao perceber que uma nova

folha de bananeira havia sido depositada aos seus

pés. Faminto, ele comeu e bebeu com gosto,

sentindo uma leveza incomparável atravessar seus

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75 Terra da Magia

músculos. Ele nunca se sentira tão bem. Ele

poderia dançar e cantar um dia inteiro. Sorrindo, o

romani se levantou bem na hora que o pássaro

cantou.

Eles voltaram a se embrenhar na

floresta, Armênio seguindo a ave que assobiava o

seu canto mágico. Ao entardecer, eles se

aproximaram de um vale profundo, onde as

árvores cresciam tão densas que mal era possível

ver alguns metros à frente. O romani, parou,

sentindo um desconforto crescer dentro de si. O

pássaro cantou mais forte e Armênio fez menção

de seguir em frente, mas seus amuletos

começaram a esquentar e ele se sentiu

desconfortável. Se o romani fechasse os olhos, ele

quase podia ouvir a voz da sua avó gritando na sua

Page 76: Antologia terradamagia

76 Terra da Magia

mente, mas sua fala era confusa e seus sentidos

pareciam embotados.

O romani hesitou. O que estava

fazendo, afinal de contas? Seguindo um pássaro

canoro para dentro da mata? O que havia dado

nele?

A ave sentiu sua indecisão e voltou,

girando e piando sobre a sua cabeça, as asas

negras brilhando no lusco-fusco. Armênio se

sentiu atordoado, como se sua alma estivesse

sendo rasgada ao meio, dilacerada entre a

vontade de fugir ou de correr para dentro da

mata.

Seu cérebro queimava e o canto do

pássaro se tornava mais forte e mais atordoante,

como se ele tivesse sendo atacado por um

Page 77: Antologia terradamagia

77 Terra da Magia

enxame de abelhas que o picavam por dentro,

impedindo-o de pensar. Ele se viu cambaleando

de um lado para o outro até que seu pé pisou em

falso; desequilibrado, ele caiu por entre dois

troncos de árvores retorcidos. Armênio tentou se

segurar, mas foi em vão. Rolando, ele despencou

para dentro do vale, arrastando folhas e pedras

enquanto se debatia. Pouco tempo depois ele

bateu contra algo mais duro e parou.

O romani levou a mão à boca e sentiu o

sangue quente escorrer de um corte profundo que

rasgara sua língua e seus lábios. Seu corpo inteiro

doía e sua respiração estava fraca. No entanto,

sua mente clareara. Pela primeira vez, ele parecia

poder pensar coerentemente.

Devagar, Armênio se recostou no que

havia batido e se levantou. Por longos momentos,

Page 78: Antologia terradamagia

78 Terra da Magia

sua vista se espalhou pelo vale, o horror lhe

subindo pelas entranhas como uma aranha

tecendo a sua teia. Ele estava no que lhe parecia

ser um cemitério a céu aberto. Ossos se

espalhavam aos milhares, alguns tão velhos e

quebradiços que ele sabia que se desfaçariam em

pó se ele os tocasse; outros eram

assustadoramente novos e vestígios de carne

apodrecida reuniam nuvens de insetos em montes

enegrecidos. Mas isso não era o mais assustador.

Os ossos, e Armênio conhecia um pouco de

anatomia, devido aos ensinamentos da avó;

aqueles ossos não eram normais!

Havia esqueletos de homens e mulheres

tão compridos quanto um gigante e outros tão

baixos que poderiam ser confundidos com

crianças se não fossem os membros atarracados.

Page 79: Antologia terradamagia

79 Terra da Magia

Ossos disformes se espalhavam pelo chão, com

calombos estranhos e apêndices que não eram

naturais. Carcaças de cavalos jaziam mais a frente,

mas de suas costas subiam estruturas ovalares

que Armênio não conseguia distinguir. Ao seu

lado, jazia uma pilha de ossos de seres que

lembravam homens, mas suas arcadas dentárias

eram protuberantes e seus crânios eram

compridos, com focinhos arreganhados e caninos

compridos. Ao fundo, o romani distinguiu uma

grande ossada, muito maior que um elefante. Ela

lembrava uma figura de um velho dinossauro.

Mas, então, o que seriam aqueles ossos que

brotavam das suas costas e se espalhavam como

pétalas?

Enquanto Armênio gastava o resto das

suas forças para não sucumbir ao terror que lhe

Page 80: Antologia terradamagia

80 Terra da Magia

infligia à mente, o estranho pássaro rodopiou a

sua frente e pousou suavemente em uma arcada

ressequida. Quando a noite surgiu, iluminada por

uma lua avermelhada, um brilho estranho invadiu

o vale e o pássaro deu lugar a uma bela e jovem

mulher. Ela se aproximou com os passos eretos e

a testa erguida.

Armênio sabia que precisava fugir, mas

ele não tinha forças para tanto. Respirando forte,

ele viu a jovem se aproximar, notando a cor ocre

da sua pele reluzente e os adereços delicados que

lhe cobriam os pulsos e o pescoço. A jovem estava

nua e seus olhos cravaram no rosto tenso do

romani. Ele queria gritar, mas sua boca estava

cheia de sangue. Então, uma voz clara e límpida

surgiu na sua mente, cantada no tom do pássaro

negro.

Page 81: Antologia terradamagia

81 Terra da Magia

“Sua centelha é fraca, mas sua origem

é velha como o mundo.”

O romani tentou balbuciar algo, que saiu

em um gorgolejo. Ela continuou.

“Eles também queriam se apossar da

Luz da Velha Floresta” – disse, apontando para as

ossadas – “E, agora, sua centelha nos torna mais

fortes”.

Armênio subitamente entendeu. Ele

puxou os medalhões do pescoço, suplicando em

palavras inúteis. Ele não era um curandeiro. Nunca

fora. Aquilo pertencera à sua avó.

A jovem agarrou os medalhões com

brusquidão, atirando-os longe. “Superstições tolas

não tem lugar aqui. A centelha está no seu

sangue” – declarou, se aproximando dele.

Page 82: Antologia terradamagia

82 Terra da Magia

O romani tentou levantar as mãos, mas

o terror paralisou seus músculos. A jovem se

abaixou e sua boca se escancarou em fileiras de

caninos como um jacaré. Houve um grito agudo na

floresta e, depois, o silêncio.

A.Z.Cordenonsi é um autor gaúcho de fantasia e aventura.

Escreve sobre o que lhe passa na cabeça e não o deixa

dormir à noite, quando as ideias se derramam no teclado

como um trem descarrilado. Apaixonado por tecnologia

antiga, divide seu tempo entre ser pai, marido, professor e

escritor. É romancista e contista, espalhando fantasia e

terror por antologias diversas.

Page 83: Antologia terradamagia

83 Terra da Magia

A Presa do Metamorfo Rodolfo Santos

Naroa era uma boa amiga, simpática e

sorridente. Isto era algo no mínimo estranho para

uma meio-Iara, em suma hostis e inseguras

quanto a aproximação das demais raças. Dotada

de uma inteligência acima da média humana e de

uma aparência atraente e sedutora, eu a tinha

como uma companheira para todas as horas,

mantendo-a no disfarce de pernas falsas,

camuflando o caminhar destreinado com um

rebolado provocante, apesar de não-intencional.

Em minha mente, sua imagem era

risonha e alegre, com os braços abertos para um

abraço úmido e gélido, marcas das quais nunca

poderia se livrar. Sacudia os fios lisos e dourados

Page 84: Antologia terradamagia

84 Terra da Magia

num balançar de dançarinas, cantarolava cada

palavra melhor do que orquestras profissionais

seriam capazes de fazer. Um destaque,

certamente, em todas as atividades que contavam

com sua ilustre presença, assim como um traço

chamativo para todos os homens, o que facilitava

em muito nossa aquisição de informações.

Vê-la coberta por sangue e tripas, como

via naquele momento, era algo que até mesmo a

frieza de meus sentimentos não seria capaz de

suportar.

—Ela foi assassinada a sangue frio —

disse-me um dos assistentes da equipe de

investigadores sobrenaturais, um estagiário com

traços de vidência e percepção além do alcance.

—Quem quer que seja o assassino, não é um

homem comum.

Page 85: Antologia terradamagia

85 Terra da Magia

E não era. Eu sabia o nome do

responsável por aquela morte. Conhecia-o melhor

do que ninguém, talvez melhor do que a mim

mesma. Um inimigo do passado, algo próximo de

um rival, o único que jamais consegui aprisionar

dentre todas as minhas buscas.

O Metamorfo.

—O que vai fazer?

O novato continuou a falar, mas eu o

ignorei sem perceber. Cacei o sobretudo num dos

cabides, acertei-o no corpo como um peso extra,

exótico para um tecido como aquele. Estava

preparada para matar e, acima de tudo, para

morrer.

—Avise que estou partindo —falei, sem

me virar para o parceiro de profissão. —Vou atrás

Page 86: Antologia terradamagia

86 Terra da Magia

do Metamorfo. Volto com sua cabeça, ou sem a

minha.

Aquela floresta parecia soprar o terror

em meus ouvidos, unindo a melodia fúnebre da

brisa com o ranger doentio dos galhos retorcidos.

Tinha nas mãos uma pistola prateada com

munição de caçador, os melhores projéteis

encontrados em nosso mundo, trabalhados no

bronze celeste e na pólvora com extrato de

inferno. Nunca me perguntei como eram feitos

aqueles cartuchos, pois não era esta a minha

função. Meu trabalho, resumidamente, era

apertar o gatilho, permitindo o encontro de

aberrações com o Deus que acreditavam, ou

levando-as ao descanso merecido após

atrocidades cometidas em lugares pacatos.

Page 87: Antologia terradamagia

87 Terra da Magia

Afundei as botas num pântano que me

pareceu uma armadilha, pois a terra sólida era

enganosa sobre a imundice aquosa que me

acolheu. Empurrei os tornozelos cada vez mais

pesados para frente, movendo a água negra e

transformando o silêncio em ondas miúdas. Nos

arredores, sapos grotescos saltavam sobre raízes

raquíticas, enquanto olhos animalescos

acompanhavam meus movimentos, esfomeados

pelo odor do frescor de minha carne. Serpentes se

arrastavam nos galhos mais altos, duas delas

estavam próximas, sibilando acima das águas.

Uma soprou fogo, caracterizando-a como o

Boitatá que era. Marcou-me com os olhos

chamejantes, mas não me atacou. Talvez por

sentir em minha alma a fragrância de ancestrais

destruídos por minhas caçadas anteriores. Talvez

Page 88: Antologia terradamagia

88 Terra da Magia

por interesses próprios e distintos. Que diferença

faria?

Nas frestas das árvores, algo truculento

me observava, como um lobo em espreita de sua

presa. Ombros largos e humanoides, cobertos por

pelos de fera, salivando entre os uivos famintos e

torturantes. Assim como a serpente de chamas, o

Lobisomem não parecia ansiar por um ataque

enlouquecido, uma atitude exótica para sua raça.

Tirei das vestes uma segunda pistola, o que aliviou

parte do peso daquele traje obscuro. Algo estava

errado naquele lugar.

Escutei uma melodia. Um cântico

soturno e agradável, de voz feminina e bela.

A voz de Naroa.

—Que merda é essa? —falei em voz alta

o que deveria ser um pensamento.

Page 89: Antologia terradamagia

89 Terra da Magia

Abri caminho entre a densidão das

folhas, livrando-me de alguns arbustos com odor

de lamaçal. Saltei para escapar do terreno

pantanoso que tentava me saborear, apenas para

me deparar com uma cena que mente alguma

estaria preparada para aceitar.

Era um lago, e lá encontrei Iaras. Havia

muitas delas, debruçadas sobre troncos

derrubados ou rochas cobertas de musgos,

exibindo corpos esculturais, peles macias e rostos

monstruosos, com lábios feridos pelas presas fora

do comum. Elas cantavam baixo, acompanhando a

voz de minha amiga, ou ao menos a voz que me

trazia suas lembranças. Não poderia ser Naroa. Ela

estava morta, eu sabia. Vi seu corpo carregado até

nosso local de trabalho, assisti os exames. A voz

era de Naroa, mas Naroa não mais existia.

Page 90: Antologia terradamagia

90 Terra da Magia

Esgueirei-me entre os ramos pesados

para estudar o fenômeno exótico que se sucedia à

minha frente. Além das águas escuras daquele

lago de sereias, Curupiras dançavam com a

deformidade de seus pés, instigando passos

desastrados e assustadores. Além da primeira

serpente de chamas encontrada anteriormente,

outras cinco ou seis circundavam o espetáculo,

sibilando junto da música, em coro com o uivar de

um batalhão de Lobisomens. Feiticeiras com

corpos de fera e cabeças de crocodilo

cantarolavam suas atrocidades numa língua sem

sentido, encantando a natureza de maneira

maligna, ocasionando a perversão da água, das

folhas e do próprio ar. Três delas desenhavam

estrelas com os dedos envoltos em membranas,

parindo a simbologia antepassada naquele

Page 91: Antologia terradamagia

91 Terra da Magia

santuário catastrófico, onde se reuniam tantas

abominações.

No centro daquela multidão de seres,

um homem se levantava do solo aquoso. Sua

barba escarlate estava impregnada pelo lodo, e o

mesmo acontecia a seus cabelos e seu corpo

despido, coberto por uma vestimenta gosmenta e

asquerosa. Esticou os braços para os lados,

lembrava muito um velho mundano, de físico

treinado e olhos foscos. O que o diferenciava da

simplicidade de um humano eram os dentes

pontiagudos, surgindo num sorriso lodoso

enquanto o ser grunhia sua parte do ritual.

—Um Barba Ruiva! —deixei escapar,

surpresa por encontrar uma criatura que até o

presente momento não tinha provas de

existência. Lendas e boatos contavam sobre o

Page 92: Antologia terradamagia

92 Terra da Magia

velho coberto de lodo, mas eu nunca derrubara

um daqueles. Talvez aquela fosse uma das

melhores chances.

Algo ao meu lado farfalhou, cobri-me

com as vestes. O escudo da noite me auxiliou na

camuflagem, e assim não fui avistada quando um

grupamento de Sacis saltitou sobre as águas,

tomados por uma brisa mágica e malcheirosa. Eles

poderiam me encontrar com facilidade, mas algo à

frente chamou mais atenção, mesmo a minha, que

tentava manter os olhos concentrados nos

acontecimentos. Eram passos, mas cada um

destes fazia com que o solo tremulasse,

dispersando a sensação de um ensaio de

tambores. Aquilo surgiu por entre as árvores,

derrubou muitas delas para permitir que seu

corpanzil passasse na sinuosa trilha existente

Page 93: Antologia terradamagia

93 Terra da Magia

naquela floresta. Com mais de cinco metros de

terror, o Mapinguari me recordava dias difíceis,

nos quais eu e Naroa enfrentamos dois daqueles

monstros similares a macacos truculentos com

pelugem de agulhas. Perdia-me nos devaneios

ante a morte de minha parceira, mas a existência

de uma voz clonada me fazia frágil, facilmente

abalada pela falta de sua presença.

Foi então que aconteceu. Ela se ergueu

das águas, cantando como uma princesa coberta

de imundice, deslizando os braços numa

coreografia delicada e alegre. Tudo de Naroa

estava lá, desde sua voz até seu corpo sereiano,

seus cabelos longos e seus olhos serenos. Vi seu

corpo estripado, mas agora ela estava ali, viva e

alegre, destruindo minha mente com uma

presença que me causava saudades. Esperei em

Page 94: Antologia terradamagia

94 Terra da Magia

meu lugar, ainda que minha vontade fosse correr

e saltar sobre ela, abraçá-la com um choro de

alegria. Mantive-me impassível, e nada fiz.

Ela aplaudiu, e a música cessou,

restando o silêncio. Fora a sua própria voz aquela

a ecoar no breu noturno.

—Vejam, companheiros! —disse ela,

exibindo os seios nus, o estômago magricela e os

cabelos sem cacho algum. —Assistam à minha

renovação, entendam o retorno! Aqui, tudo se

renova, cresce fortalecido, como a natureza

manda. Aceitem o chicote que hoje vos castiga,

pois amanhã terão a benção de nossa mãe e

criadora, tornando-se os primogênitos de nossa

magia!

Alguns dos monstros murmuraram

sozinhos, outros grunhiram sons toscos. Ouvi um

Page 95: Antologia terradamagia

95 Terra da Magia

relinchar, Mulas-Sem-Cabeça estavam se

aproximando. Uma delas bateu os cascos contra a

água, saltou no lago tomado pelas criaturas, o

fogo não se extinguiu. O Barba Ruiva acariciou seu

couro resistente, sorriu com a deformidade de sua

existência e brandiu um facão de caçada, até

então escondido nas vestes barrosas.

—Entreguem-se à realidade, filhos de

uma única mãe —continuou Naroa, parecia liderar

aquele exército de horrores. —Entendam que a

dor será o menor dos males, tragada por um

mundo de prazeres e recompensas.

O primeiro a se entregar foi um

Lobisomem, atirando-se no facão sem que fosse

necessário esforço algum do Barba Ruiva. A prata

enfeitiçada cintilou, assim como o lago encantado,

ambos clamaram por uma nova vítima. Um

Page 96: Antologia terradamagia

96 Terra da Magia

Curupira se ofereceu, pulverizado com facilidade.

Brilho, um novo pedido, aqueles que assistiam

hesitavam. Uma das Mulas-Sem-Cabeça foi

sacrificada, relinchou e chamejou até que nada

restasse de seu corpo. Seguiram alguns Boitatás,

outros Lobisomens, mesmo o Mapinguari aceitou

a morte como um presente.

Ouvi cada um dos gritos, até que nada

restou para se ouvir.

Nem mesmo o canto de Naroa.

Quando o Barba Ruiva atravessou a

lâmina na própria garganta, o lago todo brilhou.

Naroa caminhou até a arma, mas ao simples

contato do metal com sua pele, não mais havia

meia-Iara. O porte masculino entregava o segredo

do sexo, mas da aparência nada se via, sombreado

por uma aura amaldiçoada. O ser retirou a arma

Page 97: Antologia terradamagia

97 Terra da Magia

do corpo do Barba Ruiva, que desapareceu como

todos os outros. Com uma língua eriçada, similar

àquelas existentes nas bocas de camaleões, o

Metamorfo lambeu a sujeira da lâmina,

deliciando-se com o sabor do sangue de cada

criatura que morrera naquela mentira.

—Como pôde?

Falei sem perceber, mas não fez

diferença. O Metamorfo sabia de minha presença.

Ele sempre sabia de tudo.

—Matar todos eles? —sorria. —É

simples, quando se é o criador.

—Não diga asneiras, monstro.

—É como homens me chamam,

caçadora. Monstro. Monstros são menos ousados,

no entanto. Chamam-me de criador. De mãe.

Page 98: Antologia terradamagia

98 Terra da Magia

A mãe de todos os monstros daquela

crença, temida e respeitada pelos índios. Histórias

que zombei, baboseiras que me tiraram risos.

Estava ali, à minha frente.

O Metamorfo era uma atuação.

Aquela era Ci.

—O que você quer, criatura? —abusei

de minha valentia. Por dentro, sentia cada

músculo tremer, hesitando no conflito com aquela

entidade poderosa.

Senti as mãos formigarem, abandonei as

pistolas. Ci tomava conta de minha mente, de meu

corpo.

—Quero todos eles, meus filhos —me

respondeu. —Quero todos para mim. Serei única

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99 Terra da Magia

outra vez, pois é preciso. Beberei do sangue de

cada um deles.

—De cada um...

Engoli em seco. Tentei fugir, era incapaz.

Estava paralisada pelo terror.

—É uma de minhas crias, Anhangá —

falou ela, e tal nome retardou minha mente,

destruindo as memórias de uma vida de teatros.

—Será como elas, um alimento.

Não.

Eu mudei. Não era mais mulher, não era

mais caçadora. O sobretudo desabou junto das

armas, inutilizado. Ganhei o corpo de um cervo

platinado, com olhos faiscantes e pele marcada

por cruzes. Bati as patas contra o solo disforme,

vaguei como um fantasma.

Page 100: Antologia terradamagia

100 Terra da Magia

—Jamais serei uma caça.

Não sei se disse ou pensei, mas aquela

era minha vontade, então fugi. Ci não me caçou,

tinha seus motivos. Sequer olhei para trás naquele

avanço. Atirei-me para a liberdade, engolindo a

verdade da falsa vida que levei durante anos, até

que o medo me abandonasse.

Mas o medo nunca abandonava o

Metamorfo. Muito menos Ci.

—Fuja se desejar, Anhangá —falava

sozinho, mas sua voz estava em minha mente. —

Tornará as coisas divertidas. No final, todos serão

meus. Meus filhos. Minhas presas.

Rodolfo Santos sonha acordado, mas jamais acorda

sonhando. Nasceu em Taubaté, interior de São Paulo,

ainda que mais lhe pareça uma cidadela de sol, cujo ar

Page 101: Antologia terradamagia

101 Terra da Magia

cheira a bonecas de pano e espigas de milho falantes.

Escrever pode ter sido uma escolha, uma opção, uma

vontade ou um acaso, mas a busca por uma história

perfeita lhe faz, ao mesmo tempo em que devora livros,

rabiscar infinitas ideias em guardanapos ou, quando

possível, ao vento.

Page 102: Antologia terradamagia

102 Terra da Magia

Em uma Terra Distante

Bruna Louzada

O animal estava agitado. Leonardo se

esforçava para tirá-lo do caminhão de carga sem

machucá-lo, mas parecia ser uma tarefa

impossível de se realizar. Desistiu, por fim, e parou

com as mãos na cabeça, tentando pensar em

algum modo mais eficiente. Mas seu raciocínio foi

quebrado pelo barulho de um motor. A

caminhonete parou a poucos metros de distância

e o rapaz franzino se apressou a abrir a porta do

passageiro. – Que diabos! O que o potro ainda

está fazendo aqui? Ele já devia estar pronto! – Um

senhor de feições respeitáveis impulsionou o

corpo para fora do carro. Carregava um longo

Page 103: Antologia terradamagia

103 Terra da Magia

cajado na mão direita, mais por acreditar na

magnificência que lhe era proporcionada pelo

objeto do que por alguma utilidade prática. Ele se

aproximou, estufou o peito e deferiu inúmeros

golpes de cajado na lataria do caminhão.

– Anda! Saí daí! Você não está no estado

de ser chamado de presente de aniversário. – O

único efeito que aquelas palavras tiveram foram o

de retrair ainda mais o animal, fazendo com que o

homem bufasse. – Dez mil dólares jogados no lixo.

Dá pra acreditar nisso?

Os empregados da fazenda se

entreolharam, porém, ninguém disse uma palavra.

Um silêncio quase sepulcral se instalou no lugar,

cortado ocasionalmente por relinchos de dor do

potro.

Page 104: Antologia terradamagia

104 Terra da Magia

– Deixem o Felicidade, ou Bombom, ou

Narigudo, ou qualquer que seja o nome que

minha filha vá dar a ele, aí. Uma hora ou outra ele

terá que sair. – Todos concordaram com a ordem

do chefe e, em menos de cinco minutos, Bree foi

deixado sozinho.

Bree. Não Felicidade, ou Bombom, ou

Narigudo, ou qualquer outro nome que lhe fosse

dado. Aquela seria a única forma pelo qual ele

atenderia: pelo nome dado pela sua mãe, o que

poderia trazer inúmeros problemas em seu

relacionamento com os humanos – não que ele se

importasse. Fora comprado pelo Sr. Nogueira (o

distinto homem do cajado, senhor daquele

imenso pedaço de terra entre Mato Grosso e

Amazonas, rodeado pela Floresta Amazônica)

quando ainda estava na barriga de sua mãe, na

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105 Terra da Magia

Grécia. O grego dono da égua havia prometido

uma cria da melhor raça possível, descendente de

uma linhagem pura de cavalos que, reza a lenda,

pertenceram aos grandes senhores da Grécia

antiga. De fato, a mãe era um ótimo indicativo do

que se esperar do filhote. Criada apenas para

reprodução, possuía pelagem negra brilhante,

postura perfeita e dentes alinhados. Bree nasceu

com quase todas as características da mãe, com

uma diferença inesperada: os pelos, tão brancos

que chegavam a brilhar em um tom prateado,

quando iluminados. O Sr. Nogueira acreditou estar

sendo trapaceado quando atendeu a ligação do

grego, recebendo a notícia, bem como um aviso

de que lhe haviam feito uma proposta melhor pela

cria. A indignação e fúria do brasileiro foram

indescritíveis. Se pudesse, teria atravessado o

Page 106: Antologia terradamagia

106 Terra da Magia

telefone e esganado aquele vendedor, mas

preferiu cobrir a oferta que o homem dizia ter

recebido. Não que houvesse alternativa, afinal,

havia prometido para sua filha que aquele seria o

presente que receberia em seu aniversário. Ao ver

o estado do animal ao chegar, teve ainda mais

certeza de que fora trapaceado, afinal, Bree

sofrera com os maus tratos e a longa viagem até o

país desconhecido, e não estava em sua melhor

forma.

Com o passar das horas, o sol pôs-se a

baixar, deixando o espaço do céu livre para a lua e

as estrelas. Bree não tinha nenhuma noção do

tempo. Tudo o que sabia era que estava com

dores e com sede, entretanto, não tinha nenhuma

vontade de se levantar. Sabia que se saísse

daquele lugar apertado não encontraria sua mãe

Page 107: Antologia terradamagia

107 Terra da Magia

ou suas irmãs ou os potros que dividiram o pasto

com ele por tão pouco tempo. Pela traseira aberta

do caminhão, podia ver um largo pasto, mas este

não parecia ser tão verde quanto o que conhecia.

Além disso, o clima daquela região não o instigava

a se levantar, nem mesmo quando a noite caiu

sobre ele. Aos poucos, Bree deixou-se tomar pela

dormência em seus músculos e pela fadiga. Era a

primeira vez em dias (talvez meses!) que não

estava preso em um caixa que balançava

insistentemente. Finalmente poderia descansar e,

quem sabe, melhorar sua disposição para

conhecer o lugar. Piscou os olhos algumas vezes,

até que eles tornaram-se pesados o suficiente

para não voltarem a abrir.

– Mas que...! – Bree acordou com o

barulho. A princípio, pensou que algum dos

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108 Terra da Magia

homens havia voltado, mas a cena que presenciou

não era o que esperava e o deixou transtornado.

Um humano (ou, ao menos, era isso que ele

pensava), estava agachado sobre sua crina. Chame

isso de instinto, pois não há maneira melhor de

explicar a sensação de Bree naquele momento.

Não sabia por que, porém sentia que precisava se

afastar daquele garoto. Havia visto crianças na

Grécia. Nenhuma parecida com aquela. Não só

pelo fato de ele ter apenas uma perna e pelo

estranho objeto que carregava na boca, mas

principalmente pelo olhar travesso, ligeiramente

malvado e impregnado de frustração.

– Por que, cavalo?! – Bree se recostou

ainda mais à parede fria do caminhão, enquanto o

garoto pulava de um lado para o outro, hora ou

outra retirando o objeto da boca. – Eu já fiz isso

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109 Terra da Magia

milhares de vezes! Uma mecha por cima da outra,

passa por baixo e zaz! Mas a sua... Essa trança não

fica parada de jeito nenhum!

O potro não entendia o que o garoto

queria dizer. Esticava o pescoço para ver sua crina,

mas ela permanecia completamente intacta e lisa,

sem sinais do que quer que fosse uma “trança”.

– ME DIZ O POR QUÊ!

– Eu não sei! – O que teria soado como

um relincho para qualquer ser humano, foi

entendido perfeitamente pelo Saci. – Eu... Não sei

sobre o que você está falando... Só quero a minha

mãe. – Uma lágrima brotou dos seus olhos.

– Mãe... Pfff... Pra que você quer a sua

mãe? Eu não tenho nenhuma e estou muito bem!

Page 110: Antologia terradamagia

110 Terra da Magia

– Ele é praticamente uma criança e está

assustado. Qualquer um nessa situação iria querer

sua mãe.

Bree e o Saci se viraram para a entrada

do caminhão, onde uma nova figura estava

parada, os observando. – Hey! Você não tem

negócio com esse carinha. Ele é meu. – O saci deu

um pulo para frente, de peito estufado, mas Bree

não reparou. Seus olhos estavam vidrados no

novo garoto à sua frente. Seus cabelos eram

vermelhos como o fogo e Bree podia jurar que vira

as madeixas vermelhas se movimentarem por

alguns segundos como uma labareda, porém

nunca pode confirmar esse fato. O potro não

reparou (por sorte, ou pensaria que todas as

crianças do novo país eram incrivelmente

estranhas) nos pés invertidos do Curupira, nem na

Page 111: Antologia terradamagia

111 Terra da Magia

forma como ele olhava desafiadoramente para o

Saci. Estava concentrado demais na sensação de

conforto e segurança que a cabeleira ruiva lhe

transmitia.

– Ao contrário! Ou devo lembrá-lo que

sou o protetor dos animais? Essa não é sua noite,

Saci. Vá aprontar com algum humano e deixe os

cavalos em paz.

O menino de um pé só passou o olhar

do moleque para o potro. Queria continuar com

sua diversão, embora estivesse incomodado com

o que havia acontecido antes.

– Por quê?

Ele não precisou completar a pergunta

para que o Curupira entendesse.

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112 Terra da Magia

– Ele não é um cavalo comum, por isso a

crina dele volta ao normal assim que você termina

a trança.

O Saci se deu por satisfeito pela

resposta. Não sabia o que o potro era, mas, ao

menos, descobrira que o problema não era ele.

Olhou mais uma vez para o animal antes de dar

uma longa risada e sair pulando para a mata,

assobiando e gritando “Saci Pererê, minha perna

dói como o quê!”.

– Venha. – Não foi preciso mais palavras

para que Bree se levantasse e seguisse o Curupira.

A transição do piso duro do caminhão para o

pasto macio foi prazerosa e reconfortante e Bree

deu um pequeno pulo em comemoração. A lua

iluminou seus pelos, um brilho prateado clareou

seu corpo por completo e, como mágica, as dores

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113 Terra da Magia

em seu corpo cessaram. – Você não nasceu para

ser prisioneiro dos humanos. Volte para seu lugar.

Ache aqueles da sua espécie.

Por alguns segundos, o potro observou a

lua, depois o pasto e a floresta para só então se

voltar ao menino.

– O que você quis dizer? Com eu não ser

um cavalo comum?

O Curupira sorriu.

– Você devia saber!

Bree teria franzido o cenho para a

resposta, se fosse capaz. Ainda assim, fez a melhor

cara de dúvida que um cavalo poderia fazer,

soltou um relincho baixo e voltou a olhar para a

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114 Terra da Magia

lua. Menino e potro permaneceram lado a lado

em silêncio, até que o ultimo voltou a falar.

– Uma noite. Eu me lembro da minha

mãe dizendo que eu não era filho de quem o

humano pensava. Que o dono de meu pai não era

humano, mas sim um deus. – O Curupira assentiu.

– Bree, você é um pégasus. Precisa abrir suas asas

e voar.

– Como você sabe tanto da minha

história?

– Meu trabalho é conhecer todas as

criaturas que eu preciso proteger.

– Certo... – Bree murmurou.

A história fazia sentido. Trotar pelo

campo nunca foi o suficiente para ele. Sentia que

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115 Terra da Magia

podia fazer mais e a cada passo que dava algo em

seu âmago lhe dizia que era capaz de fazer coisas

extraordinárias. Ainda assim, não sabia o que. Sua

mãe não havia contado sua história por completo.

Em parte porque queria que o potro estivesse

mais preparado para ouvir a história, em parte

porque não sabia que ele seria tirado de perto de

si tão cedo. Se soubesse que em pouco tempo seu

filho se encontraria sozinho em uma terra

desconhecida, sendo importunado por um Saci, o

teria preparado melhor. Agora, tudo o que restava

na mente do potro eram dúvidas.

– Como eu faço isso? – Bree voltou a

encarar o Curupira e este passou o olhar das

costas do animal para sua cara. – De fato, você

ainda é muito novo. Mas suas asas não demorarão

a nascer. – Ele se aproximou do potro, acariciando

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116 Terra da Magia

a leve protuberância que crescia em suas costas

(outro “defeito” de nascença que o grego não

mencionou ao Sr. Nogueira). – Vamos. Vou cuidar

de você até que você esteja pronto.

Bree assentiu timidamente para o novo

companheiro. Seu olhar dirigiu-se brevemente ao

caminhão e ele prometeu para si mesmo que

nunca mais seria preso em uma caixa como

aquela. No mesmo instante, uma brisa suave

cortou os corpos dos dois seres. O cabelo do

Curupira dançou ao sabor do vento, enquanto ele

esperava pacientemente pelo potro. Bree teve a

sensação de ter seus pelos acariciados de forma

quase paternal pela brisa, cujo sopro soou como

um sussurro encorajador e calmante. O potro

relinchou, apoiando-se nas patas traseiras,

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117 Terra da Magia

novamente sendo atingido pelo sentimento de ser

capaz de realizar coisas extraordinárias.

Assim, ele seguiu o Curupira, certo de

que estaria seguro e que, um dia, seria capaz de

voar de volta para sua terra natal para finalmente

reencontrar sua mãe e viver com seus

semelhantes.

É difícil entender como uma estudante de engenharia mecatrônica pode ter tanta afinidade com algo além de sua calculadora gráfica, principalmente se esse “algo” for a escrita. A paulista Bruna Louzada entrou no mundo literário aos trancos e barrancos, só aprendendo a mergulhar verdadeiramente nos livros ao por as mãos na série Harry Potter. Motivo pelo qual, no verão de 2006, caiu nas graças de um fórum repleto de jovens fãs que criavam as próprias histórias. Foi assim que suas primeiras palavras literárias surgiram e fluíram para um papel em branco, contando histórias de personagens que pareciam ter vida própria. E como a libriana não seria capaz de superar sozinha suas incertezas literárias, é

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118 Terra da Magia

preciso reservar um espaço em sua biografia para agradecer ao namorado pelo apoio e incentivo.

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119 Terra da Magia

A Solidão é Verde Jefferson Nunes

Era um amanhecer vermelho quando

chegamos aqui, assim contavam os mais velhos

nas canções de aprendizado que entoavam desde

tempos imemoriais.

Chegamos de um lugar distante, onde o

Sol deixou de brilhar e nosso mundo, verde e

vasto virou cinzas. Atravessamos tempestades

cósmicas, apocalipses estelares em uma imensa

nave.

Não lembro, éramos apenas ovos,

embriões dos sonhos de uma raça sem lar em

busca de refugio em algum mundo jovem. Guiados

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120 Terra da Magia

por alguns anciões e uma nave viva, que nos servia

de ninho e nos protegeu e nutriu no espaço.

Caímos no terceiro planeta, de um sol

recém nascido para os padrões cósmicos.

A nossa nave, localizou uma vastidão

verde, que lembrava muito nosso mundo mas a

queda não foi suave. A atmosfera queimou nossa

nave viva, que atingiu o solo já morta e nos

protegeu e aos anciões, na sua ultima missão.

Restaram poucos de nós. Da nave

sobrou apenas o suficiente para sobreviver

naquele mundo estranho e hostil.

Crescemos entre as arvores, a cada dia

nos tornávamos mais fortes e gigantes. Ao nosso

redor, lagartos dominavam o planeta, nos

olhavam como invasores que éramos e, com

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121 Terra da Magia

medo, nos refugiamos nas arvores gigantescas

onde criamos nossa civilização.

Um emaranhado, aparentemente

caótico, de arvores colossais interligadas por

galhos e cipós que se estendiam por milhas e onde

colocamos em pratica os ensinamentos que

sobraram da nave mãe morta.

Arquitetura, leis, filosofia, foi o auge da

nossa civilização exilada.

Desenvolvemos arte usando o verde

como inspiração, esculturas voadoras que

explodiam no ar e se recompunham para lembrar

e honrar nosso mundo morto.

Leis que nunca precisaram ser usadas

pois éramos poucos e estávamos longe de

sentimentos mesquinhos e fúteis.

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122 Terra da Magia

Treinamos nossos corpos e presas, com

táticas perdidas, para guerras que não foram

travadas, em campos de batalha que não existem

mais.

Arrastávamos nossos corpos reptilianos

com orgulho por entre ruas suspensas enquanto

fora dali a barbárie e a lei do mais forte dominava.

Nos alimentávamos dos frutos das arvores e às

vezes , um ou outro réptil que se aproximava dos

nossos domínios de forma distraída.

Pendurávamos-nos nas arvores com

nossas grandes caudas e os puxávamos pela

cabeça com nossas presas fortes e afiadas. Nosso

veneno os paralisava e o banquete estava servido.

Observavam-nos com desdém e medo

mas éramos jovens demais para enfrentá-los,

tínhamos o dom da paciência.

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123 Terra da Magia

Uma noite, quando a lua se escondeu

em algum lugar distante do céu, eles vieram,

Sorrateiros por entre as arvores, eram muitos,

milhares e nos surpreenderam em uma

emboscada sanguinária em busca de vingança.

Lutamos por dias, sangue manchava o

verde, conhecíamos as arvores, os emboscávamos

em volta delas, pilhas de corpos se amontoavam

em volta das arvores e o mal cheiro empesteava o

ar, nem os comedores de carniça se atreviam a

chegar perto.. Mas eles eram numerosos demais

e para cada morto, dois outros surgiam, Eles

vinham pelo ar e por terra, perdemos alguns

irmãos mas os rechaçamos. E eles voltaram para

onde vieram sem nem mesmo levar seus mortos.

Já éramos poucos e cada vez mais nosso

numero diminuía.

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124 Terra da Magia

Queimamos os corpos dos nossos

irmãos, como era o costume do nosso mundo, e

piras colossais iluminavam a escuridão lúgubre da

floresta.

Cantamos canções de morte, nossas

vozes e choro se espalharam pelo verde, e foram

ouvidas em todos os cantos.

Depois disso a paz reinou.

Os anos correram rápidos, e nossa

civilização entrava em decadência como deve ser.

Abandonamos tudo por lutas internas por poder,

que já dilaceravam nossa antiga sociedade em

nosso falecido Mundo. Tornamos-nos selvagens,

descemos das arvores e nos misturamos aos

outros seres. Caçávamos, às vezes por fome e as

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125 Terra da Magia

vezes por prazer, arrastávamos nossos corpos

gigantes pela relva.

Todos nos temiam.

Ate que veio o estranho dia. De repente,

uma imensa bola de fogo atravessou o céu em

uma manhã nublada e quieta. Nem os voadores

puderam fugir, quando o impacto do imenso

objeto, beijou o solo virgem da floresta.

Rapidamente o fogo se alastrou, e em minutos

destrui tudo aquilo que a natureza levou milênios

para tecer.

A morte não fez escolhas, seres vivos

morriam pelo calor das chamas, outros

queimavam como brasa e se jogavam,

inutilmente, nos rios ferventes e sulfurosos.

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126 Terra da Magia

Meus irmãos viraram cinzas, mas eu

escapei,

Sorte? Destino? Não, apenas estava

dormindo em uma caverna profunda, refastelado

por uma refeição. Meus olhos so observavam tudo

la do fundo da caverna, inebriado pela digestão, vi

meus irmãos morrerem em chamas.

As explosões eram ensurdecedoras la

fora, guinchos de seres mortos formavam uma

sinfonia macabra, que me acompanhou por anos a

fio.

“Estou só”, foi o ultimo pensamento que

passou pela minha mente, antes que uma imensa

pedra obstruísse a estreita entrada da caverna.

Entrei em um profundo e longo sono

naquela escuridão.

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127 Terra da Magia

Não sei quanto tempo se passou ate que

eu acordasse. Os antigos, agora todos mortos,

falavam do longo sono, mas achávamos ser

apenas uma lenda. Quanto errado estávamos.

Acordei e me arrastei pelo chão úmido e

frio da caverna. Os barulhos la fora haviam

cessado.

Empurrei a imensa pedra, usando a

força da minha cabeça, o esforço foi cansativo

mas logo a luz do sol apareceu.

Meus olhos meio cegos pela claridade

puderam ver que a floresta havia renascido, mas

agora outros seres habitavam seu chão e seus

céus.

Tinham cores e cheiros diferentes,

pulavam pelas arvores, coloriam os céus. Eu

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128 Terra da Magia

estava faminto e logo procurei alimento em meio

aqueles peludos animais.

Com o passar dos dias, eu avançava

floresta a dentro, e me convencia de que os

antigos e gigantescos animais que tanto combati,

não existiam mais e eu era o mais poderoso ser a

se arrastar pelo verde.

Os outros animais me temiam, se

escondiam quando escutavam o farfalhar das

folhas durante a minha passagem. Eu tinha me

tornado maior e mais forte, minha cauda ficava a

kilometros da minha cabeça.

Meus simples rastros eram suficientes

para os manter a distancia. Eu por algum motivo

estranho, gostei da solidão.

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129 Terra da Magia

Ate que um dia, avistei um animal

diferente de todos que já tinha visto.

Andava em duas pernas, ligeiro. Caçava

com estranhas armas, e vivia em bandos. Eu

vislumbrei suas aldeias e acompanhei seus dias.

Coemcei a caça-los, mais por esporte do

que fome. Engoli seus filhotes e fêmeas, quebrei

seus guerreiros mais valorosos.

Suas armas não me atingiam, eu era

grande demais para sentir suas setas.

Depois de anos de matança, eles se

renderam e vieram ate mim para me adorar como

um Deus. Serviam-me fêmeas em sacrifício e me

deram um nome, algo que de onde eu vim, não

importava.

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130 Terra da Magia

“Boiuna”, esse simples nome fazia os

homens tremerem, foram dias de gloria.

Continuei meu reinado na floresta ate

que os estranhos seres chegaram.

Eles vinham de longe em naves que

atravessaram o mar, eram brancos e diferentes

dos outros, falavam outra língua e traziam armas

estranhas e estranhos costumes.

Eu os observava escondia entre as

arvores, apenas meus olhos brilhantes eram vistos

a noite.

Mas eles não acreditavam em mim.

Uma noite, enfurecido pelo meu

orgulho, ataquei a aldeia. Usei toda a minha força

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131 Terra da Magia

para matar a todos inclusive os brancos, me

banquateei com seu sangue e fugi para a floresta.

Mas isso foi meu erro, as tribos se

uniram e junto ao homem branco, vieram me

caçar. Lutamos durante dias ou meses não

lembro.

Um certo dia, grupo de brancos e

selvagens tentou me cercar. Mas ali, em meio a

gigantescas árvores, eu reinava. Fui me livrando

da cada um deles. Apesar do meu tamanho

aprendi a ser sorrateira e mais perigosa.

Até que restou apenas um, branco e

ainda jovem, sua espada tremia por entre suas

mãos suadas e resolvi aparecer para ele, as vezes

o medo deles me alimentava.

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132 Terra da Magia

Ele me olhava espantado, trêmulo e

falava em sua língua estranha, mas que por algum

motivo, eu conseguia decifrar.

Ele me chamou de dragao, falou que

seus antepassados adoravam seres parecidos

comigo, mas que voavam livres nos céus.

E eu me perguntei se teríamos sido os

únicos a cair naquele mundo distante, se teríamos

irmãos em outras terras.

Ele baixou a cabeça e me fez uma

reverência antes de ser devorado, lhe dei uma

morte rápida e senti algo que não conhecia,

compaixão.

Um dia a vitoria era deles no outro

minha, assim seguia o equilíbrio.

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133 Terra da Magia

Até que dois homens, um selvagem e

um branco se uniram.

O branco trazia algo na mão que depois

soube ser uma cruz como chamavam e o outro

trazia suas crenças antigas e com elas chefiava

sete tribos.

Juntos cantaram uma estranha canção,

tentei atacá-los, mas foi inútil.

Algo ali impedia meus movimentos, eles

se deram as mãos e uma luz muito forte me

cegou. Procurei fugir para dentro da terra e fiz o

jogo deles.

A canção entoada pelo selvagem me

deixou tonto e fui uma presa fácil para o feitiço

jogado contra mim.

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134 Terra da Magia

A união de magia selvagem e cantos de

fé do branco não surtiram o efeito desejado. Eu

não tinha sido destruído e verdade, mas resolvi

me refugiar no fundo da Terra.

E lá fui esquecido em mais um sono

profundo.

Senti as coisas mudarem sobre minhas

costas, ouvi sons, senti o peso das construções,

ouvi quando os selvagens foram expulsos e

dizimados pelos brancos, escutei guerras e percebi

quando impérios ruíram.

Vi uma nova civilização nascer, senti as

pilastras de enormes construções sobre minha

cabeça.

E esperei.

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135 Terra da Magia

E nesse exato momento, consegui

mover minha cauda há muito adormecida. Resolvi

despertar e ver o Mundo que abandonei, ouvi o

estrondo e os gritos, movi minhas costas e a terra

tremeu, levantei a cabeça e a enorme construção,

onde uma mulher pisava em uma cobra, desabou.

Vi o medo em rostos estranhos, seus

imponentes prédios ruíram quando despertei.

Eu me arrastava pelo Mundo

novamente.

Jefferson Nunes é escritor, com diversos textos publicados

pela editora escala, blogueiro de um

universoparaleloqualquer.blogspot.com, e vai lançar seu

ebook de contos, Vírus Fantasma, ainda esse ano.

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136 Terra da Magia

Ensombração Alexandre Lobão

Um dos homens na mesa ao lado se levantou, com uma expressão indecifrável no rosto. Parecendo embaraçado, acenou brevemente como despedida e foi em direção à porta, sem falar nem olhar para trás.

Quando o homem que restara se levantou, levantei a mão em sua direção.

- Com licença...

- Sim?

- Perdoe-me, mas não pude evitar escutar a história que você contou, senhor...?

- Lauro. Lauro Alves.

Apertei a mão que me era oferecida. Titubeei antes de falar meu nome – afinal, nomes têm poder – mas resolvi assumir o risco.

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137 Terra da Magia

- Martelli. Victor Martelli. É que... bem, é que tive a intuição de que você procurava algo mais com sua história. Alguma ajuda, talvez?

Ele suspirou e deixou os ombros caírem, desanimado.

- É que Bia, minha prima, sumiu faz alguns dias. A polícia deveria estar procurando, mas segundo eles não há nenhuma pista do raptor, se é que ela foi raptada... E que desde que fui à casa dela, sinto que há algo... bem, algo estranho...

Percebendo sua hesitação, fiz um sinal para encorajá-lo.

- Acho que posso ajudá-lo. Sente-se aqui, por favor.

Não esperei ele se arrumar na cadeira para continuar.

- Sr. Lauro, explique exatamente porque você acha que há algo de estranho no desaparecimento de sua prima.

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138 Terra da Magia

O olhar dele mostrou a angústia, a força que fazia para colocar aquilo para fora. As palavras saíram todas de uma vez, em um borbotão que não permitia interrupções.

- Bem, eu poderia dizer-lhe que foram as circunstâncias do desaparecimento em si... mas a verdade é que, ao entrar na casa dela com o delegado, senti, e acho que vi, algo estranho. Neste momento me veio a lembrança da aventura que tivemos quando crianças, e eu soube que havia ali algo além do que podíamos ver.

- Certo. Mas diga-me, o que você quis dizer com “as circunstâncias do desaparecimento”?

Lauro contou-me, então, como Bia sempre fora a mais emotiva de toda a família, como se deixava levar pelos instintos desde pequena e como, mesmo depois de adulta, volta e meia vinha com histórias de seus contatos com os seres fantásticos que eles tinham visto quando crianças. Há poucos anos, Lauro se aventurara a ir

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139 Terra da Magia

novamente com ela em uma de suas excursões pela mata, mas enquanto ela dizia ver os seres em todas suas formas e sons, Lauro apenas pressentia um murmurar diferente nas folhas ao vento. Cegueira de adulto, supunha.

Há dois anos Bia casara com Leonardo, o amor de sua vida, e pouco depois tiveram um filho. Ela, que sempre refletira no rosto a beleza e alegria que trazia no coração, desabrochou, ficou ainda mais bela e mais feliz, se é que isso era possível.

Então, há duas semanas, um acidente de carro mudou tudo. Leonardo e Mateus, seu filho, não sobreviveram, e com eles morreu parte de Bia. Assim que saiu do hospital, milagrosamente apenas com alguns arranhões, retornou ao trabalho. Negou qualquer tipo de licença, disse que se tivesse que ficar em casa sozinha enlouqueceria. No trabalho não conversava com ninguém, mal tirava os olhos da papelada que lhe cabia despachar. Os vizinhos, sempre atentos,

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140 Terra da Magia

diziam que seu choro avançava noite adentro, até alta madrugada.

No sábado não saiu de casa, e no domingo foi à igreja vestida totalmente de preto, inclusive com luvas, um chapéu e um véu improvisado que lhe cobria o rosto. Os amigos estranharam, pois mesmo de luto Bia não abrira mão de suas usuais roupas coloridas durante a semana, e nem mesmo suspeitavam que Bia tivesse tais roupas. Depois da missa, Bia foi para casa, trancou-se e não mais saiu.

Na segunda-feira, como ela não apareceu no trabalho e não atendia ao telefone, o chefe da repartição foi até sua casa. Quando ela não respondeu à campainha, e com a confirmação dos vizinhos de que não saíra de casa, chamou o delegado e Lauro, seu primo, único parente que residia na cidade.

Quando o chaveiro destravou a fechadura, Lauro entrou junto com o delegado, temendo pelo pior. O que encontraram, porém,

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141 Terra da Magia

foi a casa arrumada, as roupas negras que ela usara sobre o sofá, à frente da televisão ligada, e todas as janelas e portas trancadas por dentro. Ao entrar no quarto de Bia, Lauro sentiu um arrepio, e com o canto do olho viu uma sombra que parecia se aproximar dele. Ao virar o rosto não viu nada, mas sentiu um arrepio como se um vento frio passasse subitamente soprasse, e então desvanecesse.

O delegado recusou-se a acreditar em um sequestro, que seria algo inédito na pequena cidade, e registrou o caso como um desaparecimento. Acreditava que Bia, entristecida, deveria ter ido espairecer a cabeça longe da cidade. Desconversou quando Lauro lembrou que as chaves da porta estavam dentro da casa (“ela deve ter usado uma cópia”), e falou que consultaria os taxistas e motoristas de ônibus da cidade para saber se ela havia pegado alguma condução para fora dali.

- E ele não achou nada?

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- Não, é claro que não.

Fiquei olhando para Lauro por alguns momentos, enquanto ele parecia reviver os acontecimentos em silêncio, procurando por algum detalhe que houvesse esquecido. Quando balançou a cabeça, confirmando em silêncio que aquilo era tudo, retomei a conversa.

- Alma-de-gato.

- Como?

- O que você pressentiu na casa de Bia é o que vocês chamam por aqui de alma-de-gato, ou alma-de-caboclo. De onde venho, são chamados de Mazikeen pelos judeus, de Waffs em partes da Inglaterra e de vários outros nomes a cada país. Mas não acho que ele tenha nada a ver com o desaparecimento de Bia, pois tudo o que estes seres fazem são acompanhar as pessoas, muitas vezes como prenúncio de desastres.

Lauro se empertigou, assustado.

- Será que algo acontecerá comigo?

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143 Terra da Magia

- Você o viu outras vezes?

- Não.

- Então relaxe.

Pedi a conta com um gesto, e comecei a me levantar.

- Você pode me levar à casa de Bia? Se é que há alguma pista, está lá.

* * *

Lauro abriu a porta e entramos. Apesar do cheiro de casa fechada, a luz que entrava pelas grandes janelas dava um tom de tranquilidade, de ambiente arejado.

- Algo foi mexido por você ou a polícia?

- Muito pouco. Basicamente, desliguei a TV e peguei as chaves.

- Estas roupas, estavam desta mesma forma?

- Sim, por que?

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- Veja como estão... Os sapatos aqui, o chapéu sobre tudo, as meias negras com as pontas dentro dos sapatos...

Levantei a borda do vestido confirmei minhas suspeitas.

- Inclusive as roupas íntimas dentro do vestido... É como se ela tivesse simplesmente evaporado de dentro das roupas...

- E isso significa algo?

- Não... Ainda não. Nada que eu saiba. Esta porta aqui, dá para onde?

- O quintal.

- Vamos a ele.

Logo após o alpendre, apontei a primeira pista: grandes marcas redondas, em uma clara trilha até o muro, ao fim do quintal. Por sorte, deveria ter chovido logo antes daquelas marcas serem feitas, e não chovera deste então. Lauro arregalou os olhos:

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145 Terra da Magia

- O que é isso?

- Um rastro de um capelobo... Ou, pior, de um labatut!

- Capelobo?

- Uma espécie de lobisomem, com um focinho comprido. É muito rápido, e se alimenta do sangue de suas vítimas.

- E o que pode ser pior que isso?

Não conseguir reprimir um pequeno sorriso. “Muitas, muitas coisas”, pensei.

- O labatut é um ciclope, com grandes presas, espinhos pelo corpo e um grande mau humor, bem diferente do Bungisngis, seu parente filipino...

- Entendi. Capelobo, ruim, labatut, pior... Alguma chance de Bia estar viva?

- Não acredito que um destes monstros a tenha atacado; haveria sinais de luta na casa. Mas é a nossa única pista, vamos precisar

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encontrar o bicho... Preciso me preparar, podemos nos encontrar aqui, digamos, em torno da uma da manhã?

Lauro pareceu se assustar.

- Uma da manhã? Não é mais seguro irmos de dia?

- Se for um capelobo, é mais fácil achá-lo de noite, pelos gritos que dá quando caça, e ele é mais fácil de lidar – basta um golpe na região do umbigo para incapacitá-lo. Se for um labatut, só conseguiremos nos aproximar caso ele esteja dormindo, então ir de madrugada é nossa única chance.

- E se for um labatut, ele tem algum ponto fraco?

Novamente, mal conseguir conter um sorriso. “Um labatut? Não, meu amigo, não conte com isso”. Mas preferi acalmar Lauro.

- Não se preocupe com isso, tenho tudo sobre controle.

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* * *

Mochilas às costas, lanternas nas mãos, avançamos pela noite, seguindo um rastro que apenas eu via. O cheiro, que poderia dar alguma pista sobre a identidade do monstro, se fora com o passar dos dias.

Na entrada da floresta, pressenti mais do que vi um pai-do-mato, como os brasileiros chamavam os ents, movendo-se lentamente ao longe. Com certeza estávamos nos aproximando - usualmente as criaturas fantásticas costumam coexistir nas mesmas regiões.

Quando os rastros começaram a se juntar a outros, mais novos, avisei Lauro que devíamos estar nos aproximando do covil do monstro. Próximo à subida do morro consegui divisar a entrada de uma gruta, escondida com algum cuidado. Estiquei a mão e arranquei, de um dos galhos que a cobriam, um grande espinho amarronzado.

- O que é isso?

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148 Terra da Magia

Com um gesto, mandei Lauro se calar.

- Isso – sussurrei - é a pista que não queríamos achar: um espinho de labatut. Vamos parar e nos preparar.

Abrindo a mochila, coloquei a grande rede que trouxera sobre os galhos, esticando duas cordas que a prendiam para um lado, e duas para o outro. Saquei a tira de bombinhas que tinha preparado, deixando-a no bolso do casaco, e entreguei a Lauro um apito de futebol, pendurando outro no pescoço. Quando Lauro fez sinal que iria perguntar algo, coloquei a mão frente aos lábios e cochichei.

- Shhh! Como a audição dele é muito sensível, o apito pode desnorteá-lo caso ele te ataque. Agora, vá em silêncio até aquele lado e segure as pontas das cordas. Ficarei deste lado, e vou dar um jeito de atrair o bicho para fora. Quando ele sair, e se prepare porque ele deve sair correndo, segure a corda com toda força!

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149 Terra da Magia

Assim que confirmei que Lauro estava preparado, acendi o pavio das bombinhas e atirei o conjunto dentro da caverna. Em poucos instantes os estouros começaram, seguidos de um urro que gelou até mesmo meu sangue.

O labatut saiu correndo com tanta velocidade que as cordas quase escaparam de nossas mãos. A rede se fechou sobre ele, mas o puxão foi tão forte que derrubou Lauro no chão. Corri para frente, para terminar de amarrar o bicho e garantir que não escaparia.

Em um instante de distração, enquanto gritava para Lauro se levantar e ajudar, mesmo preso pela rede o monstro conseguiu saltar em minha direção e me agarrar com um dos fortes braços – por sorte, o outro estava preso ao corpo por uma das cordas. Os espinhos furaram meu peito e mãos, e gritei de dor enquanto tentava empurrar para longe as presas que ameaçavam cortar meu rosto.

- LAURO!!!

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150 Terra da Magia

O bafo de carne podre chegava cada vez mais perto, e os espinhos penetravam dolorosamente na carne. Senti as costas estalarem com a pressão do aperto, e estava a ponto de desmaiar quando ouvi o estridente apito de futebol.

O monstro levantou um pouco a cabeça, incomodado, e foi o suficiente para Lauro passar a corda em seu pescoço e puxá-la com força, usando uma árvore como apoio.

O apito soou de novo, mais forte e mais perto da cabeça do labatut. A criatura gemeu, um gemido quase humano, e seu aperto afrouxou o suficiente para que eu conseguisse libertar um braço e levar meu apito à boca. Enquanto Lauro puxava a corda, forçando o pescoço da fera para trás, coloquei toda minha força em um apito que ensurdeceu até a mim.

O labatut jogou-se para o lado, tentando tampar os ouvidos com a única mão livre e o solo.

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De pé, respirei fundo e levei a mão ao apito, preparando-me para mais uma apitada. No entanto, não foi necessária. O labatut ergueu a mão e disse, a voz grossa arrastada pela dor e distorcida pelas presas:

- Não... Por favor... Não...

Fiz um sinal para Lauro, que parou de apitar mas manteve o apito à boca. Mesmo no escuro eu podia ver seu rosto pálido tremendo.

- Podem... me matar... mas acabem... com isso.

- Não queremos matá-lo, amigão. Só queremos conversar com você.

O monstro levantou a cabeça, a incompreensão estampada em seu único olho. Com certeza nunca tinha sido chamado de “amigão”.

- Conversar?

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- Isso, conversar. Desculpe pelo mau jeito, mas você não é um sujeito fácil de chamar para uma conversa.

O monstro soltou um forte grunhido, que poderia ser raiva, dor ou mesmo uma risada. Continuei.

- Alvinópolis, a cidade perto daqui. Uma casa azul, com um muro no quintal. Você esteve lá quatro ou cinco dias atrás.

- Muitas casas... Muitos muros... Procuro gato, cachorro... Não gente... comida...

Lauro se aproximou, encorajado pela conversa.

- Você foi à casa da Bia perto do dia em que ela desapareceu! Vai dizer que foi apenas coincidência?

O labatut arregalou o olho.

- Bia? Casa... de Bia?

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Ele então franziu o olhar, encarando Lauro.

- Sim... Sim! Você... Lauro! ... Primo Bia!...

Lauro deu um passo atrás. O monstro tentou se sentar, mas a rede o impediu.

- Não quero... mau... a vocês... Tirem rede?

Sei que estas criaturas mais simples não sabem mentir, pelo que, apesar do medo ainda estampado na face de Lauro, saquei uma faca e cortei a rede, deixando a criatura sair. Ele se sentou em uma pedra, ainda encarando Lauro.

- Lembro... você... criança!

Sua boca se abriu no que pretendia ser um grande sorriso, mas que só conseguiu nos dar calafrios. Depois de mais uns instantes, começou a falar.

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- Bia... triste!... Eu... visitava, fazia... ela sorrir... Mas ela... triste. Muito triste.

Estendeu a mão grosseira, com cinco dedos.

- Cinco noites... ela triste... Então... ensombrou...

- Como?

- Ensombrou... Menos gente, mais sombra... dia depois de dia... depois, ouvi... Na porta da casa... só sombra... Ouvi... Menos coração, mais sopro e vento... só sombra...

Lauro olhava para o labatut como quem não compreendia, ou quem não queria compreender. Aproximei-me e coloquei a mão em seu ombro.

- A sombra que você viu, Lauro. Não era um alma-de-gato, era a despedida dela.

As pernas dele pareceram fraquejar, e ele se apoiou em mim. Colocou a outra mão no

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rosto e começou a chorar, desconsolado. Nem reparamos quando o labatut se aproximou e imitou meu gesto, colocando a mão em seu ombro.

- Não triste... Bia feliz... Bia ensombrou... achou quem Bia procurava... Bia aqui, e lá.

Lauro olhou para o grande olho que, marejado, parecia mais humano que nunca. Enxugou as lágrimas e tentou se recompor, mas as palavras ainda soaram amargas.

- “Ela está com quem ela ama...”, “Ela está melhor agora...”, é o que todos dizem quando alguém morre! Mas ninguém...

O labatut o interrompeu, a voz rouca soando imperativa.

- Eu não falo... vejo! Bia aqui... e Bia lá... Bia com quem ama, aqui e lá.

Como se para confirmar o que a criatura falava, percebi uma sombra que se aproximava de

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Lauro. Ele não a via, mas notei que sentiu quando ela ficou ligeiramente mais densa e o abraçou.

- Bia?

O labatut roncou alto, agora com certeza uma estranha risada.

- Viu? Bia aqui, e Bia lá!

Lauro sorriu tristemente e balançou a cabeça, em um gesto amigável para o labatut.

- É, grandão. Bia aqui e Bia lá. Obrigado.

Lentamente, a sombra se separou dele e foi se tornando mais e mais etérea, até que finalmente ensombrou-se na noite.

Alexandre Santos Lobão iniciou sua carreira profissional como analista de sistemas no Banco do Brasil, e desde então atuou como empresário, consultor na área de serviços da Microsoft e servidor do Banco Central. Além disso, atuou em atividades de desenvolvimento de jogos eletrônicos e escrita de livros, angariando experiências diversas que renderam diversos livros e

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sua participação como consultor, palestrante e facilitador em cursos nas áreas de Gerenciamento de Projetos, Criação de Jogos Eletrônicos e Técnicas de Produção Literária. Recentemente, tem concentrado seus estudos na área de gestão de conhecimento e planejamento estratégico.

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Sr. Guerreiro

Joe de Lima

Dez da noite. Lúcio cansou de ficar plantado no banco do motorista. O negro saiu do carro estacionado e decidiu aguardar a ligação no bar do outro lado da rua. A favela da Peneira ficava perto, mas não temia ser identificado. Macedão era o único da quadrinlha que o conhecia e se, por acaso, ele entrasse ali, tanto melhor. Facilitaria a tarefa de estourar os miolos do filho da puta.

O local estava lotado, cheio de gente em busca de um caminho rápido para a cama de alguém. O próprio Lúcio era um negro bonito, de cabeça raspada e queixo quadrado. A camisa de mangas curtas ressaltava os músculos bem trabalhados, porém, a cara de poucos amigos espantava os olhares femininos.

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Ele ocupou uma mesa mais afastada, pediu uma cerveja e um sanduíche de mortadela, os quais mal tocou quando chegaram. Tirou um maço de cigarros do bolso da calça, a proibição de fumar em locais públicos parecia não valer naquele bar, mas onde é que guardara o isqueiro?

Uma lata de refrigerante pousou sobre a mesa. Lúcio deparou-se com uma loiraça na casa dos 30. Os cabelos caiam numa cascata de cachos dourados, o tomara-que-caia valorizava os seios fartos, a bermudinha deixava as coxas à mostra. Ela tirou um isqueiro prateado do bolso e se ofereceu para acender o cigarro.

Primeiro ele desconfiou, depois pensou que se Macedão o tivesse descoberto, mandaria moleques com fuzis ao invés de uma boazuda. Achou melhor ser discreto e aceitar. A estranha tomou a liberdade de sentar-se.

— Vou pedir um copo para você — disse ele.

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— Agradeço, mas dispenso. A cerveja brasileira é suave demais para o meu gosto.

O jeito de falar e a pele alva evidenciavam a origem estrangeira. Uma turista curiosa para ver a favela, por certo.

— Sou Lúcio. Lúcio Guerreiro.

— Pode me chamar de… er… Bruna, sr. Guerreiro.

— Então é de fora? Gostou de alguma coisa no nosso país?

— Na verdade, gosto do que vejo agora — os lábios sensuais exibiram um sorriso provocante.

— Desculpe, mas já tenho planos para essa noite.

— Posso ver que tem. Há uma faísca no seu olhar típica de quem planeja algo. Duvido que seja algo bom.

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Antes que Lúcio pudesse retrucar, o celular vibrou. Ele pediu licença com um gesto. Ouviu a voz do Maninho.

— A dica tava certa. O Macedão deu as cara na Peneira.

— Sabe a razão?

— Chegaro umas minina nova no puteiro do campinho, ele foi vê a mercadoria. Acho que fica a noite inteira.

— Bom trabalho, mereceu o quanto paguei.

— Tô vazano, chefia. Tem nego armado pra tudo que é lado, até dero toque de recolhê.

Maninho desligou, Lúcio respirou fundo. Deu outra mordida no sanduíche, dessa vez, mastigou devagar. Bebeu um grande gole, saboreando cada gota da cerveja.

— Vendo-o, eu poderia jurar que faz sua última refeição. — disse Bruna.

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— Ninguém sabe quando vai morrer. Quem me garante que essa não é minha última cerveja? — ele deu uma tragada — E meu último cigarro?

— E o último sexo?

— Minha mulher não aprovaria — Lúcio levantou. — Mas pode me desejar sorte.

— Prefiro que seu intento seja mal-sucedido.

— Turista maluca — resmungou ele enquanto tirava da carteira o dinheiro da conta.

— Até mais tarde, sr. Guerreiro!

Lúcio levantou os olhos, Bruna já não se encontrava à mesa, nem em lugar algum do bar. Dando de ombros, ele sinalizou para o garçom que deixaria o pagamento em cima da mesa. Saiu do bar apressado, entrou no carro e partiu rumo à favela da Peneira.

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No caminho, ficou pensando no que dissera à Bruna sobre a esposa. A verdade é que Soraia jamais aceitaria qualquer de seus segredos.

Era uma boa mulher. Adorava crianças, por isso escolhera ser professora de jardim de infância. Seu único defeito foi falhar em perceber que amava um homem da pior espécie. Não só pelas amantes que ela nunca descobriu, mas pela outra profissão do marido.

Além de ser um agente de segurança, Lúcio também trabalhava como matador profissional, e dos bons. Encontrara em Macedão o cliente ideal: nunca pedia desconto e sempre pagava adiantado. A parceria foi desfeita quando Lúcio recusou um serviço, mas ficou com o dinheiro. Ideia estúpida. Era óbvio que um rei do crime organizado cobraria a dívida com juros.

Uma tarde, Soraia foi seqüestrada na porta da escola onde lecionava. Horas mais tarde, encontraram-na morta com sinais de espancamento e estupro.

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Com a visão embaçada pelas lágrimas, Lúcio estacionou em uma rua sem asfalto ao pé do morro e passou os minutos seguintes recompondo-se.

Antes da noite terminar, pretendia meter uma bala na cabeça dos dois responsáveis pelo assassinato de Soraia: Macedão e ele próprio. Nem tinha esperanças de reencontrá-la no outro mundo. Se realmente existia vida após a morte, o lugar em que ela deveria estar não permitiria a entrada de uma alma como a sua.

Ele apanhou uma mochila no banco de trás. Sua arma de trabalho costumava ser uma 9 mm, mas essa noite era especial. Tirou da mochila uma robusta Desert Eagle.50 com pente de 16 balas, conhecida pela potência exagerada para uma pistola. Guardava ainda outra arma idêntica. Para completar, colocou na cabeça um gorro vermelho que Soraia lhe dera no natal.

Ao descer do carro, pisou num estranho objeto de metal, uma pena feita de aço. Chutou-a

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para longe e seguiu para o morro por vias pouco iluminadas.

A maioria dos casebres da favela não possuía reboco e tinha pequenas janelas com cortinas, encimados por caixas d’água. Morro acima, as ruas convertiam-se em ruelas, depois em vielas, o espaço entre os barracos estreitava-se mais e mais.

Poucas pessoas arriscaram sair de casa, o toque de recolher dos bandidos assustara os cidadãos de bem. Se a polícia não fosse corrupta, viaturas estariam subindo o morro agora, na tentativa de prender um dos maiores líderes do crime organizado numa das raras ocasiões em que deixava a “fortaleza” que erguera na Rocinha.

Com as pistolas em punho, Lúcio aproximou-se de seu objetivo. Viu um par de capangas descer uma ruela, armados com fuzis de assalto. Graças às sombras, ele conseguiu passar para o outro lado sem ser visto, enfiando-se num vão apertado entre as casas. Adiante, havia uma

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rua maior e depois, uma área aberta. Era o campinho de terra batida, rodeado por um alambrado enferrujado.

Já podia ouvir a música alta do bordel, no outro lado do campo. Vozes próximas atraíram a atenção dele. Protegido pela quina da parede de uma casa, observou a rua maior e viu quatro homens armados há uns trinta metros, um deles brincava de jogar uma bolinha preta para o ar. Outros três aproximavam-se. Sete no total, um grupo grande. Seria melhor dar a volta.

— Ei! — gritaram às costas de Lúcio.

Ele voltou-se para encarar os dois sujeitos que desciam a ruela. O tinham visto afinal. Ambos ergueram os fuzis de assalto, Lúcio foi mais rápido com as Desert Eagle. Um rombo abriu-se no peito de um dos capangas, o outro foi atingindo no rosto, a parte de trás da cabeça explodiu.

Lúcio ouviu o grupo de sete homens correndo na direção do som dos tiros, mas ao

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invés de fugir, decidiu aproveitar o elemento surpresa. Atravessou a rua maior velozmente, as pistolas cuspindo fogo. Seis caíram num instante. O sétimo era o da bolinha preta. Lúcio fez pontaria, mas viu que se tratava de um garoto de 14 ou 15 anos. Ele hesitou, o moleque não.

A bolinha veio quicando pelo chão e caiu junto ao tênis direito de Lúcio. Ele percebeu tarde demais ser uma granada de mão sem o pino.

— Merda!

A granada estourou. O golpe de ar jogou Lúcio sobre o alambrado. A camisa enroscou no arame, rasgando-se. Ele girou sobre a tela e caiu com o rosto na terra do campo de futebol. O tronco nu, a respiração pesada.

Apesar de tudo, por um instante, sua atenção foi atraída pelo brilho opaco de outra pena de aço sobre o solo.

O arrastaram e colocaram-no sentado com as costas apoiadas no alambrado. Ele

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percebeu que o dano fora pior do que imaginara. Da perna direita, restava apenas metade da coxa. A hemorragia abundante lhe deixava poucos minutos de vida.

Erguendo os olhos, Lúcio viu, além do moleque, um brutamontes, um branquelo tatuado e o obeso Macedão, com o cabelo curto, barba por fazer e pele queimada de sol, vestindo uma camisa social amarrotada, com as mangas dobradas. O chefão empunhava as duas Desert Eagle.

— Que merda, Lúcio! — esbravejou Macedão. — Tu fica puto por causa da sua esposa e vem descontar em mim?! A culpa é tua por não ter feito o serviço do deputado!

— Você queria apagar o filho do deputado — retrucou Lúcio com a voz arrastada. — Eu não mato criança.

— Devolvesse a grana, porra!

— Não vim conversar… Vim te matar…

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Em resposta, Macedão jogou uma das pistolas ao alcance de Lúcio.

— Vai lá, mata!

Fraco, Lúcio precisou de um esforço enorme para erguer a pistola. Macedão atirou em seu ombro. O tiro pegou de raspão, mas o fez largar a arma.

— Apaguem esse bosta e limpem a sujeira. Vou esperar no bar.

Lúcio viu Macedão caminhar para fora do campo. No instante seguinte, uma chuva de pontapés o atingiu. Quando os agressores deram-se por satisfeitos, o brutamontes adiantou-se para terminar o serviço com o fuzil.

Nesse momento, um clarão surgiu no campinho. A silhueta de uma figura alada emergiu da luz com uma espada em punho. Lúcio pensou que a entidade vinha levar sua alma. Então, percebeu que seus três agressores também estavam aturdidos.

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A luz diminuiu, revelando que a tal entidade era Bruna. Ela ainda vestia os mesmos trajes, mas de suas costas brotava um par de asas de penas de aço. A espada possuía um cabo dourado ornamentado e jóias incrustadas na guarda.

— Cavalheiros — ela dirigiu-se aos agressores. — Como minha honra me permite matar somente em batalha, peço que ergam suas armas.

Os três entreolharam-se confusos. O brutamontes preparou o fuzil para atirar.

— É melhor ficar na sua, gostosa!

Bruna avançou num ataque veloz como o vento. A lâmina da espada atravessou o peito do brutamontes. Enquanto o corpo caía, ela viu, pelo canto do olho, que os outros dois iriam atirar.

Mais que depressa, ela curvou-se e fechou as asas metálicas sobre si. Os tiros ricochetearam nas penas de aço sem causar dano.

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Assim que os disparos cessaram, Bruna projetou-se contra o branquelo tatuado com um ataque circular na linha do pescoço. A cabeça dele foi decepada.

O olhar determinado de Bruna acabou com a coragem do moleque. Apavorado, o garoto jogou o fuzil longe e pôs-se a correr.

Vencida a luta, a loira se aproximou de Lúcio.

— Bruna…?! — a voz soou fraca. — Você é um anjo?

— Não, sr. Guerreiro. Meu verdadeiro nome é Brunilda, sou uma valquíria.

Como o tempo era curto, ela abreviou a história.

— Venho de Asgard, um mundo espiritual mergulhado em uma guerra milenar. Nós, valquírias, viajamos pelo globo em busca das almas de combatentes valorosos para nosso

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exército. O acompanho há algum tempo, sr. Guerreiro. Acredito que tenha muito potencial.

Bruna apanhou a Desert Eagle e a ofereceu à Lúcio.

— Se escolher vir comigo, posso estender sua vida até que complete sua vingança. A outra opção que tem é esperar a morte chegar e deixar seu inimigo sair impune.

Lúcio não sabia dizer se aquilo era real ou apenas um delírio, mas se houvesse uma chance de vingar Soraia, não precisava pensar duas vezes. Com as últimas forças, segurou o cabo da pistola.

Bruna começou a brilhar. A luz trouxe alívio para suas dores e lhe renovou vigor. Deu por si dentro do bordel ao lado de Bruna, perfeitamente equilibrado sobre a única perna.

Ao vê-lo, Macedão, reagiu por instinto. O chefão saltou da mesa com a Desert Eagle em

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punho. Lúcio foi mais veloz e o baleou na clavícula.

— Sumam-se, rameiras! — ordenou Bruna.

As prostitutas correram para fora do bordel. Macedão viu-se sozinho, encurraldo.

— Lúcio, eu…

Lúcio puxou o gatilho. Estava feito.

Ele soltou o ar. Nervoso, levou a mão ao bolso de trás para pegar um cigarro, Bruna lhe jogou o isqueiro. A loira deu uma boa olhada nele: sem uma perna, torso descoberto, as marcas da noite no corpo e o gorro vermelho. Nem parecia o mesmo homem de horas atrás.

Após uma boa tragada, Lúcio acalmou-se.

— O Macedão merecia sofrer, mas Soraia não aprovaria — ele voltou-se para Bruna. — E agora?

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Ela estendeu a mão satisfeita.

— Agora, sr. Guerreiro, vamos para Valhala, onde outras batalhas nos aguardam.

Lúcio segurou a mão dela. Um clarão iluminou a noite e quando apagou, ambos haviam partido.

Joe nasceu em 1981, fruto da geração internet, sua formação como autor se deu quase toda pela grande rede. Ainda em início de carreira, publicou contos nas antologias Lugares Distantes e PsyVamp (Ed. Infinitum), Angelus e Daemonicus (Ed. Literara) e Mundos – vol. 2 (Ed. Buriti). Também publicou via blog a série literária Serpente de Fogo. Seu blog: www.joedelima.blogspot.com.br