antologia terradamagia
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2 Terra da Magia
Terra da
magia
Gian Danton (Organizador)
Capa JJ Marreiro e Fernando Lima
3 Terra da Magia
Terra da Magia
Antologia organizada por Gian Danton
Autores:
A.Z.Cordenonsi -Alexandre Lobão -Bruna Louzada
– Jefferson Nunes -Joe de Lima - Lucas Lourenço -
Roberta Spindler - Rodolfo Santos
DANTON, Gian. Terra da magia. Curitiba:
Quadrinhopole, 2014. E-book.
ISBN 978-85-917606-3-3
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Apresentação
Embora tenha antecedentes famosos,
entre eles os mitos de Gilgamesh e a Odisseia, a
literatura de fantasia moderna surge, não por
acaso, com o romantismo.
O romantismo aparece no contexto
ocidental como uma reação à estética neo-clássica
e ao racionalismo iluminista. O iluminismo
prometia tirar o homem das trevas e do
misticismo da Idade Média para colocá-lo numa
era de razão e progresso. Os românticos viam isso
como uma falácia. A razão não era o caminho para
a humanidade, mas o sentimento.
Não por acaso, um dos romances mais
importantes do período, e pedra fundamental do
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que viria a ser a ficção-científica era uma crítica à
ciência: Frankstein ou moderno prometeu
mostrava os perigos da razão sem ética.
A ficção científica só viria a se tornar um
gênero próprio, separado da fantasia, décadas
mais tarde, quando Júlio Verne, influenciado pelo
samsionismo, imaginou um mundo que
maravilhas podiam ser conseguidas através da
ciência, seja chegar à Lua, seja viajar ao fundo
mar.
O neo-clássico volta-se para a Grécia
antiga, berço da razão. A fantasia, em oposição,
volta-se para a Idade Média, época de misticismo
e mistério.
A Idade Média tinha forte tradição de
romances de cavalaria (uma mistura de mitologia
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cristã e pagã) repletos de misticismo, heróis,
feitceiros, espectros, animais místicos, objetos
mágicos e seres elementais, ligados à natureza e
vindos diretamente das tradições dos povos
bárbaros.
Ítalo Calvino no livro Contos Fantásticos
do Século XIX relaciona o conto fantástico com a
especulação filosófica do período:
“Seu tema é a relação entre a realidade
do mundo que habitamos e conhecemos por meio
da percepção, e a realidade do mundo do
pensamento que mora em nós e nos comanda. O
problema da realidade daquilo que se vê – coisas
extraordinárias que talvez sejam alucinações
projetadas por nossa mente; coisas habituais que
talvez ocultem, sob a aparência mais banal uma
segunda natureza inquietante, misteriosa,
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aterradora – é a essência da literatura fantástica,
cujos melhores efeitos se encontram na oscilação
de níveis de realidade inconciliáveis”.
Segundo Calvino, a literatura fantástica
nasceu com o romantismo alemão, mas se
espraiou por toda a produção do período. Difícil
encontrar autor romântico que não tenha
colocado o maravilhoso, o inexplicável em suas
obras, em especial Edgar Alan Poe, o pai da
literatura de gênero. No Brasil um autor que se
aventurou pelo fantástico foi Álvares de Azevedo.
Seu livro de contos Noite na Taverna é um dos
melhores exemplos disso.
Essa fuga para o passado irá se
transformar na alta fantasia, quase sempre
ambientada na Idade Média, real o ou imaginária,
ou na Espada e magia, ambientada em um
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passado ainda mais distante, como em Conan, ou
em mundos muito diversos do nosso, em que o
fantástico torna-se normal, como em Elric.
A ópera O anel de Nibelungo, de Richard
Wagner, obra-prima do romantismo, representa
essa tendência, e irá influenciar um dos maiores
nomes do gênero, Tolkien, até mesmo no tema do
anel de poder.
Tzevetan Todorov, no livro Introdução à
literatura fantástica explica que a fantasia ocorre
num mundo em que não é exatamente o nosso,
um mundo povoado por diabos, sílfides, vampiros,
no qual produz-se acontecimentos que não
podem ser explicados pelas leis de nosso mundo.
Diante dele, leitor e herói se vêm diante de duas
possibilidades: ou o que ocorreu é fruto da
imaginação, ou sonho (como Narizinho, que
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acorda no final do primeiro livro infantil de
Monteiro Lobato ou em Alice no país da
Maravilhas) ou o acontecimento é real e, nesse
caso, essa realidade é regida por leis que nos são
desconhecidas. O fantástico é essa hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, diante de um acontecimento
aparentemente sobrenatural.
Para Todorov, portanto, o fantástico
implica não só a existência de um acontecimento
estranho, mas é preciso que o texto obrigue o
leitor a considerar o mundo das personagens
estranhas como um mundo de criaturas vivas e a
hesitar entre uma explicação natural e
sobrenatural. Essa hesitação é normalmente
experimentada por um dos personagens da
narrativa, muitas vezes o herói.
10 Terra da Magia
Roberto de Sousa Causo, no livro Rumo
à Fantasia, cita a definição do The Oxford
Companion to English Language: “geralmente se
concorda que (a fantasia) é ambientada em um
mundo distante da experiência comum, alguns ou
todos os personagens são diferentes de qualquer
criaturas conhecidas, o mundo de fantasia tem as
suas próprias regras e lógica, e é normalmente
bem ordenado dentro delas, e qualquer
personagem quotidiano que entre nesse mundo
tem que se conformar ao novo modo de vida. De
modo semelhante, criaturas fantásticas podem
entrar no mundo familiar, e quando o fazem os
seus poderes frequentemente prevalecem”.
O mesmo Roberto Causo lembra que a
fantasia se consolidou como gênero literário no
mercado editorial a partir de 1923, com a criação
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da revista Weird Tales. Foi nela que surgiu o
gênero Espada e Magia, representado
principalmente por Conan, de Robert A. Howard,
que escreveu para essa e outras publicações.
A outra corrente famosa é a alta
fantasia, representada principalmente por J.R.R.
Tolkien de O Hobbit e O senhor dos anéis. Nessa
vertente, o autor cria todo um mundo próximo,
mas diferente do nosso. Esse mundo é descrito
em detalhes culturais, geográficos e históricos ao
longo da narrativa e o leitor se acostuma à regras
desse novo mundo (vale lembrar que Robert A.
Howard também definiu muito bem o mundo de
Conan, mas com outro enfoque).
Vários outros autores da época se
debruçaram sobre o gênero, com destaque para
As crônicas de Narnia, de C.S. Lewis, que colocou
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heróis humanos normais atravessando para um
mundo de contos de fadas, em que existem
duendes, centauros, magos, feiticeiras e muitos
outros, numa quase apresentação prática dos
princípios de Todorov.
Embora tenha feito um sucesso relativo
na época de sua publicação (1954-1955), a saga de
O senhor dos Anéis só se tornou um sucesso
estrondoso na década de 1960, quando um
editora americana aproveitou o fato de que o livro
não havia sido registrado nos EUA para lançar uma
versão não-autorizada e barata. O livro fez
enorme sucesso com os hippies, uma geração
muito parecida com a dos românticos do século
XIX que transformaram a fantasia em um gênero
literário. Como os românticos, a geração dos anos
1960 criticava o racionalismo e pregava uma volta
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a um mundo menos tecnológico e mais
sentimental.
O gênero ganhou ainda mais
popularidade com a criação do RPG Dungeons
and Dragons e da série televisiva derivada, A
caverna do dragão, um sucesso extraordinário até
hoje. A animação da Disney A espada era a lei
também merece destaque por retomar o mito
arturiano, assim como o filme História sem fim
(baseado no livro do escritor alemão Michael
Ende).
Finalmente, tivemos recentemente o
fenômeno Harry Potter e os filmes de O senhor
dos anéis, Crônicas de Narnia e Guerra dos
Tronos, que aumentaram ainda mais o interesse
pela fantasia fazendo com que ela concorra
fortemente com a ficção científica.
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Hoje duendes, dragões, sereias elfos
fazem parte do imaginário popular de milhões de
pessoas. Mas, se os primeiros escritores
germânicos que se debruçaram sobre o gênero
tinham uma rica mitologia para explorar, nós
também temos: mapinguaris, sacis, mãe-d´água,
cobra grande, os exemplos são muitos.
Infelizmente essa riqueza raramente
vem para a literatura. São raras as iniciativas de
utilizar a mitologia nacional para criar um universo
de fantasia.
Talvez falte um diálogo com a mitologia
clássica da fantasia, um encontro dos sacis com
hobbitts, de sereias com a mãe d´água, de dragões
com a cobra grande.
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Essa é a proposta da antologia Terra da
Magia: provocar um diálogo de duas mitologias,
criando histórias tipicamente de fantasia, mas
com um sabor regional.
Gian Danton
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O Despertar de Boiúna
Roberta Spindler
O sol era forte e o calor, tipicamente
equatorial, grudava as roupas no corpo. Mesmo
com aquele clima abafado, a praça daquela
metrópole amazônica estava movimentada. Vários
corredores se exercitavam, senhoras passeavam
com seus cachorros e as barracas de água de coco
fervilhavam. No meio de tanta gente, um homem
de cabelos cinzentos e olhos amarelados
descansava em um banco de madeira,
aproveitando a sombra de uma samaumeira. Era
impossível não notá-lo. Sua pele era de uma
palidez incomum, quase doentia, e as roupas que
usava não condiziam em nada com o verão local.
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Observava com curiosidade as garças que se
empoleiravam no topo da grande árvore, mas não
estava alheio aos comentários sussurrados e a
desconfiança daqueles que passavam ao seu lado.
— Não importa onde estamos, Liz, os
olhares são sempre os mesmo — comentou de
maneira casual, ainda com os olhos fixos nas
graciosas aves sobre sua cabeça.
O bolso da frente de seu casaco preto se
movimentou e uma cabeça minúscula com orelhas
pontudas apareceu. Olhos astutos percorreram a
praça em menos de um minuto e depois voltaram
a desaparecer no interior da veste.
— Ainda não compreendi o motivo de
estarmos aqui, Damian — a voz era fina e
delicada, mas demonstrava bastante irritação. —
Com tantas propostas de trabalho, por que
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aceitou justamente aquela que ficava do outro
lado do oceano?
O homem chamado Damian riu de
maneira divertida. Estava na capital paraense fazia
apenas algumas horas, mas sua pequena
companheira não parava de reclamar.
— Liz, você está se tornando uma fada
bastante irritante. Desse jeito vou ter que
procurar uma nova assistente.
— Você diz isso porque não está preso
em um bolso de couro que mais parece uma
sauna! E por falar nisso, quantas vezes tenho que
lembrá-lo de usar desodorante?
Aquela reivindicação fez Damian
gargalhar alto, atraindo olhares confusos dos
transeuntes próximos. Estava pronto para
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responder à altura, quando um inesperado tremor
tomou conta da praça.
As garças levantaram voo e as folhas das
árvores caíram, criando uma verdadeira chuva
verde. Os corredores pararam, as senhoras
gritaram e os cachorros uivaram. Nas ruas, carros
frearam bruscamente, alguns chegando a colidir.
O caos durou exatamente dois minutos e se foi
tão rápido quanto surgiu. Percebendo que o pior
tinha passado, as pessoas começaram a se
acalmar. Um vendedor de coco soltou uma
imprecação quando viu a maioria de sua
mercadoria espalhada pela calçada.
— Esse já é o terceiro terremoto essa
semana! Mas que diabos está acontecendo?
Damian estreitou os olhos ao ouvir
aquele comentário. Pensou em ir até o vendedor e
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questioná-lo sobre os tais tremores, mas sua
atenção acabou se voltando para a bela mulher
que caminhava em direção ao banco de madeira.
— Isso está ficando bem interessante —
ele abriu um sorriso e observou a beldade.
Ela tinha a pele morena, seus cabelos
lisos e negros quase ultrapassavam a cintura.
Vestia um jeans desbotado e uma camiseta
branca, trazia no pescoço colares feitos com
sementes de cores e formatos variados.
Demonstrando segurança e sensualidade, sentou-
se ao lado do estrangeiro e cruzou as pernas.
— Desculpa o atraso, caçador. Como
podes ver, a cidade está um tanto caótica — seus
olhos negros perscrutaram Damian com bastante
interesse. — Fico feliz que tenhas atendido ao
nosso chamado.
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Damian sentiu o efeito do olhar da
mulher misteriosa, mas conseguiu disfarçar. Em
seu bolso, Liz se movia com impaciência. Ela
sempre agia daquela maneira quando estava
diante de um ser mágico.
— A carta foi um tanto vaga, mas
conseguiu me deixar curioso — assumiu seu
habitual tom de negócios. — Espero que possa
esclarecer minhas dúvidas, senhorita...
— Yara, meu nome é Yara — os lábios
carnudos formaram um sorriso. — Vim até aqui
justamente para te levar até aquele que tem as
respostas.
Na garupa de uma moto, Damian foi
conduzido até um dos bairros mais antigos da
cidade. Os prédios tornaram-se mais escassos e as
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ruas se estreitaram. As casas comerciais eram
maioria, mutilando vários casarões coloniais. Os
azulejos portugueses que um dia embelezaram
diversas moradias agora eram escassos, roubados
ou destruídos por vândalos. O caçador logo
percebeu que estava entrando em um local
poderoso, onde a aura de magia ainda era forte
apesar da urbanização desenfreada e do descaso.
Quanto mais adentravam na chamada
Cidade Velha, Damian também percebeu que
aquela região fora a mais afetada pelos tremores.
O comércio estava de portas fechadas e vários
entulhos de casas desabadas tornavam as ruelas
ainda mais apertadas. Curioso, questionou Yara
sobre aquele estrago, mas a motorista
permaneceu calada até o final da viajem.
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A moto entrou em uma ruazinha de
paralelepípedos, cercada por casarões ou
destroços deles. Yara desligou o motor e
caminhou até uma casa de paredes descascadas.
Aproveitando a quietude do lugar, Liz
deixou o bolso do casaco. Suas asas bateram
rápidas e o corpo esguio agradeceu o vento
úmido. Pousou no ombro de Damian e confessou
suas preocupações:
— Não gosto da aura deste lugar e não
gosto do jeito que você olha para essa mulher.
Mesmo que aquela frase tenha sido
sussurrada, Yara conseguiu ouvi-la.
— Não precisa ficar com ciúmes, fadinha
— retirou uma chave de ferro das vestes e
destrancou a pesada porta de madeira. — Nossa
relação será estritamente profissional.
24 Terra da Magia
Assim que a porta foi aberta, a aura
mágica aumentou subitamente e calou os
protestos de Liz. Quando entrou na casa, Damian
sentiu como se uma corrente elétrica passasse por
seu corpo. Sorriu. Adorava aquela sensação de
perigo iminente.
Adentrou na sala — de móveis
quebrados e ar mofado — e encontrou um grupo
bastante peculiar. Sentada em uma poltrona
bolorenta, uma velha com roupas pretas e cabelos
desgrenhados se distraia fumando um cigarro.
Encostado na parede ao seu lado, um jovem
atraente, vestido inteiramente de branco, ajeitava
o chapéu na cabeça para cumprimentar os recém-
chegados. Liz pareceu bastante impressionada
com aquela cortesia.
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Yara ignorou aqueles dois e se dirigiu
diretamente ao terceiro integrante do grupo. Um
homem de meia-idade, com pele morena e
cabelos da cor do carvão.
— Pajé, aqui está o estrangeiro.
O homem deu um sorriso fraco, parecia
não dormir fazia anos.
— Damian, o meio-elfo. Decapitador de
gigantes e exterminador de lobisomens. Carrasco
de Tiamati, a rainha dos dragões — nomeava
aquelas conquistas, mas não parecia
impressionado. — Espero que sua coragem e força
não sejam apenas histórias.
Damian deu de ombros e cruzou os
braços.
26 Terra da Magia
— Pelo visto minha fama me precede —
forçou um sorriso. — Sou o melhor matador de
monstros que irá encontrar. Conte-me mais sobre
o monstro que move as entranhas dessa cidade e
eu irei destruí-lo.
A mulher fumante soltou um assovio e
depois deu uma risada seca.
— Vejo que ele é mais esperto do que
parece — soprou fumaça pela boca torta. — Mas
será mesmo capaz de deter Boiúna quando ela
despertar?
O poder que envolvia aquele nome
causou um mal-estar em todos na sala, até mesmo
Liz se encolheu. Ao observar o rosto aflito do pajé,
a ansiedade tomou conta de Damian. Os
momentos que precediam as caçadas eram
sempre os mais excitantes.
27 Terra da Magia
O grande e derradeiro tremor atingiu
Belém logo após o nascer do sol. O centro da
cidade desmoronou como um castelo de cartas de
baralhos. Os prédios viraram uma cascata de
concreto e as casas encobertas pela poeira
sufocante. As ruas foram divididas em longos
veios, que seguiram seu caminho tortuoso até
chegar à catedral metropolitana. A secular igreja
da Sé — patrimônio histórico e religioso — teve
suas paredes alvas rachadas em alguns segundos.
No Largo da Sé, praça localizada bem em
frente à igreja, Damian observava a destruição
com uma calma incomum. Pessoas morriam ao
seu redor, gritos de socorro ecoavam por todos os
cantos, mas o caçador só estava interessado na
sua presa.
28 Terra da Magia
— As armas, Liz — ele disse, enquanto
conjurava alguns símbolos de proteção.
Sem perder tempo, a fada abriu um
portal de luz no chão. Damian se agachou e
retirou uma reluzente espada de prata. Prendeu-a
nas costas e voltou a remexer no depósito mágico.
Dessa vez, extraiu da luz uma bazuca AT-4 e dois
fuzis.
— Fique preparada Liz, acho que vou
precisar de muita munição.
A catedral desmoronou, levantando
uma espessa fumaça branca. O sino da torre
atingiu o solo com um sonoro estrondo e ficou
badalando por alguns instantes, camuflando o
urro odioso da criatura das profundezas. A cobra
gigante se ergueu com uma graça incompatível ao
seu tamanho descomunal. A pele era negra e
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brilhante e os olhos vermelhos lampejavam
malícia.
Ao avistar a cabeça triangular de Boiúna,
Damian entendeu o desespero que havia se
abatido sobre o pajé que o contatara. E de
repente, a bazuca lhe parece quase um pedaço de
pau.
O ódio dela vai varrer tudo do mapa. As
palavras do pajé voltaram a sua mente, como um
aviso de mau agouro.
— Isso é um ser abissal, Damian! Nós
dois não estamos preparados para vencer algo
assim! — Liz gritou ao pousar em seu ombro.
— Então, ainda bem que não vamos
fazer isso sozinhos — ele se ajoelhou e preparou a
bazuca para o primeiro tiro. Ao seu lado, montada
30 Terra da Magia
em um cavalo com chamas no lugar da cabeça,
Yara apareceu. Sorriu de maneira nervosa.
— Estamos prontos.
Damian meneou a cabeça em
consentimento e avistou seus companheiros de
batalha. A velha de cabelos desgrenhados estava
lá, juntamente com o homem de roupas brancas,
mas também havia caras novas. Eram mais de
vinte criaturas, uma mais bizarra que a outra.
Dentre elas, um homem de cabelos de fogo e pés
tortos e uma assustadora criatura de mais de dois
metros de altura — coberta por pelos vermelhos e
com uma boca que ia do peito até a barriga —
chamaram a atenção do caçador.
Sentindo a confiança de alguém que não
conhecia a derrota, Damian apertou o gatilho.
Aquela seria, sem dúvidas, a batalha mais
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fantástica de todos os seus duzentos e cinquenta
anos de vida.
Roberta Spindler nasceu em Belém do Pará, em 1985. Graduada em publicidade, atualmente trabalha como editora de vídeos. Nerd confessa, adora quadrinhos, games e RPG. Escreve desde a adolescência e é apaixonada por literatura fantástica. Tem contos publicados em diversas antologias e é coautora do romance Contos de Meigan – A Fúria dos Cártagos. Twitter: @robertaspindler Blog: www.ruidocriativo.wordpress.com
32 Terra da Magia
Teatro do invisível Gian Danton
- Você pensa neles? De vez em quando você pensa neles?
Olhei para o homem à minha frente. Não parecia um louco. Estava bem vestido, embora de maneira informal. Usava uma calça jeans e camiseta branca. Nada de “Eu acredito em Ufos” ou “O fim está próximo, irmão!”. Apenas uma camisa branca. Eu não havia tido oportunidade de ver seus sapatos, mas acreditava que ele usasse um simplório tênis. Ainda assim aquele homem havia se sentado na minha frente na lanchonete e começado a falar coisas sem sentido.
- Pensar? Pensar em quem?
- Neles, nos duendes, fadas, sacis, mapinguaris, na mãe d´água...
- Por favor, eu já estou...
33 Terra da Magia
Fiz sinal de levantar. Meu lanche estava no meio e eu estava disposto a sacrificar o resto para me livrar daquele maluco, mas ele me agarrou pelo ombro e me fez sentar.
- Não, eu não digo pensar da mesma forma que se pensa em uma lenda, ou em discos voadores. Eu digo pensar neles de fato, como seres que existem...
O homem era totalmente pirado. Olhei à volta em busca de um segurança, mas não achei nenhum.
- Sei o que está pensando.
- Sabe?
- Sim, você acha que sou louco. Não espero que acredite em mim, mas quero que ouça uma coisa, quero que ouça minha história e estará livre para ir embora.
Concordei e rezei para que a história fosse curta.
34 Terra da Magia
Ele bebeu um pouco do refrigerante e me olhou diretamente nos olhos.
- Nós éramos todos crianças. Mas eu era o mais velho de nós. Bia tinha só o que? Uns oito anos? Provavelmente. Havia também o Bruno, com uns 9-10 anos. Todos primos. Estávamos de férias na casa de nosso avô. Hoje existe luz até nos lugares mais remotos, mas naquela época toda a luz que tínhamos no sítio de noite vinha de lamparinas ou, no máximo, uma lanterna. A luz elétrica matou o encanto. Dava medo. O senhor já entrou na mata à noite, senhor... senhor?
- Jonas.
- O senhor já entrou na mata de noite, senhor Jonas?
- Já fui no parque...
- À noite?
- Não, de dia.
35 Terra da Magia
- Então o senhor não sabe o que é o medo. As crianças têm medo de dormir à noite no escuro do quarto e talvez esse medo ancestral seja uma lembrança do tempo em que morávamos na floresta e víamos o que nenhum humano deveria ver. E nós duvidamos da pequena Bia quando ela nos contou o que viu...
Um segurança da lanchonete se aproximou. Pensei em chamá-lo, mas o que diria? Que estava diante de um louco? A não ser que ele estivesse rasgando dinheiro, duvido que acreditassem em mim. Além disso, devo admitir, a história já começa a me intrigar.
- Bia, você disse? O que ela viu?
- Ela nos disse que acordou de noite e teve vontade de ir ao banheiro. Ninguém acreditou porque o banheiro ficava do lado de fora da casa, era necessário andar por uma ponte em pleno breu, mas hoje acho que foi exatamente o que ela fez. Ao invés de ir para o trapiche como todos nós fazíamos e fazer na água, ela foi na
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direção oposta. Crianças são assim, acho. Fazem o que lhes foi dito, mesmo que vá contra todos os seus medos. Pelo menos algumas crianças são assim. Pelo menos Bia. Enquanto andava pela ponte, ela sentiu alguma coisa, como olhos que a seguiam. E ouviu vozes.
- Vozes?
- Traga seus primos, diziam as vozes. Traga seus primos! Ela correu para dentro e se meteu na rede, cobrindo o rosto com o lençol. Só nos contou no dia seguinte. Como disse, ninguém acreditou. Mas a curiosidade é mais forte que tudo. Na noite seguinte, eu não encontrava posição para dormir. Traga seus primos, dizia a voz. O que era aquela voz? O que queria? Seria uma armadilha? Só havia uma forma de descobrir as respostas. Nosso avô estava dormindo, de modo que tive que tomar muito cuidado para surrupiar a lamparina.
Mas pelo jeito eu não fora o único a ter essa ideia. Mal comecei a andar e meus três
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primos estava atrás de mim. “Eles vão falar com a gente?”, perguntou Bia. “Não sei”, respondi. Eu não sabia de nada, mas podia sentir como que uma pontada no cérebro. Acho que chamam isso de intuição. Comecei a ouvir pequenos barulhos à nossa volta, como se uma multidão de pequenos animais estivessem na mata, espreitando-nos com seus olhos febris que apenas adivinhávamos.
Finalmente chegamos ao fim do trapiche que levava ao banheiro. O cheiro era forte e não havia porque continuar em frente, mas mesmo assim eu desci e segui pela terra. Olhei para trás, para dizer aos primos que não me seguissem, mas eles estava lá, logo atrás de mim. “Vamos?”, indagou Bruno. Era uma provocação. Se um fedelho de nove anos se sentia corajoso a ponto de querer continuar em frente, por que eu não faria o mesmo?
Hoje em dia eu penso: como poderíamos ter certeza de que nada nos iria acontecer? A mata era perigosa à noite, com ou sem seres fantásticos. Onças, cobras, aranhas... a
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quantidade de perigos era infindável, mas mesmo assim fomos em frente. A floresta foi se fechando à nossa volta e sons estranhos pareciam emergir dela. Um pássaro martelava seu piado de tempos em tempos. O vento dedilhava as folhas das árvores. A madeira das árvores estalava. Mas os sons mais perturbadores eram aqueles que não podíamos ouvir, mas apenas imaginar.
Nem sei como, mas quando demos por nós mesmos, estávamos no meio de uma clareira. E havia gente à nossa volta. Podíamos percebê-los por entre as folhas e a penumbra. Lá no alto, uma lua cheia despejava seus raios, que penetravam, poucos, por entre as folhas. Apesar da penumbra, podíamos observar uma incrível variedade de seres: havia alguns muito pequenos, mas não eram crianças, pareciam anões. Havia gigantes. Vi um cavalo que parecia normal até eu entrever um chifre sobre sua testa. De repente algo passou voando por entre nós. Pensei que fosse uma libélula enorme, mas Bia gritou: “É uma fada!”.
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Restabelecido do susto, percebi uma figura estranha, que parecia ter crescido tanto para o alto quanto para os lados. No meio do que deveria ser seu estômago, uma miríade de pequenos dentes afiados cintilavam à luz do luar.
Um dos seres se adiantou. Era difícil ver seu rosto, encoberto por uma luminosidade avermelhada. Pareciam cabelos da cor de fogo, mas logo percebi que era muito mais do que isso: de fato, todo ele estava em chamas, cada fio voluteando como a chama de uma vela. Ele andou até nós, suas pegadas deixando rastros ao contrário na terra, e se dirigiu primeiro à Bia: “Vejo que trouxe seus primos”. Ele falava e suas palavras pareciam o murmúrio das folhas na floresta. “Precisamos de vocês”, disse, mas olhava para mim. “Um de nós só pode ser salvo por humanos”. “Um de nós?” “Norato”.
Ele não falou nada além disso, mas nós soubemos. Era como um filme que passava diante de nós. Vislumbramos o nascimento de duas crianças índias. Mas eram crianças encantadas.
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Mal nasceram e uma transformação se operou sobre elas. Suas peles, antes rosadas e suaves, tornaram-se grossas e escuras, repletas de escamas. A cabeça se alongou, assim como o corpo. Como num filme, vimos os dois bebês se transformarem em cobras e se arrastarem para o rio. Eles cresceram e ganharam nome: o macho era Norato, a fêmea, Caninana.
Norato, apesar de sua aparência assustadora, era tinha um coração de ouro: salvava pessoas em naufrágios, impedia que seres malignos se aproximassem da casa dos ribeirinhos... Era um protetor.
Caninana era o seu oposto. A maldade corria em suas veias. Não havia barco ou canoa que passasse por ela que não experimentasse o chicote atordoante de seu rabo. Os pobres náufragos eram deixados à própria sorte, ou afogados. Caninana nadava pelos rios destruindo trapiches, comendo criações, alastrando o horror por onde passava.
41 Terra da Magia
Mas Nonato era triste. Suas feições monstruosas não combinavam com sua personalidade e ele ansiava por ter novamente a pele macia com a qual nascera. Norato queria voltar a ser gente, mas só havia uma maneira disso acontecer...
A visão se desfez como uma névoa soprada pelo vento. À nossa frente apareceu o homem pequeno de pés tortos e cabelos em fogo. Na penumbra eu adivinhei um ser enorme, que respirava pesadamente e soltava lufadas de fogo a cada expiração.
- Só existe uma maneira de fazer isso... e deve ser feita por humanos... por vocês. – disse o rapaz de cabelos em fogo. Um de vocês deverá cortar a cabeça de Norato com um machado de fio virgem. O outro deverá verter por ele uma lágrima.
Eu e meus primos nos entreolhamos... estaríamos à altura dessa tarefa? Quem de nós
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empunharia o machado e quem verteria uma lágrima por uma cobra monstruosa?
Mas não tínhamos opção, tínhamos? Desde o início parece estar escrito que íamos nos envolver naquela jornada louca pela floresta em plena noite.
O senhor já viu uma gravura do mestre Goya? Na época eu não a conhecia, mas desde então, toda vez que vejo a imagem, lembro daquela noite. O título? “O sono da razão produz monstros”. E era exatamente o que acontecia naquela noite perdida.
Fomos de barco, enquanto os seres pareciam nos acompanhar, alguns por terra, pela margem. Outros pela água. Um boto passou por nós, rápido, e saltou sobre a canoa, como que a nos dizer que estava ali.
De resto, a viagem era silenciosa. O barco singrava calmamente as águas sem a necessidade de remos, como que puxado por uma
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força invisível. Não sabíamos para onde íamos ou quanto tempo levaria.
De repente, a floresta pareceu parar. Todos os ruídos cessaram, exceto o murmurejar tímido do rio. Olhei para baixo e levei um susto. Uma forma monstruosa se esgueirava lá embaixo, arrastando a pele grossa contra o casco do barquinho. Era Caninana, uma cobra tão grande que se tornava difícil dizer qual seu comprimento. Seu tronco era do tamanho de um tronco de árvore. Pensei que ela iria nos atacar, mas apenas passou por nós. Adivinhei seu objetivo: ela queria encontrar Norato antes de nós... e matá-lo.
Era um silêncio perturbador, o silêncio do medo que apavorava todos os animais da floresta e os colocava em sobreaviso. Até mesmo os seres fantásticos que nos seguiam pareciam saber que um desastre se aproximava.
Súbito ouvimos um estrondo e o rio se agitou. A canoa foi sacudida por uma mão invisível, mas continuou seu percurso. Lá na frente
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o estrondo se transformara numa algazarra de sons infernais. A luta começara. Ao dobrarmos uma enseada, nos deparamos com um espetáculo assombroso: as duas cobras gigantes se agitavam, se abocanhavam, suas caldas derrubando árvores, os corpos contorcidos provocando grandes ondas. A muito custo conseguimos chegar à margem. Ficamos lá, parados, hipnotizados pelo espetáculo dantesco que se desenrolava. Apesar da balbúrdia, era possível distinguir as duas cobras: Norato era de cor clara, com uma grande lista da cabeça ao rabo. Caninana era negra como a noite.
De repente Caninana cravou seus dentes agudos no pescoço do irmão, que soltou um guincho desesperado e depois estremeceu. Por fim, a cabeça caiu na margem do rio, à nossa frente. Era enorme, maior do que a de qualquer animal que jamais vi. Apesar disso, tinha um olhar triste. Ele nos olhou e soltou um som seco, um pedido de socorro.
- Precisamos ajudá-lo. Ele vai morrer se o encanto não for desfeito. – gritou Bia.
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Eu sabia disso, mas não conseguia me mexer. Estava paralisado, o machado na mão.
- Vocês não entendem? Ele vai morrer! – chorou Bia.
Isso me despertou: Bia estava chorando, as lágrimas escorrendo por seu rosto. De todos nós, só ela sentira de fato a alma boa de Norato. Isso me deu coragem para levantar o machado. O aço desceu sobre a testa do monstro e, surpreendentemente, encontrou pouca resistência. A massa encefálica se abriu para para receber as lágrimas de minha prima.
Eu achava que tinha visto os fatos mais estranhos de minha vida até então, mas a transformação que se operou superou todo o resto: a crosta escamosa foi se metamorfoseando em uma pele humana bronzeada. O corpo foi diminuindo de tamanho e ganhando membros. Logo a transformação se completou e um índio apareceu caído na lama da beira-rio enquanto a cobra fêmea se afastava pelas águas turbulentas.
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De repente, parecemos despertar de um sono. Estávamos todos nós no meio da floresta. Não havia dragões, cobras-grandes, curupiras, nenhum ser fantástico à nossa volta. Só a floresta, densa em seus mistérios.
Mas não era um sonho. Como poderiam quatro pessoas sonhar o mesmo sonho? E como explicar que estávamos em plena mata, e não em nossas redes? Não, aquilo aconteceu mesmo. Por mais fantástico que fosse, aquilo era real.
O homem mordeu o último pedaço do sanduiche e fez menção de se levantar. Mas mudou de ideia:
- Mas há uma coisa que penso, às vezes: será que aquilo tudo era realmente necessário? Será que eles precisavam realmente de nós para transformar Norato? Além disso, porque a presença de Bruno, que no final não teve importância nenhuma na transformação? De uns tempos para cá tenho pensado em uma outra
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explicação: talvez aquilo tudo fosse uma espécie de teatro.
- Teatro?
- Sim. Um teatro. Talvez os seres fantásticos tenham simulado toda a história.
- Por que eles fariam isso?
- Para que acreditássemos neles. Para que acreditássemos.
Gian Danton é roteirista de quadrinhos desde 1989. Entre os seus trabalhos mais importantes na área estão Família Titã (Opera Graphica), Manticore (Monalisa), Mad e MSP+50 (Paninin). Tem participado de diversas antologias de literatura de fantasia. É autor do livro Galeão (9Bravos). Seu blog: ivancarlo.blogspot.com
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O guardador de versos Lucas Lourenço
Os olhos do pequeno Crispanti saltaram das órbitas assim que a relva se abriu e ele adentrou o salão. Nunca tinham visto algo tão belo.
A vereda escura e estreita, ladeada pela mata densa de galhos pontiagudos, pela qual os captores lhe guiaram, de repente abriu-se em um círculo imenso e iluminado.
As árvores retorcidas e apertadas umas às outras ficaram para trás. Outras novas, muito mais altas, surgiram. As copas esmeraldas encontravam-se lá em cima, numa abóbada natural, permeada de cipós extensos. Macacos arteiros dependuravam-se por toda parte.
Filtrada pelas folhas verdes, a luz do sol chegava amena ao solo, recoberto por
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incontáveis folhas secas, que juntas formavam um vasto pátio. Por ele, antas gordas caminhavam sem medo ao lado das jaguatiricas, cotias vasculhavam as tocas das mais venenosas cobras e índios decorados com pigmentos azuis fosforescentes faziam cafuné na barriga das onças pardas.
Tucanos-tocos e as ararajubas batiam as asas e cruzavam despreocupados o átrio, de uma árvore a outra. Os cuxiús-pretos, suspensos pelas caudas, mastigavam suas sementes preferidas. Duas preguiças namoravam na paz e paciência de suas lerdezas.
E a batida das asas de todos os insetos, o craque-craque do jabiti-piranga caminhando sobre as folhas, o cacarejar do galo-da-serra, a jiboia roçando o couro entre os galhos mais altos, o gavião-real limpando as penas e livrando-se dos carrapatos, os uacaris dilacerando a casca das frutas – e todo barulho, cada sussuro, tapa, movimento brusco, canto, conversa, coçada, grito, raspagem, assovio, cada passo, tropeço,
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rajada de vento, ribombar, remelexo, risada ou lamento compunha a melodia inebriante daquele salão no meio da floresta, que invadia as menores frestas e sossegava a fúria mais escondida dos seres.
O som da vida penetrou os ouvidos de Crispanti e, feito mágica, tirou a angústia que lhe esmagava o coração.
Tudo, entretanto, fez silêncio, quando, do outro lado, o passo de um gigante ecoou. Na galeria, as criaturas encolheram-se atrás dos galhos e dentro das fendas. Os captores apertaram ainda mais os braços curtos de Crispanti, que despertou do torpor de paz e sentiu mais uma vez os pulsos doerem.
O grandalhão aproximou-se. De cada lado, trazia consigo duas onças-pintadas maiores que qualquer outra da espécie. À distância apropriada, parou e sentou-se no ar de pernas cruzadas, à vontade como se estivesse sobre uma almofada. Em seguida, fitou o pequeno detido
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com desprezo, arquejou o imenso corpo para frente e perguntou, com nojo.
- Quem és tu?
Crispanti sentiu as pernas tremerem a ponto de os captores terem de sustentá-lo em pé.
Tentou falar alguma coisa, mas o som das palavras não lhe saía da boca. Por mais que se esforçasse, era como se a presença à sua frente lhe impusesse um respeito opressor e tomasse conta de suas próprias vontades.
O ser imenso usava pintura semelhante à dos índios que caminhavam pelo salão. Mesmo de dia, os desenhos brilhavam em azul e davam a ilusão de deixarem rastros luminescentes no ar.
Diferença é que ele era o único a ostentar um imenso cocar no alto da cabeça, cujas penas coloridas feito o arco-íris desciam pelos ombros, até a altura do abdômen. E fosforesciam ainda mais que a tintura.
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- Responde ao filho de Tupã! – ordenou um dos captores, dando um chacoalhão no braço de Crispanti.
O gigante, no entanto, decidiu por outra ideia. Sem mudar de posição, sequer sem descruzar as pernas, levitou até a frente do pequenino, a menos de um palmo de distância.
Antes que Crispanti pudesse bater os cascos e recuar, Tibatatã, o caçula de Tupã, estendeu o braço direito e tocou, com a ponta do indicador, a testa do fauno.
O pequeno arregalou os olhos e permitiu que seu mundo se abrisse à divindade.
***
Um sujeito muito branco, dos cabelos louros penteados para trás, deitava-se na relva e abria braços e pernas, como uma estrela. A leste, o sol nascia. E o homem, de frente às cores turvas que se transformavam no céu, dava um sorriso.
53 Terra da Magia
Nas árvores espaçadas do pasto em que se encontrava, o jovem ouvia o canto dos primeiros pássaros despertos. Da janela aberta do casebre onde morava, o café da velha tia-avó impregnava o ar. As flores pequeninas escondidas sob a grama alta abriam-se para receber a luz e aproveitar o dia. Na ribanceira da colina, a ovelha mais faminta despertou o restante do grupo com um berro.
O homem não moveu um músculo, sequer quando a noite já se recolhera por completo e o sol pôs-se a caminhar, chegando ao ponto mais elevado do céu. Era meio-dia, mas o sujeito não tinha relógio e só almoçava quando o estômago reclamava de fome. Dormia. Acordava. Brincava com uma formiga. Dormia outra vez.
Então, de repente, sacou do bolso um folheto de propaganda e um lápis mal apontado – e escreveu no verso do papel.
Pensar é estar doente dos olhos.
54 Terra da Magia
De trás dos montes, escondido em posição privilegiada, Crispanti recolhia a luneta e, depressa, anotava em um caderno o verso recém-composto pelo outro, o 152º de sua lista.
O fauno tinha por hábito colecionar coisas belas. E os poemas do jovem eram sua nova paixão.
***
A camada mais profunda da noite abateu-se sobre as colinas do Ribatejo. O barulho dos grilos e de outros insetos da madrugada pingava aqui e ali. A brisa movia devagar as cortinas do quarto; deixara a janela aberta para se refrescar. Gotas finas começaram a chover, formando o clima ideal para se dormir. Ele, no entanto, não tinha sono e, imóvel, fitava sombras na parede sem reboco. No cômodo ao lado, a tia velha roncava.
- Da mais alta janela da minha casa, com um lenço branco digo adeus aos meus versos
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que partem para a humanidade – disse ele, repentinamente.
Do lado de fora, molhado, escondido atrás do beiral da janela, Crispanti dobrava-se para dar um jeito de escrever o recém-criado tesouro sem danificar o caderno. Logo se atrapalhou e permitiu que a lua projetasse na parede o vulto arredondado de seu corpo.
Desconfiou do erro. Encolheu-se de volta. Coração batendo forte. Era hora de ir embora, mas a curiosidade o fazia ficar.
- Quem és?
Um sujeito muito branco, debruçado na janela, observava-o com um sorriso boboca nos lábios.
***
Deitado, com as patas cruzadas e a cabeça recostada em um pedaço de lenha
56 Terra da Magia
abandonado, Crispanti folheava o caderno. A tarde pachorrenta não o incomodava.
- O que nós vemos das cousas são as cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? – leu o fauno em voz alta.
Voltou a virar as páginas, até parar em outros versos.
- Acho tão natural que não se pense, que me ponho a rir às vezes, sozinho, não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa que tem que ver com haver gente que pensa...
Bocejou e deitou o caderno de lado. Aprendera a obedecer de imediato às vontades do próprio corpo. Há três dias não retornava para casa e não via isto como um problema. O conforto retangular e as tarefas múltiplas do Templo não o agradavam há um bom tempo.
De certa forma, a Natureza agora era sua religião. O fauno, porém, não pensava nela desta forma. A Natureza era o que se via,
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cheirava, ouvia, tocava, provava. Era o que era, e nada mais.
Apanhou novamente o caderno e folheou as páginas mais uma vez.
- Oxalá a minha vida seja sempre isto: o dia cheio de sol, ou suave de chuva, ou tempestuoso como se acabasse o Mundo.
Alguém lhe cutucou o ombro.
- Que lês?
Crispanti sorriu ao ver o semblante do amigo.
- Teu livro está pronto, creio eu.
Algo, entretanto, estava errado. Um amarelo baço encobria os olhos do poeta, que ficou nervoso com o olhar desconfiado do fauno e começou a tossir sobre um lenço, aflito.
- Que tens? – quis saber Crispanti, levantando de imediato, em prontidão para atender o amigo.
58 Terra da Magia
- Falta um último poema – respondeu o outro, estendendo o pedaço de pano para o amigo.
Uma nódoa vermelha borrava a superfície branca.
***
Pesado cobertor repousava sobre o corpo magro do poeta. De olhos fechados, deitado de barriga para cima, apenas a luz oscilante de um toco de vela lhe fazia companhia. A tia velha batia o terço no altarzinho da cozinha. Crispanti mantinha o velho costume e escondia-se atrás do beiral da janela. Não gostava de aparecer para outros humanos. Assustavam-no.
Muito tempo se passou sem que nada se alterasse entre os três.
Até que um murmúrio chegou aos ouvidos do fauno.
Ele se levantou, olhou para os cantos e viu que o enfermo ainda estava só. O poeta
59 Terra da Magia
esforçava-se para chamá-lo quando pressentiu a movimentação do outro e fez um sinal trêmulo para que Crispanti se aproximasse. Ele pulou a janela e, batendo de leve os cascos, prostrou-se à beirada da cama.
- Bom amigo, preciso de um favor teu antes que eu me vá – disse o poeta, os olhos azuis acesos de emoção.
- Não digas isso, cedo vais te recuperar.
O doente sacudiu a cabeça, em negativa e voltou a falar.
- Quero que queimes o teu caderninho e liberte os meus versos. Não os quero presos a papéis e às memórias de ninguém.
***
Tibatatã afastou o dedo da testa do fauno, que cambaleou e só não caiu pois foi sustentado pelos captores.
60 Terra da Magia
Estava exausto. Antes de morrer, o poeta obrigou-o a destruir o caderno de versos nas chamas do toco de vela. As páginas crepitaram até que restasse apenas um chumaço negro nas mãos do fauno.
Aliviado, o enfermo sorriu em agradecimento e logo em seguida deu o último suspiro.
Crispanti sentiu o desespero tomar-lhe conta do coração. Perdera o único amigo, inspirador, que durante os meses de convívio ensinara-lhe a enxergar as coisas sem vesti-las com o véu da metafísica.
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério.
Crispanti, no entanto, sabia que, no fundo, não era bem assim e se lembrou dos versos de outro sábio, um bardo que conheceu séculos atrás, quando morava em um Templo próximo a Stradford.
61 Terra da Magia
There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy.
Quando viu Crispanti pela primeira vez, o poeta do Ribatejo não se impressionou. Um anão com pernas e chifres de bode, o que pode ser isso?, poderia ter-se perguntado. Na ocasião, entretanto, o homem sorriu e pensou: eis um anão com pernas e chifres de bode. Como vai?
Já o fauno, quando deixou o Templo para um passeio descompromissado e por acaso se deparou com o poeta em plena criação espontânea, considerou os versos tão limpos e diretos e livres de preconceito que logo concluiu o óbvio: apesar da aparência, o poeta não era um ser humano comum. Na verdade, sequer era humano.
- Isto que tenho em mãos eram versos de uma divindade – disse Crispanti, tirando o
62 Terra da Magia
caderninho destruído da algibeira e entregando-o a Tibatatã.
O filho de Tupã folheou as páginas negras e retorcidas. Não era possível ler palavra alguma, uma letra sequer.
O pequeno fauno, no entanto, sabia que em todo mundo aquela entidade gigantesca era uma das poucas capazes de recuperar as páginas. Crispanti cruzara o Atlântico e atravessara as terras selvagens do Brasil, pois sabia que tinha posse de um tesouro inestimável.
Quando um deus fala, os seres inferiores escutam, mesmo que não queiram.
- Não posso devolver a vida para este caderno – respondeu Tibatatã, entregando o objeto de volta ao fauno.
- Como não? Tu também és um deus!
- Não posso dar vida ao que nunca foi vivo – disse o gigante, sacudindo os ombros.
63 Terra da Magia
Os olhos de Crispanti turvaram de decepção.
Antes que o fauno recuasse de temor, Tibatatã avançou e tocou mais uma vez a testa do pequeno, que cerrou os olhos.
- Mas, posso reviver o que já foi vivo – concluiu.
Entre córregos de pensamentos apressados e desconexos, a mente de Crispanti iluminou-se. E, sobre uma folha branca feita de luz, em letras negras e bem-feitas, os versos perdidos do poeta gravaram-se mais uma vez. Instantaneamente.
Lucas Lourenço é jornalista, escritor e desenhista. Já publicou contos e HQs em revistas e antologias nacionais. É autor da série infantojuvenil O Laboratório da Margô, à venda na Amazon e disponível no blog www.laboratoriomargo.blogspot.com. Também publica no blog www.epeste.blogspot.com, além de ser o responsável pelas tirinhas Pequeno Sertão, veiculadas em www.pequenosertao.blogspot.com e
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em www.facebook.com/pequenosertao. Quadros, desenhos e ilustrações emwww.lucaslourenco.blogspot.com. No twitter e instagram: @lucaslofer. Email:[email protected].
65 Terra da Magia
O Uirapuru Negro
A.Z.Cordenonsi
Armênio se arrastou para fora do
avião com dificuldade. Sua cabeça estava zonza e
ele mal conseguia respirar. Ele sentia uma dor
latejante na coxa direita, mas não podia se
preocupar com isso agora. O cheiro inconfundível
do combustível gotejando do motor fumegante o
enchia de pavor. Ele precisava se afastar do
monomotor semidestruído antes que tudo fosse
pelos ares.
Trincando os dentes, Armênio se
levantou sobre os cotovelos e engatinhou para o
mais longe possível, deixando um rastro vermelho
de sangue e suor para trás. Então, o pequeno
monomotor explodiu e uma lufada de calor e
66 Terra da Magia
destroços o cobriu como um vagalhão. Armênio
foi atirado contra uma árvore e sua cabeça bateu
violentamente contra o tronco. Ele apagou na
mesma hora.
Dia 1
A luz do sol tinha dificuldades para
passar por entre as folhas das copas das árvores.
Pássaros chilreavam enquanto um gotejar fino
escorria pelos galhos, fruto de uma chuva rápida
que irrompera junto com o crepúsculo matutino.
Armênio acordou sentindo a boca seca, apesar do
corpo molhado. Ele levou alguns minutos para
entender onde estava e se lembrar do acidente.
Piscando, imagens desconexas passavam pela sua
mente, como se flutuassem da berlinda da sua
percepção diretamente para a sua retina,
desaparecendo tão rápido quanto surgiam. O
67 Terra da Magia
piloto, a pista de terra, a pane de motor, uma
explosão.
Armênio abriu completamente as
pálpebras, arfando. Ele olhou para a floresta
amazônica que se estendia até onde seus olhos
enxergavam. Com um misto de pânico e
incredulidade, ele puxou um dos medalhões que
trazia pendurado no pescoço e beijou a pequena
ferradura de ouro para trazer sorte. Enquanto sua
respiração lutava para voltar ao normal, ele sentiu
uma dor lancinante na sua coxa direita. Ele puxou
um pequeno punhal que trazia preso à cintura e
abriu a calça, revelando o estrago que o acidente
lhe causara. Havia um corte profundo ali, que lhe
rasgara boa parte dos músculos. Sangue
coagulado espalhava-se pela pele e uma boa dose
de sujeira estava entranhada junto ao ferimento.
68 Terra da Magia
Apertando os lábios, ele conseguiu se
levantar. Armênio arrancou os restos da camisa de
linho branco e usou a água que ficara represada
nas folhagens para limpar as bandagens
improvisadas. Ele sabia o que estava fazendo,
afinal, sua avó era curandeira do seu grupo e ele a
ajudara por anos no tratamento de doenças e
machucados. Os romani não gostam de médicos,
dizia-lhe ela. Sua avó resmungava que o rapaz
tinha o dom para a cura, mas o garoto fez ouvidos
moucos a sua ladainha. Ele queria ver o mundo e
não ficar preso num carroção cheio de incenso. No
fim, Armênio fez valer sua vontade e ele foi
trabalhar com o seu pai.
O romani limpou o machucado o
melhor que pode e enrolou os restos da sua
camisa para fazer um torniquete. Suando, ele se
69 Terra da Magia
atirou ao chão, exausto. Mas ainda restava uma
coisa a fazer. Tateando com os dedos grossos, ele
puxou outro amuleto do pescoço, que mostrava
uma reluzente lua engastada. Era um amuleto de
cura, sua avó lhe dissera, antes de preveni-lo:
somente quem possuía o dom poderia utilizá-lo.
Ele mordeu os lábios. Estava na hora de
ver se a velhota tinha razão.
Inspirando profundamente, Armênio
apertou o amuleto contra a perna e entoou um
antigo canto em romani. Ele sentiu as pontas dos
dedos formigarem e um calor incomum cobriu a
ferida. Ao abrir os olhos por um momento, uma
imagem fugaz passou por entre seus olhos. Era
uma moça, de traços finos e delicados. Seria sua
avó, quando jovem? Não saberia dizer. Logo
depois, ele desmaiou.
70 Terra da Magia
Dia 2
Quando ele acordou, o sol nascia no
horizonte. Armênio sentiu dores horríveis pelo
corpo inteiro, estava fraco e com sede. Sua
primeira reação foi passar a mão na coxa. A
bandagem estava levemente avermelhada, mas a
dor excruciante havia sumido. Ele chegou a abrir
um sorriso invulgar quando notou o que havia à
sua frente.
O romani se assustou e se agarrou ao
tronco de uma figueira que crescia, imponente, às
suas costas. Uma folha de bananeira estava
estendida no chão, com uma cumbuca
improvisada da casca de cuietê cheia de água
fresca. Ao seu lado, uma pilha de frutas deixava
escorrer o suor gelado da madrugada.
71 Terra da Magia
Armênio virou o pescoço para todas as
direções, mas não havia ninguém. Ele esperou sua
respiração voltar ao normal antes de se
aproximar. Seria algum tipo de armadilha? Estaria
a comida envenenada?
Ele franziu o cenho. Ninguém precisava
envenena-lo. Provavelmente, estaria morto em
poucos dias. Suspirando fundo, ele se aproximou
da folha de bananeira. Ele deu um beijo em uma
estrela de cinco pontas que estava tatuada no seu
pulso e agarrou a cumbuca. Logo, ele já tinha
esquecido seus receios e comia e bebia com
sofreguidão. As frutas não podiam estar mais
doces ou frescas, e o sumo viscoso escorria por
entre seus lábios enquanto Armênio devorava o
presente que a floresta lhe trouxera.
72 Terra da Magia
Quando ele terminou, um calor
relaxante invadiu sua mente. Ele piscou os olhos e
as pontas dos seus dedos se tornaram úmidas. Ele
tentou focar a vista, mas não conseguiu. Sua
respiração se tornara leve como uma pluma e seus
músculos afrouxaram.
Então, ele percebeu algo. A floresta
havia silenciado. Desde que acordara, o zumbido
da mata estivera sempre lá, ao fundo, uma
miríade de sons que misturavam o gorjeio de
pássaros com o saltitar de macacos que
passeavam entre os galhos. Um vento leve fazia as
folhas rangerem baixinho, enquanto o gotejar
úmido escorria pelos troncos e caules. Agora, tudo
havia desaparecido, como que por encanto.
Armênio se levantou, assustado, a
imagem de um felino à espreita passando ao largo
73 Terra da Magia
da sua mente. Então, ele ouviu. Um pio agudo e
triste, tão melancólico e longo, que o romani
sentiu seu coração se apequenar. Sem querer, ele
se viu arfando e uma tristeza profunda arranhou
sua alma. Poucos instantes depois, um pássaro
como ele nunca vira pousou num galho de um
ingá.
Ele ficou longos minutos fitando o
pássaro, encantado com sua beleza singular, sua
plumagem negra e sua garganta avermelhada. O
pássaro cantou por cerca de quinze minutos, mas
o romani mal viu o tempo passar. De repente, ele
parou e alçou voo, deslizando por alguns metros
até parar em árvore mais distante. Sem saber o
que estava fazendo, Armênio seguiu o pássaro.
Aquilo continuou por horas a fio. O
romani se aproximava e o pássaro fugia mais para
74 Terra da Magia
dentro da mata, parando ao longe, sempre
esperando por ele. Armênio não saberia explicar o
que estava fazendo, nem por que. Mas, de alguma
forma, algo lhe dizia que ele precisava seguir o
pássaro.
Quando a tarde findou, o pássaro se
empoleirou no alto de uma tucumã e cessou seu
canto. O romani entendeu a deixa e, depois de
improvisar uma cama com as folhas de uma
palmeira que ele encontrou no local, adormeceu.
Dia 3
Quando Armênio se levantou, não
chegou a se assustar ao perceber que uma nova
folha de bananeira havia sido depositada aos seus
pés. Faminto, ele comeu e bebeu com gosto,
sentindo uma leveza incomparável atravessar seus
75 Terra da Magia
músculos. Ele nunca se sentira tão bem. Ele
poderia dançar e cantar um dia inteiro. Sorrindo, o
romani se levantou bem na hora que o pássaro
cantou.
Eles voltaram a se embrenhar na
floresta, Armênio seguindo a ave que assobiava o
seu canto mágico. Ao entardecer, eles se
aproximaram de um vale profundo, onde as
árvores cresciam tão densas que mal era possível
ver alguns metros à frente. O romani, parou,
sentindo um desconforto crescer dentro de si. O
pássaro cantou mais forte e Armênio fez menção
de seguir em frente, mas seus amuletos
começaram a esquentar e ele se sentiu
desconfortável. Se o romani fechasse os olhos, ele
quase podia ouvir a voz da sua avó gritando na sua
76 Terra da Magia
mente, mas sua fala era confusa e seus sentidos
pareciam embotados.
O romani hesitou. O que estava
fazendo, afinal de contas? Seguindo um pássaro
canoro para dentro da mata? O que havia dado
nele?
A ave sentiu sua indecisão e voltou,
girando e piando sobre a sua cabeça, as asas
negras brilhando no lusco-fusco. Armênio se
sentiu atordoado, como se sua alma estivesse
sendo rasgada ao meio, dilacerada entre a
vontade de fugir ou de correr para dentro da
mata.
Seu cérebro queimava e o canto do
pássaro se tornava mais forte e mais atordoante,
como se ele tivesse sendo atacado por um
77 Terra da Magia
enxame de abelhas que o picavam por dentro,
impedindo-o de pensar. Ele se viu cambaleando
de um lado para o outro até que seu pé pisou em
falso; desequilibrado, ele caiu por entre dois
troncos de árvores retorcidos. Armênio tentou se
segurar, mas foi em vão. Rolando, ele despencou
para dentro do vale, arrastando folhas e pedras
enquanto se debatia. Pouco tempo depois ele
bateu contra algo mais duro e parou.
O romani levou a mão à boca e sentiu o
sangue quente escorrer de um corte profundo que
rasgara sua língua e seus lábios. Seu corpo inteiro
doía e sua respiração estava fraca. No entanto,
sua mente clareara. Pela primeira vez, ele parecia
poder pensar coerentemente.
Devagar, Armênio se recostou no que
havia batido e se levantou. Por longos momentos,
78 Terra da Magia
sua vista se espalhou pelo vale, o horror lhe
subindo pelas entranhas como uma aranha
tecendo a sua teia. Ele estava no que lhe parecia
ser um cemitério a céu aberto. Ossos se
espalhavam aos milhares, alguns tão velhos e
quebradiços que ele sabia que se desfaçariam em
pó se ele os tocasse; outros eram
assustadoramente novos e vestígios de carne
apodrecida reuniam nuvens de insetos em montes
enegrecidos. Mas isso não era o mais assustador.
Os ossos, e Armênio conhecia um pouco de
anatomia, devido aos ensinamentos da avó;
aqueles ossos não eram normais!
Havia esqueletos de homens e mulheres
tão compridos quanto um gigante e outros tão
baixos que poderiam ser confundidos com
crianças se não fossem os membros atarracados.
79 Terra da Magia
Ossos disformes se espalhavam pelo chão, com
calombos estranhos e apêndices que não eram
naturais. Carcaças de cavalos jaziam mais a frente,
mas de suas costas subiam estruturas ovalares
que Armênio não conseguia distinguir. Ao seu
lado, jazia uma pilha de ossos de seres que
lembravam homens, mas suas arcadas dentárias
eram protuberantes e seus crânios eram
compridos, com focinhos arreganhados e caninos
compridos. Ao fundo, o romani distinguiu uma
grande ossada, muito maior que um elefante. Ela
lembrava uma figura de um velho dinossauro.
Mas, então, o que seriam aqueles ossos que
brotavam das suas costas e se espalhavam como
pétalas?
Enquanto Armênio gastava o resto das
suas forças para não sucumbir ao terror que lhe
80 Terra da Magia
infligia à mente, o estranho pássaro rodopiou a
sua frente e pousou suavemente em uma arcada
ressequida. Quando a noite surgiu, iluminada por
uma lua avermelhada, um brilho estranho invadiu
o vale e o pássaro deu lugar a uma bela e jovem
mulher. Ela se aproximou com os passos eretos e
a testa erguida.
Armênio sabia que precisava fugir, mas
ele não tinha forças para tanto. Respirando forte,
ele viu a jovem se aproximar, notando a cor ocre
da sua pele reluzente e os adereços delicados que
lhe cobriam os pulsos e o pescoço. A jovem estava
nua e seus olhos cravaram no rosto tenso do
romani. Ele queria gritar, mas sua boca estava
cheia de sangue. Então, uma voz clara e límpida
surgiu na sua mente, cantada no tom do pássaro
negro.
81 Terra da Magia
“Sua centelha é fraca, mas sua origem
é velha como o mundo.”
O romani tentou balbuciar algo, que saiu
em um gorgolejo. Ela continuou.
“Eles também queriam se apossar da
Luz da Velha Floresta” – disse, apontando para as
ossadas – “E, agora, sua centelha nos torna mais
fortes”.
Armênio subitamente entendeu. Ele
puxou os medalhões do pescoço, suplicando em
palavras inúteis. Ele não era um curandeiro. Nunca
fora. Aquilo pertencera à sua avó.
A jovem agarrou os medalhões com
brusquidão, atirando-os longe. “Superstições tolas
não tem lugar aqui. A centelha está no seu
sangue” – declarou, se aproximando dele.
82 Terra da Magia
O romani tentou levantar as mãos, mas
o terror paralisou seus músculos. A jovem se
abaixou e sua boca se escancarou em fileiras de
caninos como um jacaré. Houve um grito agudo na
floresta e, depois, o silêncio.
A.Z.Cordenonsi é um autor gaúcho de fantasia e aventura.
Escreve sobre o que lhe passa na cabeça e não o deixa
dormir à noite, quando as ideias se derramam no teclado
como um trem descarrilado. Apaixonado por tecnologia
antiga, divide seu tempo entre ser pai, marido, professor e
escritor. É romancista e contista, espalhando fantasia e
terror por antologias diversas.
83 Terra da Magia
A Presa do Metamorfo Rodolfo Santos
Naroa era uma boa amiga, simpática e
sorridente. Isto era algo no mínimo estranho para
uma meio-Iara, em suma hostis e inseguras
quanto a aproximação das demais raças. Dotada
de uma inteligência acima da média humana e de
uma aparência atraente e sedutora, eu a tinha
como uma companheira para todas as horas,
mantendo-a no disfarce de pernas falsas,
camuflando o caminhar destreinado com um
rebolado provocante, apesar de não-intencional.
Em minha mente, sua imagem era
risonha e alegre, com os braços abertos para um
abraço úmido e gélido, marcas das quais nunca
poderia se livrar. Sacudia os fios lisos e dourados
84 Terra da Magia
num balançar de dançarinas, cantarolava cada
palavra melhor do que orquestras profissionais
seriam capazes de fazer. Um destaque,
certamente, em todas as atividades que contavam
com sua ilustre presença, assim como um traço
chamativo para todos os homens, o que facilitava
em muito nossa aquisição de informações.
Vê-la coberta por sangue e tripas, como
via naquele momento, era algo que até mesmo a
frieza de meus sentimentos não seria capaz de
suportar.
—Ela foi assassinada a sangue frio —
disse-me um dos assistentes da equipe de
investigadores sobrenaturais, um estagiário com
traços de vidência e percepção além do alcance.
—Quem quer que seja o assassino, não é um
homem comum.
85 Terra da Magia
E não era. Eu sabia o nome do
responsável por aquela morte. Conhecia-o melhor
do que ninguém, talvez melhor do que a mim
mesma. Um inimigo do passado, algo próximo de
um rival, o único que jamais consegui aprisionar
dentre todas as minhas buscas.
O Metamorfo.
—O que vai fazer?
O novato continuou a falar, mas eu o
ignorei sem perceber. Cacei o sobretudo num dos
cabides, acertei-o no corpo como um peso extra,
exótico para um tecido como aquele. Estava
preparada para matar e, acima de tudo, para
morrer.
—Avise que estou partindo —falei, sem
me virar para o parceiro de profissão. —Vou atrás
86 Terra da Magia
do Metamorfo. Volto com sua cabeça, ou sem a
minha.
Aquela floresta parecia soprar o terror
em meus ouvidos, unindo a melodia fúnebre da
brisa com o ranger doentio dos galhos retorcidos.
Tinha nas mãos uma pistola prateada com
munição de caçador, os melhores projéteis
encontrados em nosso mundo, trabalhados no
bronze celeste e na pólvora com extrato de
inferno. Nunca me perguntei como eram feitos
aqueles cartuchos, pois não era esta a minha
função. Meu trabalho, resumidamente, era
apertar o gatilho, permitindo o encontro de
aberrações com o Deus que acreditavam, ou
levando-as ao descanso merecido após
atrocidades cometidas em lugares pacatos.
87 Terra da Magia
Afundei as botas num pântano que me
pareceu uma armadilha, pois a terra sólida era
enganosa sobre a imundice aquosa que me
acolheu. Empurrei os tornozelos cada vez mais
pesados para frente, movendo a água negra e
transformando o silêncio em ondas miúdas. Nos
arredores, sapos grotescos saltavam sobre raízes
raquíticas, enquanto olhos animalescos
acompanhavam meus movimentos, esfomeados
pelo odor do frescor de minha carne. Serpentes se
arrastavam nos galhos mais altos, duas delas
estavam próximas, sibilando acima das águas.
Uma soprou fogo, caracterizando-a como o
Boitatá que era. Marcou-me com os olhos
chamejantes, mas não me atacou. Talvez por
sentir em minha alma a fragrância de ancestrais
destruídos por minhas caçadas anteriores. Talvez
88 Terra da Magia
por interesses próprios e distintos. Que diferença
faria?
Nas frestas das árvores, algo truculento
me observava, como um lobo em espreita de sua
presa. Ombros largos e humanoides, cobertos por
pelos de fera, salivando entre os uivos famintos e
torturantes. Assim como a serpente de chamas, o
Lobisomem não parecia ansiar por um ataque
enlouquecido, uma atitude exótica para sua raça.
Tirei das vestes uma segunda pistola, o que aliviou
parte do peso daquele traje obscuro. Algo estava
errado naquele lugar.
Escutei uma melodia. Um cântico
soturno e agradável, de voz feminina e bela.
A voz de Naroa.
—Que merda é essa? —falei em voz alta
o que deveria ser um pensamento.
89 Terra da Magia
Abri caminho entre a densidão das
folhas, livrando-me de alguns arbustos com odor
de lamaçal. Saltei para escapar do terreno
pantanoso que tentava me saborear, apenas para
me deparar com uma cena que mente alguma
estaria preparada para aceitar.
Era um lago, e lá encontrei Iaras. Havia
muitas delas, debruçadas sobre troncos
derrubados ou rochas cobertas de musgos,
exibindo corpos esculturais, peles macias e rostos
monstruosos, com lábios feridos pelas presas fora
do comum. Elas cantavam baixo, acompanhando a
voz de minha amiga, ou ao menos a voz que me
trazia suas lembranças. Não poderia ser Naroa. Ela
estava morta, eu sabia. Vi seu corpo carregado até
nosso local de trabalho, assisti os exames. A voz
era de Naroa, mas Naroa não mais existia.
90 Terra da Magia
Esgueirei-me entre os ramos pesados
para estudar o fenômeno exótico que se sucedia à
minha frente. Além das águas escuras daquele
lago de sereias, Curupiras dançavam com a
deformidade de seus pés, instigando passos
desastrados e assustadores. Além da primeira
serpente de chamas encontrada anteriormente,
outras cinco ou seis circundavam o espetáculo,
sibilando junto da música, em coro com o uivar de
um batalhão de Lobisomens. Feiticeiras com
corpos de fera e cabeças de crocodilo
cantarolavam suas atrocidades numa língua sem
sentido, encantando a natureza de maneira
maligna, ocasionando a perversão da água, das
folhas e do próprio ar. Três delas desenhavam
estrelas com os dedos envoltos em membranas,
parindo a simbologia antepassada naquele
91 Terra da Magia
santuário catastrófico, onde se reuniam tantas
abominações.
No centro daquela multidão de seres,
um homem se levantava do solo aquoso. Sua
barba escarlate estava impregnada pelo lodo, e o
mesmo acontecia a seus cabelos e seu corpo
despido, coberto por uma vestimenta gosmenta e
asquerosa. Esticou os braços para os lados,
lembrava muito um velho mundano, de físico
treinado e olhos foscos. O que o diferenciava da
simplicidade de um humano eram os dentes
pontiagudos, surgindo num sorriso lodoso
enquanto o ser grunhia sua parte do ritual.
—Um Barba Ruiva! —deixei escapar,
surpresa por encontrar uma criatura que até o
presente momento não tinha provas de
existência. Lendas e boatos contavam sobre o
92 Terra da Magia
velho coberto de lodo, mas eu nunca derrubara
um daqueles. Talvez aquela fosse uma das
melhores chances.
Algo ao meu lado farfalhou, cobri-me
com as vestes. O escudo da noite me auxiliou na
camuflagem, e assim não fui avistada quando um
grupamento de Sacis saltitou sobre as águas,
tomados por uma brisa mágica e malcheirosa. Eles
poderiam me encontrar com facilidade, mas algo à
frente chamou mais atenção, mesmo a minha, que
tentava manter os olhos concentrados nos
acontecimentos. Eram passos, mas cada um
destes fazia com que o solo tremulasse,
dispersando a sensação de um ensaio de
tambores. Aquilo surgiu por entre as árvores,
derrubou muitas delas para permitir que seu
corpanzil passasse na sinuosa trilha existente
93 Terra da Magia
naquela floresta. Com mais de cinco metros de
terror, o Mapinguari me recordava dias difíceis,
nos quais eu e Naroa enfrentamos dois daqueles
monstros similares a macacos truculentos com
pelugem de agulhas. Perdia-me nos devaneios
ante a morte de minha parceira, mas a existência
de uma voz clonada me fazia frágil, facilmente
abalada pela falta de sua presença.
Foi então que aconteceu. Ela se ergueu
das águas, cantando como uma princesa coberta
de imundice, deslizando os braços numa
coreografia delicada e alegre. Tudo de Naroa
estava lá, desde sua voz até seu corpo sereiano,
seus cabelos longos e seus olhos serenos. Vi seu
corpo estripado, mas agora ela estava ali, viva e
alegre, destruindo minha mente com uma
presença que me causava saudades. Esperei em
94 Terra da Magia
meu lugar, ainda que minha vontade fosse correr
e saltar sobre ela, abraçá-la com um choro de
alegria. Mantive-me impassível, e nada fiz.
Ela aplaudiu, e a música cessou,
restando o silêncio. Fora a sua própria voz aquela
a ecoar no breu noturno.
—Vejam, companheiros! —disse ela,
exibindo os seios nus, o estômago magricela e os
cabelos sem cacho algum. —Assistam à minha
renovação, entendam o retorno! Aqui, tudo se
renova, cresce fortalecido, como a natureza
manda. Aceitem o chicote que hoje vos castiga,
pois amanhã terão a benção de nossa mãe e
criadora, tornando-se os primogênitos de nossa
magia!
Alguns dos monstros murmuraram
sozinhos, outros grunhiram sons toscos. Ouvi um
95 Terra da Magia
relinchar, Mulas-Sem-Cabeça estavam se
aproximando. Uma delas bateu os cascos contra a
água, saltou no lago tomado pelas criaturas, o
fogo não se extinguiu. O Barba Ruiva acariciou seu
couro resistente, sorriu com a deformidade de sua
existência e brandiu um facão de caçada, até
então escondido nas vestes barrosas.
—Entreguem-se à realidade, filhos de
uma única mãe —continuou Naroa, parecia liderar
aquele exército de horrores. —Entendam que a
dor será o menor dos males, tragada por um
mundo de prazeres e recompensas.
O primeiro a se entregar foi um
Lobisomem, atirando-se no facão sem que fosse
necessário esforço algum do Barba Ruiva. A prata
enfeitiçada cintilou, assim como o lago encantado,
ambos clamaram por uma nova vítima. Um
96 Terra da Magia
Curupira se ofereceu, pulverizado com facilidade.
Brilho, um novo pedido, aqueles que assistiam
hesitavam. Uma das Mulas-Sem-Cabeça foi
sacrificada, relinchou e chamejou até que nada
restasse de seu corpo. Seguiram alguns Boitatás,
outros Lobisomens, mesmo o Mapinguari aceitou
a morte como um presente.
Ouvi cada um dos gritos, até que nada
restou para se ouvir.
Nem mesmo o canto de Naroa.
Quando o Barba Ruiva atravessou a
lâmina na própria garganta, o lago todo brilhou.
Naroa caminhou até a arma, mas ao simples
contato do metal com sua pele, não mais havia
meia-Iara. O porte masculino entregava o segredo
do sexo, mas da aparência nada se via, sombreado
por uma aura amaldiçoada. O ser retirou a arma
97 Terra da Magia
do corpo do Barba Ruiva, que desapareceu como
todos os outros. Com uma língua eriçada, similar
àquelas existentes nas bocas de camaleões, o
Metamorfo lambeu a sujeira da lâmina,
deliciando-se com o sabor do sangue de cada
criatura que morrera naquela mentira.
—Como pôde?
Falei sem perceber, mas não fez
diferença. O Metamorfo sabia de minha presença.
Ele sempre sabia de tudo.
—Matar todos eles? —sorria. —É
simples, quando se é o criador.
—Não diga asneiras, monstro.
—É como homens me chamam,
caçadora. Monstro. Monstros são menos ousados,
no entanto. Chamam-me de criador. De mãe.
98 Terra da Magia
A mãe de todos os monstros daquela
crença, temida e respeitada pelos índios. Histórias
que zombei, baboseiras que me tiraram risos.
Estava ali, à minha frente.
O Metamorfo era uma atuação.
Aquela era Ci.
—O que você quer, criatura? —abusei
de minha valentia. Por dentro, sentia cada
músculo tremer, hesitando no conflito com aquela
entidade poderosa.
Senti as mãos formigarem, abandonei as
pistolas. Ci tomava conta de minha mente, de meu
corpo.
—Quero todos eles, meus filhos —me
respondeu. —Quero todos para mim. Serei única
99 Terra da Magia
outra vez, pois é preciso. Beberei do sangue de
cada um deles.
—De cada um...
Engoli em seco. Tentei fugir, era incapaz.
Estava paralisada pelo terror.
—É uma de minhas crias, Anhangá —
falou ela, e tal nome retardou minha mente,
destruindo as memórias de uma vida de teatros.
—Será como elas, um alimento.
Não.
Eu mudei. Não era mais mulher, não era
mais caçadora. O sobretudo desabou junto das
armas, inutilizado. Ganhei o corpo de um cervo
platinado, com olhos faiscantes e pele marcada
por cruzes. Bati as patas contra o solo disforme,
vaguei como um fantasma.
100 Terra da Magia
—Jamais serei uma caça.
Não sei se disse ou pensei, mas aquela
era minha vontade, então fugi. Ci não me caçou,
tinha seus motivos. Sequer olhei para trás naquele
avanço. Atirei-me para a liberdade, engolindo a
verdade da falsa vida que levei durante anos, até
que o medo me abandonasse.
Mas o medo nunca abandonava o
Metamorfo. Muito menos Ci.
—Fuja se desejar, Anhangá —falava
sozinho, mas sua voz estava em minha mente. —
Tornará as coisas divertidas. No final, todos serão
meus. Meus filhos. Minhas presas.
Rodolfo Santos sonha acordado, mas jamais acorda
sonhando. Nasceu em Taubaté, interior de São Paulo,
ainda que mais lhe pareça uma cidadela de sol, cujo ar
101 Terra da Magia
cheira a bonecas de pano e espigas de milho falantes.
Escrever pode ter sido uma escolha, uma opção, uma
vontade ou um acaso, mas a busca por uma história
perfeita lhe faz, ao mesmo tempo em que devora livros,
rabiscar infinitas ideias em guardanapos ou, quando
possível, ao vento.
102 Terra da Magia
Em uma Terra Distante
Bruna Louzada
O animal estava agitado. Leonardo se
esforçava para tirá-lo do caminhão de carga sem
machucá-lo, mas parecia ser uma tarefa
impossível de se realizar. Desistiu, por fim, e parou
com as mãos na cabeça, tentando pensar em
algum modo mais eficiente. Mas seu raciocínio foi
quebrado pelo barulho de um motor. A
caminhonete parou a poucos metros de distância
e o rapaz franzino se apressou a abrir a porta do
passageiro. – Que diabos! O que o potro ainda
está fazendo aqui? Ele já devia estar pronto! – Um
senhor de feições respeitáveis impulsionou o
corpo para fora do carro. Carregava um longo
103 Terra da Magia
cajado na mão direita, mais por acreditar na
magnificência que lhe era proporcionada pelo
objeto do que por alguma utilidade prática. Ele se
aproximou, estufou o peito e deferiu inúmeros
golpes de cajado na lataria do caminhão.
– Anda! Saí daí! Você não está no estado
de ser chamado de presente de aniversário. – O
único efeito que aquelas palavras tiveram foram o
de retrair ainda mais o animal, fazendo com que o
homem bufasse. – Dez mil dólares jogados no lixo.
Dá pra acreditar nisso?
Os empregados da fazenda se
entreolharam, porém, ninguém disse uma palavra.
Um silêncio quase sepulcral se instalou no lugar,
cortado ocasionalmente por relinchos de dor do
potro.
104 Terra da Magia
– Deixem o Felicidade, ou Bombom, ou
Narigudo, ou qualquer que seja o nome que
minha filha vá dar a ele, aí. Uma hora ou outra ele
terá que sair. – Todos concordaram com a ordem
do chefe e, em menos de cinco minutos, Bree foi
deixado sozinho.
Bree. Não Felicidade, ou Bombom, ou
Narigudo, ou qualquer outro nome que lhe fosse
dado. Aquela seria a única forma pelo qual ele
atenderia: pelo nome dado pela sua mãe, o que
poderia trazer inúmeros problemas em seu
relacionamento com os humanos – não que ele se
importasse. Fora comprado pelo Sr. Nogueira (o
distinto homem do cajado, senhor daquele
imenso pedaço de terra entre Mato Grosso e
Amazonas, rodeado pela Floresta Amazônica)
quando ainda estava na barriga de sua mãe, na
105 Terra da Magia
Grécia. O grego dono da égua havia prometido
uma cria da melhor raça possível, descendente de
uma linhagem pura de cavalos que, reza a lenda,
pertenceram aos grandes senhores da Grécia
antiga. De fato, a mãe era um ótimo indicativo do
que se esperar do filhote. Criada apenas para
reprodução, possuía pelagem negra brilhante,
postura perfeita e dentes alinhados. Bree nasceu
com quase todas as características da mãe, com
uma diferença inesperada: os pelos, tão brancos
que chegavam a brilhar em um tom prateado,
quando iluminados. O Sr. Nogueira acreditou estar
sendo trapaceado quando atendeu a ligação do
grego, recebendo a notícia, bem como um aviso
de que lhe haviam feito uma proposta melhor pela
cria. A indignação e fúria do brasileiro foram
indescritíveis. Se pudesse, teria atravessado o
106 Terra da Magia
telefone e esganado aquele vendedor, mas
preferiu cobrir a oferta que o homem dizia ter
recebido. Não que houvesse alternativa, afinal,
havia prometido para sua filha que aquele seria o
presente que receberia em seu aniversário. Ao ver
o estado do animal ao chegar, teve ainda mais
certeza de que fora trapaceado, afinal, Bree
sofrera com os maus tratos e a longa viagem até o
país desconhecido, e não estava em sua melhor
forma.
Com o passar das horas, o sol pôs-se a
baixar, deixando o espaço do céu livre para a lua e
as estrelas. Bree não tinha nenhuma noção do
tempo. Tudo o que sabia era que estava com
dores e com sede, entretanto, não tinha nenhuma
vontade de se levantar. Sabia que se saísse
daquele lugar apertado não encontraria sua mãe
107 Terra da Magia
ou suas irmãs ou os potros que dividiram o pasto
com ele por tão pouco tempo. Pela traseira aberta
do caminhão, podia ver um largo pasto, mas este
não parecia ser tão verde quanto o que conhecia.
Além disso, o clima daquela região não o instigava
a se levantar, nem mesmo quando a noite caiu
sobre ele. Aos poucos, Bree deixou-se tomar pela
dormência em seus músculos e pela fadiga. Era a
primeira vez em dias (talvez meses!) que não
estava preso em um caixa que balançava
insistentemente. Finalmente poderia descansar e,
quem sabe, melhorar sua disposição para
conhecer o lugar. Piscou os olhos algumas vezes,
até que eles tornaram-se pesados o suficiente
para não voltarem a abrir.
– Mas que...! – Bree acordou com o
barulho. A princípio, pensou que algum dos
108 Terra da Magia
homens havia voltado, mas a cena que presenciou
não era o que esperava e o deixou transtornado.
Um humano (ou, ao menos, era isso que ele
pensava), estava agachado sobre sua crina. Chame
isso de instinto, pois não há maneira melhor de
explicar a sensação de Bree naquele momento.
Não sabia por que, porém sentia que precisava se
afastar daquele garoto. Havia visto crianças na
Grécia. Nenhuma parecida com aquela. Não só
pelo fato de ele ter apenas uma perna e pelo
estranho objeto que carregava na boca, mas
principalmente pelo olhar travesso, ligeiramente
malvado e impregnado de frustração.
– Por que, cavalo?! – Bree se recostou
ainda mais à parede fria do caminhão, enquanto o
garoto pulava de um lado para o outro, hora ou
outra retirando o objeto da boca. – Eu já fiz isso
109 Terra da Magia
milhares de vezes! Uma mecha por cima da outra,
passa por baixo e zaz! Mas a sua... Essa trança não
fica parada de jeito nenhum!
O potro não entendia o que o garoto
queria dizer. Esticava o pescoço para ver sua crina,
mas ela permanecia completamente intacta e lisa,
sem sinais do que quer que fosse uma “trança”.
– ME DIZ O POR QUÊ!
– Eu não sei! – O que teria soado como
um relincho para qualquer ser humano, foi
entendido perfeitamente pelo Saci. – Eu... Não sei
sobre o que você está falando... Só quero a minha
mãe. – Uma lágrima brotou dos seus olhos.
– Mãe... Pfff... Pra que você quer a sua
mãe? Eu não tenho nenhuma e estou muito bem!
110 Terra da Magia
– Ele é praticamente uma criança e está
assustado. Qualquer um nessa situação iria querer
sua mãe.
Bree e o Saci se viraram para a entrada
do caminhão, onde uma nova figura estava
parada, os observando. – Hey! Você não tem
negócio com esse carinha. Ele é meu. – O saci deu
um pulo para frente, de peito estufado, mas Bree
não reparou. Seus olhos estavam vidrados no
novo garoto à sua frente. Seus cabelos eram
vermelhos como o fogo e Bree podia jurar que vira
as madeixas vermelhas se movimentarem por
alguns segundos como uma labareda, porém
nunca pode confirmar esse fato. O potro não
reparou (por sorte, ou pensaria que todas as
crianças do novo país eram incrivelmente
estranhas) nos pés invertidos do Curupira, nem na
111 Terra da Magia
forma como ele olhava desafiadoramente para o
Saci. Estava concentrado demais na sensação de
conforto e segurança que a cabeleira ruiva lhe
transmitia.
– Ao contrário! Ou devo lembrá-lo que
sou o protetor dos animais? Essa não é sua noite,
Saci. Vá aprontar com algum humano e deixe os
cavalos em paz.
O menino de um pé só passou o olhar
do moleque para o potro. Queria continuar com
sua diversão, embora estivesse incomodado com
o que havia acontecido antes.
– Por quê?
Ele não precisou completar a pergunta
para que o Curupira entendesse.
112 Terra da Magia
– Ele não é um cavalo comum, por isso a
crina dele volta ao normal assim que você termina
a trança.
O Saci se deu por satisfeito pela
resposta. Não sabia o que o potro era, mas, ao
menos, descobrira que o problema não era ele.
Olhou mais uma vez para o animal antes de dar
uma longa risada e sair pulando para a mata,
assobiando e gritando “Saci Pererê, minha perna
dói como o quê!”.
– Venha. – Não foi preciso mais palavras
para que Bree se levantasse e seguisse o Curupira.
A transição do piso duro do caminhão para o
pasto macio foi prazerosa e reconfortante e Bree
deu um pequeno pulo em comemoração. A lua
iluminou seus pelos, um brilho prateado clareou
seu corpo por completo e, como mágica, as dores
113 Terra da Magia
em seu corpo cessaram. – Você não nasceu para
ser prisioneiro dos humanos. Volte para seu lugar.
Ache aqueles da sua espécie.
Por alguns segundos, o potro observou a
lua, depois o pasto e a floresta para só então se
voltar ao menino.
– O que você quis dizer? Com eu não ser
um cavalo comum?
O Curupira sorriu.
– Você devia saber!
Bree teria franzido o cenho para a
resposta, se fosse capaz. Ainda assim, fez a melhor
cara de dúvida que um cavalo poderia fazer,
soltou um relincho baixo e voltou a olhar para a
114 Terra da Magia
lua. Menino e potro permaneceram lado a lado
em silêncio, até que o ultimo voltou a falar.
– Uma noite. Eu me lembro da minha
mãe dizendo que eu não era filho de quem o
humano pensava. Que o dono de meu pai não era
humano, mas sim um deus. – O Curupira assentiu.
– Bree, você é um pégasus. Precisa abrir suas asas
e voar.
– Como você sabe tanto da minha
história?
– Meu trabalho é conhecer todas as
criaturas que eu preciso proteger.
– Certo... – Bree murmurou.
A história fazia sentido. Trotar pelo
campo nunca foi o suficiente para ele. Sentia que
115 Terra da Magia
podia fazer mais e a cada passo que dava algo em
seu âmago lhe dizia que era capaz de fazer coisas
extraordinárias. Ainda assim, não sabia o que. Sua
mãe não havia contado sua história por completo.
Em parte porque queria que o potro estivesse
mais preparado para ouvir a história, em parte
porque não sabia que ele seria tirado de perto de
si tão cedo. Se soubesse que em pouco tempo seu
filho se encontraria sozinho em uma terra
desconhecida, sendo importunado por um Saci, o
teria preparado melhor. Agora, tudo o que restava
na mente do potro eram dúvidas.
– Como eu faço isso? – Bree voltou a
encarar o Curupira e este passou o olhar das
costas do animal para sua cara. – De fato, você
ainda é muito novo. Mas suas asas não demorarão
a nascer. – Ele se aproximou do potro, acariciando
116 Terra da Magia
a leve protuberância que crescia em suas costas
(outro “defeito” de nascença que o grego não
mencionou ao Sr. Nogueira). – Vamos. Vou cuidar
de você até que você esteja pronto.
Bree assentiu timidamente para o novo
companheiro. Seu olhar dirigiu-se brevemente ao
caminhão e ele prometeu para si mesmo que
nunca mais seria preso em uma caixa como
aquela. No mesmo instante, uma brisa suave
cortou os corpos dos dois seres. O cabelo do
Curupira dançou ao sabor do vento, enquanto ele
esperava pacientemente pelo potro. Bree teve a
sensação de ter seus pelos acariciados de forma
quase paternal pela brisa, cujo sopro soou como
um sussurro encorajador e calmante. O potro
relinchou, apoiando-se nas patas traseiras,
117 Terra da Magia
novamente sendo atingido pelo sentimento de ser
capaz de realizar coisas extraordinárias.
Assim, ele seguiu o Curupira, certo de
que estaria seguro e que, um dia, seria capaz de
voar de volta para sua terra natal para finalmente
reencontrar sua mãe e viver com seus
semelhantes.
É difícil entender como uma estudante de engenharia mecatrônica pode ter tanta afinidade com algo além de sua calculadora gráfica, principalmente se esse “algo” for a escrita. A paulista Bruna Louzada entrou no mundo literário aos trancos e barrancos, só aprendendo a mergulhar verdadeiramente nos livros ao por as mãos na série Harry Potter. Motivo pelo qual, no verão de 2006, caiu nas graças de um fórum repleto de jovens fãs que criavam as próprias histórias. Foi assim que suas primeiras palavras literárias surgiram e fluíram para um papel em branco, contando histórias de personagens que pareciam ter vida própria. E como a libriana não seria capaz de superar sozinha suas incertezas literárias, é
118 Terra da Magia
preciso reservar um espaço em sua biografia para agradecer ao namorado pelo apoio e incentivo.
119 Terra da Magia
A Solidão é Verde Jefferson Nunes
Era um amanhecer vermelho quando
chegamos aqui, assim contavam os mais velhos
nas canções de aprendizado que entoavam desde
tempos imemoriais.
Chegamos de um lugar distante, onde o
Sol deixou de brilhar e nosso mundo, verde e
vasto virou cinzas. Atravessamos tempestades
cósmicas, apocalipses estelares em uma imensa
nave.
Não lembro, éramos apenas ovos,
embriões dos sonhos de uma raça sem lar em
busca de refugio em algum mundo jovem. Guiados
120 Terra da Magia
por alguns anciões e uma nave viva, que nos servia
de ninho e nos protegeu e nutriu no espaço.
Caímos no terceiro planeta, de um sol
recém nascido para os padrões cósmicos.
A nossa nave, localizou uma vastidão
verde, que lembrava muito nosso mundo mas a
queda não foi suave. A atmosfera queimou nossa
nave viva, que atingiu o solo já morta e nos
protegeu e aos anciões, na sua ultima missão.
Restaram poucos de nós. Da nave
sobrou apenas o suficiente para sobreviver
naquele mundo estranho e hostil.
Crescemos entre as arvores, a cada dia
nos tornávamos mais fortes e gigantes. Ao nosso
redor, lagartos dominavam o planeta, nos
olhavam como invasores que éramos e, com
121 Terra da Magia
medo, nos refugiamos nas arvores gigantescas
onde criamos nossa civilização.
Um emaranhado, aparentemente
caótico, de arvores colossais interligadas por
galhos e cipós que se estendiam por milhas e onde
colocamos em pratica os ensinamentos que
sobraram da nave mãe morta.
Arquitetura, leis, filosofia, foi o auge da
nossa civilização exilada.
Desenvolvemos arte usando o verde
como inspiração, esculturas voadoras que
explodiam no ar e se recompunham para lembrar
e honrar nosso mundo morto.
Leis que nunca precisaram ser usadas
pois éramos poucos e estávamos longe de
sentimentos mesquinhos e fúteis.
122 Terra da Magia
Treinamos nossos corpos e presas, com
táticas perdidas, para guerras que não foram
travadas, em campos de batalha que não existem
mais.
Arrastávamos nossos corpos reptilianos
com orgulho por entre ruas suspensas enquanto
fora dali a barbárie e a lei do mais forte dominava.
Nos alimentávamos dos frutos das arvores e às
vezes , um ou outro réptil que se aproximava dos
nossos domínios de forma distraída.
Pendurávamos-nos nas arvores com
nossas grandes caudas e os puxávamos pela
cabeça com nossas presas fortes e afiadas. Nosso
veneno os paralisava e o banquete estava servido.
Observavam-nos com desdém e medo
mas éramos jovens demais para enfrentá-los,
tínhamos o dom da paciência.
123 Terra da Magia
Uma noite, quando a lua se escondeu
em algum lugar distante do céu, eles vieram,
Sorrateiros por entre as arvores, eram muitos,
milhares e nos surpreenderam em uma
emboscada sanguinária em busca de vingança.
Lutamos por dias, sangue manchava o
verde, conhecíamos as arvores, os emboscávamos
em volta delas, pilhas de corpos se amontoavam
em volta das arvores e o mal cheiro empesteava o
ar, nem os comedores de carniça se atreviam a
chegar perto.. Mas eles eram numerosos demais
e para cada morto, dois outros surgiam, Eles
vinham pelo ar e por terra, perdemos alguns
irmãos mas os rechaçamos. E eles voltaram para
onde vieram sem nem mesmo levar seus mortos.
Já éramos poucos e cada vez mais nosso
numero diminuía.
124 Terra da Magia
Queimamos os corpos dos nossos
irmãos, como era o costume do nosso mundo, e
piras colossais iluminavam a escuridão lúgubre da
floresta.
Cantamos canções de morte, nossas
vozes e choro se espalharam pelo verde, e foram
ouvidas em todos os cantos.
Depois disso a paz reinou.
Os anos correram rápidos, e nossa
civilização entrava em decadência como deve ser.
Abandonamos tudo por lutas internas por poder,
que já dilaceravam nossa antiga sociedade em
nosso falecido Mundo. Tornamos-nos selvagens,
descemos das arvores e nos misturamos aos
outros seres. Caçávamos, às vezes por fome e as
125 Terra da Magia
vezes por prazer, arrastávamos nossos corpos
gigantes pela relva.
Todos nos temiam.
Ate que veio o estranho dia. De repente,
uma imensa bola de fogo atravessou o céu em
uma manhã nublada e quieta. Nem os voadores
puderam fugir, quando o impacto do imenso
objeto, beijou o solo virgem da floresta.
Rapidamente o fogo se alastrou, e em minutos
destrui tudo aquilo que a natureza levou milênios
para tecer.
A morte não fez escolhas, seres vivos
morriam pelo calor das chamas, outros
queimavam como brasa e se jogavam,
inutilmente, nos rios ferventes e sulfurosos.
126 Terra da Magia
Meus irmãos viraram cinzas, mas eu
escapei,
Sorte? Destino? Não, apenas estava
dormindo em uma caverna profunda, refastelado
por uma refeição. Meus olhos so observavam tudo
la do fundo da caverna, inebriado pela digestão, vi
meus irmãos morrerem em chamas.
As explosões eram ensurdecedoras la
fora, guinchos de seres mortos formavam uma
sinfonia macabra, que me acompanhou por anos a
fio.
“Estou só”, foi o ultimo pensamento que
passou pela minha mente, antes que uma imensa
pedra obstruísse a estreita entrada da caverna.
Entrei em um profundo e longo sono
naquela escuridão.
127 Terra da Magia
Não sei quanto tempo se passou ate que
eu acordasse. Os antigos, agora todos mortos,
falavam do longo sono, mas achávamos ser
apenas uma lenda. Quanto errado estávamos.
Acordei e me arrastei pelo chão úmido e
frio da caverna. Os barulhos la fora haviam
cessado.
Empurrei a imensa pedra, usando a
força da minha cabeça, o esforço foi cansativo
mas logo a luz do sol apareceu.
Meus olhos meio cegos pela claridade
puderam ver que a floresta havia renascido, mas
agora outros seres habitavam seu chão e seus
céus.
Tinham cores e cheiros diferentes,
pulavam pelas arvores, coloriam os céus. Eu
128 Terra da Magia
estava faminto e logo procurei alimento em meio
aqueles peludos animais.
Com o passar dos dias, eu avançava
floresta a dentro, e me convencia de que os
antigos e gigantescos animais que tanto combati,
não existiam mais e eu era o mais poderoso ser a
se arrastar pelo verde.
Os outros animais me temiam, se
escondiam quando escutavam o farfalhar das
folhas durante a minha passagem. Eu tinha me
tornado maior e mais forte, minha cauda ficava a
kilometros da minha cabeça.
Meus simples rastros eram suficientes
para os manter a distancia. Eu por algum motivo
estranho, gostei da solidão.
129 Terra da Magia
Ate que um dia, avistei um animal
diferente de todos que já tinha visto.
Andava em duas pernas, ligeiro. Caçava
com estranhas armas, e vivia em bandos. Eu
vislumbrei suas aldeias e acompanhei seus dias.
Coemcei a caça-los, mais por esporte do
que fome. Engoli seus filhotes e fêmeas, quebrei
seus guerreiros mais valorosos.
Suas armas não me atingiam, eu era
grande demais para sentir suas setas.
Depois de anos de matança, eles se
renderam e vieram ate mim para me adorar como
um Deus. Serviam-me fêmeas em sacrifício e me
deram um nome, algo que de onde eu vim, não
importava.
130 Terra da Magia
“Boiuna”, esse simples nome fazia os
homens tremerem, foram dias de gloria.
Continuei meu reinado na floresta ate
que os estranhos seres chegaram.
Eles vinham de longe em naves que
atravessaram o mar, eram brancos e diferentes
dos outros, falavam outra língua e traziam armas
estranhas e estranhos costumes.
Eu os observava escondia entre as
arvores, apenas meus olhos brilhantes eram vistos
a noite.
Mas eles não acreditavam em mim.
Uma noite, enfurecido pelo meu
orgulho, ataquei a aldeia. Usei toda a minha força
131 Terra da Magia
para matar a todos inclusive os brancos, me
banquateei com seu sangue e fugi para a floresta.
Mas isso foi meu erro, as tribos se
uniram e junto ao homem branco, vieram me
caçar. Lutamos durante dias ou meses não
lembro.
Um certo dia, grupo de brancos e
selvagens tentou me cercar. Mas ali, em meio a
gigantescas árvores, eu reinava. Fui me livrando
da cada um deles. Apesar do meu tamanho
aprendi a ser sorrateira e mais perigosa.
Até que restou apenas um, branco e
ainda jovem, sua espada tremia por entre suas
mãos suadas e resolvi aparecer para ele, as vezes
o medo deles me alimentava.
132 Terra da Magia
Ele me olhava espantado, trêmulo e
falava em sua língua estranha, mas que por algum
motivo, eu conseguia decifrar.
Ele me chamou de dragao, falou que
seus antepassados adoravam seres parecidos
comigo, mas que voavam livres nos céus.
E eu me perguntei se teríamos sido os
únicos a cair naquele mundo distante, se teríamos
irmãos em outras terras.
Ele baixou a cabeça e me fez uma
reverência antes de ser devorado, lhe dei uma
morte rápida e senti algo que não conhecia,
compaixão.
Um dia a vitoria era deles no outro
minha, assim seguia o equilíbrio.
133 Terra da Magia
Até que dois homens, um selvagem e
um branco se uniram.
O branco trazia algo na mão que depois
soube ser uma cruz como chamavam e o outro
trazia suas crenças antigas e com elas chefiava
sete tribos.
Juntos cantaram uma estranha canção,
tentei atacá-los, mas foi inútil.
Algo ali impedia meus movimentos, eles
se deram as mãos e uma luz muito forte me
cegou. Procurei fugir para dentro da terra e fiz o
jogo deles.
A canção entoada pelo selvagem me
deixou tonto e fui uma presa fácil para o feitiço
jogado contra mim.
134 Terra da Magia
A união de magia selvagem e cantos de
fé do branco não surtiram o efeito desejado. Eu
não tinha sido destruído e verdade, mas resolvi
me refugiar no fundo da Terra.
E lá fui esquecido em mais um sono
profundo.
Senti as coisas mudarem sobre minhas
costas, ouvi sons, senti o peso das construções,
ouvi quando os selvagens foram expulsos e
dizimados pelos brancos, escutei guerras e percebi
quando impérios ruíram.
Vi uma nova civilização nascer, senti as
pilastras de enormes construções sobre minha
cabeça.
E esperei.
135 Terra da Magia
E nesse exato momento, consegui
mover minha cauda há muito adormecida. Resolvi
despertar e ver o Mundo que abandonei, ouvi o
estrondo e os gritos, movi minhas costas e a terra
tremeu, levantei a cabeça e a enorme construção,
onde uma mulher pisava em uma cobra, desabou.
Vi o medo em rostos estranhos, seus
imponentes prédios ruíram quando despertei.
Eu me arrastava pelo Mundo
novamente.
Jefferson Nunes é escritor, com diversos textos publicados
pela editora escala, blogueiro de um
universoparaleloqualquer.blogspot.com, e vai lançar seu
ebook de contos, Vírus Fantasma, ainda esse ano.
136 Terra da Magia
Ensombração Alexandre Lobão
Um dos homens na mesa ao lado se levantou, com uma expressão indecifrável no rosto. Parecendo embaraçado, acenou brevemente como despedida e foi em direção à porta, sem falar nem olhar para trás.
Quando o homem que restara se levantou, levantei a mão em sua direção.
- Com licença...
- Sim?
- Perdoe-me, mas não pude evitar escutar a história que você contou, senhor...?
- Lauro. Lauro Alves.
Apertei a mão que me era oferecida. Titubeei antes de falar meu nome – afinal, nomes têm poder – mas resolvi assumir o risco.
137 Terra da Magia
- Martelli. Victor Martelli. É que... bem, é que tive a intuição de que você procurava algo mais com sua história. Alguma ajuda, talvez?
Ele suspirou e deixou os ombros caírem, desanimado.
- É que Bia, minha prima, sumiu faz alguns dias. A polícia deveria estar procurando, mas segundo eles não há nenhuma pista do raptor, se é que ela foi raptada... E que desde que fui à casa dela, sinto que há algo... bem, algo estranho...
Percebendo sua hesitação, fiz um sinal para encorajá-lo.
- Acho que posso ajudá-lo. Sente-se aqui, por favor.
Não esperei ele se arrumar na cadeira para continuar.
- Sr. Lauro, explique exatamente porque você acha que há algo de estranho no desaparecimento de sua prima.
138 Terra da Magia
O olhar dele mostrou a angústia, a força que fazia para colocar aquilo para fora. As palavras saíram todas de uma vez, em um borbotão que não permitia interrupções.
- Bem, eu poderia dizer-lhe que foram as circunstâncias do desaparecimento em si... mas a verdade é que, ao entrar na casa dela com o delegado, senti, e acho que vi, algo estranho. Neste momento me veio a lembrança da aventura que tivemos quando crianças, e eu soube que havia ali algo além do que podíamos ver.
- Certo. Mas diga-me, o que você quis dizer com “as circunstâncias do desaparecimento”?
Lauro contou-me, então, como Bia sempre fora a mais emotiva de toda a família, como se deixava levar pelos instintos desde pequena e como, mesmo depois de adulta, volta e meia vinha com histórias de seus contatos com os seres fantásticos que eles tinham visto quando crianças. Há poucos anos, Lauro se aventurara a ir
139 Terra da Magia
novamente com ela em uma de suas excursões pela mata, mas enquanto ela dizia ver os seres em todas suas formas e sons, Lauro apenas pressentia um murmurar diferente nas folhas ao vento. Cegueira de adulto, supunha.
Há dois anos Bia casara com Leonardo, o amor de sua vida, e pouco depois tiveram um filho. Ela, que sempre refletira no rosto a beleza e alegria que trazia no coração, desabrochou, ficou ainda mais bela e mais feliz, se é que isso era possível.
Então, há duas semanas, um acidente de carro mudou tudo. Leonardo e Mateus, seu filho, não sobreviveram, e com eles morreu parte de Bia. Assim que saiu do hospital, milagrosamente apenas com alguns arranhões, retornou ao trabalho. Negou qualquer tipo de licença, disse que se tivesse que ficar em casa sozinha enlouqueceria. No trabalho não conversava com ninguém, mal tirava os olhos da papelada que lhe cabia despachar. Os vizinhos, sempre atentos,
140 Terra da Magia
diziam que seu choro avançava noite adentro, até alta madrugada.
No sábado não saiu de casa, e no domingo foi à igreja vestida totalmente de preto, inclusive com luvas, um chapéu e um véu improvisado que lhe cobria o rosto. Os amigos estranharam, pois mesmo de luto Bia não abrira mão de suas usuais roupas coloridas durante a semana, e nem mesmo suspeitavam que Bia tivesse tais roupas. Depois da missa, Bia foi para casa, trancou-se e não mais saiu.
Na segunda-feira, como ela não apareceu no trabalho e não atendia ao telefone, o chefe da repartição foi até sua casa. Quando ela não respondeu à campainha, e com a confirmação dos vizinhos de que não saíra de casa, chamou o delegado e Lauro, seu primo, único parente que residia na cidade.
Quando o chaveiro destravou a fechadura, Lauro entrou junto com o delegado, temendo pelo pior. O que encontraram, porém,
141 Terra da Magia
foi a casa arrumada, as roupas negras que ela usara sobre o sofá, à frente da televisão ligada, e todas as janelas e portas trancadas por dentro. Ao entrar no quarto de Bia, Lauro sentiu um arrepio, e com o canto do olho viu uma sombra que parecia se aproximar dele. Ao virar o rosto não viu nada, mas sentiu um arrepio como se um vento frio passasse subitamente soprasse, e então desvanecesse.
O delegado recusou-se a acreditar em um sequestro, que seria algo inédito na pequena cidade, e registrou o caso como um desaparecimento. Acreditava que Bia, entristecida, deveria ter ido espairecer a cabeça longe da cidade. Desconversou quando Lauro lembrou que as chaves da porta estavam dentro da casa (“ela deve ter usado uma cópia”), e falou que consultaria os taxistas e motoristas de ônibus da cidade para saber se ela havia pegado alguma condução para fora dali.
- E ele não achou nada?
142 Terra da Magia
- Não, é claro que não.
Fiquei olhando para Lauro por alguns momentos, enquanto ele parecia reviver os acontecimentos em silêncio, procurando por algum detalhe que houvesse esquecido. Quando balançou a cabeça, confirmando em silêncio que aquilo era tudo, retomei a conversa.
- Alma-de-gato.
- Como?
- O que você pressentiu na casa de Bia é o que vocês chamam por aqui de alma-de-gato, ou alma-de-caboclo. De onde venho, são chamados de Mazikeen pelos judeus, de Waffs em partes da Inglaterra e de vários outros nomes a cada país. Mas não acho que ele tenha nada a ver com o desaparecimento de Bia, pois tudo o que estes seres fazem são acompanhar as pessoas, muitas vezes como prenúncio de desastres.
Lauro se empertigou, assustado.
- Será que algo acontecerá comigo?
143 Terra da Magia
- Você o viu outras vezes?
- Não.
- Então relaxe.
Pedi a conta com um gesto, e comecei a me levantar.
- Você pode me levar à casa de Bia? Se é que há alguma pista, está lá.
* * *
Lauro abriu a porta e entramos. Apesar do cheiro de casa fechada, a luz que entrava pelas grandes janelas dava um tom de tranquilidade, de ambiente arejado.
- Algo foi mexido por você ou a polícia?
- Muito pouco. Basicamente, desliguei a TV e peguei as chaves.
- Estas roupas, estavam desta mesma forma?
- Sim, por que?
144 Terra da Magia
- Veja como estão... Os sapatos aqui, o chapéu sobre tudo, as meias negras com as pontas dentro dos sapatos...
Levantei a borda do vestido confirmei minhas suspeitas.
- Inclusive as roupas íntimas dentro do vestido... É como se ela tivesse simplesmente evaporado de dentro das roupas...
- E isso significa algo?
- Não... Ainda não. Nada que eu saiba. Esta porta aqui, dá para onde?
- O quintal.
- Vamos a ele.
Logo após o alpendre, apontei a primeira pista: grandes marcas redondas, em uma clara trilha até o muro, ao fim do quintal. Por sorte, deveria ter chovido logo antes daquelas marcas serem feitas, e não chovera deste então. Lauro arregalou os olhos:
145 Terra da Magia
- O que é isso?
- Um rastro de um capelobo... Ou, pior, de um labatut!
- Capelobo?
- Uma espécie de lobisomem, com um focinho comprido. É muito rápido, e se alimenta do sangue de suas vítimas.
- E o que pode ser pior que isso?
Não conseguir reprimir um pequeno sorriso. “Muitas, muitas coisas”, pensei.
- O labatut é um ciclope, com grandes presas, espinhos pelo corpo e um grande mau humor, bem diferente do Bungisngis, seu parente filipino...
- Entendi. Capelobo, ruim, labatut, pior... Alguma chance de Bia estar viva?
- Não acredito que um destes monstros a tenha atacado; haveria sinais de luta na casa. Mas é a nossa única pista, vamos precisar
146 Terra da Magia
encontrar o bicho... Preciso me preparar, podemos nos encontrar aqui, digamos, em torno da uma da manhã?
Lauro pareceu se assustar.
- Uma da manhã? Não é mais seguro irmos de dia?
- Se for um capelobo, é mais fácil achá-lo de noite, pelos gritos que dá quando caça, e ele é mais fácil de lidar – basta um golpe na região do umbigo para incapacitá-lo. Se for um labatut, só conseguiremos nos aproximar caso ele esteja dormindo, então ir de madrugada é nossa única chance.
- E se for um labatut, ele tem algum ponto fraco?
Novamente, mal conseguir conter um sorriso. “Um labatut? Não, meu amigo, não conte com isso”. Mas preferi acalmar Lauro.
- Não se preocupe com isso, tenho tudo sobre controle.
147 Terra da Magia
* * *
Mochilas às costas, lanternas nas mãos, avançamos pela noite, seguindo um rastro que apenas eu via. O cheiro, que poderia dar alguma pista sobre a identidade do monstro, se fora com o passar dos dias.
Na entrada da floresta, pressenti mais do que vi um pai-do-mato, como os brasileiros chamavam os ents, movendo-se lentamente ao longe. Com certeza estávamos nos aproximando - usualmente as criaturas fantásticas costumam coexistir nas mesmas regiões.
Quando os rastros começaram a se juntar a outros, mais novos, avisei Lauro que devíamos estar nos aproximando do covil do monstro. Próximo à subida do morro consegui divisar a entrada de uma gruta, escondida com algum cuidado. Estiquei a mão e arranquei, de um dos galhos que a cobriam, um grande espinho amarronzado.
- O que é isso?
148 Terra da Magia
Com um gesto, mandei Lauro se calar.
- Isso – sussurrei - é a pista que não queríamos achar: um espinho de labatut. Vamos parar e nos preparar.
Abrindo a mochila, coloquei a grande rede que trouxera sobre os galhos, esticando duas cordas que a prendiam para um lado, e duas para o outro. Saquei a tira de bombinhas que tinha preparado, deixando-a no bolso do casaco, e entreguei a Lauro um apito de futebol, pendurando outro no pescoço. Quando Lauro fez sinal que iria perguntar algo, coloquei a mão frente aos lábios e cochichei.
- Shhh! Como a audição dele é muito sensível, o apito pode desnorteá-lo caso ele te ataque. Agora, vá em silêncio até aquele lado e segure as pontas das cordas. Ficarei deste lado, e vou dar um jeito de atrair o bicho para fora. Quando ele sair, e se prepare porque ele deve sair correndo, segure a corda com toda força!
149 Terra da Magia
Assim que confirmei que Lauro estava preparado, acendi o pavio das bombinhas e atirei o conjunto dentro da caverna. Em poucos instantes os estouros começaram, seguidos de um urro que gelou até mesmo meu sangue.
O labatut saiu correndo com tanta velocidade que as cordas quase escaparam de nossas mãos. A rede se fechou sobre ele, mas o puxão foi tão forte que derrubou Lauro no chão. Corri para frente, para terminar de amarrar o bicho e garantir que não escaparia.
Em um instante de distração, enquanto gritava para Lauro se levantar e ajudar, mesmo preso pela rede o monstro conseguiu saltar em minha direção e me agarrar com um dos fortes braços – por sorte, o outro estava preso ao corpo por uma das cordas. Os espinhos furaram meu peito e mãos, e gritei de dor enquanto tentava empurrar para longe as presas que ameaçavam cortar meu rosto.
- LAURO!!!
150 Terra da Magia
O bafo de carne podre chegava cada vez mais perto, e os espinhos penetravam dolorosamente na carne. Senti as costas estalarem com a pressão do aperto, e estava a ponto de desmaiar quando ouvi o estridente apito de futebol.
O monstro levantou um pouco a cabeça, incomodado, e foi o suficiente para Lauro passar a corda em seu pescoço e puxá-la com força, usando uma árvore como apoio.
O apito soou de novo, mais forte e mais perto da cabeça do labatut. A criatura gemeu, um gemido quase humano, e seu aperto afrouxou o suficiente para que eu conseguisse libertar um braço e levar meu apito à boca. Enquanto Lauro puxava a corda, forçando o pescoço da fera para trás, coloquei toda minha força em um apito que ensurdeceu até a mim.
O labatut jogou-se para o lado, tentando tampar os ouvidos com a única mão livre e o solo.
151 Terra da Magia
De pé, respirei fundo e levei a mão ao apito, preparando-me para mais uma apitada. No entanto, não foi necessária. O labatut ergueu a mão e disse, a voz grossa arrastada pela dor e distorcida pelas presas:
- Não... Por favor... Não...
Fiz um sinal para Lauro, que parou de apitar mas manteve o apito à boca. Mesmo no escuro eu podia ver seu rosto pálido tremendo.
- Podem... me matar... mas acabem... com isso.
- Não queremos matá-lo, amigão. Só queremos conversar com você.
O monstro levantou a cabeça, a incompreensão estampada em seu único olho. Com certeza nunca tinha sido chamado de “amigão”.
- Conversar?
152 Terra da Magia
- Isso, conversar. Desculpe pelo mau jeito, mas você não é um sujeito fácil de chamar para uma conversa.
O monstro soltou um forte grunhido, que poderia ser raiva, dor ou mesmo uma risada. Continuei.
- Alvinópolis, a cidade perto daqui. Uma casa azul, com um muro no quintal. Você esteve lá quatro ou cinco dias atrás.
- Muitas casas... Muitos muros... Procuro gato, cachorro... Não gente... comida...
Lauro se aproximou, encorajado pela conversa.
- Você foi à casa da Bia perto do dia em que ela desapareceu! Vai dizer que foi apenas coincidência?
O labatut arregalou o olho.
- Bia? Casa... de Bia?
153 Terra da Magia
Ele então franziu o olhar, encarando Lauro.
- Sim... Sim! Você... Lauro! ... Primo Bia!...
Lauro deu um passo atrás. O monstro tentou se sentar, mas a rede o impediu.
- Não quero... mau... a vocês... Tirem rede?
Sei que estas criaturas mais simples não sabem mentir, pelo que, apesar do medo ainda estampado na face de Lauro, saquei uma faca e cortei a rede, deixando a criatura sair. Ele se sentou em uma pedra, ainda encarando Lauro.
- Lembro... você... criança!
Sua boca se abriu no que pretendia ser um grande sorriso, mas que só conseguiu nos dar calafrios. Depois de mais uns instantes, começou a falar.
154 Terra da Magia
- Bia... triste!... Eu... visitava, fazia... ela sorrir... Mas ela... triste. Muito triste.
Estendeu a mão grosseira, com cinco dedos.
- Cinco noites... ela triste... Então... ensombrou...
- Como?
- Ensombrou... Menos gente, mais sombra... dia depois de dia... depois, ouvi... Na porta da casa... só sombra... Ouvi... Menos coração, mais sopro e vento... só sombra...
Lauro olhava para o labatut como quem não compreendia, ou quem não queria compreender. Aproximei-me e coloquei a mão em seu ombro.
- A sombra que você viu, Lauro. Não era um alma-de-gato, era a despedida dela.
As pernas dele pareceram fraquejar, e ele se apoiou em mim. Colocou a outra mão no
155 Terra da Magia
rosto e começou a chorar, desconsolado. Nem reparamos quando o labatut se aproximou e imitou meu gesto, colocando a mão em seu ombro.
- Não triste... Bia feliz... Bia ensombrou... achou quem Bia procurava... Bia aqui, e lá.
Lauro olhou para o grande olho que, marejado, parecia mais humano que nunca. Enxugou as lágrimas e tentou se recompor, mas as palavras ainda soaram amargas.
- “Ela está com quem ela ama...”, “Ela está melhor agora...”, é o que todos dizem quando alguém morre! Mas ninguém...
O labatut o interrompeu, a voz rouca soando imperativa.
- Eu não falo... vejo! Bia aqui... e Bia lá... Bia com quem ama, aqui e lá.
Como se para confirmar o que a criatura falava, percebi uma sombra que se aproximava de
156 Terra da Magia
Lauro. Ele não a via, mas notei que sentiu quando ela ficou ligeiramente mais densa e o abraçou.
- Bia?
O labatut roncou alto, agora com certeza uma estranha risada.
- Viu? Bia aqui, e Bia lá!
Lauro sorriu tristemente e balançou a cabeça, em um gesto amigável para o labatut.
- É, grandão. Bia aqui e Bia lá. Obrigado.
Lentamente, a sombra se separou dele e foi se tornando mais e mais etérea, até que finalmente ensombrou-se na noite.
Alexandre Santos Lobão iniciou sua carreira profissional como analista de sistemas no Banco do Brasil, e desde então atuou como empresário, consultor na área de serviços da Microsoft e servidor do Banco Central. Além disso, atuou em atividades de desenvolvimento de jogos eletrônicos e escrita de livros, angariando experiências diversas que renderam diversos livros e
157 Terra da Magia
sua participação como consultor, palestrante e facilitador em cursos nas áreas de Gerenciamento de Projetos, Criação de Jogos Eletrônicos e Técnicas de Produção Literária. Recentemente, tem concentrado seus estudos na área de gestão de conhecimento e planejamento estratégico.
158 Terra da Magia
Sr. Guerreiro
Joe de Lima
Dez da noite. Lúcio cansou de ficar plantado no banco do motorista. O negro saiu do carro estacionado e decidiu aguardar a ligação no bar do outro lado da rua. A favela da Peneira ficava perto, mas não temia ser identificado. Macedão era o único da quadrinlha que o conhecia e se, por acaso, ele entrasse ali, tanto melhor. Facilitaria a tarefa de estourar os miolos do filho da puta.
O local estava lotado, cheio de gente em busca de um caminho rápido para a cama de alguém. O próprio Lúcio era um negro bonito, de cabeça raspada e queixo quadrado. A camisa de mangas curtas ressaltava os músculos bem trabalhados, porém, a cara de poucos amigos espantava os olhares femininos.
159 Terra da Magia
Ele ocupou uma mesa mais afastada, pediu uma cerveja e um sanduíche de mortadela, os quais mal tocou quando chegaram. Tirou um maço de cigarros do bolso da calça, a proibição de fumar em locais públicos parecia não valer naquele bar, mas onde é que guardara o isqueiro?
Uma lata de refrigerante pousou sobre a mesa. Lúcio deparou-se com uma loiraça na casa dos 30. Os cabelos caiam numa cascata de cachos dourados, o tomara-que-caia valorizava os seios fartos, a bermudinha deixava as coxas à mostra. Ela tirou um isqueiro prateado do bolso e se ofereceu para acender o cigarro.
Primeiro ele desconfiou, depois pensou que se Macedão o tivesse descoberto, mandaria moleques com fuzis ao invés de uma boazuda. Achou melhor ser discreto e aceitar. A estranha tomou a liberdade de sentar-se.
— Vou pedir um copo para você — disse ele.
160 Terra da Magia
— Agradeço, mas dispenso. A cerveja brasileira é suave demais para o meu gosto.
O jeito de falar e a pele alva evidenciavam a origem estrangeira. Uma turista curiosa para ver a favela, por certo.
— Sou Lúcio. Lúcio Guerreiro.
— Pode me chamar de… er… Bruna, sr. Guerreiro.
— Então é de fora? Gostou de alguma coisa no nosso país?
— Na verdade, gosto do que vejo agora — os lábios sensuais exibiram um sorriso provocante.
— Desculpe, mas já tenho planos para essa noite.
— Posso ver que tem. Há uma faísca no seu olhar típica de quem planeja algo. Duvido que seja algo bom.
161 Terra da Magia
Antes que Lúcio pudesse retrucar, o celular vibrou. Ele pediu licença com um gesto. Ouviu a voz do Maninho.
— A dica tava certa. O Macedão deu as cara na Peneira.
— Sabe a razão?
— Chegaro umas minina nova no puteiro do campinho, ele foi vê a mercadoria. Acho que fica a noite inteira.
— Bom trabalho, mereceu o quanto paguei.
— Tô vazano, chefia. Tem nego armado pra tudo que é lado, até dero toque de recolhê.
Maninho desligou, Lúcio respirou fundo. Deu outra mordida no sanduíche, dessa vez, mastigou devagar. Bebeu um grande gole, saboreando cada gota da cerveja.
— Vendo-o, eu poderia jurar que faz sua última refeição. — disse Bruna.
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— Ninguém sabe quando vai morrer. Quem me garante que essa não é minha última cerveja? — ele deu uma tragada — E meu último cigarro?
— E o último sexo?
— Minha mulher não aprovaria — Lúcio levantou. — Mas pode me desejar sorte.
— Prefiro que seu intento seja mal-sucedido.
— Turista maluca — resmungou ele enquanto tirava da carteira o dinheiro da conta.
— Até mais tarde, sr. Guerreiro!
Lúcio levantou os olhos, Bruna já não se encontrava à mesa, nem em lugar algum do bar. Dando de ombros, ele sinalizou para o garçom que deixaria o pagamento em cima da mesa. Saiu do bar apressado, entrou no carro e partiu rumo à favela da Peneira.
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No caminho, ficou pensando no que dissera à Bruna sobre a esposa. A verdade é que Soraia jamais aceitaria qualquer de seus segredos.
Era uma boa mulher. Adorava crianças, por isso escolhera ser professora de jardim de infância. Seu único defeito foi falhar em perceber que amava um homem da pior espécie. Não só pelas amantes que ela nunca descobriu, mas pela outra profissão do marido.
Além de ser um agente de segurança, Lúcio também trabalhava como matador profissional, e dos bons. Encontrara em Macedão o cliente ideal: nunca pedia desconto e sempre pagava adiantado. A parceria foi desfeita quando Lúcio recusou um serviço, mas ficou com o dinheiro. Ideia estúpida. Era óbvio que um rei do crime organizado cobraria a dívida com juros.
Uma tarde, Soraia foi seqüestrada na porta da escola onde lecionava. Horas mais tarde, encontraram-na morta com sinais de espancamento e estupro.
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Com a visão embaçada pelas lágrimas, Lúcio estacionou em uma rua sem asfalto ao pé do morro e passou os minutos seguintes recompondo-se.
Antes da noite terminar, pretendia meter uma bala na cabeça dos dois responsáveis pelo assassinato de Soraia: Macedão e ele próprio. Nem tinha esperanças de reencontrá-la no outro mundo. Se realmente existia vida após a morte, o lugar em que ela deveria estar não permitiria a entrada de uma alma como a sua.
Ele apanhou uma mochila no banco de trás. Sua arma de trabalho costumava ser uma 9 mm, mas essa noite era especial. Tirou da mochila uma robusta Desert Eagle.50 com pente de 16 balas, conhecida pela potência exagerada para uma pistola. Guardava ainda outra arma idêntica. Para completar, colocou na cabeça um gorro vermelho que Soraia lhe dera no natal.
Ao descer do carro, pisou num estranho objeto de metal, uma pena feita de aço. Chutou-a
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para longe e seguiu para o morro por vias pouco iluminadas.
A maioria dos casebres da favela não possuía reboco e tinha pequenas janelas com cortinas, encimados por caixas d’água. Morro acima, as ruas convertiam-se em ruelas, depois em vielas, o espaço entre os barracos estreitava-se mais e mais.
Poucas pessoas arriscaram sair de casa, o toque de recolher dos bandidos assustara os cidadãos de bem. Se a polícia não fosse corrupta, viaturas estariam subindo o morro agora, na tentativa de prender um dos maiores líderes do crime organizado numa das raras ocasiões em que deixava a “fortaleza” que erguera na Rocinha.
Com as pistolas em punho, Lúcio aproximou-se de seu objetivo. Viu um par de capangas descer uma ruela, armados com fuzis de assalto. Graças às sombras, ele conseguiu passar para o outro lado sem ser visto, enfiando-se num vão apertado entre as casas. Adiante, havia uma
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rua maior e depois, uma área aberta. Era o campinho de terra batida, rodeado por um alambrado enferrujado.
Já podia ouvir a música alta do bordel, no outro lado do campo. Vozes próximas atraíram a atenção dele. Protegido pela quina da parede de uma casa, observou a rua maior e viu quatro homens armados há uns trinta metros, um deles brincava de jogar uma bolinha preta para o ar. Outros três aproximavam-se. Sete no total, um grupo grande. Seria melhor dar a volta.
— Ei! — gritaram às costas de Lúcio.
Ele voltou-se para encarar os dois sujeitos que desciam a ruela. O tinham visto afinal. Ambos ergueram os fuzis de assalto, Lúcio foi mais rápido com as Desert Eagle. Um rombo abriu-se no peito de um dos capangas, o outro foi atingindo no rosto, a parte de trás da cabeça explodiu.
Lúcio ouviu o grupo de sete homens correndo na direção do som dos tiros, mas ao
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invés de fugir, decidiu aproveitar o elemento surpresa. Atravessou a rua maior velozmente, as pistolas cuspindo fogo. Seis caíram num instante. O sétimo era o da bolinha preta. Lúcio fez pontaria, mas viu que se tratava de um garoto de 14 ou 15 anos. Ele hesitou, o moleque não.
A bolinha veio quicando pelo chão e caiu junto ao tênis direito de Lúcio. Ele percebeu tarde demais ser uma granada de mão sem o pino.
— Merda!
A granada estourou. O golpe de ar jogou Lúcio sobre o alambrado. A camisa enroscou no arame, rasgando-se. Ele girou sobre a tela e caiu com o rosto na terra do campo de futebol. O tronco nu, a respiração pesada.
Apesar de tudo, por um instante, sua atenção foi atraída pelo brilho opaco de outra pena de aço sobre o solo.
O arrastaram e colocaram-no sentado com as costas apoiadas no alambrado. Ele
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percebeu que o dano fora pior do que imaginara. Da perna direita, restava apenas metade da coxa. A hemorragia abundante lhe deixava poucos minutos de vida.
Erguendo os olhos, Lúcio viu, além do moleque, um brutamontes, um branquelo tatuado e o obeso Macedão, com o cabelo curto, barba por fazer e pele queimada de sol, vestindo uma camisa social amarrotada, com as mangas dobradas. O chefão empunhava as duas Desert Eagle.
— Que merda, Lúcio! — esbravejou Macedão. — Tu fica puto por causa da sua esposa e vem descontar em mim?! A culpa é tua por não ter feito o serviço do deputado!
— Você queria apagar o filho do deputado — retrucou Lúcio com a voz arrastada. — Eu não mato criança.
— Devolvesse a grana, porra!
— Não vim conversar… Vim te matar…
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Em resposta, Macedão jogou uma das pistolas ao alcance de Lúcio.
— Vai lá, mata!
Fraco, Lúcio precisou de um esforço enorme para erguer a pistola. Macedão atirou em seu ombro. O tiro pegou de raspão, mas o fez largar a arma.
— Apaguem esse bosta e limpem a sujeira. Vou esperar no bar.
Lúcio viu Macedão caminhar para fora do campo. No instante seguinte, uma chuva de pontapés o atingiu. Quando os agressores deram-se por satisfeitos, o brutamontes adiantou-se para terminar o serviço com o fuzil.
Nesse momento, um clarão surgiu no campinho. A silhueta de uma figura alada emergiu da luz com uma espada em punho. Lúcio pensou que a entidade vinha levar sua alma. Então, percebeu que seus três agressores também estavam aturdidos.
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A luz diminuiu, revelando que a tal entidade era Bruna. Ela ainda vestia os mesmos trajes, mas de suas costas brotava um par de asas de penas de aço. A espada possuía um cabo dourado ornamentado e jóias incrustadas na guarda.
— Cavalheiros — ela dirigiu-se aos agressores. — Como minha honra me permite matar somente em batalha, peço que ergam suas armas.
Os três entreolharam-se confusos. O brutamontes preparou o fuzil para atirar.
— É melhor ficar na sua, gostosa!
Bruna avançou num ataque veloz como o vento. A lâmina da espada atravessou o peito do brutamontes. Enquanto o corpo caía, ela viu, pelo canto do olho, que os outros dois iriam atirar.
Mais que depressa, ela curvou-se e fechou as asas metálicas sobre si. Os tiros ricochetearam nas penas de aço sem causar dano.
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Assim que os disparos cessaram, Bruna projetou-se contra o branquelo tatuado com um ataque circular na linha do pescoço. A cabeça dele foi decepada.
O olhar determinado de Bruna acabou com a coragem do moleque. Apavorado, o garoto jogou o fuzil longe e pôs-se a correr.
Vencida a luta, a loira se aproximou de Lúcio.
— Bruna…?! — a voz soou fraca. — Você é um anjo?
— Não, sr. Guerreiro. Meu verdadeiro nome é Brunilda, sou uma valquíria.
Como o tempo era curto, ela abreviou a história.
— Venho de Asgard, um mundo espiritual mergulhado em uma guerra milenar. Nós, valquírias, viajamos pelo globo em busca das almas de combatentes valorosos para nosso
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exército. O acompanho há algum tempo, sr. Guerreiro. Acredito que tenha muito potencial.
Bruna apanhou a Desert Eagle e a ofereceu à Lúcio.
— Se escolher vir comigo, posso estender sua vida até que complete sua vingança. A outra opção que tem é esperar a morte chegar e deixar seu inimigo sair impune.
Lúcio não sabia dizer se aquilo era real ou apenas um delírio, mas se houvesse uma chance de vingar Soraia, não precisava pensar duas vezes. Com as últimas forças, segurou o cabo da pistola.
Bruna começou a brilhar. A luz trouxe alívio para suas dores e lhe renovou vigor. Deu por si dentro do bordel ao lado de Bruna, perfeitamente equilibrado sobre a única perna.
Ao vê-lo, Macedão, reagiu por instinto. O chefão saltou da mesa com a Desert Eagle em
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punho. Lúcio foi mais veloz e o baleou na clavícula.
— Sumam-se, rameiras! — ordenou Bruna.
As prostitutas correram para fora do bordel. Macedão viu-se sozinho, encurraldo.
— Lúcio, eu…
Lúcio puxou o gatilho. Estava feito.
Ele soltou o ar. Nervoso, levou a mão ao bolso de trás para pegar um cigarro, Bruna lhe jogou o isqueiro. A loira deu uma boa olhada nele: sem uma perna, torso descoberto, as marcas da noite no corpo e o gorro vermelho. Nem parecia o mesmo homem de horas atrás.
Após uma boa tragada, Lúcio acalmou-se.
— O Macedão merecia sofrer, mas Soraia não aprovaria — ele voltou-se para Bruna. — E agora?
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Ela estendeu a mão satisfeita.
— Agora, sr. Guerreiro, vamos para Valhala, onde outras batalhas nos aguardam.
Lúcio segurou a mão dela. Um clarão iluminou a noite e quando apagou, ambos haviam partido.
Joe nasceu em 1981, fruto da geração internet, sua formação como autor se deu quase toda pela grande rede. Ainda em início de carreira, publicou contos nas antologias Lugares Distantes e PsyVamp (Ed. Infinitum), Angelus e Daemonicus (Ed. Literara) e Mundos – vol. 2 (Ed. Buriti). Também publicou via blog a série literária Serpente de Fogo. Seu blog: www.joedelima.blogspot.com.br