arte de morar na lua

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457 Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 457-468, setembro 2010 A arte de morar... na Lua: a construção de um novo espaço de morar frente à mudança do dispositivo asilar para o Serviço Residencial Terapêutico* Tania Kuperman Sztajnberg Maria Tavares Cavalcanti * Trabalho desenvolvido a partir do grupo de pesquisa supervisionado pela Profa. Dra. Maria Tavares Cavalcanti, consistindo no estudo do material teórico e reflexão sobre o atendimento e assistência à clientela do Instituto de Psiquiatria da Universidade Fe- deral do Rio de Janeiro – IPUB/UFRJ e seu acompanhamento no processo de desins- titucionalização e na implantação de residências terapêuticas e apresentado no III Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental/IX Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, realizado na Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, no período compreendido entre 4 e 7 de setembro de 2008. Em instituições que funcionam sob a lógica da desinstitucionalização existe um número significativo de pacientes que permanecem nos hospitais psiquiátricos. A implantação dos Serviços Residenciais Terapêuticos tornou- se uma das principais estratégias da reforma psiquiátrica. A partir do estudo de um caso clínico e os enfrentamentos encontrados neste trabalho, no que tange a passagem da internação ao SRT, aponto para a necessidade de uma escuta clínica que propicie a invenção de um espaço subjetivo que permitirá alguma circulação entre os dispositivos. Palavras-chave: Psicose, psicanálise, desinstitucionalização, Serviço Residencial Terapêutico

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    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, v. 13, n. 3, p. 457-468, setembro 2010

    A arte de morar... na Lua:a construo de um novo espao de

    morar frente mudana dodispositivo asilar para o

    Servio Residencial Teraputico*

    Tania Kuperman SztajnbergMaria Tavares Cavalcanti

    * Trabalho desenvolvido a partir do grupo de pesquisa supervisionado pela Profa. Dra.Maria Tavares Cavalcanti, consistindo no estudo do material terico e reflexo sobreo atendimento e assistncia clientela do Instituto de Psiquiatria da Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro IPUB/UFRJ e seu acompanhamento no processo de desins-titucionalizao e na implantao de residncias teraputicas e apresentado no IIICongresso Internacional de Psicopatologia Fundamental/IX Congresso Brasileiro dePsicopatologia Fundamental, realizado na Universidade Federal Fluminense, Niteri,RJ, no perodo compreendido entre 4 e 7 de setembro de 2008.

    Em instituies que funcionam sob a lgica da desinstitucionalizaoexiste um nmero significativo de pacientes que permanecem nos hospitaispsiquitricos. A implantao dos Servios Residenciais Teraputicos tornou-se uma das principais estratgias da reforma psiquitrica. A partir do estudode um caso clnico e os enfrentamentos encontrados neste trabalho, no quetange a passagem da internao ao SRT, aponto para a necessidade de umaescuta clnica que propicie a inveno de um espao subjetivo que permitiralguma circulao entre os dispositivos.Palavras-chave: Psicose, psicanlise, desinstitucionalizao, Servio Residencial

    Teraputico

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    Perdi alguma coisa que me era essencial, e que j no me mais...assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que at ento

    me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um trip estvel.Esta terceira perna eu perdi e voltei a ser uma pessoa que nunca fui.

    Voltei a ter o que nunca tive: apenas duas pernas.(Clarice Lispector, A paixo segundo G.H.)

    Neste trabalho apresento o caso clnico de uma paciente e oacompanhamento do seu processo de sada da enfermaria de crise de umhospital psiquitrico para um Servio Residencial Teraputico (SRT). A partirdo estudo deste caso clnico, pretendo elucidar as questes relativas aodispositivo da reforma psiquitrica em discusso, no que envolve a passagemde um dispositivo ao outro. Para desenvolver esta proposta, enfrentaremos asdiferentes lgicas, tanto poltica quanto clnica, sob a tentativa de um olhar deum dos maiores interessados. Apresento, assim, uma moradora de um SRT, ocaminho percorrido ao final de sua longa internao e a contnua insero nesteservio ainda em acompanhamento.

    A paciente, que chamarei aqui de Marilena, estava na enfermaria de crisedo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB)h alguns anos.1 Comeamos nossos encontros ainda durante a internao, masa perspectiva de mudana para a Residncia Teraputica (RT) j se aproximava.

    Marilena passou a se enquadrar no perfil dos pacientes indicados para aRT: no se tratava de uma paciente em situao de crise, mas, assim comomuitos pacientes, encontrava-se de alguma maneira aprisionada ao circuitopsiquitrico, de modo que estava h mais de um ano na enfermaria de crise doIPUB. Alm disso, no possua nenhum vnculo familiar que tivesseconcretizado sua sada da instituio.

    Entretanto, por que haveria Marilena de sair da instituio psiquitrica?Seria a enfermaria de crise de um hospital psiquitrico o lugar que Marilena

    1. O Instituto de Psiquiatria da UFRJ possui duas enfermarias para pacientes agudos, com tem-po mdio de internao de 19 dias, no entanto, alguns pacientes, por motivos variados, aca-bam permanecendo longos perodos internados.

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    escolheu para morar, ou ser que no teve escolha? E ainda, ser que ela realmentemorava na enfermaria de crise ou l estava apenas de passagem, mesmo que porlongo perodo?

    Ao que tudo indica, esta enfermaria deveria ser um lugar de passagem. Lugaronde a lei, a ideologia e o conhecimento terico/prtico preconizam permanncialimitada a um curto perodo determinado pela crise. No existe nenhuma inscrioque aponte que aquele lugar poderia servir de moradia. Os pacientes no possuemarmrios e no h nenhum pertence que no esteja protegido pelo prprio corpoembaixo dos colches. Todavia, existem aqueles pacientes que l chegaram e nomais saram.2

    Hoje, em linhas reconhecidas por lei pelo Sistema nico de Sade (SUS), amoradia um direito de qualquer cidado. Entretanto, para o paciente comtranstorno mental, tal direito no est apenas relacionado incluso desta clientelaaos direitos naturais de qualquer cidado. Neste caso, o lugar de moradia destespacientes est includo no projeto teraputico desta clientela. Para muitos dos queesto no hospital, o Servio Residencial Teraputico a nica alternativa possvel,a nica porta de sada do dispositivo asilar.

    No tenho a inteno de discutir neste trabalho as ambiguidades existentesentre o espao de morar e o espao de tratamento. Poderia parecer naturalconcluir que sair de uma instituio psiquitrica e poder morar em sua prpria casadeveria fazer parte do desejo de cada um destes pacientes. Todavia, afirmo quea experincia de habitar um espao, mesmo que parea natural para a maioria dens, no algo puro e simples e est intimamente ligado experincia de existir.

    Alm disso, considero que a possibilidade deste processo est inteiramenteligada a uma interveno clnica, ou seja, que o processo de passagem nicopara cada paciente e que visa o projeto teraputico voltado para a singularidadede cada sujeito.

    Sob a perspectiva de que o dispositivo asilar regido por uma lgica defuncionamento e poltica diferente do SRT, possvel concluir que toda passagemdeste paciente, de um dispositivo a outro, no se d de forma to fcil. Isso semlevar em conta toda a dificuldade prtica que envolve esta mudana tais como oaluguel de imvel e a compra de mveis e utenslios necessrios.

    O que poderia ento auxiliar ou mesmo marcar a diferena que existiria en-tre estes dois espaos? O que poderia servir de contraponto ao tratamento mas-

    2. Ao longo dos anos, h sempre cerca de 19 a 21 pacientes que encontram-se internados h maisde um ano (aproximadamente 20% dos pacientes internados) o que nos aponta para dificul-dade de estabelecer projetos que possibilitem a sada da internao.

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    sificado dos hospitais psiquitricos? Acredito que para cada um destes pacienteso significado da instituio e consequentemente seu egresso toma caractersti-cas singulares nas quais sair da instituio estaria na dependncia da presena dealgum que legitime e acolha a singularidade, que possa representar os preceitos deuma nova lgica, bem como acolher e respeitar os limites para a ao deste projeto.

    Dentro desta perspectiva fui incumbida de fazer o acompanhamento de Ma-rilena desde o interior da enfermaria, prosseguindo em sua mudana para a mo-radia a fim de mediar e avaliar este processo de acordo com suas possibilidades.

    Durante o perodo de internao, Marilena era uma paciente que tinha grandecirculao pelo ptio e outros espaos do IPUB. Conhecia grande parte das pessoasque ali trabalhava e comunicava-se com quem passava por l. Era conhecida porpedir um real a quem encontrava e, com o dinheiro que conseguia, compravacigarro, lanche e caf na lanchonete do Instituto.

    Por opo, preferiu no participar da maior parte dos encontros do grupoque estava acompanhando os pacientes que iriam para a moradia, pois sempre queeu tentava cham-la, estava dormindo ou dizia estar tonta e com sono. Depois dohorrio do grupo, quando j estava acordada, Marilena sempre podia ser encon-trada andando pelo ptio do IPUB. Conversvamos e ela sempre trazia questesque eu identificava como referentes moradia ou sada do hospital. Certa vezperguntou: verdade o que ouvi dizer que rei no Brasil no manda mais nada,quem manda o presidente? Ao receber a resposta de que ela tinha razo, Ma-rilena responde parecendo angustiada: O que eu vou fazer agora, se o rei nomanda mais nada, pra que eu vou ser rei? Perguntada para que gostaria de serrei, ela diz que faria tudo diferente, que daria roupa, comida e sapato para as pes-soas. Marilena comea a repetir que um fracasso, que o presidente est que-rendo prend-la no hospital e se no consegue nem sair sozinha do hospital, comovai mandar no pas inteiro. Ao ouvir, afirmo tambm estar l para ajud-la a sairdo hospital, mas Marilena diz no querer ir para esta casa, pois tem vrios cas-telos e no quer ir para casa que s cabe uma pessoa e querem colocar seis.

    Em uma de suas nicas participaes no grupo, fica bastante animada coma proximidade da sada, pois um dos pacientes j havia se mudado para a casa.Diz que para se mudar para a casa vai precisar de uma mesa, cadernos, livros euma Bblia, pois precisa fazer seus estudos sobre a existncia humana, comochegar a Deus sem precisar morrer e como chegar ao Sol e extrair ouro.

    Marilena foi uma das primeiras pacientes a se tornar moradora da mais re-cente RT do IPUB.3 Logo no incio j se via grande diferena no seu modo de se

    3. At o presente momento existem trs SRT vinculados ao IPUB inaugurados em 2000, 2003 e2004.

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    apresentar: J estava recebendo o benefcio do Programa de volta para casa4 e pa-recia mais animada, se arrumando com suas roupas novas compradas a seu gosto.

    Em nosso primeiro encontro na moradia, Marilena conta como foi parar noIPUB. Diz que ficava na Praia do Flamengo gritando verdades, pois precisavadizer para as pessoas como se constri casas na Lua e me pede um caderno elivros para continuar estes estudos. No encontro seguinte era seu aniversrio, doupara ela um caderno e ganha tambm, de outra acompanhante, dois livros sobreo corpo humano que ela disse ser exatamente o que precisava. A Bblia presentede outro acompanhante recusou por ser muito pequena. Algumas vezes em queretornei a casa, encontrei-a sentada mesa, escrevendo em seu caderno o queexplicou ser seus estudos sobre a casa na Lua. Argumentou a relevncia destesestudos explicando que se falta terra para as pessoas morarem importante saberconstruir casas na Lua.

    Freud, em alguns de seus textos, afirma que, para o psictico, o delrio seapresenta como tentativa de cura. Acredito que os estudos sobre as formas demorar na Lua podem ser considerados tentativas que a prpria Marilena encontroupara estar em sua nova moradia e no mundo. No texto Neurose e psicose(1924/1923), o autor aponta:

    Com referncia gnese dos delrios, inmeras anlises nos ensinaram queo delrio se encontra aplicado como um remendo no lugar em que originalmenteuma fenda apareceu na relao do ego com o mundo externo. Se essaprecondio de um conflito com o mundo externo no nos muito maisobservvel do que atualmente acontece, isso se deve ao fato de que, no quadroclnico da psicose, as manifestaes do processo patognico so amiderecobertas por manifestaes de uma tentativa de cura. (p. 169)Entretanto, Marilena no parava de repetir o quanto sentia falta do IPUB.

    Questionava sobre a possibilidade de voltar a morar na enfermaria. Era categricaao afirmar sua preferncia por morar no hospital. Passou a ocupar seu diadormindo em sua cama. Recusava-se a frequentar o Centro de Ateno Diria(CAD) de referncia para seu tratamento, que funcionava no interior do IPUB.Conversar com ela era possvel apenas na hora do almoo, quando acordava parafumar ou quando combinvamos de comprar roupas novas. Para esta combinao,a encontrava pronta minha espera, aguardando a sada. A qualquer outraproposta, se dizia tonta ou com dor nos ossos.

    4. Programa destinado ao auxlio financeiro mensal para pacientes usurios do SRT ou que re-tornam para suas famlias, egressos de internao superior a trs anos em hospital psiquitri-co at o ano de 2003.

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    Comparativamente sua circulao e aos laos estabelecidos durante seulongo perodo de internao, Marilena passou pelo processo inverso do que inicialmente esperado do processo de mudana do hospital para a moradia. Seudia a dia passou a ser bem mais restrito e ficava na cama a maior parte do dia,assim como grande parte dos pacientes que encontramos internados eminstituies psiquitricas.

    Por iniciativa prpria, Marilena passou a frequentar o CAD e conse-quentemente o IPUB (ou talvez o inverso: IPUB e consequentemente o CAD).Comparece religiosamente toda semana no dia combinado durante toda a tarde emque boa parte circula pelo ptio do IPUB. Quer comprar roupas novas para estemomento e fala sobre a necessidade de receber mais dinheiro para seus gastosdeste dia sob o argumento de que esta sua maior diverso. Marilena continuapassando grande parte do dia deitada na cama, mas desde que voltou a frequentaro IPUB faz tempo que no menciona a vontade de l residir. Quando questionadasobre este assunto, ela diz que no pretende mais voltar, porque l as pessoasbatiam nela e chegaram a quebrar todos os seus ossos. Marilena diz que osenfermeiros batiam nela, quebraram seu pescoo, pernas, braos e, at hoje, aindasente as dores. Diz que gastava todo o seu dinheiro comprando cigarros, poistinha que d-los para outros pacientes, j que, segundo ela, apanhava deles casono desse.

    Ao ser indagada se hoje em dia ainda tem que dar seus cigarros quando vaiao IPUB ela responde que no, que hoje em dia quando vai ao IPUB vai bem vestidae as pessoas sabem que ela no mora mais l, por isso a respeitam. Perguntadasobre o que gosta de fazer no IPUB, ela diz que gosta de fazer lanche nalanchonete do IPUB e encontrar as pessoas. Questionada sobre a diferena entrefazer um lanche nesta lanchonete ou na padaria perto de sua casa, Marilena dizque no sabe.

    Qual seria ento esta diferena? Quando a encontro andando pelo hospital,est toda arrumada, com roupas novas e bijuterias, mas passa parte do dia deitadanos bancos de concreto do ptio. Imagem bastante ambgua, que facilmente podenos levar ao que acredito ser uma concluso equivocada, de que esta passagempelo hospital no exerce para ela nenhuma funo. No possvel negar que ohospital faz parte de sua histria. Para esta paciente, estar no IPUB no significaestar em qualquer lugar, mas sim em um lugar onde se reconhece e reconhecida.

    No texto Hspedes e peregrinos, duas montagens subjetivas na psicose,Adriana Cerdeira e Guilherme Gutman (2006) discutem que a diferena entre estasduas categorias se apresenta na posio subjetiva, na maneira que o psicticoencontra de estar no mundo. Para tal eles apresentam dois casos em que, suamaneira, cada qual encontrou seu lugar de hspede, seja fora ou dentro do circuitopsiquitrico. Para estes autores tais diferenas so tratadas da seguinte forma:

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    ... as ideias de hospedagem e de peregrinao entendidas como realidadespsquicas que indicam, respectivamente, o caminho em direo a algum lugar deestabilidade mnima ou trnsito por circuitos imprecisos... Por esse motivo aquiloque vai caracterizar algum como hspede ou peregrino no o lugar em quevive, mas os entrecruzamentos de sua rede subjetiva com seus pontos de voo epouso. (p. 670)Para Winnicott (1975), o processo criativo derivado da relao primordial

    entre me e beb. Para sustentar sua formulao, o autor apresenta o quedenominou de objetos e fenmenos transicionais para indicar a fase doprocesso de subjetivao em que o infans habita um espao intermedirio entrea realidade interna e a vida externa. Segundo o autor, estes fenmenos circulamentre o que se reconhece como si mesmo e o que se diferencia como no eu.

    Em Winnicott, o desenvolvimento emocional primitivo segue um percurso nosentido da experimentao sensorial desde o que inteiramente subjetivo at o que objetivamente percebido. Para que a exterioridade seja reconhecida, precisoque o sujeito use o objeto, teste a resistncia dele aos seus ataques e, a partir dasobrevivncia dele torna-se capaz de discriminar o que eu e no eu. No incio,antes de todo esse processo acontecer, Winnicott (1975) descreve um momentooriginrio de iluso de onipotncia. Para ele, essa experincia decorre do paradoxode que o objeto est l para ser criado pelo beb. No se trata, portanto, de umencontro, mas de uma inveno da qual a criana se apropria. Da advm o existiroriginrio que se d na rea intermediria entre a criatividade primria e apercepo objetiva.

    No momento posterior o beb passa pelo processo de desiluso daonipotncia, promovida pela falha do ambiente que faz surgir, na relao me--beb, um espao para a diferenciao. essa experincia que vai marcar adiferena entre o eu e o no eu, e o decorrente reconhecimento de uma alteridade.Nas palavras do autor:

    Desde o nascimento, portanto, o ser humano est envolvido com o proble-ma da relao entre o que objetivamente percebido e aquilo que subjetivamen-te concebido e, na soluo desse problema, no existe sade para o ser humanoque no tenha sido iniciado suficientemente bem pela me. A rea intermediriaa que me refiro a rea que concedida ao beb entre a criatividade primria e apercepo objetiva baseada no teste de realidade. Os fenmenos transicionais re-presentam os primeiros estdios do uso da iluso sem os quais no existe parao ser humano, significado na ideia de uma relao com um objeto que por ou-tros percebido como externo a este ser. (p. 26)Se o processo de desiluso se realiza de maneira satisfatria, para Winnicott

    instala-se um desenvolvimento saudvel da vida emocional do sujeito. A mesma

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    me que, empatizada com o bebe, possibilita a iluso, a que favorece, ao longode um delicado e gradativo processo de separao, o processo de desiluso. Sa partir deste primeiro momento de afinao me-beb, em que ela reconhece otempo subjetivo e as mincias do seu beb, que a desiluso pode ocorrergradativamente gerando a transio para o que objetivamente compartilhado.Entretanto, esta passagem no se d de forma completa e definitiva, ao longo davida do sujeito alguma circulao sempre se d entre este dois momentos. Aindanas palavras de Winnicott (1975):

    Se um adulto nos reivindicar a aceitao da objetividade de seus fenme-nos subjetivos, discerniremos ou diagnosticaremos nele loucura. Se, contudo, oadulto consegue extrair prazer da rea pessoal intermediria sem fazer reivindica-es podemos ento reconhecer nossas prprias e correspondentes reas inter-medirias, sendo que nos apraz descobrir certo grau de sobreposio, isto , deexperincia comum entre membros de um grupo de arte, na religio, ou na filoso-fia. (p. 29)Encontrar o lugar de sobreposio seria ento uma sada possvel? A resposta

    positiva estaria somente no lugar inventado, que amplia possibilidades de estar nomundo.

    Do mesmo modo como o incio da vida do sujeito depende das condiesdo ambiente, proporcionadas pela relao me-beb, necessria, em umdispositivo de sade mental, a existncia de um espao que seja vivido como umlugar onde a experimentao daquilo que faltou anteriormente lhe seja agorapermitida. nesta tentativa de recobrir a falha original que se cria, pela primeiravez, as condies para que este sujeito se legitime.

    Vale dizer que no se trata de defender a institucionalizao. Ao contrrio,refiro-me a um lugar que no se reduz ao hospital, tampouco aos serviossubstitutivos. Um lugar inventado que se reporta mais ao uso que se faz dequalquer um ou de nenhum destes servios. Todavia, no fcil encontrar estelugar, este espao potencial, que constitui o paradoxo de se encontrar o que estl para ser criado. Condio que depende de uma relao e escuta deste sujeitoque proporciona o encontro. A quem ento ser designada esta funo materna?Ao que tudo indica, esta funo ser estabelecida com aquele que tiver algumapossibilidade de se adequar a este tipo de condio, seja um tcnico de referncia,um servio ou uma instituio.

    No caso da paciente em questo, o espao psiquitrico propiciou uma certaidentidade, mesmo que incipiente, criada na relao com a instituio onde foipossvel algum endereamento. Em discusso com grupo de pesquisa do IPUB,que acompanha os pacientes moradores do SRT, nos perguntvamos por queMarilena, mesmo com dificuldade de chegar ao hospital, insistia em frequentar o

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    bar dentro da instituio, mesmo havendo tantos que se situam nas redondezasda moradia. Entre diferentes opinies sobre o vnculo da paciente com ainstituio, concordamos que apesar dos avanos no processo de incluso dopaciente psiquitrico na sociedade, possvel citar inmeros exemplos daquelesque no se sentem includos e no se sentem capazes de entrar em um bar, lojaou restaurante por conta prpria, pois sabem que iro se deparar com oestranhamento.

    Pode-se observar que mesmo que estes pacientes estejam do lado de foradas grades do asilamento, no esto livres dos muros da proteo. Entretanto,cabe-nos perguntar se este muro construdo pela equipe protetora ou trata-sede uma necessidade criada pela estrutura psictica. Como representantes da equipede trabalho da sade mental, mesmo que em nome do processo dedesinstitucionalizao, somos chamados a responder por aquilo que se proporcionana tica do cuidado e que o espao social no garante.

    Quando fala em moradia, a uma ameaa persecutria que Marilena serefere. Diz que l est sempre em risco: a mesa pode cair a qualquer momentoe cortar as pernas, o banheiro uma bomba que pode explodir.... Sempreexistem ladres e criminosos que esto a sua procura, atrs do seu saber, seudinheiro ou dos seus ossos. Eu, como visitante, pergunto o que posso fazer paraajud-la a se proteger e indago a quem podemos, ento, pedir ajuda.

    Marilena comeou a escrever o que chamou de cincia-pesquisa. Escreveem seu caderno sobre os temas mais diversos: casas na Lua, instrues de comopassar creme, alertas sobre ladres e assassinos esto enunciados e refletem todaa sorte de pensamentos que lhe acometem. Aguarda a minha chegada semanal epede para que eu traduza seus escritos, o que significa ditar-me palavras soltasdo seu trabalho para que eu as reescreva. Minha traduo ento anexada junto papelada que entregue ao segurana da porta de entrada do IPUB. Parece,mesmo por algum tempo, que na figura concreta daquele que representa tantoa passagem entre o dentro ou fora da instituio quanto algum tipo de seguranadaquele espao, que Marilena constri alguma possibilidade de circular entre estesdois espaos.

    No entanto esta sada encontrada pela paciente fluida, podendo, a qualquermomento, distanciar-se do ponto de ancoragem onde a iluso de onipotnciaencontra seu refgio. Nestes termos apontamos a questo do que possvel oambiente proporcionar para que se favorea a migrao do sujeito do refgio dailuso de onipotncia para a realidade do mundo. Podemos pensar na instituiocomo mediador desta restituio?

    Neste sentido, a paciente passa a utilizar a instituio psiquitrica como meiode reinveno do espao de morar. neste espao potencial que se inventa umlugar onde o existir verdadeiramente se viabiliza na livre circulao do dentro

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    e fora no processo de subjetivao. Talvez esta seja a marca que diferencie esteespao da instituio asilar: aqui as portas esto abertas para entrar ou sair.

    Marilena ensinou-me que ainda existe outra possibilidade de morar, que nose encontra nem no dispositivo asilar e nem no SRT, podendo estar entre estesdois, e que s precisa ser inventado. O que nos resta reconhecer este espaointermedirio para aprender a utilizar e construir nele um espao clnico.

    Termino com um dilogo entre mim e Marilena, aps o falecimento de umadas moradoras: M. pergunta-me por que estou triste, quando respondo, ela meconsola: No fique triste, ela no morreu, saiu daqui feliz da vida para morar numcastelo. Voc no gostaria de morar num castelo? Digo que se morar em umcastelo significa no encontrar mais nenhuma das pessoas que gosto prefeririaficar onde estou, ao que M. me responde: A vida assim, quando casamos temosque largar nossos pais, para morar em um castelo temos que largar todo o resto.Sbias palavras de quem sabe que, rendido condio psictica, difcil no estarsujeito a uma peregrinao solitria.

    Referncia Documental

    Ministrio da Sade. Portaria n 106/MS, de 11 de fevereiro de 2000.

    Referncias

    BARRETO, K. D. tica e tcnica no acompanhamento teraputico, andanas comDom Quixote e Sancho Pana. So Paulo: Unimarco, 2000.CAVALCANTI, M. T.; VILETE, L.; SZTAJNBERG, T. K. Casa e/ou Servio? O dilema dasmoradias assistidas e/ou Servios Residenciais Teraputicos no contexto da Reformapsiquitrica brasileira. Cadernos do IPUB, Rio de Janeiro, n. 22 Desinstitucionali-zao. A experincia dos Servios Residenciais Teraputicos, 2006.CERDEIRA, A.; GUTMAN, G. Hspedes e peregrinos duas montagens subjetivas napsicose. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, So Paulo, anoIX, n. 4, p. 668-675, dez. 2006.FREUD, S. (1924). A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Edio StandardBrasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:Imago, 1988. v. XIX.____ . (1924). Neurose e psicose. In: Edio Standard Brasileira das Obras Psico-

    lgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1988. v. XIX.

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    ARTIGOS

    LISPECTOR, C. A paixo segundo G.H. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

    Resumo

    (The art of living ... on the Moon: the construction of a new place to live, in viewof changes from asylum-type living to a therapeutic residence)

    Despite the fact that numerous hospital institutions are now operating under thelogic of deinstitutionalization, many patients continue to live in them. Therapeuticresidences have become a leading strategy in the psychiatric reform. A case study onthe challenges faced in the transition from hospitalization to residential care serves asthe point of departure, from there I discuss the need for clinical listening that isconducive to the creation of a subjective space that will allow for the circulationbetween one situation and the other.Key words: Psychosis, psychoanalysis, deinstitutionalization, therapeutic residence

    (Lart dhabiter...dans la Lune: la construction dun nouvel espace dhabitation faceau changement de lasile comme appareil au Service Rsidentiel Trapeutique)

    Mme dans des hpitaux psychiatriques qui oprent dans la logique de la courtepermanence, un nombre important de patients y demeurent. La mise en place de ServicesRsidentiels Thrapeutiques est devenue lune des principales stratgies de la rformepsychiatrique. travers ltude dun cas clinique, surtout lors dune hospitalisationdans un SRT et des questions qui ont surgi pendant ce travail, nous proposons lancessit dune coute clinique qui facilite linvention dun espace subjectif quipermettra une circulation entre les diffrents services.Mots cls: Psychose, psychanalyse, Service Rsidentiel Thrapeutiques

    (A arte de habitar... en la Luna: la construccin de un nuevo espacio de habitacinfrente al cambio del dispositivo asilar para el Servicio Residencial Teraputico)

    En instituciones que funcionan de acuerdo con la lgica de la hospitalizacin decorta permanencia hay un nmero significativo de pacientes que an permanece en loshospitales psiquitricos. La implantacin y aplicacin de los Servicios ResidencialesTeraputicos se constituy en una de las principales estrategias de la reformapsiquitrica. A partir del estudio de un caso clnico y centrndome en las cuestionessurgidas en dicho trabajo en lo que concierne a la transicin de la hospitalizacin ala atencin domiciliar (SRT), destaco y propongo la necesidad de una escucha clnica

  • R E V I S T AL A T I N O A M E R I C A N ADE P S I C O P A T O L O G I AF U N D A M E N T A L

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    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, v. 13, n. 3, p. 457-468, setembro 2010

    que propicie la invencin de un espacio subjetivo que permita una circulacin entrelos diferentes servicios.Palabras claves: Psicosis, psicoanlisis, Servicio Residencial Teraputico

    Citao/Citation: SZTAJNBERG, T.K.; CAVALCANTI, M.T. A arte de morar... na Lua: a construode um novo espao de morar frente mudana do dispositivo asilar para o Servio ResidencialTeraputico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, So Paulo, v. 13, n. 3,p. 457-468, set. 2010.

    Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

    Recebido/Received: 1.7.2009 / 7.1.2009 Aceito/Accepted: 18.10.2009 / 10.18.2009Copyright: 2009 Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este um artigo de li-vre acesso, que permite uso irrestrito, distribuio e reproduo em qualquer meio, desde queo autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permits unrestricted use,distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source arecredited.Financiamento/Funding: As autoras declaram no ter sido financiadas ou apoiadas/Theauthors have no support or funding to report.Conflito de interesses/Conflict of interest: As autoras declaram que no h conflito de in-teresses/The authors declare that has no conflict of interest.

    TANIA KUPERMAN SZTAJNBERGPsicloga especialista em Sade Mental pela SMS/RJ nos moldes da residncia pela Secre-taria Municipal de Sade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, RJ, Brasil), em estgioprobatrio para mestrado no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio deJaneiro IPUB/UFRJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil); Supervisora/Acompanhante Terapu-tica das Residncias Teraputicas do eixo do Encantado/Equipe de Segmento do CAPS Cla-rice Lispector Engenho de Dentro (Rio de Janeiro, RJ, Brasil).Rua Maria Anglica, 270/306 Jardim Botnico22461-152 Rio de Janeiro, RJ, BrasilFone: (21) 2535-3555e-mail: [email protected]

    MARIA TAVARES CAVALCANTIProfessora associada do Depto. de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medici-na da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil); Vice--diretora clnica do Instituto de Psiquiatria da mesma universidade.Av. Portugal, 884/101 Urca22291-050 Rio de Janeiro, RJ, BrasilFone: (21) 9349-0918e-mail: [email protected]