etnomapeamento potiguara paraiba

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Etnomapeamento dos Potiguara da Paraíba

Author: ricardo-thomasi

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  • Etnomapeamento dos

    Potiguara da ParabaPotiguara

  • PRESIDNCIA DA REPBLICADilma Vana Rousseff

    MINISTRIO DA JUSTIAJos Eduardo Martins Cardozo

    FUNDAO NACIONAL DO INDIOMarta Maria do Amaral Azevedo

    DIRETORIA DE PROTEO TERRITORIAL Aluisio Ladeira Azanha

    COORDENAO GERAL DE MONITORAMENTO TERRITORIALThais Dias Gonalves

    COORDENAO DO PROJETO 914BRA4008 FUNAI/UNESCOLeila Silvia Burger Sotto-Maior

    DIRETORIA DE PROMOO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTVELMaria Augusta Boulitreau Assirati

    COORDENAO GERAL DE PROMOO AO ETNODESENVOLVIMENTOLylia da Silva Guedes Galetti

    COORDENAO GERAL DE GESTO AMBIENTALJaime Garcia Siqueira Junior

    COORDENAO DO POVO POTIGUARA DA PARABA

  • Etnomapeamento dos

    Potiguara da ParabaPotiguara

  • A experincia contida neste livro ocorreu sob iniciativa do Povo Potiguara e da Coordenao Geral de Monitoramento Territorial (CGMT) contando com apoio tcnico da Coordenao Geral de Promoo ao Etnodesenvolvimento (CGETNO) e Coordenao Geral de Gesto Ambiental (CGGAM). Convnio Funai/UNESCO PRODOC 914BRA4008, Impactos do Desenvolvimento e Salvaguarda de Comunidades Indgenas.

    Organizao, Texto e Assessoria: Thiago Mota Cardoso, Isabel Fres Modercin, Lilian Bulbarelli Parra e Gabriella Casimiro Guimares

    Assistente Tcnico: Luiz Pereira dos Santos

    Equipe PotiguaraTI Monte-Mor e Jacar de So Domingos: Leandro, Roseli, Luan, Antnio Gomes, Antnio Severino, Adalberto, Jos Roberto (Bel), Claudecir da Silva, Josecy Soares, Claudeir, Elias, Seu Joo, Anibal Cordeiro Ramos, Seu Tota, Sandro Gonalves. TI Potiguara: Josaf dos Santos, Antnio Ferreira, Marcelino, Alcides Alves, Jos da Silva, Genival Cirico, Elias de Lima, Antnio Marcolino, Joo Roberto, Edmilson Cinsio, Neda, Seu Francisco (Paj), Lenildo Brasiliano, Rosngela Galdino, Jos Cirico (Capito Potiguara), Seu Jos, Dona Chica, Francisco dos Santos, Joo Batista, Maria Soares, Antnio Andr, Luis Benedito, Qul.

    Equipe de ApoioJosaf Padilha Freire, Marcos Santana, Benedito Rangel, Nemzio, Seu Bastos, Glauciano.

    RevisoJosaf Padilha Freire (professor), Nathan Galdino da Silva (cacique), Sandro Gomes Barbosa (Cacique Geral), Alcides da Silva Alves (Cacique) e Jos Roberto de Azevedo (Bel) (Cacique)

    Mapas: Lilian Bulbarelli Parra

    Fotos: Lilian Bulbarelli Parra, Thiago Mota Cardoso, Isabel Fres Modercin e Gabriella Casimiro Guimares

    Catalogao: Cleide de Albuquerque Moreira - CRB 1100Projeto Grfico/Editorao: Lorena Soares/COGESC/CGGE/DAGESApoio: GIZ - Deutsche Gesellschaft fr Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH

    Dados Internacionais de CatalogaoBiblioteca Curt Nimuendaju

    Cardoso, Thiago Mota; Guimares, Gabriella Casimiro. (Orgs.).Etnomapeamento dos Potiguara da Paraba. Braslia: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM, 2012.107p. Ilust.

    ISBN: 978-85-7546-036-8

    1. Potiguara 2. Gesto Ambiental 3. Gesto Territorial 3. Terras Indgenas 4. Impacto Ambiental 5. Sustentabilidade 6. RecursosNaturais 7. Etnodesenvolvimento I. Ttulo CDU: 572.95(813.3P86):502

    Fundao Nacional do ndioSEPS 702/902 - Ed. Lex70390-025 Braslia - DFwww.funai.gov.br

  • Etnomapeamento dos

    Potiguara da Paraba

    Braslia - df2012

  • ANAMA POTIGARA AUERAMANHE O-S-EKOB-NE O TUIBAEPAGAMA YBY-PE,GI-XBO MEM,O-PYT-NE MARAMONHANGA SAYNHA POPYATBABA BTYM-A OR PY NHY AB,AMBITE OR POROMONHANGABA RES

    O POVO POTIGUARA SEMPRE VIVERNA TERRA DOS SEUS ANTEPASSADOS,MESMO PARTINDO;PERMANECER A SEMENTE DA LUTA E RESISTNCIAPLANTADA EM NOSSAS MENTES E CORAES,PARA O FUTURO DAS NOSSAS GERAES

    AUTOR: PROF. JOSAF FREIRE POTIGUARA-PB

  • SUMRIO

    APRESENTAO

    ENTRE DILOGOS E CAMINHOS

    OS POTIGUARA

    OS AMBIENTES

    CUIDAR DO TERRITRIO

    PROJETOS E INICIATIVAS

    7

    9

    15

    21

    55

    97

  • 6

  • 7APRESENTAO

    O presente livro fruto de um estudo sobre os conhecimentos etnoambientais realizado com os Potiguara, entre agosto de 2010 e agosto de 2011. Estudo este ambientado, desde as oficinas s caminhadas pelo territrio, passando por conversas e entrevistas, em um clima de dilogo intercultural e intercientfico. A pesquisa em questo enquadra-se em uma proposta de fomento gesto territorial em terras indgenas, combinando a dimenso poltica e de planejamento do territrio, com a dimenso ambiental de aes de etnodesenvolvimento, calcado na valorizao da cultura e na segurana alimentar, bem como da proteo do territrio e conservao dos recursos ambientais.

    As terras indgenas Potiguara foram consideradas prioritrias, dentre as demais terras indgenas do Brasil, devido sua vulnerabilidade ambiental e socioeconmica. Esse foi o resultado de um estudo realizado pela Coordenao Geral de Monitoramento Territorial (CGMT/DPT/Funai) que visou caracterizar as Terras Indgenas (TIs) de acordo com suas caractersticas especficas, problemas e demandas. Dando continuidade ao estudo, a Funai visou por meio de um trabalho articulado entre a Coordenao Geral de Monitoramento Territorial (CGMT), Coordenao Geral de Promoo ao Etnodesenvolvimento (CGETNO) e Coordenao Geral de Gesto Ambiental (CGGAM), priorizar aes conjuntas para salvaguardar as comunidades indgenas, como a Potiguara, que se encontram hoje em situao mais vulnervel, segundo as categorias adotadas pelo estudo realizado.

    Essa proposta est fundamentada nas seguintes etapas ou ciclos da gesto territorial: articulao (1), diagnstico etnoambiental (2), zoneamento e plano de gesto territorial/salvaguarda (3) e execuo (monitoramento e avaliao). No territrio Potiguara ocorreram a primeira e a segunda etapa, que consistem na articulao da comunidade e na elaborao do diagnstico etnoambiental juntamente com

  • 8o etnomapeamento. Os etnomapeamentos e diagnsticos etnoecolgicos ou etnoambientais situam-se na etapa dos levantamentos que subsidiam etapas posteriores de elaborao do plano de gesto territorial e etnozoneamento. Ou seja, representam ferramentas fundamentais no planejamento de aes e projetos futuros. Consideramos para este trabalho o etnomapeamento como um componente, juntamente com a anlise etnoecolgica, do Diagnstico Etnoambiental.

    O diagnstico etnoambiental, ilustrado pelos mapas contm o resultado da pesquisa acerca dos ambientes, das atividades produtivas praticadas, dos impactos e conflitos socioambientais vivenciados no territrio, dos atores envolvidos na gesto territorial e das perspectivas sobre o uso do territrio. Neste sentido, tomamos as categorias indgenas como ponto de partida para descrever o ambiente.

    O produto desse trabalho resultado de um dilogo entre o que se costuma chamar de conhecimento tradicional ou local e o conhecimento tcnico, com todas as limitaes de uma traduo feita por ns sobre o saber indgena. Sabemos que o conhecimento Potiguara no existe enquanto um corpo homogneo, mas sim varia entre gnero, classe, idade, profisso e situao de vida em geral. Ademais, temos que considerar o contexto no qual tivemos acesso a esse conhecimento: a produo dos etnomapas. Processo que envolveu indgenas, servidores da Funai e tcnicos especializados. Portanto, prezamos por no reduzir o conhecimento indgena s disciplinas cientficas neste diagnstico, mas ao mesmo tempo admitimos a impossibilidade de apresentar o saber local deixando o conhecimento cientfico totalmente de lado. Afinal a prpria produo dos etnomapas fruto de um intercmbio cultural onde buscamos estabelecer um dilogo entre os conhecimentos de naturezas to distintas.

    No primeiro captulo apresentamos uma sntese da metodologia utilizada durante o diagnstico. O segundo apresenta os Potiguara, introduzindo o leitor no territrio indgena. O terceiro captulo dedicado percepo indgena sobre o ambiente no que diz respeito a seus aspectos ecolgicos, sociais e simblicos. Dando prosseguimento, o quinto captulo descreve com detalhes os diversos usos que os Potiguara fazem dos ambientes, quais os atores envolvidos na gesto territorial, quais as formas de gerir os espaos coletivos e que redes de reciprocidade e de troca essas atividades geram. O sexto captulo apresenta os principais conflitos e desafios vivenciados na rea, na viso dos Potiguara.

  • 9ENTRE DILOGOS E CAMINHOS

    O processo de Gesto Territorial das Terras Indgenas, o que estamos chamando aqui de Gesto Territorial Intercultural das Terras Indgenas, conforma um ciclo de planejamento e ao que contempla vrios instrumentos. A primeira etapa seria a de articulao, incluindo mltiplos instrumentos associados a relacionamentos sociais e polticos e capacitao e treinamento. A segunda etapa, denominada de diagnstico, envolve instrumentos como levantamento etnoecolgico, diagnstico etnoambiental e etnomapeamento. A terceira etapa seria mais normativa, com o uso de instrumentos como o plano de gesto territorial e o etnozoneamento. A quarta e ltima etapa, de execuo, incluiria monitoramento do plano e avaliao do ciclo de gesto. Nada impede que a etapa de execuo seja executada a todo momento e que novos mapas sejam produzidos a cada vez que for necessrio, ou seja, o processo no linear, mas sim dinmico e complexo.

    A fase de articulao e preparao envolve a abertura de canais e espaos de dilogo entre os promotores indgenas e as instituies parceiras para alavancar o processo de gesto intercultural. uma fase de construo da confiana, de consentimentos e regras entre as partes, de entendimento situacional do contexto da terra ou da comunidade indgena, de debate e proposio dos aspectos metodolgicos, do agendamento e distribuio de responsabilidades entre as partes. Caso seja necessrio aprofundar o entendimento sobre as circunstncias socioeconmicas, ambientais e polticas do territrio, interessante se partir para a realizao de um diagnstico etnoambiental.

    Os diagnsticos etnoambientais correspondem a uma das abordagens possveis na descrio dos conhecimentos tradicionais e formas de manejo tradicionais dos recursos ambientais, bem como nas relaes socioeconmicas e de poder existentes no contexto diagnosticado. Os diagnsticos etnoambientais so entendidos como estudos que consideram as categorias e classificaes locais, os modos de vida e as cosmologias do grupo social tendo como premissa o dilogo intercultural e intercientfico. Estes diagnsticos associados espacializao do conhecimento e dos usos dos recursos podem ser chamados de etnomapeamentos ou etnozoneamentos, ou ainda mapeamentos do uso tradicional da terra e mapeamentos participativos, dentre outras nomeaes. A produo de mapas com a participao dos

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    ndios, desenhados sob seu ponto de vista e para atender aos seus interesses, oferecem subsdios para a gesto territorial e elaborao de polticas pblicas.

    O levantamento de informaes prioriza a viso, a perspectiva e as categorias classificatrias do povo indgena, ou seja, como os habitantes do lugar pensam e nomeiam os ambientes e suas relaes. prefervel dar nfase ao registro das histrias dos idosos, intercalado a dados histricos oriundos dos documentos e livros. Por outro lado, em se tratando de um dilogo entre ndios e no ndios, uma vez que os mapas pretendem falar para dentro e para fora do contexto do povo indgena, a pesquisa de dados secundrios tambm importante e subsidia os pesquisadores no direcionamento do diagnstico etnoambiental. A produo de um diagnstico que se utilize do conhecimento indgena e do cientfico de forma o mais simtrica possvel tem um potencial mais elevado de apresentar o contexto do territrio em estudo.

    O etnomapeamento faz parte do diagnstico etnoambiental e realizado com o uso de um conjunto de tcnicas e ferramentas que convidam a comunidade a refletir sobre seu contexto, expressando-o, dentre outros, por meio da cartografia. Nos espaos de discusso criados pelos mapeamentos participativos, momentos histricos sobre a construo dos lugares e das paisagens so recordados, toponmias e significados so inseridos e revistos, conflitos territoriais e ambientais so debatidos, histrias so contadas e conhecimentos transmitidos, e pelo ato de escutar ao outro, valorizar seus conhecimentos e se expressar com respeito, que o dilogo vai sendo construdo.

    Ao utilizar instrumentos cartogrficos elaborados do ponto de vista dos ndios (etnomapas), associados etnografia e a bases cartogrficas pr-existentes foi elaborado um banco de dados georreferenciados em Sistema de Informao Geogrfica. Os SIGs constituem ferramentas de manipulao e caracterizao de feies geogrficas capazes de capturar, armazenar, organizar e combinar dados espaciais de naturezas diversas, por seu carter interativo permite ser reajustada medida que novos dados vo sendo construdos. Na perspectiva dos mapeamentos participativos, os etnomapas so construdos por um grupo de conhecedores locais1 que vo inserindo os elementos no mapa medida que discutem sobre o espao e seus significados, representando-o com grande riqueza de detalhes.

    O trabalho que realizamos junto com os Potiguara envolveu o cruzamento de tcnicas como oficinas participativas para realizao de croquis, diagramas histricos e de relaes de poder (diagramas de Venn), a realizao de caminhadas guiadas para mapear e conhecer o territrio, a realizao de dilogos e a observao participante. Como produtos temos: etnomapas temticos e um estudo etnoecolgico sobre as categorias mapeadas. Abaixo apresentamos uma sntese das tcnicas utilizadas, bem como o procedimento de campo da equipe.

    1 Chamamos aqui de conhecedores

    locais aquelas pessoas que participam do etnomapeamento

    e que localizam os elementos representados

    nos etnomapas, dar explicaes sobre os

    lugares e paisagens representadas nos

    mesmos, bem como terem conhecimento

    sobre os recursos naturais, seus usos e significados,

    sobre a histria local, organizao social e

    modos de vida nas diferentes aldeias.

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    Antes de iniciar a pesquisa de campo o estudo propriamente dito realizamos um primeiro encontro com as lideranas indgenas e servidores da FUNAI para apresentar o estudo e tambm para esclarecer conceitos como etnomapeamento, territrio e gesto territorial, e planejar conjuntamente a agenda de trabalho.

    Nesse encontro fizemos uma breve apresentao explicitando como estes instrumentos contribuiriam com o alcance dos objetivos do projeto, relatamos sobre experincias de trabalhos semelhantes realizados juntamente com outros povos indgenas, esclarecemos sobre a metodologia que pretendamos utilizar e, conversamos sobre o cronograma e a logstica das oficinas seguintes. A participao das pessoas foi intensa se revelando atravs de perguntas e comentrios sobre os possveis desdobramentos do trabalho, alm de sugestes e temas a serem inseridos no mapeamento. Acordamos sobre a formao de dois grupos de trabalho para a realizao das oficinas participativas: um reunindo as aldeias das TIs Monte Mor e Jacar So Domingos e outro reunindo as aldeias da TI Potiguara. A logstica de transporte e alimentao para a realizao das oficinas e para percorrer as terras indgenas ficou a cargo das lideranas e CTL de Baa da Traio e Joo Pessoa.

    Por questes prticas, optamos por dividir nosso trabalho de campo em dois momentos. No primeiro trabalhamos com as oficinas participativas e caminhadas guiadas pelo territrio Potiguara com vistas realizao do etnomapeamento; e no segundo momento, voltamos a campo para preencher as lacunas de informaes e aprofundar em temas gerados nos etnomapas, tendo como principal recurso metodolgico o dilogo livre e as caminhadas. Considerando que a observao ocorre o tempo todo, trabalhamos com o registro fotogrfico e anotaes no caderno de campo durante todo trabalho na rea Potiguara. A dinmica das oficinas variou de acordo com o nmero de pessoas. Em Monte Mor (TI Monte Mor) e So Francisco (TI Potiguara) consideramos conveniente abordar noes de cartografia com enfoque em elementos importantes para o trabalho com etnomapas, imagens de satlite e demais produtos do sensoriamento remoto e GPS.

    Com isso, objetivamos facilitar a compreenso sobre o processo de mapeamento e apresentar algumas tecnologias existentes. A introduo de tais temas tambm visou contribuir com o fomento de discusses sobre planejamento e uso dos recursos existentes no territrio Potiguara.Como resultado dos grupos de trabalho temos os etnomapas de cada uma das trs terras indgenas, elaborados sobre um papel contendo apenas os limites das TIs, os principais rios e estradas. Durante a elaborao dos desenhos, alm da discusso sobre quais elementos compem o territrio, os participantes trataram de questes como uso dos recursos, gesto territorial, organizao social e relaes interinstitucionais. Ao longo dessa rica discusso,

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    eles tambm trouxeram tona possveis alteraes nas toponmias locais partindo do princpio de que alguns nomes atuais so resultado de um processo forado de desterritorializao que ocorreu ao longo da histria Potiguara, sendo esse o momento propcio para resgatar a histria dos lugares.

    Ao fim de cada oficina buscamos a indicao de conhecedores locais para nos acompanhar no mapeamento no campo. Guiados por esses conhecedores locais, percorremos os ambientes das trs terras indgenas georreferenciando elementos representados nos mapas construdos nas oficinas de etnomapeamento, bem como buscamos compreender a nomenclatura, a classificao e usos locais desses vrios elementos: aldeias, lugares especficos, marcos naturais, corpos dgua, estradas, caminhos, paisagens, portos, roas, viveiros, camboas, matas, etc.

    Alm dos locais destacados pelos trabalhos de grupo, utilizamos os mapas das terras indgenas e a imagem de satlite para identificar reas relevantes para mapeamento e para revisar diariamente o roteiro, considerando o surgimento de novas reas. Para idetificar lyagres importantes no somente para a caracterizao ambientale econmica como para compreender significado cultural e simblico, fomos guiados pelos mapeadores locais e registramos a localizao destes lugares com receptor de dados do Sistema de Posicionamento Global (GPS). As coordenadas geogrficas foram relacionadas aos registros fotogrficos da paisagem, s breves caracterizaes ambientais, explicaes e teorias sobre a paisagem e as demais observaes anotadas nos cadernos de campo ou registradas em gravador digital.

    Nessas caminhadas guiadas visitamos algumas roas, canaviais, subimos o rio Mamanguape de canoa, fomos nascente do rio Sinimbu, acompanhamos o trabalho de mariscagem, de farinhada, estivemos em viveiros de camaro e ostra, entre outros.

    Realizamos pesquisa qualitativa baseada nos dilogos livres e temticos realizados com inmeros conhecedores previamente identificados. Entre os temas abordados nos dilogos destaca-se a classificao e dinmica da paisagem, a etno-pedologia, o calendrio agroextrativista pesqueiro e climtico, cosmologias, manejo dos recursos naturais, s redes econmicas locais, disponibilidade de terras para agricultura e as

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    artes de saber fazer. A cada etapa do trabalho nos aproximamos mais do contexto local e das pessoas que o constroem, agregando corpo e consistncia ao trabalho.

    A elaborao dos mapas em ambiente SIG teve incio com a transferncia e organizao dos dados obtidos em campo atravs das caminhadas guiadas e dilogos semi-estruturados. A cada dia de trabalho de campo os pontos de GPS eram transferidos para o computador atravs do programa GPS Track Maker Pro, para visualizao imediata no Google Earth. Este procedimento auxiliou de forma significativa no planejamento conjunto do campo do dia seguinte. No software ArcMap os pontos de GPS (Sistema de Posicionamento Global), foram relacionados s informaes sobre o territrio e suas paisagens, os registros fotogrficos e os registros de udio, conformando banco de dados georreferenciado que norteou a elaborao dos etnomapas.

    Uma vez prontos, os etnomapas foram apresentados comunidade, durante as atividades festivas em comemorao ao Dia do ndio. No dia das apresentaes de Tor nas aldeias, montamos um painel expondo os etnomapas, os mapas temticos das terras indgenas feitos nas oficinas participativas e fotos da realizao do estudo. Assim, os participantes das festas puderam conferir os resultados preliminares do trabalho (aqueles que estiveram presentes nas oficinas e os que no estiveram tambm) fazendo correes, tirando dvidas, fazendo crticas e dando sugestes para a melhoria do trabalho.

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    OS POTIGUARA

    Os Potiguara fazem parte dos povos da famlia lingustica Tupi. Hoje, falam o portugus e esto revitalizando o tupi na educao escolar indgena. E como todos os povos que vivem no Nordeste, possuem uma longa histria de contato com a sociedade no indgena.

    Com uma populao de aproximadamente 19 mil indgenas entre habitantes das aldeias e das cidades de Baa da Traio, Marcao e Rio Tinto, os Potiguara se concentram numa rea do litoral norte paraibano situada entre os rios Camaratuba e Mamanguape. Um nmero no contabilizado de pessoas vive ainda em outras cidades como Mamanguape, Joo Pessoa e at mesmo no Rio de Janeiro ou no Rio Grande do Norte. O conjunto das aldeias constituem trs Terras Indgenas (TIs) contguas, perfazendo um total de 33.757 hectares. A TI Potiguara (populao de 8.109 pessoas), a TI Jacar de So Domingos (populao de 449 pessoas) e a TI Potiguara de Monte Mr (populao de 4.447 pessoas).

    O territrio est situado sobre a rea dos municpios de Baa da Traio, Rio Tinto e Marcao. A rodovia PB-41 adentra as TIs Monte-Mor e Potiguara ligando a cidade de Rio Tinto a Baa da Traio. Outras estradas de terra recortam o territrio indgena fazendo a ligao das aldeias entre si e dessas com os centros urbanos. Alm de contar com a infraestrutura dos centros urbanos, a maioria das aldeias possui uma escola de ensino bsico, um posto de sade e casas de farinha. Alm disso, muitas aldeias possuem igrejas sendo duas delas smbolos histricos e territoriais: a igreja de So Miguel, da aldeia de mesmo nome, e a de Nossa Senhora dos Prazeres, na Vila de Monte-Mor.

    Os Potiguara, provavelmente, so os nicos dentre os povos indgenas situados no Brasil a viver no mesmo lugar desde a chegada dos colonizadores h 500 anos2. A bibliografia e os documentos sobre a histria do atual Estado da Paraba evidenciam, desde as notcias mais remotas aps o descobrimento do Brasil, presena dos Potiguara no litoral paraibano e, mais notadamente, na Baa da Traio. A permanncia, contudo se deu a custa de resistncia s investidas de diversos invasores. Os Potiguara

    2 CAMPANILI, Maura. No mesmo lugar, desde o descobrimento. Maura Campanili. Disponvel: http://www.socioambiental.org/website/parabolicas/edicoes/edicao58/potiguara.html [acessado em 16 ago. 2010].

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    resistiram s tentativas de conquista de seu territrio guerreando bravamente e por meio de diversas formas de resistncia e indigenizao de elementos da cultura ocidental, do branco.

    As terras dos Potiguara, em sua histria mais recente, foram ocupadas por grandes proprietrios, dentre eles a poderosa famlia Lundgren, donos da Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT), conhecida no Brasil inteiro por meio da cadeia de lojas Casas Pernambucanas, acelerando o processo invaso do territrio indgena e de destruio dos ambientes. A fbrica de tecidos se instalou s margens do rio Mamanguape, limite sul do atual territrio indgena. Em 1918, iniciaram a drenagem e canalizao das guas de uma lagoa ali existente, derrubaram a mata e abriram os primeiro caminhos. No final de 1925 a Companhia comeou a funcionar tendo se apropriado de grande parte do territrio indgena. Ela passa a atrair mo-de-obra empregando muitos potiguaras na construo de roados e na abertura e conservao de estradas e caminhos3.

    A Companhia Rio Tinto invadiu enormes extenses da rea indgena, principalmente para cortar madeira de lei para a construo da fbrica, e de lenha para alimentar suas mquinas. Grande parte da madeira das matas, hoje quase inexistentes, comeou a ser sobre-explorada na poca da Companhia. A poca da chegada da fbrica de tecidos lembrada como um perodo de muita violncia e terror. Os ndios eram expulsos de suas terras e os que resistiam eram reprimidos com violncia pelos funcionrios da empresa. As roas eram destrudas e o acesso aos recursos ambientais foi restringido, como rememoram os mais velhos:

    Ainda na dcada de 30, o Servio de Proteo ao ndio instalou um posto indgena na aldeia So Francisco. Na ocasio, o encarregado do posto denunciava, que as matas da regio estavam sendo devastadas devido grande quantidade de rvores derrubadas para o fornecimento de madeira indstria txtil. O corte intensivo de madeira estaria causando, segundo o encarregado, a extino da caa e o prejuzo proteo das nascentes. Na dcada de 70 a indstria j ocupava uma rea de 80 Km2 da antiga Sesmaria incluindo terras de tabuleiro e matas, repletas de madeiras valiosas4.

    De acordo com a memria dos Potiguara, a maior destruio das matas e tabuleiros viria acontecer com a chegada das usinas de cana-de-acar a partir de fins dos anos 70. Antes de falar sobre a poca das usinas, contudo, cabe citar a transformao da Vila de Baa da Traio em cidade turstica como um evento que tambm contribuiu para a configurao do territrio indgena5. O local foi transformado em instncia de veraneio no incio da dcada de 70 de pessoas ricas e

    4 AMORIM, 1970, p. 42

    5 MOONEN, 2008

    3 AMORIM, Paulo Marcos de. ndios camponeses: os

    potiguara de Bahia da Traio. Dissertao (mestrado em

    Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio

    de Janeiro, 1970.

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    influentes de Joo Pessoa, Campina Grande, Sap, Mamanguape e Rio Tinto.

    Na dcada de 80, quando a rea indgena Potiguara veio a ser demarcada, foram excludos dela 250 ha reservados expanso da cidade. Apesar de tudo, a relao entre os Potiguara e a cidade de Baa da Traio sempre foi pacfica, haja vista que a cidade tambm faz parte do histrico de habitar de muitas pessoas.

    Os anos 70 e 80 so marcados pelo aumento da presso sobre o territrio indgena com a instalao definitiva das destilarias de lcool na regio, tendo consequncias mais drsticas sobre a comunidade indgena. Primeiro porque foi permitida a implantao da agroindstria dentro do territrio Potiguara, s margens do rio Camaratuba, em meio a toda a mobilizao dos ndios pela demarcao da rea. E segundo porque a instalao das usinas no foi um fato isolado, mas fazia parte do contexto do Programa Nacional do lcool lanado em 1975 pelo governo brasileiro. Assim, algumas dezenas de plantadores de cana-de-acar invadiram o territrio Potiguara para produzir a matria prima para as destilarias. A plantao da cana ocupou a maior parte do que originalmente eram as matas e os tabuleiros, desmatando-os e limitando reas de coleta de mangaba, caju e batibut, s para citar o mnimo.

    No nosso quintal ao invs de ter um p de manga, um p de caju, a gente tinha um p de sucupira , um p de sete casco, um vira preta, um p de goti, era o que a gente tinha no quintal, era rvore nativa da poca. A depois com a passada da terra que a Companhia passou para a usina,...nos anos 80, a derrubaram, toda a rea de mato e recuo a rea de quintal que a gente tinha que era a existncia que ningum dividia limite porque utilizavam pra tira lenha, pra cozinha, pra pega fruta essa coisas a do mato pra caa. (Moradora da aldeia Trs Rios)

    A partir da as atividades de pesca e mariscagem tambm foram prejudicadas, uma vez que as usinas ao despejar o vinhoto nos rios causavam grande mortandade de peixes, crustceos e moluscos.

    Em poucos anos, o territrio Potiguara estariam ocupado de canaviais. Os Potiguara, a partir de ento, iniciam um processo de auto-demarcao do

    6 AZEVEDO, Ana Lcia Lobato de. A Terra somo nossa: uma anlise de processos polticos na construo da terra Potiguara. Dissertao. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1986. p. 55

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    territrio recorrendo Universidade Federal da Paraba (UFPB) para a obteno de apoio tcnico na empreitada. Em 1981, o governador da Parabadetermina queum rgo da Secretaria de Agricultura elabore um projeto de desenvolvimento para as famlias da reserva de Baa da Traio6, que ficou conhecido como Projeto Integrado. Setores da igreja consideraram a atitude uma manobra para desviar a ateno da luta indgena pela posse da terra e debateram com os ndios no sentido de no aceitarem a proposta.

    Finalmente nos anos de 1983 e 1984, o trabalho de demarcao da rea concludo, delimitando um territrio de 21.238 ha. Tal demarcao excluiu a antiga sesmaria de Monte-Mor, onde havia propriedades da Cia de Tecidos Rio Tinto e de algumas usinas. Tambm outras localidades habitadas pelos Potiguara como Lagoa Grande e Grupina ficaram de fora, bem como a cidade de Baa da Traio e rea de reserva do manguezal do rio Mamanguape.

    As aldeias Jacar de So Domingos e Grupina se mobilizaram no sentido de reivindicar o reconhecimento do territrio tradicional, sendo homologada em 1993. Monte-Mor foi o terceiro territrio a ser reconquistado. No sentido inverso, os Potiguara passaram a empurrar os canaviais pra fora do seu territrio. A retomada, como dizem, foi feita com a substituio do canavial pelo plantio de roa. O incio do processo de retomada foi em 2003 quando nove barracas foram armadas na borda da cidade de Marcao em reas de canavial.

    A retomada foi pra plantar roa. Isso tudo aqui era roa aqui. Onde hoje t tendo casa, isso aqui tudo era roa depois da retomada que a gente fez. Tudo era roa, tudo. A vo fazendo as casa, fazendo os seus stio e a gente vamos andando mais pra frente e deixando o local dos seus stio e pegando outros terreno j pra fazer plantao de roa. (Liderana de Trs Rios).

    A demarcao das terras indgenas, por um lado, representa uma grande conquista de uma luta histrica, mas por outro, no impede o avano da cana, maior ameaa sustentabilidade do territrio atualmente, uma vez que alguns Potiguara associam-se aos usineiros na implantao das monoculturas. Por isso, nas dcadas de 80 e 90 a criao de unidades de conservao na regio buscou proteger fragmentos de Mata Atlntica remanescentes, com a criao da RESEC Mata do Rio Vermelho em 1984, da ARIE Mamanguape em 1985, da REBIO Guaribas em 1990 e da APA Barra do Rio Mamanguape em 1993.

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    Desde meados da dcada de 1990, com o incentivo de empresas privadas que vm investindo na carcinicultura no litoral do nordeste brasileiro, algumas famlias Potiguara tm construdo tanques para a produo de camaro sobre reas de manguezais nas margens prximas a foz do rio Mamanguape. Esse tem sido um dos principais pontos de conflito entre comunidade indgena e Ibama, uma vez que a carcinicultura est sendo desenvolvida numa rea de sobreposio da APA e da TI7.

    Desse modo vem se configurando o mosaico ambiental no qual consiste o territrio dos Potiguara. A seguir veremos como percebem o e ambiente tal como ele hoje. Em outros captulos daremos destaque para temas introduzidos aqui como os conflitos, a agroindstria da cana-de-acar, entre outros, na gesto territorial.

    7 LIEDKE, Alice Rubini. A atuao do Ministrio Pblico Federal em contextos de lutas pelo reconhecimento dos direitos indgenas no vale do rio Mamanguape, litoral norte, PB. Dissertao (Mestrado em Sociologia), Universidade Federal da Paraba. Joo Pessoa, 2007

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    Usos

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    OS AMBIENTES

    Os Potiguara possuem um conhecimento acurado sobre os diferentes ambientes de seu territrio. Este conhecimento fruto de uma larga histria de sociabilidade com o espao territorial, com os humanos e outros seres e entidades que coabitam com eles. Conhecimentos oriundos no apenas da experincia produtiva na busca por alimento ou produtos para comercializao, mas de uma vivncia emotiva que gera uma relao de responsabilidade e pertena perante os ambientes, bem como pela obteno do conhecimento pelo mero prazer de conhecer.

    Um refinado conhecimento sobre a inter-relao entre o relevo, a terra, a vegetao, a fauna e os corpos dgua. Conhecimento, este, que orienta as tomadas de decises sobre o uso dos espaos e que esto relacionados tambm com os conhecimentos do tempo em seus aspectos climticos, estacionais, astronmicos e biolgicos.

    Relao entre relevo, terra e ambientes na variao topogrfica nas terras indgenas Potiguara, segundo os conhecimentos indgenas

    Posio no relevo Tipo de solo Ambientes

    Morro Areia preta com barro/Barro vernelho Mata, Capoeiras

    Ch Arei preta com barro Mata, Capoeiras, Roa, Cana, Casas Areia Branca Tabuleiro, Fontainha, Cana, Roa, Casas Vale

    Ladeira Areia preta com barro/ Barro vermelho/ Piarro Mata, Capoeira, Roa, Cana Areia preta com barro

    Baixio Lama com areia Massap Mata, Capoeira, Ra, Cana, Casas Lama com areia Pa Lama e areia Vrzea Areia com lama Pantanal Lama Apicum Mangue Grota Barro vermelho Mata

    Praia Areia amarela Praia

    Barreira Barro vermelho/Barro branco Praia

    Mar Areia com lama Croa

    Barra Pedral Arrecifes

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    Os ambientes so conformados, percebidos e vivenciados enquanto lugares. Estes lugares foram construdos ao longo das histrias individuais e coletivas dos Potiguara com os seres que vivem nos ambientes, bem como com agentes externos que atuam em seu territrio. Portanto, como veremos a seguir, a forma de ocupao e de organizao scio-espacial do ambiente est ligada tanto ao conhecimento de seus aspectos ecolgicos, quanto ao aspecto do habitar e vivenciar, est ligada s relaes da produo do alimento e da nutrio, responsabilidade pelos lugares, s relaes de parentesco e polticas. Isto conforma o que conhecemos por perceber, conhecer e gerir o territrio Potiguara.

    Olhando os mapas parece que estamos diante de um mosaico de ambientes. No entanto predominam nas terras indgenas, ambientes intensamente manejados, como os canaviais (cerca de 10.000 ha), reas de capoeiras, roas e pastos (cerca de 5.100 ha), capoeiras finas e carrasco (cerca de 4.800 ha) e quintais e stios (cerca de 1.300 ha). As reas com floresta de maior porte e tabuleiros representam juntas cerca de 8.400 hectares e o pa cobre cerca de 1.900 hectares, dos 33.757 ha que totalizam as trs Terras Indgenas.

    A terra

    As terras so nomeadas pelos conhecedores indgenas primeiramente quanto a textura, podendo ser areia, barro ou lama. H outros tipos como massap, tumbatinga, piarro e cabea de carneira, que so misturas dos trs principais. Os tipos de terra variam ao longo do relevo e da profundidade.

    Os tipos de areia ocorrem nas cores amarela, vermelha, branca e preta. Os tipos de barro ocorrem em grande parte do territrio na maior parte das vezes em horizontes mais profundos, exceto em ladeiras quando afloram. Existem barros amarelo, vermelho, branco, acinzentado e preto. O massap um tipo de barro que ocorre em horizontes profundos, sua colorao vai do acinzentado ao preto, sendo este raramente encontrado. A tumbatinga8 ou tabatinga o barro branco, encontrado em raros pontos do territrio, geralmente em camadas profundas do pa. O massam aparece nas camadas mais superficiais. O piarro o tipo de terra caracterizado pela mistura de barro com pedrinhas que aparece nos horizontes mais profundos.

    A terra percebida como uma mistura de diversos tipos. Desta forma teramos denominaes como lama com areia ou areia preta com barro.

    8 Tinga = branco, em tupi-guarani.

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    Quanto estrutura da terra, os Potiguara utilizam os termos soltos e gomentos, sendo em geral as areias mais soltas e os barros mais gomentos. Em termos de umidade so identificadas terras secas e molhadas, definidas com base na capacidade de reteno de gua. Quanto consistncia so denominados por moles ou duros, sendo um dos critrios considerados na escolha das reas para utilizao agrcola. Como exemplo, temos: pa mole, mole demais, a vrzea mole com seco. Da mesma forma ocorre com o pa areiado: No pa planta macaxeira, milho, feijo em rea que seja pa areiado, misturado lama com areia.(Morador de Trs Rios)

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    Percepo sobre o relevo

    A percepo das feies do relevo e da sua intrnseca relao com a vegetao, os solos e os rios claramente definida na viso dos Potiguara. O relevo esta subdividido em chs, ladeiras, baixios e grotas, formando os pas.

    No alto est a ch, denominao geral atribuda a reas planas, onde concentram-se as maiores altitudes das terras Potiguara (na literatura cientfica este denominado de Tabuleiro). Os chs localizados entre os rios Camaratuba e Mamanguape apresentam altitudes maiores que as adjacncias, tanto ao norte como ao sul. As chs so dominadas por tabuleiros, por fragmentos de mata e carrasco e enclaves de fontainha.

    Os vales compreendem o conjunto formado pelos baixios e ladeiras, interrompendo a continuidade das chs. A ladeira a feio inclinada do relevo que corresponde transio entre o baixio e o ch. A declividade das ladeiras determina a diferena entre os baixios, mais ngremes, e as grotas ou grotes, pequenas depresses nos tabuleiros. O grau de inclinao considerado um dos aspectos que dificulta o desmatamento das matas, capoeiras e carrascos para o plantio de cana.

    Os Potiguara relacionam a formao de certos tipos de corpos dgua (rios) topografia e tipo de solo. Por exemplo, distinguem os baixios secos dos baixios molhados, no primeiro no se acumula gua e enquanto nos baixios molhados ou alagados ficam os pas. Alm disso, diz-se que alguns baixios hoje secos, antigamente eram molhados e por eles corriam rios na poca de chuvas. Os nomes dados aos baixios so determinados pelos nomes dos rios ou das matas que nele se encontram como, por exemplo Baixio da Encantada (devido ao rio da Encantada), Baixio do Badalo, Baixio do Taiepe, Baixio do Jardim, Baixio do Morjeiro, entre outros.

    Em pontos especficos do territrio encontram-se as furnas que so grutas que possuem estreita ligao com o sagrado. Existem aproximadamente 18 furnas, localizadas em So Francisco, Tracoeira e Silva de Belm. Estes locais so utilizados historicamente pelos Potiguara, pois acreditam que quando uma pessoa entra dentro de uma furna ela pega a fora da terra.

    Os tabuleiros so encerrados na praia pelas abruptas barreiras, tambm chamadas de falsias, que ocorrem da Praia do Forte at as proximidades da barra do Rio Camaratuba, ao norte desta. Nas falsias ou barreiras prximas Praia do Forte h um lugar que se chama Giz Branco, destacado devido s propriedades medicinais das guas que dali brotam.

    Aproximando-nos da foz dos rios e dos fim dos tabuleiros em direo as praias, temos a formao de ambientes como croas e marisqueiras, barreiras, arrecifes e pesqueiros, cuja formao explicada pela morfologia e fora dos principais rios. A boca do rio corresponde foz onde ocorre a troca entre o rio e o mar, onde os sedimentos transportados se depositam formando as croas. As camboas so os braos dos rios quando chegam no manguezal.

    As pedreiras ou arrecifes so feies morfolgicas que formam ambientes muito importantes para a pesca e coleta. Os arrecifes dividem as guas do mar condicionando os tipos de pesca. Prximo dos arrecifes e em alto mar tambm se formam bancos de areias e existem rochas que constituem os chamados pesqueiros.

    H uma oposio entre duas categorias ambientais principais quanto ao uso dos ambientes: o arisco e pa. Ambos so reas com potencial para uso agrcola, cada uma com caractersticas especficas quanto a relevo, tipo de solo, umidade e cobertura vegetal. Por exemplo, devemos entender arisco como reas de alto, onde predomina terra seca, geralmente areia misturada com outros tipos de terra, com diversos tipos de vegetao como mata, capoeiras e tabuleiros. J o pa refere-se a um ambiente que integra tipos de terra molhada ou enlameada, tpico de rea que alaga periodicamente, com vegetao de mata ou vrzea.

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    Em termos de potencial para o cultivo agrcola a terra classificada como boa ou ruim dependendo da planta que se pretenda cultivar. Existem terras boas para coco, caju, abacaxi e a mangaba, porm ruins para a mandioca e para o feijo, como os tabuleiros, como por exemplo as reas de Acajutibir. Enquanto reas de pa, de barro e massam so boas para mandioca, feijo, inhame, para a mangaba elas so ruins. Fala-se em terras com mais sustana do que outras e sendo assim so critrios importantes enquanto indicadores de reas com potencial agrcola.

    A fertilidade do solo e a aptido so deduzidas de acordo com caractersticas de cada planta bem como pela idade das capoeiras, caracterizadas em terras cansadas e descansadas, seguindo o histrico de cultivo da terra. Nas matas, capoeiras e carrascos o acmulo de matria orgnica percebido nas camadas superficiais. A terra escura e solta chamado de mufumbo, correspondendo serrapilheira, contribuindo para manter a umidade e fertilidade. Alm destas reas, o mufumbo gerado em reas domsticas como acontece em stios e quintais, zelados diariamente, ajudando na manuteno da umidade e da fertilidade desses espaos.

    reas de barro vermelho e areia preta com barro so apontadas como terras boas para fazer roa, mesmo quando encontram-se em nveis mais profundos. Muitos potiguaras se valem de bioindicadores para localizar reas ricas em barro vermelho.

    Roa mesmo, a macaxeira, todo tipo de cultura que agente planta no barro ela d melhor. Tanto , pra tu v assim, que s vezes tem uns formigueiro, que ele j muito grande a quanto maior mais eles tiram aquele barro pra fora, fica aquela altura assim. Agente faz roado naquele lugar do formigueiro, que a formiga busca o barro l em baixo, ali agente j tem por certo de planta um p de jerimum, de abbora no caso, a macaxeira agente tambm j procura plant por ali, que agente j sabe que vai d bom, a banana essa pacovo ela gosta muito de barro tambm, agora a an ela gosta mais do pa, ela gosta muito de gua, a banana an, chama banana dgua. (Morador de So Miguel)

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    As relaes com a terra no se restringem ao potencial agrcola, dentre as prticas no agrcolas que envolvem o conhecimento Potiguara a respeito dos solos encontram-se diversas potencialidades, como a construo de casas e a confeco de utenslios cermicos.

    O barro pode ser extrado do prprio quintal ou das redondezas. As construes nos fornecem importantes subsdios para a caracterizao do tipo de solo que predomina em determinadas reas. Assim, encontramos nas redondezas de Lagoa do Mato, casas mais avermelhadas, em Cumaru uma mistura de casas feitas com barro vermelho e amarelo, em So Francisco apesar da maioria das casas ser de barro amarelo encontramos casas com paredes mais acinzentadas e em Grupina dos Cndidos algumas casas de massap que faz com que as paredes assumam tonalidades mais acinzentadas e apresentem fino acabamento devido sua textura.

    O barro bom para a cermica um tipo especfico de massap, provavelmente pela predominncia de argila sobre a areia caracterizando o barro como liguento, porm com certa resistncia oferecida pela areia. As tonalidades que variam entre acinzentado e o preto diferenciam as caractersticas do massap para a produo de cermica, provavelmente relacionadas ao teor de matria orgnica.

    Tipo de terra Usos

    Lama coleta de caranguejos e siris, coleta de madeiras de mangue: Cano , sapateiro, mangue manso

    Lama e areia capim manimbu, rabo de bugio(apicultura), criao de peixes e camaro, coleta de guaiamum (Apicum), mandioca, macaxeira, milho, feijo, jerimum, inhame, batata-doce, banana pacov, verduras, temperos, dend, ing (Pa)

    Areia coco, caju, abacaxi, batibuta, mangaba, massaranduba, murici, capim colcho, alecrim,

    Areia e Barro cana, maracuj, coco,inhame mandioca, macaxeira, milho, feijo de arranca, batata-doce, Jerimum, mamo, feijo de corda

    Barro maracuj, coco,inhame mandioca, macaxeira, milho, feijo, batata-doce, Jerimum, frutferas em geral.

    Areia preta com barro mamo, banana, mandioca, macaxeira, milho, feijo, inhame, batata-doce,aafro, jerimum

    Massap construo de casas e utenslios cermicos

    Tumbatinga construo de casas

    Piarro mandioca, macaxeira, milho, feijo, inhame, batata-doce,mamo

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    Agora quem faz cermica s a Chica, ela usa massap preto, s tem um pouco em Cumaru ela vai compra l na cidade de capim l depois do Mamanguape. O massap ele racha e este barro aqui no racha quando est cozinhando, mas o mesmo aspecto. (Liderana de Monte-Mor)

    A Sra. Chica apontada como a nica pessoa que ainda detm a tcnica da transformao do barro em cermica. Apesar disso, especialistas Potiguara consideram o potencial econmico da atividade devido abundncia de reas de extrao de diferentes tipos de barro na rea. Vestgios cermicos foram encontrados nas proximidades de Silva e Acajutibir de acordo com Seu Marcelino que acompanhou um levantamento arqueolgico9 que ocorreu na regio. A arte cermica tambm cantada nos tors que sugerem experimentos feitos com argilas e com pigmentos naturais locais:

    ...Quem pinto loua fina? Foi a flor da maravilha.quem era a flor da maravilha? a aquele louco marido de Sandra Moura, levou um bocado de flor de maravilha, tirou o pigmento e levou a nossa cermica branca dali da vila e pintou a cermica e ficou uma coisa linda!

    Degradao dos solos

    A degradao do solo foi um tema abordado em inmeras ocasies, se destacando como temtica nas oficinas e entrevistas sobre o uso da terra, expressando problemas de contaminao dos rios e solos por agrotxicos, assoreamento e eroso.

    A eroso tem se apresentado em todas as suas formas, lavando os solos e levando sedimentos para os rios e demais corpos dgua. Apesar da eroso ser identificada em diversos pontos do territrio sob a forma de ravinas e pequenas voorocas, em Jaragu que se encontra a maior expresso da eroso em territrio Potiguara, o Buraco do Padre, localizado ao lado da igreja. Neste caso, a causa, como relatam, a retirada da vegetao e construo da estrada. A descrio de uma liderana de Monte-Mor pode oferecer pistas para acompanhar a evoluo da vooroca e tomar medidas de conteno e recuperao da rea.

    Os principais problemas percebidos como ocasionados com a eroso dos solos so o assoreamento dos crregos, rios, e lagoas que tem como uma das principais origens o mau uso da terra e o desmatamento. Para remediar o problema do assoreamento nos principais rios que banham as TIs, e em alguns casos aumentar a produtividade dos pas, foram realizadas dragagens. O Rio Mamanguape teve seu curso desviado em prol do desenvolvimento de Rio Tinto, formando o canal conhecido como Rio da Draga, alterando o fluxo da gua e eliminando seus meandros10. O Rio Sinimbu, que nasce com o nome de Rio das Avencas no territrio da aldeia So Francisco, j foi dragado trs vezes em ocasies de assoreamento intenso impedindo a agricultura no seu pa. O Rio Estiva tambm foi dragado, e a percepo dos moradores locais sobre o impacto ocorrido foi a drstica diminuio dos peixes. As percepes sobre a dragagem feita no Rio Camaratuba, esto relacionadas com alteraes na dinmica da paisagem e no estoque de camares a principal fonte de renda local, principalmente da aldeia Cumaru.

    9 O projeto de Busca pr-histrica na Reserva Indgena Potiguara, buscou identificar, levantar e mapear os possveis stios arqueolgicos (pr e proto-histricos) existentes no territrio indgena.

    10 NISHIDA, A. 1998. Anlise preliminar das reas de mangue situadas nas proximidades de Rio Tinto e que se encontram em avanado processo de degradao.

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    gua, entre os rios e o mar

    O mar, a mar, os rios, crregos e lagoas so ambientes percebidos e vivenciados pela sua integrao entre si. O mar a amplitude de gua salgada onde os Potiguara se lanam em jangadas, botes ou barcos para a pesca artesanal de peixes e lagostas junto com parentes ou com no ndios. um espao regido por um encantado, pela sereia do mar (ou mulher cobra). O ambiente marinho subdivido em alto mar e costa, percebidos como ambientes diferentes da barra ou da mar, principalmente devido s diferenas notadas no gradiente de salinidade, profundidade e turbidez da gua. Na parte costeira encontram-se os arrecifes ou pedras, onde comum a coleta do apreciado aratu de pedra e a pesca com vara e anzol. No mar os pescadores identificam e demarcam os pesqueiros, como o Cabeo e a Pedra Solteira, que devido ao fundo de pedra ou a presena de algum banco de areia proporciona o habitat para a presena de espcies e a aglomerao de cardumes de peixes.

    Os rios e crregos ou riachos de gua doce, se constituem como uma trama que perpassa todas as terras indgenas. Alguns crregos e lagoas ficam secos durante o perodo de seca. Assim como o mar os ambientes de gua doce so regidos ou controlados por um encantado, a me dgua do rio, que pode ser percebida como o mesmo encantado do mar. Os maiores rios que margeiam o territrio dos Potiguara so o Mamanguape e o Camaratuba. Outros rios como o Silva, Estiva, Grupina, Vermelho, Gelo, Encantada, Sinimbu, Arrepia e Gozo, perpassam todo territrio e possuem suas nascentes dentro dele, geralmente nas grotas ou nos tabuleiros de fontainha. As principais lagoas so a da Encantada, Canrio e da Barra. Dentro do territrio h cachoeiras como a da Mata do Rio Vermelho.

    A mar corresponde regio estuarina que liga o mar aos rios. o local que devido influncia das mars tm uma dinmica e movimentos dirios e que abrange todo manguezal e a foz do rio. na mar que ocorre a pesca, a mariscagem e demais coletas, e na observao de seu movimento que so tomadas as decises de pesca e coleta. Na mar se formam as croas e a marisqueira. As croas so bancos de areia que servem como rea de pesca de algumas espcies de peixe e de marisco. Algumas croas, no sada do mangue, devido a mistura com a lama, formam um ambiente favorvel para a formao do que denominam de marisqueira, que constantemente coletado para a comercializao e o

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    autoconsumo. na mar que vive e se reproduz o peixe-boi marinho (Trichechus manatus manatus) - mamfero aqutico considerado seriamente ameaado de extino, no litoral nordeste do Brasil, o que despertou especial interesse na conservao do habitat da espcie.

    Os Potiguara explicam que reas impermeveis dos tabuleiros, ou na linguagem local, reas onde predominam as cabeas de carneira (tipos de rochas sedimentares), so favorveis formao de fontainhas. A importncia delas deve-se ao fato de que alguns rios menores nascem em reas de fontainhas. Segue abaixo, uma descrio de uma liderana de Trs Rios bastante ilustrativa do que a fontainha e de sua importncia para o fornecimento de gua:

    Com 50 cm, menos de 1 metro, ela d gua. D gua assim ela uma cacimba no tabuleiro. Aquela aldeia ali de Oliveira, chama de Ybykoara, aquele conjunto ali tudo ali d gua, pode cava ali em qualquer quintal daquele ali, meio metro, um metro t dando gua. No chega um metro no, pode cava at na parede da casa que d gua, porque ali agente chama de fontainha. Pode olha que ali inverno a vero molhado. Que agente viu aqui uma cacimba, l j uma cacimba feita. Ela fica, ali mesmo fica de inverno a vero. Quando no tinha gua encanada, as guas eram o rio, e pra chegar mais ligeiro eram as cacimba.

    As guas do subsolo tambm so utilizadas em diversos locais do territrio Potiguara, com a abertura de cacimbas cavadas nas margens dos mangues e pas, em reas onde sabem da existncia e da profundidade do lenol fretico. As guas dessas cacimbas so usadas frequentemente para o consumo, como podemos observar no porto de Marcao, localizado em ponto estratgico se considerarmos o fluxo de trabalhadores que podem usufruir desta fonte. As cacimbas so pontos onde o lenol fretico mais aflorado, geralmente nos tabuleiros ou nos pas, e que possui gua lmpida e ideal para se beber. As cacimbas so lugares, uma vez que so construdas, manejadas e nomeadas. Elas so encontradas espalhadas por todo o territrio.

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    Poluio: usinas, fbrica de baterias e seus rejeitos

    Os smbolos que representam as usinas de cana-de-acar nos mapas correspondem localizao aproximada das usinas do entorno que mais influenciam e impactam as terras indgenas. No total so quatro usinas voltadas para produo de biocombustvel ou acar, que atuam e incidem no territrio.

    A presena da usina nas imediaes das terras indgenas marcada como mais um impacto de alto potencial poluidor. Os rejeitos da usina, a calda, se referem principalmente ao vinhoto despejado nos rio Mamanguape e Camaratuba. O lanamento de vinhoto nos rios, segundo relatos dos Potiguara alteram significativamente a qualidade de suas guas, bem como a populao e o ciclo de vida da fauna e da flora aqutica e, por consequncia, na economia e disponibilidade de alimentos, considerando que boa parte da alimentao Potiguara proveniente dos recursos oferecidos pelos rios, mangues e mar. Na fala de moradores de Cumaru, Marcao, e de Monte-Mor vemos como eles relacionam a disponibilidade e fartura de camaro, de ostra e dos peixes com os impactos da calda sobre a sua produtividade,

    A vai de janeiro at...at, se no soltarem calda no rio, vai at dezembro, mesmo faltando chuva mais segura at dezembro. [E como que essa histria da calda?] uma usina que tem na cidade aqui de Mataraca, ela solta direto essa calda, e assim ela tem um cano que sai da usina pra dentro do rio Camaratuba, e ela despeja essa calda da usina com cem graus de temperatura, a quando ela cai pra dentro do rio ela sai fumaando. A a calda mato esses ps de ing, que eram nas laterais do rio e mata muito camaro s o que no morre o jacar mas peixe e camaro morre, morre demais. Mas agora que eles to aproveitando mais esse vinhoto, eles fazem alguns tanque e fica armazenando o vinhoto de l.

    [Porque que tem menos peixe que antes?] Por que os rios to assoreados, vez em quando a usina arrebenta ali o balde de calda e cai no mamanguape e mata. E voc vai l no dia que v os peixes tudo boiando tudo morto....vinhaa calda....ns tnhamos muitos peixes.

    A ao das usinas pode ser ainda considerada degradante do ponto de vista das relaes sociais. Com a pesca e coleta afetadas pela poluio os Potiguara entregam-se aos trabalhos insalubres oferecidos pelas usinas no corte e queima da cana.

    O despejo de dejetos txicos nos rios tambm realizado por uma fbrica de baterias localizada nas proximidades da TI Jacar de So Domingos, na BR 101. O destino dos rejeitos da produo de baterias o Rio Silva afluente do Rio Estiva. A deposio destes rejeitos altamente txicos deve ser verificada em campo, por meio de visita ao local de origem dos rejeitos, verificao do processo de fabricao das baterias, alm de comunicar o rgo ambiental responsvel sobre o caso apontado e solicitar a anlise das guas do Rio.

    Os rios, riachos, lagoas, fontainhas e cacimbas de gua doce so de fundamental importncia para fornecimento de gua para beber, para lavar roupa e para a pesca, mas suas nascentes e margens vm sendo intensamente desmatadas, principalmente pela prtica de plantio da cana-de-acar, gerando eroso e assoreamento dos mesmos.

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    Mangue e apicum

    O mangue ou manguezal identificado por ser uma rea de mata de mangue que cresce sobre solo de lama acinzentada ou lama com areia. Assim como a mata, o mangue um ambiente mais frequentado por homens para realizar pesca e a coleta de animais e no qual a responsabilidade pelos recursos deste ambiente ficam a cargo de entes como o pai-do-mangue e agentes ambientais (Ibama e ICMBio) com os quais os Potiguara tem que negociar acesso. Os manguezais de Mamanguape, ao sul, e de Camaratuba, ao norte do territrio Potiguara so de extrema importncia produtiva e simblica para os que vivenciam este ambiente. Uma boa descrio do manguezal pode ser vista na seguinte colocao:

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    o mangue, ele j recebe vamos dizer uma contribuio boa do mar, n? Que a gua j desce salgada, as plantaes de l j outra, s mangue manso, cano e sapateiro mesmo e assim, o acesso a ele no bom, tem mangue que nem por isso, mas esse mangue daqui da gente, o nosso ele muito ruim de and nele que ele muito fechado. Tem uns toco que a gente chama de porocot que ele bem agudo e ele machuca muito o p.

    No manguezal encontramos quatro tipos de mangue: mangue manso (Laguncularia racemosa), mangue de boto (Conocarpus erectus ), mangue sapateiro (Rhizophora mangle) e duas variedades de mangue cano (Avicennia germinans, Avicennia schaweriana) que se encontram distribudos ao longo do manguezal. Os Potiguara contam que cada espcie distribui-se de forma diferenciada em decorrncia das caractersticas ecolgicas de cada parte do manguezal. Por exemplo, o mangue sapateiro encontrado mais perto do mar. J o mangue manso encontrado em toda parte, espalhado, enquanto o cano fica mais em reas do mangue onde a lama se mistura com areia e o mangue de boto em reas mais arenosas na borda do mangue. Alm disto, o mangue manso sempre encontrado misturado com sapateiro.

    Os manguezais so recortados por caminhos, denominados localmente de camboas. As camboas so manejadas periodicamente, retirando-se tocos de pau de mangue e razes poropot, para que fiquem abertas e permitam a passagem de embarcaes at o canal principal dos rios ou deste para fora do mangue. O incio das camboas muitas vezes serve de porto de atracagem das canoas e de desembarque aps a lida de trabalho nos manguezais e a sua foz, ou sada, consiste num ponto de pesca com rede.

    O apicum, ou salina, corresponde a uma rea de transio entre o manguezal e o pa. percebido como uma rea que sofre influncia da salinidade da mar e caracterizada pela presena de um tipo de capim denominado de manimbu (Cyperus sp.) e por ser o habitat do caranguejo goiamum (Cardisoma guanhumi). A terra uma mistura de areia com lama. Para algumas pessoas o apicum o espao ideal para a implantao de viveiros de camaro (carcinicultura). De fato, o mangue e o apicum so intensamente impactados por diversas atividades extrativistas, bem como pela poluio oriunda das usinas de cana-de-acar e pela carcinicultura nos apicuns e parte do manguezal.

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    Conflitos e impactos no manguezal

    As unidades de conservao APA da Barra do Mamanguape e ARIE da Foz do Mamanguape so sobrepostas s Terras Indgenas Potiguara e Monte-Mor. Alm delas h uma Reserva Ecolgica do Rio Vermelho na TI Monte-Mor, cujos conflitos tratam principalmente da extrao de madeira. A APA sobrepe-se s terras indgenas afetando territrios das aldeias Acajutibir, Caieira, Val, Camurupim, Tramataia, Brejinho, Trs Rios, Jaragu e Monte-Mor.

    Salienta-se que a APA foi criada principalmente para garantir a conservao do habitat e proteger o Peixe-Boi Marinho e outras espcies sobre-exploradas como o Caranguejo-u, bem como garantir a conservao dos remanescentes de manguezal e mata atlntica e promover o uso sustentvel dos recursos. A criao de uma APA, categoria de unidade de conservao de usos sustentvel, estabelece algumas restries que so impostas quanto utilizao dos recursos naturais nela existentes. A atuao do rgo fiscalizador para fazer cumprir suas regras questionada e muitas vezes desrespeitada pelos Potiguara principalmente pela inexistncia de espaos de dilogos e discusses sobre gesto dos recursos naturais. Este espao reivindicado tendo em vista a ocupao indgena anterior instituio da APA.

    Na maioria das vezes, a gesto mais rigorosa das unidades de conservao vem motivando no relativo fracasso da implantao das mesmas em locais de uso das populaes indgenas. Isto decorre, muitas vezes, da divergncia e contradio entre as formas tcnico-cientfico e indgenas de perceber e se apropriar dos recursos naturais, bem como nos diferentes objetivos de destinao da rea. Sem inteno de subestimar os conflitos e impactos de sobreposies como estas, sejam eles positivos ou negativos, nos restringiremos neste momento aos apontamentos feitos em campo pelos Potiguara em relao situao.

    O principal conflito entre o rgo ambiental fiscalizador e os Potiguara se d pela existncia de tanques de carcinicultura11, de alto impacto socioambiental por no se adequar s exigncias ambientais. Estes se concentram principalmente na rea de abrangncia das aldeias Tramataia e Camurupim, porm ocorrem em Caieira e Brejinho em menor quantidade. Para as famlias produtoras de camaro, a carcinicultura encontra as principais barreiras para o seu desenvolvimento na fiscalizao e proibio do ICMBio, no entanto se considerarmos o territrio Potiguara como um todo veremos divergncias de opinies a este respeito.

    Apesar de haver uma concordncia a respeito dos impactos referentes atividade carcinicultora, h o argumento que no cabe ao rgo somente licenciar e punir por atividades que consideram danosas APA. Dentre seus objetivos est, tambm, a responsabilidade de melhorar a qualidade de vida das populaes locais.

    Ento eles esto exigindo algo, claro que a lei garante eles exigir, mas a lei que garante eles exigir garante tambm a sobrevivncia de um pessoal dentro de seu territrio. Ento o que falta buscar alternativas, concorda. Esse pessoal hoje usou motor mais potente por que e pra que? necessrio que se entenda isso. Ento a APA, o Ibama no esto querendo entender isso, eles querem aplicar a lei, mas a lei que garante isso dele garante a uma populao o direito a sua alimentao, no garante? A uma vida digna, correto? Ento eles no to respeitando tambm essa lei

    Alm da carcinicultura outras aes do rgo ambiental so questionadas pelos Potiguara. Uma delas diz respeito aos acidentes que eventualmente podem ocorrer com os indivduos de Peixe Boi, o que se constitui como um dos pontos relevantes para a implantao do rgo na regio. No entanto o animal trafega na

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    mesma rea que as canoas e barcos e onde so colocadas as redes de pesca. Segundo relatos, os Potiguara e demais ribeirinhos so punidos em caso de acidentes com tal espcie, ocasionando maiores desavenas.

    Ainda se tratando da conservao da fauna h uma alta incidncia de coleta de caranguejo com redinhas ameaando o estoque produtivo e podendo levar a escassez, alm de poluir o mangue. As redinhas so armadilhas confeccionadas com sacos de rfia desfiados e tranados. Para capturar os caranguejos so colocadas as redinhas em cada buraco para quando o caranguejo sair ele ficar preso e ser capturado. Aps o uso da redinha muitas vezes elas ficam no mangue que por no se degradarem ali ficam poluindo o ambiente e ameaando a fauna residente. O impacto percebido localmente pela diminuio gradativa dos caranguejos, desta forma lideranas Potiguara destacam a importncia da atuao do Ibama, ressaltando a importncia das peridicas limpezas realizadas no manguezal.

    11 Os empreendimentos carcinicultores esto presentes na APA tanto no interior das TIs como na parte externa. Mais especificamente nas margens do Rio Miriri foi instalada na dcada de 90 um empreendimento denominado Aquafer de propriedade da usina Jacupe, com rea de 39,1ha.

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    Mata

    A mata um ambiente que, mesmo intensamente degradado, no completamente de responsabilidade e cuidados da comunidade, mas sim de uma rede formada por animais, seres encantados, como a comadre florzinha, e agentes ambientais do governo (Ibama, ICMBio) com os quais se negocia o acesso fauna e aos recursos madeireiros. Ao mesmo tempo as matas so fontes indispensveis de alimentos, lenha, madeira, cura, alm de representar o espao ideal de realizao de rituais como o tor. Esta importncia espiritual est expressa na seguinte fala:

    Agente ndio quando se morre, eu creio o seguinte, que tanto que a gente ama as mata, a me natureza, a me terra, da onde a gente se alimenta da me terra, eu sinto tanto ela que na hora da gente fazer o ritual a gente tira os chinelo do p que pra sentir ela mesmo. Tem dia que como a gente t aqui eu t com o p no cho mesmo, buscamos as foras das mata, ento eu digo: o ndio quando ele morre o lugar dele as mata. Eu quando t sem fazer nada aqui em casa, eu guardo um facozinho e vou andar nas matas, tudo que agente faz diferente do branco e nem ele vai permanece o quanto a gente permanece, nessas origem da gente, nessa religio da gente. (Morador de So Francisco)

    A mata formada por paus (rvores) de mdio a grande porte, alm de emergentes que podem alcanar tamanhos maiores. Os fragmentos de matas remanescentes so encontrados no interior das grotas, baixios, nas encostas de morros ou formando pequenas ilhas no interior do territrio indgena. Algumas espcies so indicadoras deste ambiente segundo a percepo dos indgenas, representadas por espcies como: massaranduba (Manilkara salzmanii), pau darco (Tabebuia sp.), louro (Ocotea sp.), goiti (Couepia sp.), jita (Apuleia sp.), Sucupira (Bowdichia virgilioides), gameleira (Ficus sp.), jequitib rosa (Cariniana legalis), pau brasil (Caesalpinia echinata), amesca (Protium heptaphyllum), imbira (Xylopia sp.), imbiridiba (Buchenavia capitata), sete casco (indeterminado) e murici (Byrsonima sp.), dentre outras.

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    As matas so associadas presena de mamferos, os bichos, animais ou at caa como denominam, como tatu galinha (Dasypus septemcinctus, ), tatu peba (Euphractus sexcinctus), tatu de rabo mole (Cabassous unicinctus), capivaras (Hydrochaeris hydrochaeris), cotias (Dasyprocta agouti), guaxinins (Procyon cancrivorus),pre (Galea spixii), pacas (Agouti paca), macacos pregos (Cebus apella), preguias (Bradypus variegatus), etc. Sendo algumas como a ona e veados j extintas na regio. Podemos considerar a mata como lugares, nomeados de acordo com suas caractersticas fsicas e histricas, como a Mata da Confuso, Mata do Abacate, Mata da Imbira, Mata da Guariba, Mata Redonda, Mata Escura, Mata do Boru, Mata do Rio Vermelho, Mata do Badalo, Mata da Barreira e Mata do Arrepia.

    O carrasco um ambiente com caractersticas prprias e percebido como uma transio entre a mata e o tabuleiro, ao mesmo tempo em que denota um ambiente marcado pela interferncia humana, um construto do manejo. O carrasco possui vegetao com porte mais baixo, com rvores de tronco finos e mais retorcidas, alm de ser bem denso. As espcies indicadoras do carrasco so pau pereira (indeterminado), murici do carrasco (Byrsonima sp.), jita, sucupira, barbatenom (indeterminado), maaranduba, pau pombo (Hirtella ciliata), cupiuba (Tapirira guianensis) cajueiro bravo e muitas outras que tm em mata ou em tabuleiro, s que mais finas ou mais novas. Dentre os animais, circulam mamferos que habitam as matas, mas o carrasco preferido por animais como o tej, a cotia, a raposa e o tatu sendo a rea de reproduo destes ltimos. O solo associado a este ambiente a areia branca com barro mais a fundo.

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    Impactos do Desmatamento

    A categoria mapeada como reas degradadas corresponde s reas cuja vegetao original foi retirada e substituda primeiramente por cultivos diversificados no perodo que a Companhia de Tecidos dominava as Terras Potiguara e depois que as terras deram lugar aos canaviais, consolidando uma paisagem florestal fragmentada e solos degradados por cultivo de cana-de-acar. Nestes 30 anos de cultivo intenso da cana, muito se perdeu em termos de diversidade biolgica e nutrientes do solo, alm das significativas contribuies eroso e assoreamento dos cursos dgua. As queimadas para a implantao dos canaviais acabaram com a maior parte das matas e tabuleiros existentes e consequentemente com as reas de coleta, limitando as atividades econmicas fontes de alimento, alm de toda a vida associada. Tambm consideramos nesta categoria as reas ocupadas com roas, pastos e capoeira.

    As reas sujeitas ao desmatamento, correspondem a reas de mata, tabuleiro ou carrasco com presso de retirada de madeira, produo de carvo ou de expanso dos cultivos agrcolas, notadamente a cana-de-aucar. So reas vulnerveis s queimadas, intencionais ou acidentais, que ocorrem no processo de corte e queima da cana ou abertura de roados. Alguns Potiguara consideram a falta de opo de sobrevivncia como motivo para a presso sobre os fragmentos.

    No h controle e regras definidas para conter as queimadas, aceiros na maioria das vezes so inexistentes, alm de no existir equipamentos disponveis e nenhum programa de combate ao fogo. Para alguns indgenas faltam ponderao e percepo geral sobre as consequncias futuras da presso sobre os ltimos remanescentes florestais e de tabuleiro, como a perda de bosques energticos, diminuio das mangabeiras e cajueiros e das caas, alm de contribuir para assoreamento dos rios.

    Nas reas de Monte-Mor e Jacar de So Domingos, os problemas esto mais relacionados explorao de madeira nas ltimas reservas de mata do territrio Potiguara. O fcil acesso aos fragmentos da Mata do Rio Vermelho (Reserva) e dos fragmentos que esto prximos BR 101 facilita a explorao de madeira por invasores. Alm destas reas destacaram tambm fragmentos na poro norte da TI Potiguara, dentre eles: a Mata Redonda, Mata do Jardim e Mata Escura como fragmentos ameaados pelo trfico de madeira.

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    Tabuleiro

    O tabuleiro um ambiente de extrema importncia para o modo de vida Potiguara. encontrado, de forma mais abrangente nas chs, mas tambm prximo s praias. Sua caracterstica principal ter espcies indicadoras como Sua caracterstica principal ter espcies indicadoras como a mangabeira (Hancornia speciosa), o cajueiro manso (Anacardium occidental), o cajueiro brabo (Curatella americana), batibut (Ouratea hexasperma), massaranduba, ip (Tabebuia aurea), murici do tabuleiro (Byrsonima sp), pau ferro (Caesalpinea ferrea), ameixa (Indeterminado), alecrim do mato (indeterminado), dentre outras espcies. Com destaque para a mangabeira. O solo predominante dos tabuleiros a areia seca, com predominncia de tabuleiros com areia branca e pequenas manchas de areia vermelha e amarela. A presena de fontainhas outro atributo deste ambiente.

    O uso intenso desse ambiente acarretou a substituio da maior parte da vegetao das reas de mata, de tabuleiros e carrascos por cana, h tambm pastagens e roados instalados sobre a ch. Atualmente os tabuleiros restringem-se a pores fragmentadas, utilizadas principalmente para a coleta e extrativismo vegetal. Os tabuleiros so vistos como ambientes que esto sendo altamente degradados, mas ao mesmo tempo se expandiram com a retirada das matas. H uma percepo de que o desmatamento das matas, em solos arenosos, permitiu a expanso das mangabas e outras espcies de tabuleiro.

    Destas espcies, sem sombra de dvidas, a mangabeira tem um destaque no ponto de vista simblico e econmico, como visto na seguinte frase: Onde tem mangabeira nativa tabuleiro. Segundo informaes levantadas e conforme o etnomapa indica, as aldeias onde predominam as mangabeiras so Jacar So Domingos, Lagoa Grande, Estiva, Grupina, Ybikoara e Cumaru. Dizem tambm que entre Marcao e Caeira tinha um mangabeiral que foi destrudo para plantao de cana. Importante salientar que os tabuleiros recebem nomes, como o tabuleiro da Seriema, de Baixo e de Joo Pegado, localizados na aldeia Jacar de Csar.

    Boa parte dos tabuleiros possui, ao se cavar, uma camada de areia preta e logo abaixo gua, o que torna o ambiente muito frgil. Segundo o cacique de Trs Rios, quando voc cavava voc encontrava aquela areia preta, aquela gua da fontainha, e hoje se voc ver como os tabuleiros hoje so todos cercados por cana, sugaram tudo, aquilo ali ficou s o p. Alm do afloramento e armazenamento hdrico, a fontainha percebida pela predominncia de capim-azul.

    A fontainha o diferenciador principal dos dois tipos de tabuleiro: o que fica na parte mais alta do relevo e o mais prximo da praia, que pode se chamado de restinga por algumas pessoas. O tabuleiro que fica na parte mais alta, diferente da praia, faz fontainha.

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    Pa, vrzea e pantanal

    O pa, termo Tupi-guarani cujo significado estar no meio de; intervalo entre duas cousas; espao intermdio12, coincidindo com a explicao de um especialista local onde pa em todo o entorno do rio, todos nossos rios aqui, um ambiente tpico de rea alagvel, encharcada segundo dizem, durante certos perodos do ano ou aps longas chuvas. Situa-se no complexo formado pelos rios, crregos e suas margens. H segundo a classificao local dois tipos de ambientes que constituem o pa, a mata e a vrzea.

    A mata a parte arbrea do pa, onde predominavam rvores de grande porte com exposio de razes e sapopemas. Hoje, devido a processos de desmatamento as rvores so menores e a mata mais rala. A rea de mata do pa era a preferida para abertura de roa. Atualmente quase todo pa uma capoeira e muitos preferem mant-lo conservado a derrubar para abrir uma roa. A principal espcie indicadora da mata do pa o golandi, que devido ao modo como se apresenta no pa, define a subunidade ambiental denominada Mata de Golandi, conforme relato abaixo,

    pa em todo o entorno do rio, todos nossos rios aqui ainda temos mata de golandi aqui no Silva Velho, Tracoeira tambm. Mata de golandi fica dentro do pa. A nascente do rio Sinimbu tudo mata de golandi, floresta atlntica com golandi. Agora mata bonita l em Silva Velho. (Morador de So Francisco)

    Outra espcie indicadora marcante o dend (Elaeis oleifera). A presena de dendezeiros demonstra a importncia desta espcie e o manejo intenso deste ambiente ao longo dos tempos. Outras espcies indicadoras so capra (indeterminado), quebra foice (indeterminado) e munguba (Eriotheca). Na parte do sub-bosque encontramos pimentas de macaco. J, a vrzea um ambiente do pa onde predomina capim nativo, junco (pipiri) e poucas aningas (Montrichardia linifera). Para a vrzea ser denominada de pa, a mesma deve ter potencial agrcola, ou seja, ficar com a terra mole, seca e menos encharcada durante o vero. A vrzea do rio Sinimbu comumente utilizada para o pastoreio do gado.

    A diferena entre o pa e o pantanal, principalmente o do Camaratuba, que este ltimo sempre tem gua. Uma boa definio do pantanal foi dada por um morador de Cumaru:

    [Qual a diferena de um pantanal para um pa?] Olha eles so idnticos, sabe? Agora, s que no pantanal ele, tem mais possibilidade das plantas crescerem, n? E o pa ele assim, mais seco, ele tem gua mas no como o pantanal. O pantanal ele tem gua e aquelas planta que se d com as gua, no caso o ing e a aninga dele cresce muito. O pa onde mais a gente trabalha, a no deixa as rvore no cresce o tanto que cresce dentro do pantanal.

    Em termos de fauna o pantanal habitat de diversas espcies de peixes, alm de ser reconhecido pela presena de jacar, lontra e capivara. No pantanal se realiza a importante pesca do camaro com covo.

    A terra do pa, da vrzea e do pantanal considerada a mesma, como nesta frase: terra no pa igual a da vrzea. uma s. uma lama, a lama preta, sempre uma coisa s. Em algumas partes o pa areiado, misturando lama com areia, o que influencia a escolha dos cultivos do roado a ser aberto.

    12 BUENO, S. 1998. Vocabulrio Tupi-guarani Portugus. 6ed.1998.

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    Roas, capoeiras e pastos

    Muitas casas so construdas em terrenos que ficam prximos de rios e crregos que formam, na parte mais baixa do baixio, o pa. No pa so abertas as chamadas roas de pa e hortas, onde, durante o perodo do ano mais seco, se cultiva no solo mais enlameado e frtil. Estas roas geralmente so mais prximas das residncias, e so cuidadas pelas mulheres, homens e jovens da casa. A roa de arisco, aberta nas reas no alagveis em solos arenosos, praticada ao longo de todo o ano. A roa de arisco aberta em capoeiras e reas j degradadas, como ex-canaviais, em local mais distante das casas e geralmente o homem o responsvel pelo seu cuidado.

    comum encontrarmos roas de monoculturas, como roas de maracuj e de melancia, sendo uma prtica mais recente e voltada exclusivamente para o mercado. Tensionando com as roas tem-se as plantaes de cana ou o canavial. O canavial evocado como uma prtica responsvel pela destruio da mata e dos tabuleiros, e pelo assoreamento dos rios, ao mesmo tempo em que enriqueceu poucas famlias e gerou conflitos internos.

    Capoeira13 o termo indgena que denota o processo de recomposio da vegetao, na dinmica ecolgica da paisagem, aps a abertura de uma rea de mata, tabuleiro ou de capoeira mais antiga para a prtica agrcola, com o dizem um lugar que j foi mata. A capoeira remete ao processo agrcola. Capoeira, apesar de ser o termo genericamente utilizado, refere-se a um estgio ainda bem inicial de crescimento da vegetao, com

    13 Em tupi-guarani capoeira significa

    mato velho, que no existe mais.

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    cerca de um a dois anos e muita presena de ervas rasteiras como gengibre, arbustos e arvoretas. A capoeirinha ou capoeira fina j possui a presena de algumas rvores com caules finos, ainda apresentam-se muitos arbustos e as reas so mais adensadas pela vegetao. O capoeiro ou capoeira grossa j corresponde a um estgio mais avanados de crescimento da vegetao onde as rvores de maior porte e mais grossas j substituram as de menor porte e os arbustos. No capoeiro a vegetao j bem fechada, com presena de cips, e seu porte mais avanado faz com que muitas vezes as pessoas o denominem de mata. Na verdade chamar um capoeiro de mata no denota desconhecimento sobre este ambiente, mas sim a utilizao de duas categorias nativas para um mesmo fenmeno devido a uma transformao da paisagem que praticamente aniquilou as florestas antes existentes.

    Os pastos so reas conformadas para a criao de gado. So reas cercadas pela famlia ou por uma coletividade. Algumas reas de pastagem so abertas e de livre acesso, como as vrzeas do rio Sinimbu. O pasto caracterizado pelo plantio da braquiria ou pela presena de gengibre, sendo que, quando apresenta muito gengibre ou muitas espcies de capoeira denominado de pasto sujo, ao contrrio de um pasto bem manejado e mantido apenas com braquiria.

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    A casa

    Todos os ambientes e lugares apresentados esto ligados entre si e so dotados de significado numa relao em que a casa central. Pode-se dizer que a casa ou tapera corresponde a um lugar central do habitar cotidiano no ambiente. Ao falarmos em casa estamos nos referindo todo um conjunto articulado de espaos que esto dentro do terreno, como os terreiro em frente de uma casa, o quintal e os stios nos fundos, a cozinha, as hortas e, muitas vezes, roas e casas de farinha. Uma liderana de Trs Rios ilustra esse todo: A gente fala meu terreno tem isso, n? No meu terreno eu constru uma casa e por trs da minha casa eu constru um sitiozinho no meu terreno, no meu quintal.

    Esse terreno, essa rea, onde a casa central um espao que liga as pessoas prtica de cultivar, de produzir alimentos, o abrigo e est situada no territrio segundo relaes de parentesco e amizade. Ou seja, configura-se uma situao de convivialidade e de residncia entre parentes de mais de uma gerao.

    No momento em que se ocupa um espao, o ato primeiro no necessariamente o de erguer os alicerces da casa, mas sim de abrir uma clareira e implantar uma roa e, posteriormente, incluir frutferas, conformando um stio. S aps estas prticas e o estabelecimento de um stio que a construo da casa finalizada. A expresso mais ntida deste processo de habitar se deu tambm no momento das retomadas e formao da aldeia Trs Rios, onde os stios foram sendo implantados enquanto muitas pessoas moravam ainda debaixo da lona, como expresso na fala de uma liderana de Trs Rios,

    Essa aqui foi a primeira casa que foi feita dentro da aldeia. Esse sitiozinho aqui ele plantou com muito zelo, olha. Do primeiro da retomada s saiu daqui porque foi pra casa da mulher. Porque eu j plantei assim: eu plantei a roa e plantei por dentro, quando eu tirei a roa j tinha os coqueiro pra que eu segurasse a terra. Que no era pra gente plantar bem de raiz. S era pra plantar s a roa. Eu falei: como que a gente vai fazer uma retomada que pra gente plantar s roa? Como que a gente vai segurar essas terra? A eu pensei, comprei uns coco, peguei uns coco pra mudar. Eu com a roa j que ningum queria eu dentro mais, plantei de carreira. Quando eu tirei a roa ficou o sitiozinho completo. A retomada foi pra plantar roa. Isso tudo aqui era roa aqui. Onde hoje t tendo casa, isso aqui tudo era roa depois da retomada que a gente fez. Tudo era roa, tudo. A vo fazendo as casa, fazendo os seus stio e a gente vai andando mais pra frente e deixando o local dos seus stio e pegando outros terreno j pra fazer plantao de roa.

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    A casa feita utilizando-se de madeira retirada do mangue, principalmente a do tipo mangue sapateiro, e de madeira de capoeiras para caibros e varas, sendo posteriormente amarradas entre si com cips. Sua estrutura (paredes, cho) feita com barro liguento adquiridos no territrio, preenchendo e colando as aberturas e fissuras. O telhado, atualmente, feito com telhas de fibrocimento (eternit) ou at de cermica. Este tipo de casa denominado de casa de taipa. Quando este tipo de residncia era coberto com capim manimbu e folhas de palmeiras, principalmente coqueiros, o que ainda ocorre, a casa era associada aos ndios mais antigos. H casas, principalmente de famlias com maior poder aquisitivo, que so construdas com alvenaria, telhas de cermica e pisos azulejados ou cimento.

    Quase todas as casas possuem uma varanda na frente que o espao de socializao onde ocorrem visitas rpidas ou dilogos com pessoas que caminham pela rua, alm de ser o primeiro local de acesso residncia. A varanda fica de frente para o terreiro, que a parte do terreno que deve ser limpa constantemente e onde devem ser cultivadas e cuidadas plantas ornamentais, medicinais, bem como plantas que conferem proteo casa e a seus moradores. muito comum e interessante ver que em muitas h pelo menos um p de jambo, que alm dos frutos e do ornamento devido a sua beleza durante o perodo de florescimento, oferece sombra para conversas debaixo das rvores.

    O quintal constitui um dos espaos mais importantes da casa. Como dito anteriormente o cultivo de plantas no quintal constitui a forma primordial de habitar e da noo de casa. No quintal so formados stios por meio do cultivo de uma grande diversidade de ps de frutas, plantas condimentares e temperos, plantas ornamentais, rvores nativas para sombra e lenha, verduras, hortalias e ervas medicinais para chs, banhos e rezas. Apesar da imensa diversidade encontrada, algumas plantas, principalmente ps de fruta como o coco, a manga, a jaca e o caju, destacam-se nos quintais de muitas das pessoas por sua importncia e papel fundamental na ligao da noo de casa com o consumo de alimento, sendo uma marca fundamental do processo de transformar uma morada em um lugar. H tambm o aafro (urucum), que hoje muito cultivado devido ao seu uso ritual como pintura corporal no tor e para fins comerciais. Articulado aos quintais encontramos hortas com o mais variado cultivo de temperos, condimentos e verduras (esta ltima geralmente para venda no mercado local). muito comum vermos nos quintais e nos terreiros galinhas soltas ciscando restos de comida ou de rao dada pela responsvel pela casa. Hoje o quintal tambm percebido como um dos poucos espaos florestados no territrio Potiguara, como visto na seguinte frase Aqui tm mais mata plantada, que so os quintais, do que mata. A segurana e fartura de um quintal observado na presena constante das crianas que brincam e se deleitam com as doces e suculentas frutas que ali se encontram.

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    As casas de farinha so construdas para a coletividade de parentes ou para servir a toda aldeia. A casa de farinha, como falaremos mais tarde, um espao importante de sociabilidade e de encontro entre as pessoas durante os trabalhos coletivos de produo de farinha de mandioca, de beijus, tapiocas e gomas, produtos oriundos da mandioca colhida nas roas. No entanto, muitas famlias no possuem mais casas de farinha, tendo que se utilizar da casa de farinha de outros parentes ou amigos, ou das casas coletivas da aldeia construdas pela Funai ou por programas de governo.

    Lixo

    O lixo um local de deposio de lixo cu aberto e sem qualquer tipo de controle ambiental e sanitrio, e est presente no territrio Potiguara em diferentes locais, podendo estar em atividade ou abandonado. O lixo proveniente das trs terras indgenas e dos ncleos urbanos de Marcao e Baa da Traio, sendo um problema crescente e visivelmente impactante, no qual os locais de deposio esto na maioria das vezes relacionados favores polticos.

    Em algumas das aldeias e ncleos urbanos a coleta realizada pela prefeitura e destinada aos lixes em atividade. Nas aldeias onde no h coleta o lixo, este queimado ou enterrado no prprio quintal por ser uma das formas encontradas para destinar o prprio lixo, ainda que esta no seja considerada uma prtica adequada. O material orgnico domstico geralmente utilizado na alimentao dos animais e enriquecimento do solo dos quintais, porm nas escolas e nos ncleos urbanos os restos alimentares so destinados aos lixes contribuindo para o mau cheiro, proliferao de ratos e doenas. O problema do lixo aumenta nas temporadas de turismo intenso, deixando a rea em situao de calamidade pblica,

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    Lugares histricos: grotas, furnas, marcos e construes

    Tambm foram mapeados pelos Potiguara elementos de relevncia histrica e simblica. Ao longo do territrio, perpassando os vrios ambientes, encontramos esses lugares, os quais so pequenas reas e pontos que possuem uma histria de socializao entre as pessoas e destas com o espao. So taperas, grotas, marcos e outros locais como os terreiros sagrados, furnas ou construes histricas e que se mantm vivos e so vividos nos tempos atuais.

    A conformao da casa como um lugar se deve particularmente ao nome que lhe inscrito ao ser iniciada a ocupao, geralmente o nome do chefe da famlia extensa, o fundador do lugar, ou da mulher que a responsvel por cuidar do terreno em todo seu conjunto. O nome associa o lugar de residncia pessoa ao longo do tempo, mesmo quando esta morre e a casa se deteriora, este lugar permanece na memria e serve para identificao geral na paisagem. A identificao dos stios, das roas e das casas pelo nome e/ou apelido do seu dono ou de seu fundador explicitam o interesse dos Potiguara em instituir uma singularidade de lugares e pessoas a partir da nomeao e uma relao de antiguidade da posse. H uma frase de um morador da aldeia So Francisco que explicita esta transformao de uma casa dos antigos em lugares de referncia cultural, as taperas:

    Os morador daqui era muito antigo, ento foram-se embora, abandonaram aqui porque era muito esquisito, mas ali onde os meninos ficaram, onde os hme to assentado ali em cima tinha umas tapera via, pouco tempo depois de 1970 eles saram tirando e foram para Cumaru. Tapera onde agente mora, a boto a casinha abaixo a considera tapera. Aquele povoadozinho ali em baixo, onde ns moramos, ali quase uma tapera, onde nosso povo mais velho morava, ento a vem os filho da gente constri uma casa ali em cima a agente diz, isso aqui foi uma tapera. Porque a gente diz: isso aqui foi uma tapera de parente fulano de tal.

    As grotas, como a da Carneira, do Gurubu e Engole Vivo, dentre outras, alm de uma categoria geomorfolgica, so consideradas tambm lugares devido sua morfologia, presena de mata densa e