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Nº 129 MARÇO/2014 50 ANOS DO GOLPE... que deu origem à ditadura militar (1964-1985): terrorismo de Estado, ataque à democracia e à classe trabalhadora ENCARTE

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Nº 129 MARÇO/2014

50 anos do golpe... que deu origem à ditadura

militar (1964-1985): terrorismo de estado, ataque à democracia

e à classe trabalhadora

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Página 13 é um jornal publicado sob responsabilidade da direção nacional da Articulação de Esquerda, tendência interna do Partido dos Trabalhadores.Circulação interna ao PT. Matérias assinadas não refletem, necessariamente, a posição da tendência.

Direção Nacional da AE: Adilson Nascimento dos Santos (MS), Adriana Miranda (DF), Adriano Oliveira (RS), Aila Marques (CE), Ana Afonso (RS), Ana Lúcia (SE), Ana Rita (ES), Beto Aguiar (RS), Bruno Elias (DF), Carita Rosa das Chagas (PA), Damarci Olivi (MS), Daniela Matos (MG), Denize Silva de Oliveira (MS), Denise Cerqueira Vieira (TO), Dionilso Marcon (RS), Edma Walker (SP), Eduardo Loureiro (GO), Emílio Font (ES), Expedito Solaney (PE), Fabiana Malheiros (ES), Fabiana Rocha (ES), Iole Iliada (SP), Iriny Lopes (ES), Isaias Dias (SP), Jandyra Uehara (SP), Janeth Anne de Almeida (SC), Joel Almeida (SE), Jonatas Moreth (DF), José Gilderlei (RN), Laudicéia Schuaba (ES), Leyse Souza Cruz (ES), Lício Lobo (SP), Lúcia [Maria Barroso Vieira] (SE), Marcel Frison (RS), Marcelo Mascarenha (PI), Marco Aurélio Moreira (MG), Mario Candido (PR), Múcio Magalhães (PE), Olavo Carneiro (RJ), Pere Petit (PA), Rafael Tomyama (CE), Raquel Esteves (PE), Rosana Ramos (DF), Rafael Pops (DF), Regiane Cerminaro (SP), Rubens Alves (MS), Sílvia de Lemos Vasques (RS), Sonia Hypólito (DF), Teresinha Fernandes (MA), Ubiratan Félix (BA), Valter Pomar (SP). Comissão de ética nacional: Eleandra Raquel Koch (RS), Rodrigo César (SP) e Wagner Lino (SP).

Edição: Valter Pomar Diagramação: Cláudio Gonzalez (Mtb 28961) Colaboraram nesta edição: Adriana Miranda, Rosana Ramos, Tábata Silveira e Pedro PomarIlustrações de capa e das páginas 16 e 18: Sérgio BastosSecr. Gráfica e Assinaturas: Edma Walker [email protected] End. para correspondência: R. Silveira Martins, 147 conj. 11, São Paulo (SP), CEP 01019-000.

EXPEDIENTE

Nos anos 1950 e início dos anos 1960 o Brasil vivia um período turbulento: a esquerda passava

por um momento de intenso acúmulo de força política, por meio do crescimento dos movimentos sociais; e a direita estava construindo o caminho do golpismo, tendo realizado em 1954 sua primeira tentativa, abortada pelo suicídio de Vargas. No meio desta disputa havia um governo progres-sista, o de João Goulart (Jango), que al-ternava momentos de conciliação e outros de maior enfrentamento, acenando com reformas que feriam os interesses da clas-se dominante.

Atuavam politicamente também setores das Forças Armadas (FFAA), cuja ala pro-gressista (ou legalista), embora minoritá-ria, vinha enfrentando os setores militares mais reacionários, que disputavam desde o período do tenentismo o protagonismo armado entre as diversas forças políticas. A ala progressista sustentara o governo li-beral de Juscelino Kubitscheck contra ten-tativas de golpe da extrema-direita militar e garantira, em 1961, aliada ao governador gaúcho Leonel Brizola, a posse de Jango, que era o vice do presidente renunciante Jânio Quadros.

Outro ator importante neste processo eram os EUA, que por meio de sua em-baixada e de seus serviços de inteligência buscavam a todo custo defender seus in-teresses imperiais. Apoiaram organizações de direita, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que buscavam in-tegrar os diversos grupos sociais conserva-

dores interessados em combater o governo Jango e derrotar o trabalhismo e o comu-nismo. Desse modo, grandes empresários, executivos de multinacionais, chefes mi-litares e outros segmentos articularam-se para desfechar um golpe de Estado.

Os EUA, nas vésperas do golpe, des-locaram um porta-aviões e cargueiros de combustível para a eventualidade de eclo-são de uma guerra civil. A intervenção, no entanto, foi iniciada antes, por meio de dois personagens nefastos, o embaixador Lincoln Gordon e o então coronel Vernon Walters.

A imprensa tomou lado defendendo o golpismo e dele se beneficiando depois, como se constata na trajetória das Organi-zações Globo, da Folha de São Paulo e de outras empresas de mídia. Visto como her-deiro político de Vargas, Jango sofreu todo tipo de boicote desde sua posse por parte da imprensa, do empresariado e da alta cúpu-la militar. Embora fazendeiro, ele também se chocou com sua classe, pois tinha boas relações com os movimentos sociais, que agitavam a bandeira da reforma agrária, e ainda por cima era cunhado de Brizola, que fazia um governo reformista relativamente ousado no Rio Grande do Sul.

Durante o governo Jango os setores retrógrados, que possuíam ampla repre-sentação no Congresso Nacional e nos go-vernos estaduais, não deram um momento sequer de trégua, travando as reformas no legislativo e a partir de determinado mo-mento articulando de forma praticamente ostensiva a derrubada do presidente.

Neste caldeirão, cujo pano de fundo era a Guerra Fria, que opunha União Soviética e Estados Unidos, capitalismo e socialis-mo, todo tipo de manipulação se tornava meio para obtenção de seus fins. A maior delas era a falsificação ideológica que co-locava o trabalhismo reformista, que tinha Jango e Brizola como expoentes, como vinculado ao comunismo.

Nos sindicatos o Partido Comunista Brasileiro (PCB) possuía espaço e influên-cia, muitas vezes em aliança com os seto-res trabalhistas. O PCB vivia uma “semi--legalidade”, continuava sem o reconheci-mento legal cassado em 1947 (no período presidencial “democrático” de Dutra), mas agia abertamente desde o governo JK.

Na área rural havia diversas organiza-ções em atividade, a mais famosa sendo as Ligas Camponesas, que pareciam avançar em organização a cada ano, pregando “re-forma agrária, na lei ou na marra”, slogan que enfurecia os latifundiários e a direita. O movimento estudantil, por sua vez, es-tava em bom momento após a greve do “um terço” de 1962, em que a UNE e seus diretórios reivindicavam a Reforma Uni-versitária e a participação nos órgãos deli-berativos das universidades.

Num cenário de radicalização da direi-ta golpista e após sucessivas tentativas de conciliação, Jango lança as Reformas de Base, cujas demandas eram historicamen-te defendidas por setores progressistas, tanto trabalhistas como comunistas. As principais reformas pretendidas: agrária, educacional, tributária, administrativa e

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o vale das sombrasYuri Soares*

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urbana, assim como a lei 4.131, que li-mitava a remessa de lucros das empresas para o exterior.

Impossibilitadas de defender expli-citamente os seus interesses (das multi-nacionais, dos latifundiários, dos EUA, dentre outros), a direita utilizava sua im-prensa para bradar “contra a corrupção e o comunismo” e obter apoio popular para construir uma ruptura com a instituciona-lidade. As “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” foram parte dessa estraté-gia de desgaste público do governo.

Diferentemente de ocasiões anteriores, em 1964 os golpistas não encontraram resistências organizadas, exceto pontual-mente, e tomaram o poder em apenas 48 horas. Jango fugiu para o exterior e Brizo-la não conseguiu repetir o feito de 1961. O “dispositivo militar” que o PCB alegava existir no governo (e que segundo Pres-tes “cortaria as cabeças” dos golpistas) revelou-se um fiasco. Hoje já se sabe que um chefe militar importante no esquema legalista, o general Amaury Kruel, teria sido comprado para aderir ao golpe, faci-litando as coisas.

Dado o golpe, apresentado como uma breve etapa para “colocar ordem” no país e rapidamente devolver o poder aos políti-cos civis da direita, os militares não tarda-ram a alijar os políticos liberais que lhes deram apoio anteriormente, como os go-vernadores Carlos Lacerda (RJ) e Adhe-mar de Barros (SP). O marechal Carlos Castello Branco tornou-se o primeiro de uma série de ditadores militares que só se encerraria com o general João Figueiredo.

O golpe impediu as reformas de base e abriu caminho para uma rápida repro-dução e acumulação de capital, abrindo o país aos capitais estrangeiros, cortando direitos sociais, atacando as conquistas obtidas pelo campo progressista e garan-tindo uma exploração cada vez maior dos trabalhadores assalariados. Um dos ob-jetivos era permitir a alta rotatividade no emprego (e com isso manter baixíssimos os salários). Por isso a garantia da esta-bilidade no emprego foi suprimida; em troca, os militares instituíram o Fundo de

Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que persiste até os dias de hoje. Sindica-tos sofreram intervenções, militantes de esquerda foram presos, torturados e assas-sinados, universidades foram invadidas, professores demitidos e alunos expulsos.

O terrorismo de Estado acentuou-se como resposta às mobilizações estudantis de 1968 e aos sequestros de embaixado-res por grupos de esquerda armados. Um instrumento legal para isso foi o Ato Ins-titucional número 5, ou AI-5, editado pelo marechal Costa e Silva em dezembro de 1968, tendo entre seus signatários minis-tros como o coronel Jarbas Passarinho, o economista Delfim Netto e o banqueiro Magalhães Pinto.

Sob forte repressão, as esquerdas man-tiveram diversos tipos de atuação: desde a luta armada, urbana e rural, até a infil-tração no MDB, partido que representava a “oposição consentida”, passando pelo trabalho de base nos movimentos sindi-cal e estudantil. Como não tinham apoio de massa, as guerrilhas foram impiedo-samente desmanteladas, em poucos anos, pelo aparelho de repressão das FFAA.

Poucos anos depois, surge o novo sin-dicalismo, no campo e na cidade, onde professores, bancários, jornalistas, petro-leiros, médicos e outras categorias avan-çavam em organização e combatividade em várias cidades e estados. O ápice fo-ram as greves dos metalúrgicos do ABC

paulista, cujo sindicato era presidido por Luís Inácio Lula da Silva. Em 1978, a his-tórica greve da Scana Vabis marca a reto-mada do movimento operário, decisivo na derrota da Ditadura.

Ao notar que estava ficando cada vez mais isolada politicamente, a cúpula do regime decide construir uma volta nego-ciada aos quartéis, buscando meios de garantir que a base econômica das elites não fosse afetada e que os militares que autorizaram ou praticaram torturas, as-sassinatos e outros crimes não fossem pu-nidos após a “redemocratização”. Frente oposicionista hegemonizada por setores da elite, o MDB não só aceitou esta tran-sição negociada como influenciou decisi-vamente a construção da nascente “Nova República”.

Ainda sob a ditadura, mas na contra-mão desta transição conservadora, surgem o Partido dos Trabalhadores (1980) e a Central Única dos Trabalhadores (1983). Contudo, hoje o PT tem como principal “aliado” justamente o PMDB (ex-MDB), verdadeira âncora a impedir avanços, em especial a reforma política que visa demo-cratizar as eleições e a política. A bandei-ra peemedebista é a manutenção das ba-ses por eles construídas nos estertores da Ditadura Militar, que ainda projeta suas sombras sobre a sociedade brasileira.

*Yuri Soares é historiador

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tas, policiais civis etc.) do regime ditatorial, para que não escapem a eventuais punições e à condenação política e histórica.

O resultado dessa operação semântica, ainda que involuntário, é uma mistificação. Não houve um regime “civil-militar” após o golpe de 1964. Houve uma ditadura do Alto Comando das Forças Armadas. Des-se modo, ainda que a motivação de uma expressiva parcela desses defensores seja respeitável, a tese acaba reforçando a onda revisionista (que incorporou ou gerou ex-pressões como “autoritarismo” e “ditabran-da”, por exemplo, para definir o regime) e a confusão a respeito do tema, que os milita-res torturadores gostam de incentivar.

É verdade que no governo Figueiredo a Ditadura Militar já se encontrava enfra-quecida, tornando-se muito maior a pre-sença e participação civil no regime. Ape-sar disso, e mesmo a duras penas, o último general-presidente conseguiu terminar o seu mandato e os chefes militares logra-ram conduzir satisfatoriamente as tratati-vas para a transição conservadora, delega-da ao civil Tancredo Neves. O legado dita-torial continua forte ainda hoje, que o diga a eficiência da Polícia Militar em matéria de Terrorismo de Estado e extermínio.

*Pedro Pomar é jornalista

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nomeando a dita cujaPedro Pomar*

Em agosto de 2012 Página 13 di-gital publicou um artigo de minha autoria intitulado “Um modismo

equivocado”, no qual se critica a utili-zação da expressão “civil-militar” para designar a Ditadura instaurada em abril de 1964 (http://goo.gl/Ah0Ufx). E em janeiro de 2013, em novo artigo (http://goo.gl/X7T7sp), argumentei que o Estado brasileiro fora militarizado de alto a bai-xo no período; os militares não detinham “formalmente” o poder, mas o exerciam de facto.

Creio que vale a pena rever alguns tre-chos daqueles artigos, no momento em que os 50 anos do golpe de 1964 incenti-vam um forte debate sobre o tema:

“Não estamos falando de formalida-des, ou de aparências, mas de quem de-tinha o efetivo poder político. Tanto po-der, que incluía a cooptação de civis para aqueles cargos que os militares sabiam que não tinham quadros próprios para preencher, o que explica a presença de figuras como Mário Henrique Simonsen e Delfim Netto à frente do Ministério da Fazenda, ou de Eduardo Portela no Mi-nistério da Educação — que, no entanto, chegou a ter como titular o coronel Jarbas Passarinho, do Exército.”

“Portanto, o poder dos militares per-mitiu-lhes não só alijar e anular quem lhes parecia incômodo, como trazer para perto os civis que lhes interessavam como minis-tros, conselheiros e demais assessores. Por outro lado, obviamente o governo militar se relacionava com os grandes capitalistas. Disso não se deve depreender (...) que os detentores do grande capital davam ordens aos militares, ou que governavam em con-domínio com eles”. “Na maior parte do tempo quem exerceu o poder em nome da burguesia, e contudo não raramente à reve-lia dela, foram os militares.”

No artigo “Um modismo equivocado”, dizia-se: “É claro que o golpe de março--abril de 1964 teve forte presença do gran-de capital e de outros setores civis e, neste sentido, pode ser denominado ‘cívico--militar’. Mas, uma vez derrubado Jango e entronado Castello Branco, instaurou-se a Ditadura Militar. Ou seja, a partir de 1964

a forma assumida pelo domínio burguês foi precisamente um regime militar, uma ditadura castrense.”

Mais ainda: 1) houve ativa participação civil ao longo da Ditadura Militar; esta par-ticipação, ou cumplicidade, estendeu-se às violações de direitos humanos e crimes co-metidos contra os opositores do regime; 2) embora a orientação geral do regime, estra-tégica, tenha sido ditada pelos altos coman-dos das Forças Armadas, isso não absolve os civis que tenham apoiado o regime (bur-gueses ou não), nem diminui sua responsa-bilidade nos crimes, de qualquer natureza, eventualmente cometidos com sua coni-vência; 3) civis envolvidos em persegui-ções, torturas, assassinatos, desaparecimen-tos e quaisquer outros crimes vinculados à Ditadura Militar devem ser exemplarmente processados e punidos.

Devemos nos perguntar por que razão uma parcela da esquerda decidiu abando-nar uma designação (Ditadura Militar) que é tão fiel ao que ocorreu naquele período histórico. A meu ver, a designação “Ditadu-ra Civil-Militar”, e algumas de suas varian-tes (como “Ditadura Empresarial-Militar)”, representam uma tentativa “científica” de resolver um problema político: a necessi-dade de denunciar e implicar os cúmplices e beneficiários civis (capitalistas, tecnocra-

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Nos anos 1960 e 1970 havia um grande consenso na esquerda de que o golpe de 1964 tinha dado

início a uma ditadura militar e não havia a menor dúvida quanto á participação civil, muito menos quanto aos interesses bur-gueses, latifundiários e imperialistas aten-didos. Ficava restrito aos ditadores e seus apoiadores o esforço por “fixar o conceito do movimento civil e militar”, na tentativa de incutir a noção de que a chamada “revo-lução” era diferente de outros movimentos armados pois “nela se traduz não o interes-se e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”, como afirma o texto do Ato Institucional nº 1, de abril de 1964, e bem nos lembrou o historiador Augusto Buonicore.

Em contrapartida, no debate atual, vem principalmente de setores da própria es-querda o esforço por incluir a palavra “ci-vil” no termo utilizado para conceituar a ditadura. Chegam ao cúmulo de dizer que “tornou-se lugar comum” denominar o re-gime iniciado em 1964 de ditadura militar por conta de “hábitos adquiridos”, “pregui-ça intelectual” e “poderosos e diferentes in-teresses”, como fez Daniel Aarão Reis.

Curiosamente, Aarão Reis reconhece que “os militares mandavam e desman-

davam”. Em quem? Nos seus subordina-dos... civis! Reconhece, igualmente que muitos ficaram surpresos quando se deram conta que “os ‘milicos’ vieram para ficar”. Se Daniel falasse dos motivos da surpresa dos apoiadores civis, seria preciso dizer que a partir de 1964 houve uma mudança de padrão na participação das Forças Ar-madas na política. Antes, se limitavam a intervir em nome da ordem, mantida a di-reção civil do Estado. Assim foi em 1930, 1937, 1945 e no contragolpe de 1955. As-sim se pretendia nas tentativas golpistas de 1954, 1955 e 1961. Assim imaginavam que aconteceria com o “movimento civil e militar de 1964”. Mas não aconteceu, e os civis ficaram a ver navios.

Ao longo de toda a história do século XX, ditaduras ao redor do mundo se sus-tentaram pelo poder das armas. Mas não apenas, pois tiveram também a sustenta-ção de parcela da sociedade civil. Contu-do, algo de fundamental acontece quando as instituições responsáveis pelas armas exercem a direção política e intelectual de uma ditadura. É justamente isso que distin-gue e caracteriza a ditadura de 1964-1985 da ditadura de 1937-1945, por exemplo. É ilustrativo, neste sentido, que o centro ide-ológico e estratégico da ditadura tenha sido

a Escola Superior de Guerra, responsável pela formulação e difusão da Doutrina de Segurança Nacional.

Mas os equívocos de Aarão Reis não pa-ram por aí. A periodização por ele utilizada para abranger a ditadura termina em 1979. Supostamente, desde o início daquele ano o estado de exceção estaria encerrado. Assim, atribui grande importância à lei de anistia e à nova lei dos partidos, cujo conteúdos fo-ram impostos pela própria ditadura. Para sustentar seu argumento, o autor afirma que já “não havia presos políticos” e “havia plu-ralismo político-partidário e sindical.” Que dizer, então, sobre os dirigentes e líderes sindicais enquadrados pela Lei de Seguran-ça Nacional e presos em 1981? Nesta toada, chega ao cúmulo de questionar como pode-riam ocorrer “movimentos sociais e políti-cos livres de repressão” (!!!) no contexto de uma ditadura. Ora, se houve avanços demo-cráticos no período 1979-1985, isto se deu não por conta de uma suposta ausência de ditadura, mas da luta pelo seu fim.

Daniel distorce as ideias do contendor para desconstruí-las. Ninguém na esquer-da visa esconder a participação de setores civis na ditadura. Aliás, ninguém conse-guiria esconder Roberto Campos, Delfim Netto, Mario Henrique Simonsen etc. Mas ao tomar como alvo a esquerda que usa o termo “ditadura militar”, o autor promove uma grande confusão – que muito agrada aos militares – pois coloca no mesmo saco quem combateu a ditadura e busca memó-ria, verdade e justiça, e quem a apoiou e busca esquecimento, mentira e impunidade.

A imprecisão histórica deste revisionis-mo conduz a um grave equívoco político. Quando a atual luta pela desmilitarização das polícias, a separação da política de se-gurança pública da política de defesa na-cional e a subordinação de fato das Forças Armadas ao comando civil são tão urgen-tes e necessárias, diluir a presença militar no poder de Estado no passado recente só contribui para diminuir a possibilidade de eliminar os resquícios da ditadura e demo-cratizar a sociedade.

*Rodrigo Cesar é estudante de história e militante do PT

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Sobre as jornadas de lutas do ano pas-sado, Cloves diz: “As bandeiras. A forma de protestar hoje, por exemplo, é pelo pas-se livre, entre outras. A luta pelo transporte é corretíssima. Não abrange só a juventu-de, abrange todos e todas, embora eu ache que tenha que ter mais organização. Não podemos cair nesta de excluir os partidos políticos porque é isto que um setor da di-reita quer”.

Sonia alerta: “a tortura virou método de interrogatório. No Brasil inteiro se tortura muito com os mesmos métodos que eram usados contra nós. Cadeira de dragão, cho-que e afogamentos existem em cadeias e presídios por aí a fora. Às vezes são mé-todos até mais violentos. Precisa fazer um trabalho muito forte educacional na popu-lação e nas policias para ensinar que estes não são métodos adequados para fazer in-terrogatório”.

Foi passando a limpo a história real e re-cordando o que viveram, viram, sofreram e sentiram na ditadura militar e avaliando os dias atuais que concederam entrevista ao Pá-gina 13. Ela, em Brasília. Ele, em São Paulo.

Trechos da entrevista você pode confe-rir nesta edição. A entrevista completa com trajetória de vida, emoções, desabafos e o combate na luta armada pode ser lida no site www.pagina13.org.br. Sônia e Cloves, Cloves e Sonia. Dois combatentes da dita-dura militar. Dois lutadores!

50 anos

Dois lutadoresAdriana Miranda e Rosana Ramos

Uma jovem universitária. Um tra-balhador. Origens distintas, uma trajetória e uma luta em comum:

o combate à Ditadura Militar e o sonho da transformação e construção de uma nova sociedade. 50 anos depois do golpe que cul-minou na instalação do regime que matou, torturou, censurou, suprimiu direitos cons-titucionais, reprimiu e levou centenas de pessoas as prisões e ao exílio, dois integran-tes da extinta Ação Libertadora Nacional, a ALN, Sonia Hypólito e Cloves de Castro contam detalhes da vida na luta armada e como veem, hoje, o Brasil.

Passado meio século, Sônia, servidora da Câmara Federal e Clóvis, aposentado e livreiro, tem visão semelhante da democra-cia nos dias atuais.

“A gente tem liberdade de organização. Temos liberdade para discordar. Não existe repressão em relação a isto”, afirma Cloves. “Não vamos nos esquecer que na época da Ditadura Militar, naquele tempo, três pes-soas se encontrando na esquina já era sub-versão”, diz Sonia.

Cloves e Sonia também mostram afini-dade ao avaliarem que embora numa demo-cracia, o Brasil ainda tem muito a avançar. Também fazem críticas a Comissão Nacio-nal da Verdade (CNV), mas são convictos em reconhecer e exaltar a importância do trabalho realizado pelo grupo para o resgate histórico do País.

Eles carregam no olhar o frescor dos de-safios, do bom combate. Sonham e lutam por um Brasil melhor e mais justo e para que os torturadores não fiquem impunes.

“A condenação destes indivíduos ajuda-ria a curar as feridas. A fechá-las, como a Argentina, o Chile e outros países fizeram e têm feito”, afirma Cloves.

“Para fortalecer a nossa democracia e para que isto nunca mais aconteça”, diz Sô-nia quando questionada porque é importan-te passar a história a limpo e punir os que mataram e torturaram durante a ditadura militar.

Ambos se mantém firmes a bandeira do socialismo. São petistas, militantes da Arti-culação de Esquerda e permanecem atentos as lutas populares.

Quando penso o que era aquilo e o que é hoje, penso que é muito bom viver a democracia. É muito bom poder andar, se encontrar com amigos, viver livre, amar. Não vamos nos esquecer que na época da Ditadura Militar, naquele tempo, três pessoas se encontrando na esquina já era subversão

A conjuntura daquele período estava mudando, os trabalhadores rompiam com a estrutura sindical fazendo greve, mesmo ainda estando sob a Ditadura Militar. A luta pela Anistia e a ascensão dos movimentos sociais apontavam que era o momento de termos mais um instrumento de luta

Sonia Hypólito

Cloves de Castro

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Como você entrou na luta armada?Era militante do Partido Comunista do Bra-sil, entrei no final dos anos 50 (em 1961 passou a chamar-se Partido Comunista Brasileiro). Por ocasião do VI Congresso do Partido, a maioria dos diretórios se con-trapôs às teses reformistas da ala Prestes. Ocorreram várias derrotas da ala Prestes em todos os estados. Houve um processo de expulsão de várias lideranças, entre elas o Carlos Marighella. Essa expulsão levou os companheiros ao rompimento. Com a derrota das teses reformistas na maioria dos estados, e prevendo que seriam derrotados, inicia-se um processo de expurgos, com in-tervenção nas direções, expulsão e cassação de delegados legitimamente eleitos. Quem não foi expulso, não recebeu o ponto para participar do Congresso. Isso nos levou a romper com o PCB. Com o rompimento, em São Paulo foi criado o Agrupamento Comunista de São Paulo que posterior-mente veio a chamar-se Ação Libertadora Nacional, a ALN, organização que passei a fazer parte. Tínhamos como objetivo a der-rubada da Ditadura Militar e construir um governo que fizesse avançar as lutas e as transformações sociais, políticas e econô-micas no nosso País.

De quais ações você participou e até quan-do ficou na ALN?A ALN foi fundada no final de 1967. Em-bora tendo uma vida ainda legal, era um comunista conhecido e já começava a ter dificuldades que me levariam mais dia menos dia à prisão. Neste período o papel desempenhado por mim era organizar a infraestrutura. Eu tinha a responsabilidade de arrumar locais para os companheiros se reunirem e responsável também pela propaganda. A partir de 1968 já começo a participar de pequenas ações. Havia uma preocupação no sentido de preservar, ain-da, companheiros que tinham condições de ter uma vida legal. Era funcionário público, trabalhava no Departamento de Obras Pú-blicas do Governo do Estado de São Paulo, tinha uma série de meios para ajudar a orga-

nização. Ainda, no sentido de me preservar, não me colocavam em grandes ações. No entanto, em 1969, quando já estava prestes a cair na clandestinidade, o cerco em tor-no de mim se formou. Tinha três meses de licença-prêmio e mais um de férias. Neste período comecei a me preparar, era o pe-ríodo que tinha planejado cair fora, o que, infelizmente, não deu tempo. Em dezembro de 1969 sou preso. Fico na ALN até o final, que na minha opinião se deu em 1979.

Você sai do presídio depois de dois anos e meio e volta para as ações?Sim. Saí no final de 1971, dois meses de-pois estou reintegrado à ALN. O compa-nheiro que me recebeu deu vários informes sobre a organização, informando que esta-va programado o regresso “dos cubanos” (eram os guerrilheiros que estavam em trei-namento em Cuba); e que seria realizado, com o retorno deles, um congresso no qual faríamos um balanço da organização e tam-bém reveríamos nossa estratégia, que tinha como meta a guerrilha rural. Segundo ele, eu seria convidado a participar. Infelizmen-te a maioria dos companheiros que estavam

retornando foi assassinada, além de sofrer-mos muitas prisões. Companheiros da dire-ção também foram assassinados. Portanto, o congresso não se realizou, a luta armada agonizava, embora continuássemos a resis-tência. Nesse período participo de várias ações armadas.

Após sair do presídio, você volta ao traba-lho também?O estatuto dos funcionários públicos, vi-gente naquele período, dizia que se as penas não ultrapassassem três anos o funcionário poderia reassumir. E foi o que fiz. Apresen-to-me ao Departamento Auxiliar do DOP, que ficava nada mais nada menos que a 800 metros do DOI-Codi. O período em que lá permaneci foi um terror, era acintosamente vigiado, tive várias vezes minhas ligações interrompidas. Nesse período foi aberto um processo administrativo interno. Lembro--me que a esta altura já estava ligado no-vamente à ALN e tinha que redobrar não só a minha segurança como também a da organização. Após alguns meses foi publi-cado no Diário Oficial o ato que me demitia a bem do serviço público, cuja alegação era

50 anos

“A tortura foi implantada neste país há 500 anos”Para o comunista e militante do PT, Cloves de Castro, precisamos é acabar com essa cultura de torturar; e para isto, temos que passar a história a limpo

Cloves de Castro, aposentado e atua como livreiro, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores; integra a tendência petista Articulação de Esquerda

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abandono de emprego (lembrando que no período retratado eu estava preso). Outro argumento era que minha pena foi pouca e, portanto, fui condenado duas vezes.

E a criação de PT, como foi o processo e sua filiação ao partido?A conjuntura daquele período estava mu-dando, os trabalhadores rompiam com a estrutura sindical fazendo greve, mesmo ainda estando sob a Ditadura Militar. A luta pela Anistia e a ascensão dos movimentos sociais apontavam que era o momento de termos mais um instrumento de luta. Co-meça aí a nascer a proposta de um partido de trabalhadores que fosse de massas, de-mocrático e apontasse para o socialismo. Essa proposta começou a ganhar às ruas, sindicatos, igrejas e universidades. Surgia assim um embrião com muita força, sobre-tudo no ABC; e é nesse momento que com-panheiros e companheiras remanescentes das organizações revolucionárias aderem a esse movimento que dá origem, em 1980, ao Partido dos Trabalhadores, que se tor-naria uma alternativa de poder para o país. Enfim, participei desde o princípio deste momento histórico.

50 anos após o golpe militar, como você vê o país? É muito diferente daquela época?É muito diferente em vários aspectos. Pri-meiro, a gente tem liberdade de organização. Temos liberdade para discordar. Não existe repressão em relação a isto. A gente pode

trabalhar com mais tranqüilidade, embora os instrumentos da ditadura se mantenham. Estão todos intactos. Haja vista as grandes manifestações que ocorreram recentemen-te, que são reprimidas praticamente com os mesmos métodos, mas as condições são di-ferentes no sentido de se organizar.

E a juventude? Mudou os sonhos, mudou a forma de se engajar?As bandeiras. A forma de protestar hoje, por exemplo, é pelo passe livre, entre ou-tras. A luta pelo transporte é corretíssima. Não abrange só a juventude, abrange todos e todas, embora eu ache que tenha que ter mais organização. Não podemos cair nes-ta de excluir os partidos políticos porque é isto que um setor da direita quer. É preciso consciência também que sem reforma polí-tica não vai haver mudança.

O fato de não termos passado a ditadura a limpo, dos torturadores estarem soltos, favorece as mesmas práticas de tortura?Sim. É preciso trazer à tona a história. A im-punidade leva muitos a agirem da mesma forma. Há 20 anos participo de palestras em universidades. A juventude quer saber se a tortura existiu ou não. Passei a minimizar essa questão. Digo: a tortura foi implanta-da neste país há 500 anos, quando os por-tugueses aqui chegaram. O que precisamos é acabar com essa cultura de torturar. Para isto, precisamos passar a história a limpo. Não podemos dar a impressão que nada vai

acontecer com essas pessoas. Um posicio-namento firme da sociedade é importante neste sentido. A juventude tem um papel fundamental que é cobrar.

Sobre a Comissão Nacional da Verdade, o que você acha? O que é preciso para o País se reencontrar com a verdade e fe-char as feridas?A Comissão tem limitações. Mas, embo-ra com limitações, a sociedade tem que se mobilizar no sentido de pedir punição aos que torturaram, aos que mataram e aos que colaboraram com a Ditatura Militar. Tem que ter um posicionamento firme. E, aí co-loco o papel desta juventude que saiu às ruas que pode incluir isto em sua pauta também. Em São Paulo, iniciamos um processo de levantamento das empresas que ajudaram a financiar a ditadura e que mantinham um processo de vigilância em cima dos traba-lhadores. A condenação destes indivíduos ajudaria a curar as feridas. A fechá-las, como a Argentina, o Chile e outros países fizeram e têm feito. Mas, para isto, as Forças Arma-das também tem de fazer uma autocrítica do papel que tiveram. Individualmente, alguns estão fazendo, mas no coletivo não.

Quer citar mais alguma coisa?Sim. Glória eterna a todos que tombaram na luta contra a Ditadura Militar. Longa vida aos que continuam na luta pelo socia-lismo. Viva os 34 anos do Partido dos Tra-balhadores.

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Em São Paulo, iniciamos um processo de levantamento das empresas que ajudaram a financiar a ditadura e que mantinham um processo de vigilância em cima dos trabalhadores. A condenação destes indivíduos ajudaria a curar as feridas. A fechá-las, como a Argentina, o Chile e outros países fizeram e têm feito

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Quais as razões que te levaram a lutar contra a Ditadura Militar, a entrar na luta armada? Foi o golpe militar de 64, foi a ditadura militar sanguinária que me levou para a luta armada. Era necessário defender o país e os brasileiros. Era necessário de-fender a liberdade, a paz, a felicidade, o amor, as flores. Eles eram assassinos, fi-zeram uma luta suja, imoral, sem direitos, baseados em mentiras e interesses espú-rios, tanto nacionais quanto norte-ameri-canos. Nossos combatentes eram suma-riamente metralhados nas ruas. O acordo MEC-Usaid era uma afronta contra nossa brasilidade, contra nossos valores, contra nossa história.

Os militares nos impediram de lutar de forma pacífica, pois tudo era contro-lado por eles e seus asseclas. Carros, ôni-bus, prédios, portarias, músicas, músicos, artistas, ruas, cinemas, casa, jornais, rá-dios, TV, partidos políticos, representa-ções de classe. Tudo era manipulado por eles. Não nos deixaram outra alternativa. Nosso lema era: “ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”. Muitos companhei-ros e companheiras foram brutalmen-te assassinados, mas serão eternamente lembrados. São nossos heróis.

Comecei a militar em São Paulo, no movimento estudantil, na rua Maria Antô-nia, estudava no Mackenzie. Depois vim para Brasília e aqui continuei no movi-mento estudantil. Não estava organizada à época. Devagarzinho fui conhecendo pessoas. Devagarzinho fui sendo arregi-mentada para entrar na Ação Libertadora Nacional (ALN). Participei do Congresso da UNE em Ibiúna e fui presa. Depois de solta, não tive mais condições de continuar o curso de Geologia e fui embora de Bra-sília. Voltei para São Paulo, na legalidade. Arrumei um emprego e um quartinho para morar. Passei a ser apoio. Dava suporte na infraestrutura da organização.

E as ações, foram corretas ou as possíveis de serem tomadas diante daquela circuns-tância que o Brasil vivia?É muito difícil para as gerações que não viram nada disto entenderem ou terem a noção do que foi a repressão. Elas não ima-ginam o que foi aquela época. As medidas que a gente tomou eram necessárias na-quele momento. Era a nossa causa. Poucos sabem o que é você se dar por uma causa. Poucos têm a noção de que era puro e ver-dadeiro, era o que a gente queria construir. A gente tinha, inclusive, um despreparo mi-litar muito grande. Aprendi a atirar com o

meu pai que era militar. Depois meus com-panheiros que fizeram curso em Cuba me ensinaram. A gente não tinha muito treina-mento. Politicamente, o que o Marighella (Carlos Marighella, assassinado em uma emboscada, na noite de 4 de novembro de 1969, da qual participaram ao menos 29 agentes da ditadura. O crime ocorreu na Alameda Casa Branca, em São Paulo) de-fendia a gente não conseguiu, que era ga-nhar as massas. Talvez porque a gente não tinha ideia do que era uma ditadura. Não tinha ideia do que é uma lavagem cerebral e do que existia na época no País.

A petista Sonia Hypólito, que atuou na ALN, fala sobre o combate à Ditadura Militar e defende que a Comissão Nacional da Verdade resgate a história, como ensinamento, formação e cultura para as novas gerações

“Não se faz revolução sem enfrentar os inimigos”

SoNIA HYPólIto

Sonia Hypólito, 67 anos, (de blusa preta) foi secretária nacional de Movimentos Populares do PT; é da Direção Nacional da

tendência petista Articulação de Esquerda; servidora na Câmara dos Deputados, assessora a Comissão Parlamentar de Inquérito

que investiga o tráfico de pessoas no Brasil

É muito difícil para as gerações que não viram nada disto entenderem ou terem a noção do que foi a repressão. Elas não imaginam o que foi aquela época. As medidas que a gente tomou eram necessárias naquele momento. Era a nossa causa. Poucos sabem o que é você se dar por uma causa

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Passados 50 anos do Golpe militar como você vê o Brasil?Quando penso o que era aquilo e o que é hoje, penso que é muito bom viver a de-mocracia. É muito bom poder andar, se en-contrar com amigos, viver livre, amar. Não vamos nos esquecer que na época da Dita-dura Militar, naquele tempo, três pessoas se encontrando na esquina já era subversão. Todo mundo ia preso. Quem diz que isto aqui não é uma democracia, não tem a mí-nima ideia do que é democracia e do que é a ditadura. Nenhuma democracia é perfeita. Tem milhares de contradições, inclusive, porque a gente vive numa democracia bur-guesa que nunca vai ser uma democracia de fato. Tenho noção disto. Temos liberdade de organização, de agir, de comunicação, não é uma democracia perfeita, mas o que vivemos hoje é o paraíso comparado à re-pressão, à Ditadura Militar.

O que acha da impunidade aos tortura-dores?Isso é uma tragédia. Não dá para aceitar. Não aceitamos. Não reconhecemos que foram anistiados. Teve um problema sério na Lei da Anistia. Queremos a revisão da lei. Nós já pagamos, fomos presos, mortos, torturados e eles continuam andando por aí, nada para eles. Continuam se dando muito bem. O governo do Lula foi um zero à es-querda neste ponto. A Dilma deu continui-dade ao governo, é obrigada também a fazer alianças e acordos com quase todo mundo, porque tem compromissos a cumprir e tem que zelar pela estabilidade do governo. Quando se fala em mudança cultural, eco-nômica e social do país, tem que criar as condições para forjar as pessoas com novos valores. Isto é história e é preciso criar no-vos valores é revolver a história. Não pode enfiar nada debaixo do tapete.

Como você vê a Comissão Nacional da Verdade? Pode sair da comissão alguma proposta concreta para acabar com a im-punidade?Não acredito, de jeito nenhum. Reconhe-ço a Comissão e acho importante. Ela está resgatando a história, dando cidadania a muitos ex-torturados, ex-presos políticos que têm dificuldades em se inserir e se li-vrar das marcas fortes do passado. O Es-tado está pedindo perdão. Tem uma sim-bologia grande. Mas a sociedade como um todo não acompanha. Poderia ser feito de um jeito que tivesse maior visibilidade. O

mais importante não é resgatar conosco in-dividualmente. O mais importante, e que é tarefa de todo mundo e deveria ser da Co-missão também, é resgatar a história, como ensinamento, formação e cultura das novas pessoas. Sou daquelas que acreditam nos homens e mulheres novos; e para forjar o homem novo você tem que mexer nos va-lores e deixar algumas pessoas, pelo menos contrariadas, para encaminhar as coisas.

Revirar a história seria importante para que?Para fortalecer a nossa democracia e para que isto nunca mais aconteça. Nosso lema é: esquecer nunca e não perdoar porque não tem perdão. Por que não vão atrás dos grandes financiadores da repressão? Por que não vão atrás da história e não escara-funcham o que foi o Grupo Permanente de Mobilização Industrial? Os milicos sem dinheiro não iam fazer o que fizeram. São coisas de fundo que mostram que a Dita-dura Militar não foi só um golpe militar, não foi só meia dúzia de milicos fanáticos que fizeram isto. Eles tinham o sustento político, econômico e ideológico dos ban-queiros, dos empresários e da minoria da sociedade. Não me incluo no grupo que é contra a Comissão, acho importante o que o grupo está fazendo, mas é insuficien-te. Não sou daquelas que acham que dá para fazer tudo agora, mas acho que tem que cutucar - não de forma irresponsável - mas que tem que forçar e sempre estar com o pé na porta. Não podemos nos con-tentar com apenas um pedido de perdão.

Até que ponto a impunidade dos milita-res e todos os agentes que ajudaram ou atuaram diretamente na Ditadura Militar influencia as constantes violações que te-mos em nosso país aos direitos humanos? Denúncias de torturas são frequentes em presídios ou contra jovens pobres, ne-gros e LGBTs, em especial praticadas por agentes públicos de segurança que deve-riam proteger a população?A tortura virou método de interrogatório. No Brasil inteiro se tortura muito com os mesmos métodos que eram usados contra nós. Cadeira de dragão, choque e afoga-mentos existem em cadeias e presídios por aí a fora. Às vezes são métodos até mais violentos. Precisa fazer um trabalho muito forte educacional na população e nas polí-cias para ensinar que estes não são métodos adequados para fazer interrogatório. Que tortura não é um método. Em minha opi-nião, o problema é a militarização da se-gurança. Desmilitarizar é fundamental. O treinamento que é dado para os agentes de segurança é na linha de que bandido bom é bandido morto. Acham que deve ser na porrada, inclusive a Polícia Federal.

Para concluir, quero saber se pudesse vol-tar no tempo, faria alguma coisa diferente do que fez há 50 anos?Não. Faria tudo de novo. Absolutamente, tudo de novo! Sou feliz. Acho que contri-bui um pouquinho!

Documento de identidade de Sonia em Moçambique

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superar a covardia institucional

Coube ao Ministério Público Federal (MPF), por meio de um grupo de procuradores, protagonizar o acon-

tecimento mais importante da luta pela condenação dos agentes da Ditadura Mili-tar nos últimos anos. Em fevereiro de 2014, ao impetrar uma ação penal contra gene-rais e outros oficiais fortemente suspeitos de envolvimento no atentado ao Riocentro (1981), esses procuradores deram uma de-monstração de coragem, de integridade e de respeito aos direitos humanos que faz muita falta em outros setores da institucio-nalidade no Brasil. Mas o principal nesse gesto é que ele ataca diretamente o centro nervoso do que foi a política de Terrorismo de Estado iniciada em 1964 e radicalizada em 1968.

O atentado de 1981 no Riocentro, no Rio de Janeiro, tinha como alvo imediato um show musical de 1o de maio que teve a presença de Chico Buarque, Gonzagui-nha e muitos outros músicos. A trama cri-minosa foi organizada por oficiais do Des-tacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exército (hoje denomi-nado Comando Militar do Sudeste), no Rio de Janeiro, ao que tudo indica com apoio em outros órgãos de repressão, inclusive em Brasília.

O atentado, que consistiria na detona-ção de bombas de alto teor explosivo no palco e em outros pontos da casa de es-petáculos, pretendia frustrar e reverter a tímida política de abertura política do go-verno do general Figueiredo: sua autoria seria atribuída a organizações de esquerda. A explosão acidental de uma das bombas matou um sargento e feriu gravemente um capitão, ambos implicados na conspiração, e frustrou o atentado.

Desse modo, foi um desastre para a extrema-direita militar que o planejou. Mas poderia ter sido uma imensa tragédia envolvendo centenas de mortos, entre os quais os artistas que lá se apresentavam

porque opunham-se à Ditadura e enten-diam a importância política de participar de uma atividade do “Dia do Trabalhador” em pleno regime militar. O plano terrorista era particularmente cruel: as saídas de emer-gência foram trancadas e o policiamento retirado. Esperava-se que o caos resultante das explosões gerasse mais mortes.

Podemos considerá-lo um crime de Es-tado, na medida em que o governo recusou--se a punir seus responsáveis, preferindo recompor-se com o setor da extrema-di-reita militar e participar da montagem de uma farsa. Um “inquérito policial-militar” (IPM) foi aberto pelo Exército e chegou à conclusão de que os militares atingidos na explosão do Riocentro foram vítimas de um atentado da organização VAR-Palmares, extinta havia tempo! Nos anos posteriores, o capitão Wilson Machado, do DOI-CO-DI, um dos autores materiais do ataque a bombas (e que sobrevivera com as vísceras expostas), seria promovido normalmente e chegaria à patente de coronel.

O general Golbery, ministro de Figueire-do, renunciou em protesto contra o acoberta-mento do caso. Terminado o período ditato-rial, os governos subsequentes “esqueceram--se” de reabrir as investigações. Ao reavivar o caso, assim, o MPF reacende o debate em torno da necessidade de punição dos agentes da Ditadura e da revisão da Lei da Anistia. Os conspiradores que pretendiam explodir o Riocentro eram os mesmos que praticaram inúmeros outros crimes de sangue. O DOI--CODI do I Exército foi um dos principais centros de tortura do Brasil. Nas mãos de seus carrascos foram assassinados diversos militantes das organizações de esquerda — como Lincoln Bicalho Roque, David Ca-pistrano, Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva, Armando Fructuoso e tantos outros — e de-mocratas sem participação nos grupos clan-destinos, como Rubens Paiva.

Do ponto de vista jurídico, nem mesmo a sórdida decisão do STF de garantir a im-punidade dos torturadores a serviço da Di-tadura, tomada em 2010, poderia ser aplica-

Pedro Pomar*

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Ação corajosa do Ministério Público Federal contra autores do atentado ao Riocentro faz lembrar que, para acabar com a impunidade, é preciso rever Lei da Anistia e reorientar atuação da Comissão Nacional da Verdade

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da ao caso do Riocentro. Isso porque a Lei de Anistia — cuja interpretação abjeta por parte de Eros Grau, Cezar Peluso, Gilmar Mendes e outros ministros do Supremo re-sultou naquela decisão (em resposta a uma ação da OAB) — é de 1979 e portanto não tem efeitos para um acontecimento que lhe é posterior.

De qualquer modo, este processo cer-tamente vai reforçar e trazer uma nova chance para que os movimentos e grupos que lutam por memória, verdade e justiça reponham na agenda política as questões da revisão da Lei da Anistia; punição de torturadores e cúmplices; reorientação e fortalecimento da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Por outro lado, ele coloca-rá à prova, uma vez mais, a institucionali-dade brasileira. Qual será o comportamento das diferentes instâncias do Poder Judiciá-rio, que na maioria dos casos têm protegi-do os criminosos de farda? O Ministério da Defesa vai colaborar com a apuração?

Anistia para algozes?

A revisão ou reinterpretação da Lei da Anistia, no tocante aos chamados “cri-mes conexos”, se faz necessária para que possam ser processados e condenados os agentes da Ditadura Militar que praticaram atrocidades e violações de direitos huma-nos. O texto aprovado por escassa maioria no Congresso em 1979 (e ainda graças aos votos de alguns senadores “biônicos”, no-meados pelo governo) introduziu na lei a bizarra alusão aos praticantes de “crimes conexos aos crimes políticos”, precisa-mente com a finalidade de preservar os militares envolvidos em tortura, sequestro, assassinato e outros crimes políticos prati-cados contra os opositores do regime.

Os ministros do STF agarraram-se à mentirosa alegação de que a lei representou um “acordo político” firmado entre a Dita-dura e as oposições (o qual supostamente pretendia obter a “conciliação nacional”) e, desse modo, rejeitaram a Ação por Descum-primento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pela OAB, tentando bloquear os processos judiciais contra os autores mate-riais e intelectuais da barbárie operada pelos centros de tortura.

O governo poderia alterar esse estado de coisas? Poderia, tomando a iniciativa de propor ao Congresso a revisão da Lei da Anistia. Não só “poderia”. Na verdade, o governo brasileiro foi literalmente condena-

do a tomar essa e outras medidas de acerto de contas com a Ditadura Militar. A inicia-tiva de condenar o governo brasileiro não foi de nenhuma ong ou instituição ligada à esquerda. Foi tomada pela Corte Interame-ricana de Direitos Humanos (CIDH, perten-cente à Organização dos Estados America-nos, OEA), à qual o Brasil deve responder, pois é signatário de tratados internacionais em vigor nos quais assume tal compro-misso. Tanto isso é verdade que o governo brasileiro fez campanha para o ex-ministro Paulo Vannuchi e o elegeu, em 2013, mem-bro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, à qual está vinculada a CIDH. Portanto, reconhece o sistema e os acordos. Por que não os cumpre, então?

Pois bem: a CIDH declarou, em 2010, em ação impetrada por familiares de guerrilhei-ros assassinados pelas FFAA no Araguaia, que é nula qualquer legislação que proteja torturadores e que tenha sido elaborada pelo regime político autor das atrocidades que são objeto de tal legislação. Determinou ao governo brasileiro, expressamente, que tome medidas para punir os torturadores. Diante disso, que fez o governo brasileiro? Em vez de imediatamente cumprir as determinações da CIDH, decidiu “mostrar serviço”, para dar uma satisfação à Corte sem ter de en-frentar a zanga dos chefes militares. Criou a CNV. Mas uma pequena, frágil CNV, desti-nada a remover o foco sobre a Anistia.

A Lei 12.528/2011, que cria a CNV, destaca a promoção da “reconciliação na-cional” como uma de suas finalidades. Na solenidade de posse da comissão, a ideia da reconciliação foi materializada por Dilma ao convidar os ex-presidentes Collor (ape-sar do impeachment que sofreu) e Sarney (ambos cúmplices e beneficiários da Dita-dura), FHC e Lula (ambos vítimas da Di-tadura). Faltou combinar com os militares. Eles não querem se reconciliar com suas vítimas, de modo algum.

Já na tramitação do projeto de lei, os fa-miliares das vítimas, os ex-presos políticos e os grupos de direitos humanos (setores que não foram recebidos ou ouvidos pelo governo em momento algum) protestaram contra o formato da CNV: apenas sete mem-bros, apenas dois anos para trabalhar, sem autonomia orçamentária e vinculada à Casa Civil da Presidência da República (portanto vulnerável a pressões). Em momento al-gum o texto da lei faz referência à Ditadura Militar (o veto dos militares foi acatado por Dilma), mas à genérica expressão “graves violações de direitos humanos”, o que ex-plica também o absurdo intervalo que deve ser coberto pelas investigações, segundo a lei: 42 anos! É que, para escamotear o pe-ríodo em que as FFAA exerceram o poder (1964-1984), os generais exigiram uma fai-xa mais ampla de tempo, ou seja, de 1946 a 1988!

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comendações finais ao governo brasileiro, que constarão do relatório da CNV.

O CPMVJ preparou e entregou ao en-tão coordenador da comissão, Pedro Dalla-ri (a coordenação é exercida em sistema de rodízio), em reunião realizada em janeiro de 2014, um robusto documento em que elenca propostas de recomendações, tais como o acatamento à sentença da CIDH e consequente revisão da Lei da Anistia; a abertura imediata de todos os arquivos em poder das FFAA; a revogação da Lei de Se-gurança Nacional e de toda a legislação re-manescente do regime; a desmilitarização das Polícias Militares; a extinção da Justiça Militar etc. Espera-se que a CNV encampe boa parte dessas recomendações em seu re-latório final, uma vez que Dallari mostrou concordância com elas.

Por meio da Medida Provisória 632/13, Dilma prorrogou os trabalhos da CNV por sete meses, até 16 de dezembro de 2014. A prorrogação era mesmo reivindicada pelo movimento por memória, verdade e justi-ça, mas por um ano. Veremos, até lá, se a CNV continuará errática, ou se aproveitará a extensão do prazo para reorientar suas ati-vidades, dando prioridade às oitivas públi-cas de agentes militares dos DOI-CODI, à questão dos desaparecidos e a casos exem-plares como o atentado ao Riocentro.

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Tucanos na CNV

Anunciados os nomes que a compo-riam, ficou evidente o perfil juridicista e moderado que norteou a escolha. Dos sete nomeados, cinco pertencem à esfera do Direito: Gilson Dipp (membro do Su-perior Tribunal de Justiça, STJ), Cláudio Fonteles, José Carlos Dias, José Paulo Ca-valcanti Filho, Rosa Cardoso (advogados ou procuradores). Paulo Sérgio Pinheiro, pesquisador acadêmico e diplomata, e Rita Maria Kehl, psicanalista e escritora, com-pletavam o grupo. Dois foram claramente indicados pelo PSDB (que teve um de seus expoentes, o senador Aloysio Nunes Fer-reira, escolhido pelo governo para relatar o projeto de lei da CNV no Senado!): Dias e Pinheiro, ambos ex-ministros de FCH.

Fonteles, ex-procurador geral da Re-pública, revelou-se uma boa surpresa. A atuação de Rosa situou-se bem acima da média, por sua integridade e firme dedica-ção à causa dos familiares. Porém, de um modo geral, a CNV vem confirmando os prognósticos pessimistas. O baixo grau de engajamento efetivo dos comissários no trabalho da CNV, por exemplo, é um sin-toma preocupante.

Dipp adoeceu, mas jamais foi substitui-do por Dilma. Fonteles, que renunciou por graves divergências internas na comissão (ele e Rosa chegaram a ser hostilizados pe-

los demais), foi substituído pelo advogado Pedro Dallari. Pinheiro, sempre dúbio nas suas declarações sobre a Lei da Anistia, gasta mais tempo e energia com a missão da ONU de apuração de atrocidades na Sí-ria (da qual recusou-se a se desligar), do que com os trabalhos da CNV. Cavalcan-ti Filho é o mais ausente dos comissários, mas aprecia fazer declarações contra a revi-são da Lei da Anistia.

Assim, o trabalho dos assessores, mui-tos deles efetivamente qualificados, susten-ta boa parte do trabalho da comissão. Mas esses assessores têm seus salários pagos pelas Nações Unidas (PNUD), o que dá uma boa medida do papel secundário que o governo atribui à CNV, apesar das sole-nidades e cerimônias, como as homenagens a Jango.

Outra preocupação dos familiares, mais grave, é com o próprio rumo dos trabalhos da CNV. Acredita-se que o relatório final não trará novidades substanciais, tendo em vista o que se apurou até agora. Por exem-plo, no que diz respeito aos desaparecidos políticos da Ditadura, a comissão tem a apresentar até o momento dados novos so-bre menos de uma dezena dos casos, isto é, menos de 10% do total de 144. Diante dessa constatação, o Comitê Paulista por Memória, Verdade e Justiça (CPMVJ), um dos grupos que fazem pressão sobre o go-verno, decidiu concentrar esforços nas re- *Pedro Pomar é jornalista

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Quem vivenciou a realidade da educa-ção brasileira que antecedeu a esse perío-do de ditadura, entende bem que essa foi uma construção ideológica, pois o reco-nhecimento social no tocante à qualidade educacional estava, no momento histórico imediatamente anterior, relacionado di-retamente ao espaço da escola pública. É durante a ditadura que assistiremos a uma planejada inversão desse valor.

Essa inversão será construída, sistema-ticamente, através de uma política que, ao mesmo tempo em que procurava atender à grande pressão demográfica por mais esco-las, promoveu o esvaziamento financeiro para fins de financiamento dessa política pública.

Herdamos desse período a falsa ideia de que a qualidade do ensino está inexoravel-mente associada ao privado e afastada do público. Passamos a aceitar com uma certa naturalidade a tese de que o ensino ofereci-do pela escola privada é incontestavelmen-te melhor do que aquele que a escola públi-ca oferece, e isso tem sido utilizado como justificativa para que os recursos públicos continuem sendo utilizados para financiar o funcionamento da educação privada.

A naturalização dessa inversão constru-ída, além de tentar não deixar espaço para a sua contestação, visto que tenta se impor

Heranças malditasIran Barbosa*

Antes que tudo, é preciso considerar que toda ditadura deseduca. Isto, é óbvio, se partimos da premissa

de que a Educação é um instrumento que deve ser acionado a serviço dos avanços dos padrões civilizatórios que fomos insti-tuindo ao longo da nossa caminhada sobre este planeta e da conquista das aspirações humanísticas mais elevadas que temos para nossas vidas e para as gerações às quais le-garemos este mundo. Tomada desta forma, em qualquer cenário ditatorial, a Educação e o processo formal de sua efetivação esco-lar sempre perdem.

No caso brasileiro, quando abordamos os impactos da(s) ditadura(s) sobre as nos-sas vidas pessoais, sobre a nossa sociedade e sobre o funcionamento do Estado Nacio-nal, é importante lembrar que as experiên-cias democráticas em nosso país configu-ram-se como exceção e não como regra. Numa abordagem rigorosa e realista, foram curtíssimos os períodos da nossa história que podemos caracterizar como fomenta-dores de experiências democráticas.

Isto nos leva a inferir que o que tem se consolidado historicamente no Brasil, na verdade, mais do que episódicos ensaios di-tatoriais, é uma “cultura da ditadura”; e isto tem produzido reflexos devastadores sobre a nossa Educação e sobre o ensino.

Se tomarmos apenas a última experiên-cia ditatorial brasileira, podemos afirmar que muito das mazelas que temos que enfrentar atualmente na estrutura e no funcionamento do ensino brasileiro teve sua gênese no perí-odo do arbítrio vivido nestas terras entre os anos de 1964 e 1985, incluídos aí os seus an-tecedentes e os seus desdobramentos.

Sem a pretensão de esgotar uma análise tão complexa como esta, é preciso estabe-lecer relações entre as “heranças malditas” do Golpe de 64 e o desmantelo que viven-ciamos no ensino brasileiro.

Inicialmente, temos que dizer que a di-tadura rompeu com qualquer perspectiva que estava em andamento de se conside-rar a Educação como direito universal que deve ser assegurado pelo Estado.

Por isso tratou de reprimir, logo de saída, iniciativas que se constituíam como experi-ências bem sucedidas e libertadoras de ensi-

no. Para ficar em um único e emblemático caso, destaque-se a violenta perseguição fei-ta a Paulo Freire e à Pedagogia Libertadora, através do que se buscou frear o intenso de-bate que estava em andamento sobre a im-portância e o papel central que tem a escola pública na efetivação dos princípios de uni-versalidade e gratuidade do ensino.

Ainda hoje somos impactados pela dis-puta de uma concepção de Educação como direito, mesmo que o texto constitucional, forjado no alvorecer da “redemocratiza-ção”, afirme isto como princípio. Prova disso é que sentimos um crescente fortale-cimento da visão mercadológica do ensino, quer seja no discurso da grande mídia; nas iniciativas oficiais que transferem recur-sos públicos para a iniciativa privada ou, ainda, nas disputas ora em andamento no Congresso Nacional no que tange à apro-vação do tão esperado Plano Nacional de Educação.

Este problema inicial, qual seja, a falta de reconhecimento da Educação como Di-reito, está vinculado a um discurso justifi-cador fortalecido nos “porões” da ditadura, que merece ser destacado como um segun-do ponto. Trata-se da construção ideológica da naturalização da superioridade da quali-dade do ensino privado sobre o ensino ofe-recido pela escola pública.

Os impactos da Ditadura no ensino brasileiro

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como natural, como algo dado; não leva em consideração que a qualidade do ensino não é o resultado, apenas, do espaço em que ele ocorre. Ela é fruto de um conjunto de coisas que envolvem o modelo de sociedade que temos; os programas de governo implanta-dos, especialmente no campo educacional; a realidade socioeconômica dos alunos que frequentam as escolas; as condições de tra-balho docente e o montante de recursos que financia o funcionamento da escola, entre tantos outros.

Ademais, é necessário que se diga que, associado a esse processo de construção de um parâmetro de qualidade que foi delibe-radamente vinculado à oferta da educação pelo setor privado, a ditadura promoveu um rebaixamento do próprio conceito de qualidade do ensino, o que foi provocado, principalmente, pela cultura do controle do que se pode ensinar e pela larga utilização do modelo tecnicista em Educação.

Outro aspecto é que, em um cenário em que somos constantemente desafiados a refletir sobre o nível de agressão (interna e externa) que atinge as escolas, é preciso também que se chame atenção para o fato de que tivemos como herança dessa ditadu-ra, ainda, um distanciamento do espaço em que se efetiva o ensino público em relação à sociedade.

A necessidade de interditar a reflexão sobre a realidade social fez com que os mantenedores da ditadura no Brasil pro-movessem um afastamento dos centros de formação, de socialização do saber e de produção do conhecimento da própria sociedade.

Isto provocou um “estranhamento” en-tre a escola e a sociedade. Há analistas e pesquisas que identificam que o nível de agressão externa que as escolas enfrentam, aumenta ou diminui na proporção em que se encontrem mais fechada ou mais aberta, respectivamente, para o seu entorno.

Não é difícil perceber que a violência interna que atinge a escola, além de ser um reflexo da violência presente no ma-cro espaço social no qual a escola se in-sere, é, também, uma herança perversa da ditadura, que foi a grande estimuladora, legitimadora e legalizadora da cultura da violência e da repressão entre nós.

Entender isso é fundamental para que entendamos porque ainda é tão difícil ter-mos uma escola que trate o ensino na pers-pectiva dos Direitos Humanos; que priori-ze uma formação voltada para o respeito à alteridade e à diferença; que estimule valores como solidariedade e justiça, em lugar de justificar a competitividade e a exclusão.

Como se vê, não são poucos os im-pactos devastadores do arbítrio sobre o ensino e a educação brasileira. Entender essas relações tem que ser um desafio que nos motive permanentemente, especial-mente porque precisamos lembrar que o processo de “ruptura gradativa” com a ditadura que ocorreu no Brasil, não per-mitiu a superação efetiva e definitiva dos marcos sustentadores do modelo autoritá-rio de Estado. Eles ainda estão presentes em nossas vidas, emperrando os avanços civilizatórios pelos quais muitos de nós lutamos. Sim... Muitos de nós... Porque alguns ainda teimam em acreditar que a ditadura é o caminho para resolver os problemas que enfrentamos. É para enfra-quecê-los e nos fortalecer que precisamos lembrar, refletir e estabelecer relações de causalidade entre o que foi engendrado na ditadura e aquilo que ainda estamos sendo desafiados a resolver.

O nosso caminho tem que ser o da li-berdade, o do compromisso social, o da participação popular, o do controle social e o da busca da felicidade. O caminho da ditadura, embora tenha servido a poucos, nunca nos serviu como projeto coletivo.

*Iran Barbosa é Professor de Educação Básica e Vereador no Município de Aracaju.

Herdamos desse período a falsa ideia de que a qualidade do ensino está inexoravelmente associada ao privado e afastada do público. Passamos a aceitar a tese de que a escola privada é melhor que a escola pública, e isso tem sido utilizado como justificativa para que os recursos públicos sejam utilizados para financiar a educação privada

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nos quartéis, tudo como dantesPedro Pomar*

Se quisermos examinar com certa pro-fundidade os legados institucionais, políticos e ideológicos da Ditadura

Militar (1964-1984), um início proveitoso é buscar compreender os estragos por ela provocados na sociedade brasileira. Os nú-meros podem nos ajudar nesta tarefa. O jor-nalista Luiz Cláudio Cunha, que desvendou crimes cometidos no Brasil pela infame “Operação Condor” (articulação das dita-duras militares da América do Sul, destina-da a localizar, capturar e executar oposito-res), citou num artigo recente -- “Por que os generais não imitam a Rede Globo” (publi-cado na revista Brasileiros)--, estatísticas que impressionam. Vamos a elas.

Foram 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos apenas entre março e agosto de 1964; “11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, 5 mil deles condenados, 1.792 dos quais por ‘crimes políticos’ cataloga-dos na Lei de Segurança Nacional”; 10 mil torturados nos Destacamentos de Opera-ções de Informações, conhecidos pela sigla DOI-CODI; 10 mil brasileiros exilados; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, “de presidentes a go-vernadores, de senadores a deputados fede-rais e estaduais, de prefeitos a vereadores”; 1.148 funcionários públicos aposentados

ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estu-dantes expulsos das universidades pelo De-creto 477, que proibia associação e mani-festação; 128 brasileiros e dois estrangeiros banidos; quatro condenados à morte (sen-tenças depois comutadas para prisão per-pétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 6 mil apelações ao Supe-rior Tribunal Militar (STM), que manteve as condenações em 2 mil casos; 49 juízes expurgados; três ministros do Supremo Tri-bunal Federal (STF) afastados; fechamento do Congresso Nacional por três vezes; sete assembleias estaduais postas em recesso; “censura prévia à imprensa, à cultura e às

Ditadura deixou legados institucionais e políticos que continuam bem vivos no cotidiano dos brasileiros

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artes”; 400 mortos pela repressão (entre os quais, acrescento, diversos ex-deputados federais e pelo menos um ex-deputado esta-dual), dos quais 144 desaparecidos até hoje.

Note-se que estas cifras não incluem as vítimas do genocídio dos povos indígenas, estimadas modestamente em 3 mil mortes apenas entre os waimiri-atroari, nem as centenas de lideranças camponesas assassi-nadas após o golpe militar, conforme apu-rou a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Nem detalham os danos provocados às universidades e demais instituições públicas de ensino por meio da aposentadoria forçada ou do exí-lio de dezenas de professores da estirpe de Florestan Fernandes ou Luiz Hildebrando Soares (para ficarmos em dois exemplos apenas). Mesmo assim, dão uma ideia clara do que representou o Terrorismo de Estado implantado pelas Forças Armadas (FFAA) no Brasil em 1964.

O que chamamos de legados da Dita-dura Militar são as numerosas, duradouras “heranças” que o regime dos generais dei-xou ou transmitiu às instituições políticas brasileiras, nas estruturas do Estado (nos poderes executivo, judiciário e legislativo), na legislação e até na cultura, por meio de ideologias, costumes e da vasta influência do sistema nacional de mídia nascido na-quele período, fortemente liderado pelas Organizações Globo.

Lei de Segurança Nacional?!

Não deixa de ser surpreendente que, três décadas depois do final do último governo militar, a Lei de Segurança Nacional ainda permaneça em vigor, servindo para enqua-drar manifestantes em protestos recentes. Como explicar que essa legislação não te-nha sido revogada até os dias de hoje?

Igualmente surpreendente é saber que a Justiça Militar, um esdrúxulo ramo do po-der judiciário cuja principal finalidade era julgar e condenar os ativistas políticos que faziam oposição ao regime militar (armada ou não), cabendo-lhe também se pronun-ciar sobre crimes e transgressões discipli-nares cometidas por militares, sobreviva até os dias de hoje. Pior: ela ainda se considera no direito de processar civis como Roberto Monte, um conhecido defensor dos direitos humanos no Rio Grande do Norte. E mos-tra-se disposta a julgar os civis eventual-mente detidos por forças militares durante a Copa do Mundo!

Mas o mais terrível legado da Ditadura Militar no campo institucional são as Po-lícias Militares por ela criadas na década de 1970. Comandadas pelos governos es-taduais, as PMs deram e continuam dan-do continuidade ao Terrorismo de Estado ― sobretudo, na atualidade, em São Pau-lo, no Rio de Janeiro e em alguns outros Estados da federação. Embora o façam à revelia da União, ou seja, do governo federal, este não mostra efetivo incômo-do ou preocupação diante das frequentes chacinas de populares em bairros periféri-cos, executadas por grupos de extermínio formados por policiais militares. Muitas dessas vítimas fatais são escolhidas alea-toriamente. O fato de que as PMs são as forças policiais que mais matam no mundo inteiro não consta da agenda do governo Dilma, como não esteve na pauta de Lula.

Como falar-se em “democracia” quan-do ela só funciona da classe média para cima? Quando protestos populares são reprimidos a ferro e fogo? Quando a PM tem licença para humilhar, prender, tortu-rar e matar? A transição suave do regime militar para a democracia liberal clássica, em 1985, preservou uma correlação de forças extremamente favorável às classes dominantes e à manutenção dos aparatos estatais policiais repressivos e punitivos, bem como à reprodução da mentalidade antidemocrática.

Não custa lembrar que em 1988, no go-verno Sarney, sob o comando do general Leônidas Pires, ministro do Exército (e ex-chefe do DOI-CODI do Rio de Janei-ro), tropas de infantaria assassinaram, a golpes de baioneta, três operários da CSN em Volta Redonda. Em 1995 outra greve, a da Petrobras, foi reprimida pelo governo FHC com o uso dos tanques do Exército.

A chegada do bloco democrático--popular à Presidência da República em 2003, com a vitória de Lula, oxigenou cer-tas estruturas, mas manteve intocados os aparatos repressivos e a legislação corres-pondente. A antiga proposta do PT de ex-tinguir a PM, unificando-a com a Polícia Civil, foi posta de lado e esquecida. Quan-to às FFAA, foram deixadas à vontade e até estimuladas, por setores do governo, a continuar enxergando a população e os movimentos sociais como “inimigo inter-no”. Os oficiais-generais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ainda imaginam as FFAA como tutoras da chamada socie-dade civil.

Rebeldia e insolência

Os governos Lula e Dilma bem po-deriam haver pautado a democratização das FFAA, a começar por uma revisão e retificação dos conteúdos oferecidos pelas escolas militares; a abertura dos arquivos secretos das três forças; a revisão da Lei da Anistia, com a punição dos oficiais e subalternos que cometeram gravíssimos crimes: torturas, assassinatos, estupros, se-questros, desaparecimentos. “Só que não”.

Ao invés disso, optaram por engajar as FFAA no Haiti; dar-lhes a incumbência de reprimir a criminalidade nas favelas e bairros periféricos do Brasil; envolvê-las na repressão aos protestos contra o leilão de Libra, bem como na coordenação das medidas de segurança e repressão a pro-testos que vierem a ocorrer durante a Copa do Mundo.

Não bastando tudo isso, recorde-se que em 2007 o ministro Paulo Bernardo nego-ciou o fim da greve dos controladores de vôo militares em troca da garantia de que não haveria punições. Mas, encerrada a greve, o comando da Aeronáutica iniciou uma implacável perseguição aos líderes do movimento. Mais de 100 controladores de vôo militares, sargentos na sua maioria, foram presos, expulsos da corporação ou afastados para distantes localidades.

Em síntese: o governo federal recusou--se a enquadrar os chefes militares. Ao contrário: só emitiu sinais amistosos, libe-rando as FFAA para agir como bem enten-dessem naquilo que elas julgam ser da sua alçada, até mesmo quando se tratava de algo que claramente não deveria ser, como é o caso do controle do tráfego aéreo civil. Os generais, então, quiseram mais. Deci-diram defender a todo custo a memória da Ditadura Militar e a impunidade dos tortu-radores. Para tanto, tão logo foi divulgado o Programa Nacional de Direitos Huma-nos (PNDH-3), em 2009, os comandantes das FFAA não hesitaram em amotinar-se contra o presidente Lula, apoiando o mi-nistro da Defesa, Nelson Jobim, que ame-açava demitir-se.

Lula não demitiu Jobim nem os co-mandantes. Preferiu mutilar o PNDH-3, retirando do programa todos os itens que a “Sagrada Aliança” — generais, ruralistas, igrejas, mídia hegemônica — vinha ata-cando, tais como a realização de audiências públicas antes de reintegrações de posse de áreas rurais em disputa; direito ao aborto;

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referências explícitas à Ditadura Militar nas medidas relativas a memória, verdade e justiça.

Os sargentos rebeldes do controle de vôo, que entraram em greve para preservar a vida dos passageiros da aviação civil, fo-ram exemplarmente punidos. Os generais rebeldes não. Pior ainda: quando assumiu a Presidência, em 2011, Dilma Roussef manteve o general Enzo Martins Peri, o almirante Júlio Soares de Moura Neto e o brigadeiro Juniti Saito nos seus postos de comando. A insolência foi premiada.

Provocações

Os generais e coronéis continuaram sua escalada de provocações e de desafios ao poder civil (?). Um rápido resumo de al-guns episódios:

1) Em novembro de 2011, na cerimônia de sanção, por Dilma Rousseff, do projeto de lei que criou a Comissão Nacional da Verda-de (CNV), a professora Vera Paiva, filha de Rubens Paiva (ex-deputado federal assassi-nado pelo Exército em 1971), que faria um discurso em nome dos familiares das vítimas da Ditadura Militar, foi proibida de falar por pressão dos chefes militares. (Não houve qualquer punição em razão do episódio.)

2) Generais da ativa e da reserva (estes também sujeitos às normas disciplinares) têm feito pronunciamentos contrários à

atividade da CNV e a decisões do governo (como as homenagens ao falecido presiden-te João Goulart). O general de brigada da reserva Álvaro Pinheiro, que prestou depoi-mento oficial a assessores da CNV em no-vembro de 2013, insultou nas suas declara-ções a própria CNV e o governo (e chamou de “canalhas” os opositores da Ditadura Militar). Pinheiro, que atuou no combate à Guerrilha do Araguaia, se fez acompanhar por oficiais do Exército da ativa. O que ha-via ocorrido também, meses antes, por oca-sião da oitiva pública do coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra na CNV. (Não houve qualquer punição em razão desses episódios.)

3) No início de 2013, o ministro da Defesa, Celso Amorim, resolveu visitar o Centro de Informações do Exército (CIE). “Convidado para um evento interno do ser-viço secreto, Amorim chegou acompanhado de alguns assessores civis de seu staff. A co-mitiva foi barrada na entrada do prédio, por um general que entrou de coturno no tema: ‘Aqui não entra civil. Só ministro’. E Amo-rim, sem um ai, teve de se livrar de seus assessores para adentrar o recinto da sigla que marcou o período mais trevoso da dita-dura”. (O relato é de Luiz Cláudio Cunha. O general em questão não foi punido.)

A Ditadura Militar continua viva nas FFAA. Em dezembro de 2013, o Ministério da Defesa lançou a portaria 3.461, denomi-

nada “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO), sobre o envolvimento das FFAA em ações de segurança na Copa do Mundo. A portaria prevê, em um dos seus anexos, um “esque-ma de acionamento do emprego de meios federais em operações de GLO na hipótese de esgotamento de todos os instrumentos destinados à preservação da ordem públi-ca”. Entre as possíveis “forças oponentes”, ela inclui “movimentos ou organizações”, bem como “pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmen-tos autônomos ou infiltrados em movimen-tos, entidades, instituições, organizações”, “provocando ou instigando ações radicais e violentas”.

Como exemplos de situações a se-rem enfrentadas durante uma operação de GLO, a portaria elenca “ações contra realização de pleitos eleitorais afetando a votação e a apuração de uma votação”, “bloqueio de vias públicas de circulação”, “depredação do patrimônio público e pri-vado”, “distúrbios urbanos”, “invasão de propriedades e instalações rurais ou urba-nas, públicas ou privadas”, “paralisação de atividades produtivas”, “paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País” e “sabota-gem nos locais de grandes eventos”. Desse modo, qualquer greve, protesto ou inicia-tiva corriqueira dos movimentos sociais, como ocupação de prédios públicos ou pri-vados ou passeatas, podem tornar-se alvo de uma operação de GLO.

Diante da repercussão negativa, o mi-nistro Celso Amorim, da Defesa, que assi-nara a publicação, mandou rever o seu tex-to. Mas o que ocorreu basta para evidenciar que nos quartéis tudo segue como dantes, inclusive a sintonia com o pensamento con-servador e retrógrado das elites brasileiras. O ministro Amorim, contrariando expecta-tivas, deixou de punir os generais de qua-tro e três estrelas autores dos manifestos de extrema-direita lançados pelos clubes militares contra a CNV em 2012. Desde en-tão, sua atuação à frente da Defesa tem sido apagada, talvez em função da orientação do governo.

Mais uma vez, o acerto de contas com a Ditadura Militar vem sendo postergado indefinidamente em nome da “reconcilia-ção nacional”, expressão tão ao gosto das classes dominantes que se beneficiaram do regime dos generais, e de interesses de Es-tado que só a elas servem.

*Pedro Pomar é jornalista

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A CUT já nasceu combatendo a dita-dura, apoiou a instalação da CNV e aprovou no 14º CONCUT a insta-

lação de sua Comissão Nacional Memória, Verdade e Justiça, a primeira no âmbito das Centrais Sindicais. Estes são alguns dos temas tratados neste entrevista com Expedito Solaney, Secretá-rio Nacional de Políticas Sociais da CUT, coordenador da Comissão Nacional Memó-ria, Verdade e Justiça da CUT e, também, representante da Central no GT junto a Co-missão Nacional da Verdade.

Qual o papel da Comissão Nacional Me-mória, Verdade e Justiça da CUT?A rigor o CONCUT aprovou uma comis-são de acompanhamento aos trabalhos da CNV, depois vimos que era insuficiente. A CUT não podia deixar de instalar sua comissão e resgatar a história dos sindi-catos e dirigentes cutistas, trabalhadores e trabalhadoras de base que sofreram com o golpe e os 21 anos da ditadura, de levantar dados, fatos, ouvir depoimentos. E a par-tir do que colhemos com os trabalhos da Comissão, apresentar um relatório e editar um livro, pensamos também em um docu-mentário. Agora, sobretudo denunciar os crimes de lesa humanidade, as violações. Fazer um grande movimento para a puni-ção dos agentes que em nome do Estado cometeram tais crimes; fazer as reparações materiais, pedir desculpa às famílias dos

“Fomos o principal alvo do golpe”

mortos e desaparecidos. Temos também o compromisso e realizar atos que possam trazer para a classe trabalhadora e a juven-tude mais informações sobre o período de 1964 a 1985 no Brasil, levando em conta os onze pontos que orientam os trabalhos do GT (http://goo.gl/wMrkyp). O relatório do GT deve ser entregue para a CNV até outubro de 2014, para que seja anexado ao relatório final da CNV previsto para ser di-vulgado em novembro próximo.

O que foi a Ditadura na visão da classe trabalhadora?Os trabalhadores, as trabalhadoras e o mo-vimento sindical foram os principais alvos do golpe em 64. Durante os 21 anos de ditadura no Brasil, centenas de sindicatos sofreram intervenção, os interventores no-meados pelos militares não tinham qual-quer relação como à luta de classe, com os trabalhadores, eram os conhecidos pelegos, que além de dilapidarem o patrimônio físi-co dos sindicatos tinham relações de sub-serviência com os patrões e com o gover-no militar. No período anterior ao golpe o movimento sindical vinha num ascenso de lutas. A dívida externa, a inflação alta, o arrocho salarial e o desemprego deixado por JK levaram os trabalhadores a greves, manifestações, ocupações de terra e um intenso debate ideológico e cultural pela reforma agrária, contra o imperialismo e por mais democracia. O Comando Geral

dos Trabalhadores e as Ligas Camponesas tinham lugar na luta e força suficiente para pensar um Brasil sem concentração de terra e riqueza. As universidades iniciando um processo de produção acadêmica, a cultura, o planejamento urbano. O golpe de 64 veio reprimir tudo isto, interrompendo o avan-ço da classe trabalhadora, da sociedade do Brasil como um todo. Neste sentido, o rela-tório da CNV e suas recomendações, assim como o relatório do GT e da comissão da CUT vem para regatar a memória históri-ca, mostrar para a juventude trabalhadora o quão trágico foi para o Brasil o Golpe mili-tar e os 21 anos de ditadura.

Que mais é importante ser lembrado?O Golpe atingiu centralmente a classe tra-balhadora e suas organizações. Era essa a base principal de sustentação do governo João Goulart, por isso que ainda hoje se fala em governo de sindicalista, parece que já ouvimos isso há poucos anos atrás quando Lula era presidente da Republica. E sem duvida no governo Lula a classe tra-balhadora teve outro tratamento, geração de empregos com melhoria dos salários.

O golpe militar de 64 atrasou o Bra-sil não só nos seus 21 anos de vigência, é muito mais que isso. A redemocratização foi uma pulha, passaram-se 28 anos para que o Brasil instalasse sua Comissão Na-cional da Verdade. Não fomos capazes de ate agora de punir nenhum agente que em nome do Estado matou, torturou, ocultou cadáveres. Pagamos caro por isso, temos uma polícia que mata e tortura em nome do estado ainda hoje. Por isso que a CNV tem uma tarefa histórica, recomendar que a justiça puna todos os militares que co-meteram crimes de lesa humanidade e que isso nunca mais aconteça.

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Expedito Solaney, Secretário Nacional de Políticas Sociais da CUT

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que permitem que representantes e servi-çais desta mesma classe que apoiou e se beneficiou do golpe, continuem a praticar torturas, realizar tribunais de exceção, execuções sumárias, criminalizar movi-mentos sociais, perseguir trabalhadores e desaparecer com seus corpos. Enfim, a continuar a sequestrar e destruir vidas, sonhos, reputações e, principalmente, im-pedir a construção de uma sociedade livre da opressão capitalista.

Precisamos reconhecer que ainda luta-mos para ver chegar o dia em que a me-mória da luta do povo brasileiro contra a opressão e a exploração será algo a ser contado aos jovens, para celebrar a vida e relembrar exemplos de embates travados num passado totalmente superado.

*Sônia Fardin é historiadora. Colaboradora do Comitê de Acompanhamento da Sociedade Civil, Comissão de Implantação do Memorial da Anistia Política do Brasil

Celebrar a luta e nos manter alertas

Sonia Fardin*

Museus, memoriais e arquivos são alguns dos mais antigos espaços de disputa política. Nos últimos

anos instituições de memória ganharam di-mensão importante como ação de reparação e justiça em diversos países, como Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai. No Brasil vários espaços e instituições já existem e outros estão sendo criados com este caráter.

O Memorial da Anistia Política no Bra-sil, em fase de implantação na cidade de Belo Horizonte, é uma instituição de me-mória que faz parte de um dos programas de reparação e justiça da Comissão de Anistia.

Será um complexo cultural formado por uma área expositiva, uma praça e um edifí-cio, construído num dos locais de resistência política à ditadura militar, a sede da antiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), no Bairro Santo Antônio.

As obras para as instalações e desen-volvimento dos programas museográfico e educativo estão sob a responsabilidade conjunta do Ministério da Justiça e da Uni-versidade Federal de Minas Gerais, com apoio da Prefeitura de Belo Horizonte.

Pesquisadores, gestores e produtores culturais, entre colaboradores voluntários e servidores públicos integram a equipe de implantação, um comitê curador e um Conselho de acompanhamento da socieda-de civil, além dos especialistas e técnicos contratados.

O prédio tombado do antigo Coleginho abrigará a área museográfica, com ênfase nos momentos que antecederam o golpe de 1964 e as estratégias de resistência e combate a ditadura militar.

O edifício novo abrigará arquivos, sa-las de pesquisa, laboratórios, auditório e área de ação educativa. Neste complexo cultural todos os documentos constituídos pelos processos oficiais de solicitação de reparação dos que sofreram violências e violações de direitos estarão disponíveis para acesso público.

Os processos são repletos de documen-tos, relatos, imagens, correspondências e publicações que apresentam narrativas

das muitas formas de violação que foram submetidos os que enfrentaram o regime ditatorial. São milhares de testemunhos que exemplificam e dão a dimensão das ramificações e da capilaridade das viola-ções que o Estado cometeu. São histórias de vida, em grande maioria de pessoas que nunca ganharam notoriedade ou registros nos livros de história. Apresentam a carto-grafia do terror impetrado pelo Estado em todo território nacional e também a cora-gem da classe trabalhadora brasileira em suas diversas estratégias de organização e resistência espalhadas pelo Brasil.

Instituições de memória são lugares para fazer lembrar e celebrar, portanto, se inscrevem no embate político do presen-te. Narrar esta página da história brasi-leira é parte de um processo de transição política que já avançou, mas ainda não abriu todas as caixas e não tratou todas as feridas. Assim como ainda não desmon-tou todos os mecanismos institucionais

Projeto do Memorial da Anistia Política no Brasil, a ser construído em Belo Horizonte (MG)