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O DIREITO À VIDA E O ABORTO EUGÊNICO: ANÁLISE
ÉTICO-PSICO-ECONÔMICO DA GESTANTE
Beatriz Mariotti Azevedo1
Thaniggia Petzold Fonseca2
RESUMO: O estudo tem como objetivo analisar o aborto eugênico, tendo
em vista os aspectos ético e moral, psicológico e econômico da gestante
quando se depara com o diagnóstico médico de que possui em seu ventre um
feto anencéfalo. Para tanto, o presente artigo apresenta as previsões legais do
direito à vida, no âmbito constitucional e legal, posteriormente define o que
vem a ser o aborto e quais são as classificações penais. Após, apresentará a
patologia intitulada como anencefalia e quais são as probabilidades de vida
do feto. Por fim, expôs-se a decisão do Supremo Tribunal Federal no
julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54,
que no qual, deixou ao arbítrio da mulher a opção de abortar o feto ou
prosseguir com a gestação. Assim sendo, a análise dos aspectos ético/moral,
psicológico e econômico da gestante sob o prisma do princípio da
proporcionalidade vem como um mecanismo alternativo de ajuda para a
gestante que precisa escolher em abortar o feto anencéfalo ou arriscar a tê-lo
sob a probabilidade mínima de nascer vivo ou ter apenas algumas semanas
ou dias de vida.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à vida. Aborto. Anencefalia.
Proporcionalidade.
1 Acadêmica do curso de Direito do IESI/FENORD 2 Mestra em Ciências das Religiões, especialista em Direito do Consumidor,
professora de Direito Penal, Legislação Penal Especial e professora orientadora do
Núcleo de Práticas Jurídicas do IESI/FENORD.
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ABSTRACT: This study aims to analyze eugenic abortion, considering the
ethical and moral, psychological and economic aspects of the pregnant
woman when she encounter with the medical diagnosis that has in her womb
an anencephalic unborn child. For this purpose, this article reports the legal
provisions of the right to life, in the constitutional and legal framework,
subsequently defines what abortion means and what the penal classifications
are. Later, it will present the pathology that is named anencephaly and what
are the probabilities of life of the unborn child. Finally, exposed the decision
of the Federal Supreme Court in the judgment of the pleading of non-
compliance of the fundamental precept number 54 that let the woman
discretion the option of aborting the unborn child or to proceed with
pregnancy. Therefore, the study of the ethical/moral, psychological and
economic aspects of the pregnant from the point of view of the principle of
proportionality comes as an alternative mechanism of help for the pregnant
who must choose to abort the anencephalic unborn child or to risk to get the
baby with the minimum probability of being born alive or to have only few
weeks or days of life.
KEYWORDS: Right to life. Abortion. Anencephaly. Proportionality
1 INTRODUÇÃO
A vida, ou direito à vida, refere-se a um bem jurídico por
excelência, a um direito fundamental, indisponível, irrenunciável e
inviolável. Logo, a Constituição Federal, coloca a vida como marco primeiro
no espaço dos direitos fundamentais. E mais, resguarda-a em cláusula pétrea.
Entretanto, tal direito vai de encontro com anencefalia, tendo em
vista que se trata de uma má-formação no tubo neural do feto, que começa a
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se desenvolver no início da vida intrauterina, sendo que, o processo de
fechamento do tubo neural se dá de forma incompleta e o indivíduo passa a
ser portador de um defeito congênito. Dessa forma, essa má-formação leva à
ausência total ou parcial do cérebro, o que ocasiona, portanto, a anencefalia
como incompatibilidade com a vida, ou seja, uma patologia letal.
Em função disso, percebe-se claramente que há conflitos de
interesses, em que de um lado, tem o direito à vida, previsto como direito
fundamental, e de outro tem como bem jurídico a liberdade da mulher,
considerando que ao receber o diagnóstico de que carrega em seu ventre feto
com anencefalia, que a probabilidade de vida baixíssima, não vê outra saída,
senão abortar o feto.
Diante de tal dilema, foi formulado a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, interposta a pedido
da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, que teve
como fundamento a violação dos preceitos constitucionais da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, IV), da liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, II)
e do direito à saúde (art. 6º, caput, e art. 196), todos da Constituição Federal,
tendo em vista as diversas autorizações judiciais e eventuais denegações
judiciais para casos de aborto de feto anencéfalo.
Desta forma, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a
ADPF sob nº 54, e declarou inconstitucional qualquer interpretação do
Código Penal no sentido de penalizar a antecipação terapêutica de parto de
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fetos anencéfalos e, em consequência, reconheceu o direito da gestante de
optar pelo aborto do feto anencefálico.
Mediante o exposto, a presente pesquisa traz o seguinte
questionamento, “Em que medida, é ético, submeter, psicologicamente e
economicamente, a mulher por todo o período gestacional, unicamente por
ser o direito à vida um direito fundamental de todos os seres humanos ?”
Uma vez que, o STF deixou ao arbítrio da gestante a opção em abortar ou
prosseguir com a gestação em que a probabilidade é mínima de nascer vivo
ou ter apenas algumas semanas ou dias de vida.
Para tanto, objetiva-se com esse estudo, analisar os aspectos
ético, psicológico e econômico da gestante, cumulado com o princípio da
proporcionalidade, que nos quais, servem como mecanismos alternativos de
ajuda a gestante para tomar a tão importante decisão.
Metodologia: Os documentos utilizados para a pesquisa foram
livros de grandes autores, cujas obras possibilitam uma maior compreensão
acerca do aborto eugênico. Também foi analisada a decisão do STF da ADPF
sob o nº 54, além dos comentários de pesquisadores e doutrinadores
especificamente no que concerne a mecanismos que ajudem a gestante a
escolher a sua própria vida ou arriscar com uma gestação de feto anencéfalo.
2 O DIREITO À VIDA E AS PREVISÕES LEGAIS
2.1 O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA
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Pensar na vida como direito, nos remete, em amplo sentido, a um
direito fundamental, indisponível, irrenunciável e inviolável, transformando
a vida em bem jurídico por excelência.
Assim, a Constituição Federal, no seu art. 5º que trata dos
“Direitos e Garantias Fundamentais”, dispõe que “todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida"
(BRASIL, 1988).
Deste modo, não há dúvida de que o direito à vida é por ela posto
como marco primeiro no espaço dos direitos fundamentais. E mais, é direito
resguardado em cláusula pétrea no art. 60, 4º parágrafo.
A respeito do direito à vida, dispõe Alexandre de Moraes (2000,
p.61) que “é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em
pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos. A
Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral”.
Fazendo uma análise do referido direito, à luz dos desafios do
século XXI, leciona a doutrina de Maria Helena Diniz (2001, p.22 -24):
O direito à vida, por ser essencial ao ser humano,
condiciona os demais direitos da personalidade. A
Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput,
assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a
integralidade existencial, consequentemente, a vida é um
bem jurídico tutelado como direito fundamental básico
desde a concepção, momento específico, comprovado
cientificamente, da formação da pessoa. Se assim é a
vida humana deve ser protegida contra tudo e contra
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todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito
a ela e aos demais bens ou direitos correlatos decorre de
um dever absoluto ‘erga omnes’, por sua própria
natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer.
Garantido está o direito à vida pela norma constitucional
em cláusula pétrea, que é intangível, pois contra ela nem
mesmo há o poder de emendar...tem eficácia positiva e
negativa [...]. A vida é um bem jurídico de tal grandeza
que se deve protegê-lo contra a insânia coletiva, que
preconiza a legalização do aborto, a pena de morte e a
guerra, criando-se normas impeditivas da prática de
crueldades inúteis e degradantes [...]. Estamos no limiar
de um grande desafio do século XXI, qual seja, manter
o respeito à dignidade humana. (DINIZ, 2001, p. 22 –
24)
Vale ressaltar também, que não só a legislação interna, como
também as internacionais protegem o direito à vida. Como, na Declaração
Universal dos Direitos Humanos que, em seu art. 2º veda qualquer
discriminação entre os seres humanos e no art. 3º, trata que todo indivíduo
tem direito à vida.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como
Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969 - o qual, foi
ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, determina o seguinte, no
seu art. 4º:
Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida.
Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde
o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da
vida arbitrariamente.
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Vale lembrar que as regras do Pacto de San José da Costa Rica
incorporam-se ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, vez
que os tratados internacionais e convenções sobre direitos humanos, aos
quais o Brasil tenha aderido, são equivalentes às emendas constitucionais
(art. 5º, § 3º, da Constituição Federal).
Ultrapassadas as previsões legais do direito à vida, faz-se mister
definir o que vem a ser a vida. A esse respeito, dispõe o notável doutrinador
José Afonso da Silva (1999, p.200):
Sua riqueza significativa é algo de difícil compreensão,
porque é algo dinâmico, que se transforma
incessantemente sem perder sua própria identidade. É
mais um processo (processo vital), que se instaura com
a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se,
progride, mantendo sua identidade, até que muda de
qualidade, deixando, então, de ser vida pra ser morte.
Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo
contraria a vida (SILVA, 1999, p.200)
Nesse mesmo diapasão, o Ministro Ayres Britto, em seu voto na
Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, que tratava sobre o art. 5º, da
Lei de Biossegurança (BRASIL, 2005), asseverou:
Não há como negar que o início da vida humana só pode
coincidir com o preciso instante da fecundação de um
óvulo feminino por um espermatozoide masculino. Um
gameta masculino (com seus 23 cromossomos) a se
fundir com um gameta feminino (também portador de
igual número de cromossomos) para a formação da
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unitária célula em que o zigoto consiste. Tao como se dá
com a desconcertante aritmética do amor: um mais um,
igual a um, segundo figuração que se atribui à inspirada
pena de Jean Paul Sartre (BRITTO, 2010, p. 60-61).
Logo, passa-se a análise das teorias existentes acerca do início da
vida como direito fundamental de toda e qualquer ser humano.
2.2 DAS TEORIAS EXISTENTES ACERCA DO INÍCIO DA
VIDA
Nessa parte da pesquisa, objetiva-se esclarecer que a principal
questão em torno do direito fundamental à vida não reside tão somente em se
determinar o início da vida da pessoa humana, mas em saber que aspectos ou
momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo Direito
infraconstitucional e em que medida.
Nesse sentido, merece transcrição a manifestação da Dra. Débora
Diniz, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis –
Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, na primeira Audiência
Pública promovida pelo STF, com base no § 1º do artigo 9º da Lei nº
9.868/99, relatado no voto do Ministro Carlos Ayres Britto, relator da Ação
Direta de Inconstitucionalidade, em que se julgou a Constitucionalidade das
pesquisas com células tronco, verbis:
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Quando a vida humana tem início? O que é vida
humana? Essas perguntas contêm um enunciado que
remete à regressão infinita: as células humanas no óvulo
antes da fecundação, assim como em um óvulo
fecundado em um embrião, em um feto, em uma criança
ou em um adulto. O ciclo interminável de geração da
vida humana envolve células humanas e não humanas, a
tal ponto que descrevemos o fenômeno biológico como
reprodução, e não simplesmente como produção da vida
humana. Portanto, considerar o marco da fecundação
como suficiente para o reconhecimento do embrião
como detentor de todas as proteções jurídicas e éticas
disponíveis a alguém, após o nascimento, implica
assumir que: primeiro, a fecundação expressaria não
apenas um marco simbólico na reprodução humana, mas
a resumiria euristicamente; uma tese de cunho
essencialmente metafísico. Segundo, haveria uma
continuidade entre óvulo fecundado e futura pessoa, mas
não entre óvulo não fecundado e outras formas de vida
celular humana. Terceiro, na ausência de úteros
artificiais, a potencialidade embrionária de vir a se
desenvolver intraútero pressuporia o dever de uma
mulher à gestação, como forma a garantir a
potencialidade da implantação. Quarto, a potencialidade
embrionária de vir a se desenvolver intraútero deveria
ser garantida por um princípio constitucional do direito
à vida. (ADIN. 3.510-0).
Nesta mesma seara, o Código Civil no seu art. 2º dispõe que “A
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe
a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (BRASIL, 2002). Logo,
percebe-se que na primeira parte o artigo define que a personalidade civil
começa com o nascimento com vida. Por esse trecho, poder-se-ia alegar que
o feto não possui qualquer direito porque ainda não nasceu, por outro lado,
que, se a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro, por
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lógica, ela põe a salvo o mais importante desses direitos, que é o direito à
vida.
A respeito desse tema, essencialmente duas correntes se mostram
antagônicas, a primeira donde a interpretação de que é preciso vida pós-parto
para o ganho de uma personalidade perante o Direito, trata-se da teoria
“natalista”, portanto, em oposição às teorias da “personalidade condicional”
e da “concepcionista” que defendem o direito à vida desde a concepção, ou
seja, desde a fecundação do óvulo pelo espermatozoide.
Essa doutrina, encabeçada pelo respeitado jurista Ives Gandra da
Silva Martins (2008), defende que a vida humana começa na concepção, isto
é, no momento em que o espermatozoide entra em contato com o óvulo, fato
que ocorre já nas primeiras horas após a relação sexual. Na fase do zigoto,
que toda a identidade genética do novo ser é definida. A partir daí, segundo
a ciência, inicia a vida biológica do ser humano.
Explicando o que vem a ser a teoria concepcionista, dispõe
Renata da Rocha (2008, p.75):
A teoria concepcionista, considerando a primeira etapa
do desenvolvimento embrionário humano, entende que
o embrião possui um estatuto moral semelhante ao de
um ser humano adulto, o que equivale a afirmar que a
vida humana inicia para os concepcionistas, com a
fertilização do ovócito secundário pelo espermatozoide.
A partir desse evento, o embrião já possui a condição
plena da pessoa, compreendendo, essa condição, a
complexidade de valores inerentes ao ente em
desenvolvimento (ROCHA, 2008, p.75).
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Baseado nesse argumento acerca do início da vida que se afirma
que o Pacto de São José da Costa Rica dispõe que a vida deve ser protegida
desde a concepção. O preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança
também protege o direito à vida, mesmo antes do nascimento e define que “a
criança por falta da maturidade física e mental, necessita de proteção e
cuidado especiais, aí incluída a proteção legal, tanto antes, como depois, do
nascimento”.
De outra ótica, a doutrina natalista, fulcrada nos mesmos
dispositivos da Lei, defende que o ordenamento jurídico, através do Código
Civil consoante redação do art. 2º, reza que só a partir do nascimento com
vida que a pessoa adquire a plenitude da sua personalidade jurídica, podendo
ser sujeito ativo e passivo de direitos. Para concretização da formação da
personalidade, há que se considerar dois elementos: o nascimento e com vida.
Para essa corrente, a reserva de personalidade civil ou biográfica
para o nativivo em nada se contrapõe aos comandos da Carta Magna, uma
vez que a Constituição não dispõe quando começa a vida humana, bem como
não dispõe sobre nenhuma das formas de via humana pré-natal.
3 DIREITO AO ABORTO
3.1 ASPECTOS HISTÓRICOS E PERMISSÃO LEGAL
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Ultrapassado a discussão das previsões legais, bem como o que
vem a ser a vida e as teorias existentes acerca do seu início, passa-se agora a
análise legal do direito ao aborto.
Entretanto, primeiramente, faz-se mister ressaltar que o ato de
abortar, ou seja, interromper a gravidez com a destruição do produto da
concepção, conforme Karina Alamino Alves (2015) existe desde os
primórdios da humanidade, embora apresente como marco inicial registros
feitos na China durante o século XXVIII, antes de Cristo.
Alves (2015) acrescenta que ao longo dos anos, muito se utilizou
do aborto como medida controladora do crescimento demográfico. Porém,
com o desenvolvimento da sociedade, surgiram alguns difamadores do
aborto com o objetivo de proteger não apenas o ser em formação, mas
também a mãe (gestante) e a própria sociedade.
Nesse mesmo sentido, segundo Naise Costalonga Neves (2010)
para algumas civilizações, o aborto servia como pretexto para controlar o
crescimento populacional, tendo como defensores do aborto para tal
finalidade os filósofos Aristóteles e Platão. Como é de se observar, a questão
do aborto era muito controvertida, sendo que cada civilização tinha seus
próprios conceitos a respeito do tema. Porém, com o Cristianismo, essa
polêmica foi amenizada.
Assim, com o desenvolvimento da ciência do direito, chegou-se
à conclusão de que o Estado era laico, e que o direito, em hipótese alguma,
poderia ser confundido com a religião.
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Vale ressaltar também, que segundo o professor Sérgio Habib,
“abortar, etimologicamente (ab-ortus, privar do nascimento), significa a
interrupção violenta do processo de gestação com a consequente morte do
feto”.
A respeito da temática do aborto, leciona Guilherme Peña de
Moraes (2008, p.27):
O aborto é revelado pela interrupção da gravidez, com a
destruição do feto, excluída a ilicitude da conduta nas
hipóteses de aborto terapêutico ou necessário, quando
não houver outro meio que possa ser empregado para
salvar a vida da gestante, e de aborto sentimental ou
humanitário, quando a gravidez resultar de estupro e a
ocisão do produto da concepção seja precedida pelo
consentimento da gestante ou de seu representante legal.
(MORAES, 2008, p. 27)
Foi com essa conquista do direito que foi possível a prática do
aborto legal, que é o aborto terapêutico (para salvar a vida da gestante) e o
aborto sentimental (em casos de gravidez resultante de estupro), previsto no
artigo 128 do Código Penal.
As outras classificações doutrinárias dos tipos de aborto, tais
como, quais são criminosos, acidental, natural, dentre outros, pouco importa
para a pesquisa em tela, tendo em vista que esta possui como objetivo
específico analisar o aborto eugênico (praticado em face dos comprovados
riscos de que o feto nasça com graves anomalias psíquicas ou físicas) sob os
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aspectos ético-psico-econômico da gestante. Conforme será abordado nos
capítulos a seguir.
4 ANENCEFALIA E O ABORTO EUGÊNICO
4.1 CONCEITO DE ANENCEFALIA
Antes de adentrarmos no aborto eugênico, faz-se necessário
retomar a discussão central proposta no presente trabalho: É ético, submeter,
psicologicamente e economicamente, a mulher por todo o período
gestacional, para ter um filho com patologia letal, unicamente por ser o
direito à vida um direito fundamental de todos os seres humanos?
Como já exposto, o direito à vida é posto como marco primeiro
no espaço dos direitos fundamentais, sendo, portanto, indisponível,
irrenunciável e inviolável, além de ser um bem jurídico por excelência.
Entretanto, tal direito vai de encontro com anencefalia, tendo em vista que se
trata de uma patologia letal.
Nesse diapasão, faz-se necessário definir a anencefalia, que no
qual, vem do grego, onde “An” significa sem e “Enkephalos” significa
encéfalo. Que, consoante Vargas, (2004), a anencefalia é uma malformação
congênita resultante de defeito de fechamento do tubo neural. Esta estrutura
fetal é a precursora do Sistema Nervoso Central e é a partir da formação do
tubo neural que o Sistema Nervoso Central se formará.
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Ademais, segundo o Conselho Federal de Medicina, este defeito
ocorre por volta do vigésimo quarto dia após a concepção (ou seja, começa a
se desenvolver bem no início da vida intrauterina), já que é neste período em
que o tecido formado pelas células fetais, que se apresentava em uma forma
plana, começa a transformar-se em um tecido que se invagina, formando
pregas que começam a fechar-se por completo, formando, assim, uma
estrutura tubular. Dessa arte, percebe-se que, no caso de anencefalia, o tubo
neural não se fecha totalmente. O processo de fechamento do tubo neural se
dá de forma incompleta e o indivíduo passa a ser portador de um defeito
congênito. E, essa malformação no tubo neural que leva à ausência total ou
parcial do cérebro. Sendo, portanto, incompatível com a vida.
Além disso, nas palavras de Behrman, 2002, p. 1777:
A anencefalia é definida na literatura médica como a
“má-formação fetal congênita por defeito do fechamento
do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto
não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex,
havendo apenas resíduo do tronco encefálico (Behrman,
2002, p. 1777).
Tal patologia é conhecida vulgarmente como “ausência de
cérebro”, na realidade, a anencefalia não consiste, necessariamente, na
ausência total de encéfalo; existem graus variados de danos encefálicos.
Trata-se de uma má-formação que passa de quadros menos graves a quadros
de indubitável anencefalia.
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Nesse sentido, os médicos brasileiros pesquisam os motivos da
anencefalia nos fetos, e, ressaltam que a ocorrência da anencefalia não pode
ser ligada a uma causa específica: é um defeito multifatorial. Especialistas a
relacionam, principalmente, às deficiências de vitaminas do complexo B,
especialmente o ácido fólico. Tanto que prescrevem a ingestão, através de
alimentos e suplementos vitamínicos, desta substância nos três meses
anteriores ao início da gestação e nos três meses posteriores à concepção.
Igualmente, no Brasil, foi determinado o enriquecimento da farinha com o
ácido fólico, a fim de prevenir o aparecimento de defeitos do tubo neural
(SANTOS, 2007).
Os médicos apontam que alguns fatores são desencadeantes dos
defeitos do tubo neural - especificamente da anencefalia -, é possível citar o
álcool (que também pode gerar problemas psicológicos no feto), o tabagismo,
o uso de antiepiléticos e outras drogas de todos os gêneros (lícitas e ilícitas),
alterações cromossômicas (genéticas), histórico familiar, ou ainda exposição
a altas temperaturas. No entanto, este rol não é taxativo e não é possível
precisar qual a contribuição exata de cada uma destas causas para que o tubo
neural não seja corretamente cerrado.
4.2 O FETO ANENCÉFALO E A CHANCE DE SOBREVIDA
Dentre os inúmeros argumentos em defesa do aborto de feto
anencéfalo, tem-se a incompatibilidade do feto com a vida extrauterina, ou
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seja, a impossibilidade de a criança sobreviver após o parto, uma vez que, a
perspectiva de vida nos casos de não fechamento do tubo neural não
ultrapassa algumas horas, em poucos casos, dois ou três dias.
Logo, não há o que se duvidar que a anencefalia é uma patologia
letal; a vida extrauterina é, na totalidade dos casos, fatal. Não há qualquer
possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte
inevitável. Todavia, embora se saiba que bebês com anencefalia possuem
expectativa de vida muito curta, não há como precisar o tempo de vida que
terão fora do útero materno.
Neste sentido, Thomaz Gollop (2012) afirma que
aproximadamente 75% dos fetos anencéfalos morrem dentro do útero e que,
dos 25% que chegam a nascer, todos têm sobrevida vegetativa que cessa, na
maioria dos casos, em 24 horas, e os demais nas primeiras semanas de
sobrevida.
Complementando a reportagem de Gollop supramencionado, as
resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), informam no mesmo
sentido, qual seja:
[...]com a anencefalia é inegável que a gestação
transcorra e o feto venha a nascer, mas apenas 25% dos
bebês anencéfalos apresentam algum sinal vital na
semana subsequente ao parto, enquanto a grande maioria
morre minutos após o nascimento. O Brasil é o quarto
no índice mundial de parto de anencéfalo. É um índice
que não pode ser desconsiderado (Conselho Federal de
Medicina).
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Ainda de acordo com as resoluções do CFM, a gestação de um
feto diagnosticado anencefálico pode trazer implicações à saúde da genitora,
dentre eles, podemos citar alguns, enumerados pela Federação Brasileira de
Ginecologia e Obstetrícia (2010), tais como: eclampsia, desconforto
respiratório, edema nos membros inferiores, prolongamento da gestação por
mais de 40 semanas, além do forte abalo psicológico.
Vale ressaltar também que, além da probabilidade de morte do
feto, a anencefalia, em alguns casos, vem acompanhada de outras
complicações médicas, que podem ser identificados visualmente, consoante,
Santos (2007, p. 21):
[...] além da abertura que existe em sua cabeça, o
anencéfalo possui os olhos saltados em suas órbitas,
justamente porque estas não ficaram bem formadas em
razão da inexistência dos ossos do crânio. Outrossim,
seu pescoço é mais curto do que o pescoço de um feto
normal. Além do exame visual é possível a realização de
exame biológico, através da análise dos níveis de alfa-
fetoproteína no soro materno e no líquido amniótico.
Estes níveis, da décima primeira até a décima sexta
semana de gravidez, encontram-se sempre aumentados
em gestações de anencefálicos.
Ademais, faz-se mister pontuar que com os avanços da medicina
os diagnósticos da anencefalia são inequívocos e não existem possibilidades
de erro, considerando que a ciência médica atua com margem de certeza igual
a 100%, consoante informação de Cunha, (2015, p. 95).
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Dessa forma, esse tema despertou na doutrina, na jurisprudência
e na sociedade importante discussão acerca do feto anencéfalo, tendo em
vista que de um lado, a doutrina cristã, defende que tal comportamento é
egoísta e fere os princípios da fé, e, por outro lado, a doutrina liberal, admite
essa espécie de abortamento, ao argumento que não sacrificar o feto, é,
talvez, sacrificar um futuro próximo e iminente, tanto da mulher, quanto do
feto.
Assim sendo, essa discussão chegou ao Supremo Tribunal
Federal, que no qual, tomou a decisão que será explanada no capítulo a
seguir, além disso, passa-se a analisar os aspectos objetivos da presente
pesquisa, quais sejam, a ética, o psicológico e o planejamento econômico da
mulher e da sua família quando se depara com um diagnóstico médico de ter
um feto com anencefalia.
5 A AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL Nº 54 E A ANÁLISE ÉTICO-PSICO-ECONÔMICO
DA GESTANTE
5.1 O CONFLITO DE INTERESSES E A DECISÃO DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, NA ADPF Nº 54
Dado todo o exposto na presente pesquisa, nota-se claramente
que há conflitos de interesses, em que de um lado, tem o direito à vida,
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previsto como direito fundamental, e de outro tem como bem jurídico a
liberdade da mulher, tendo em vista que ao receber o diagnóstico de que
carrega em seu ventre feto com anencefalia, digo, onde a probabilidade de
vida é baixíssima.
Nesse mesmo sentido, aduz Fernando Moraes Gomes (2007, p.
03), que:
“[...] como se percebe, de um lado está o interesse
público na proteção do bem jurídico; a vida (do feto); de
outro está o interesse individual e geral de liberdade, que
[...] se sintetiza na dignidade da pessoa humana. [...]”. A
polêmica então recai sobre: O que deve ter primazia ante
o ordenamento jurídico? Quando há interesse relevante
em jogo, que torna razoável a lesão ao bem jurídico,
vida, não há que se falar em resultado jurídico desvalioso
(ou intolerável). Ao contrário, trata-se de resultado
juridicamente tolerável, na medida em que temos, de um
lado, uma vida inviável (todos os fetos anencefálicos
morrem, em regra poucos minutos após o nascimento),
de outro, um conteúdo nada desprezível de sofrimento
(da mãe, do pai, da família etc.).
Logo, é preciso que se constate, com absoluta certeza, a
inviabilidade da vida do feto, pois é essa inviabilidade (cientificamente certa)
aliada aos demais interesses relevantes que estão em jogo (sofrimento da
gestante, a angústia, os problemas de saúde, os problemas mentais e
psicológicos, a dignidade humana, etc.) que tornam a antecipação do parto,
ou a interrupção da gravidez, uma medida razoável.
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Uma vez que não há dúvida de que o artigo 5º da Constituição
Federal de 1988 assegura a inviolabilidade da vida, mas o direito não é uma
ciência estática e não existe direito absoluto.
Dessa forma, foi formulado a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 54, interposta a pedido da Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, que teve como fundamento a violação
dos preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV), da
liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, II) e do direito à saúde (art. 6º,
caput, e art. 196), todos da Constituição Federal, tendo em vista das diversas
autorizações judiciais e eventuais denegações judiciais para casos de aborto
de feto anencéfalo.
Vale ressaltar que a arguição teve como objetivo ver declarada
inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal Brasileiro, no
sentido de penalizar o que a entidade denominou de “antecipação terapêutica
de parto de fetos anencéfalos” e, em consequência, reconhecer o direito da
gestante de antecipar o parto nos casos de gravidez de feto anencefálico,
devidamente diagnosticado por médico habilitado, sem a necessidade de
autorização judicial prévia.
Em análise liminar, o eminente Ministro da Suprema Corte,
Marco Aurélio, acabou por proferir medida cautelar reconhecendo o direito
constitucional da gestante de se submeter à operação terapêutica de parto de
fetos anencefálicos, nos seguintes termos, in verbis:
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No caso da anencefalia, a ciência médica atua com
margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da
maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos
morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos
casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida
é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido
como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-
se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então,
manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à
respectiva família, danos à integridade moral e
psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no
âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a
gestante convive diuturnamente com a triste realidade e
a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca
poderá se tornar um ser vivo. [...]É como decido na
espécie. 3. Ao Plenário para o crivo pertinente. 4.
Publique-se. (Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas.
Ministro MARCO AURÉLIO Relator * decisão
publicada no DJU de 2.8.2004 ).
Diante da decisão do Ministro Marco Aurélio, percebe-se que
ele deixou ao árbitro da gestante devido à relevância do tema em apreço, uma
vez que há o risco de manter-se com o feto até o final da gestação e, em
contrapartida, tem o direito à vida como direito fundamental de todos.
Assim, nota-se que afirmaram os ministros que obrigar a
gestante a manter a gestação de um feto portador de anencefalia equivale a
uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, “assemelha-se à
tortura”. E que os direitos da mulher devem prevalecer frente ao direito do
anencéfalo, vez que não se trata de vida em potencial, mas de um natimorto
por não ter atividade cerebral, aplicando-se a Resolução nº 1480/97 do
Conselho Federal de Medicina, por analogia, que no qual, dispõe que a
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parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme
critérios já bem estabelecidos pela comunidade científica mundial.
Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sob nº 54,
interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).
Logo, o STF declarou inconstitucional qualquer interpretação do
Código Penal no sentido de penalizar a antecipação terapêutica de parto de
fetos anencéfalos e, em consequência, reconheceu o direito da gestante de
optar pelo aborto do feto anencefálico, sem a necessidade de autorização
judicial prévia, quando a anomalia for devidamente diagnosticada por
médico habilitado.
Portanto, tal decisão do STF quanto a não obrigação de fazer o
aborto, somente lhe dando a oportunidade de escolha de manter ou não uma
gestação que resultará em vida infrutífera.
5.2 ANÁLISE ÉTICO-PSICO-ECONÔMICO DA GESTANTE,
CONSIDERANDO O SEU DIREITO DE ESCOLHA
A questão central do presente trabalho – é ético, submeter,
psicologicamente e economicamente, a mulher por todo o período
gestacional, para ter um filho com patologia letal, unicamente por ser o
direito à vida um direito fundamental de todos os seres humanos? – Parece ir
adquirindo respostas, ou se não, novos questionamentos. Dessa forma, o
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aborto eugênico deve ser discutido sob a ponderação de princípios éticos,
psicológicos e econômico da gestante, ou seja, sob a ótica do princípio da
proporcionalidade, como mecanismo alternativo para o equilíbrio entre a
opção de abortar ou de arriscar a ter um filho acometido pela patologia da
anencefalia.
O primeiro aspecto a ser analisado diz respeito à análise ética e
moral que a mulher tem como concepção. Uma vez que, sem dúvida, às luzes
da religião o aborto anencefálico é um pecado imensurável, sendo que quem
pratica tal conduta estará ferindo um bem indisponível, qual seja a vida, que
só o Criador tem o poder sobre ela, sendo que tal indivíduo terá,
espiritualmente, sua punição, isso, conforme dispõe Neves (2010, p.3).
Dessa forma, cabe a mulher sob a sua concepção religiosa de
abortar o feto, pois cada uma se autodeterminaria de acordo com seus
princípios e suas crenças, logo, não estaria ofendendo os princípios
religiosos, morais e filosóficos de nenhuma gestante.
Conforme Luiz Flávio Gomes (2010) preleciona:
Não se pode confundir Direito com religião. Direito é
direito, religião é religião. Ciência é ciência, crença é
crença. Razão é razão, tradição é tradição. Delito é
delito, pecado é pecado. A religião não pode contaminar
o direito. As crenças não podem ditar regras superiores
à ciência (GOMES, 2010).
Vencido o primeiro aspecto, passe-se a análise da consequência
psicológica e econômica à mulher de suportar uma gravidez, praticamente
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infrutífera. Considerando que, pode acarretar danos irreparáveis, pois a vida
do feto seria frustrada e, caso o feto viesse a nascer com vida, teria um
impacto catastrófico sobre a vida da gestante e de sua família que planeja
para aquele momento.
Além disso, deve ressaltar que a gestação de um feto portador
deste defeito congênito não é nada tranquila para a futura mãe. Isso porque
os efeitos psicológicos que uma gestação deste tipo provoca são intensos e
devastadores para os sentimentos maternos e de sua família em geral.
Imagine-se a situação psicológica dos pais, em especial da mãe,
que fazem planos para seu filho, adquirem móveis, enxoval, discutem e
planejam o nome do bebê, imaginam as características físicas e psicológicas
que terá após o nascimento e que, de repente, sem aviso prévio, descobrem
que o feto não possui qualquer tipo de chance de sobrevida (extrauterina),
mas, ao contrário, tem grandes chances de morrer ainda no ventre materno.
É inegável que os efeitos psicológicos sobre esta família,
principalmente para esta mulher, são terríveis e inimagináveis. Isto sem
mencionar que o prosseguimento desta gestação atenta contra todas as
garantias de dignidade humana da mulher.
Além dessas consequências, a gestação de um anencéfalo pode
trazer grandes riscos à saúde da gestante, que no qual, segundo a Federação
Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (2010), pode
ocasionar o prolongamento da gestação além do período normal (isto
ocorreria porque a gestante não teria a dilatação necessária para o parto), do
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aumento da pressão arterial e do aumento do líquido amniótico (já que o feto
anencefálico não se alimenta deste líquido, em razão de suas dificuldade em
sugar e deglutir). Sendo que este último problema ocasiona dificuldades
respiratórias e cardíacas à grávida, podendo levá-la ao óbito.
Dado todo o exposto, a presente pesquisa propõe a utilização do
princípio da proporcionalidade como mecanismo alternativo hermenêutico-
constitucional para resolução de situações onde incida colisão de direitos
fundamentais, considerando que a decisão do STF ao julgar a ADPF nº 54,
deixou ao arbítrio da mulher em dispor ou não da gravidez de feto anencéfalo.
Uma vez que, a utilização do princípio da proporcionalidade, que
no qual, estabelece a ponderação, a medida mais razoável para a resolução
dos conflitos de interesses jurídicos. Logo, pode representar um meio
importante para a efetiva harmonização e ponderação dos direitos
fundamentais e bens jurídicos em colisão na temática do aborto eugênico.
Além disso, no parecer do Procurador-Geral da República,
Claudio Fonteles, argumentou contra a aplicação do conceito de morte
cerebral nos casos de anencefalia, mas se posicionou a favor da doação de
órgãos dos anencéfalos.
Nesse sentido, alguns médicos, bem como alguns operadores do
direito, por exemplo, segundo Gomes (2007, p. 07) argumentam “[...] que o
melhor seria deixar a criança nascer, aproveitar dela alguns órgãos vitais
importantes (para transplantes) e só depois esperar a sua morte”.
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Por fim, ressalta-se a importância de que, aliado à construção de
uma racionalidade ético-valorativa e de mecanismos jurídicos que possam
apoiar a gestante na tomada da decisão, o planejamento familiar e a
paternidade responsável sejam alicerces de políticas públicas que visem a
orientação e aconselhamento de todo cidadão para superar esse dilema.
6 CONCLUSÃO
À luz de todo o exposto, buscou-se discutir uma visão teórica do
direito à vida como bem jurídico por excelência. Uma vez que, é considerado
como direito fundamental de todos os seres vivos. Ademais, objetivou
demonstrar o que vem a ser a anencefalia, bem como a probabilidade de vida
de um feto anencéfalo e posteriormente, o aborto eugênico, qual seja, aquele
praticado em face dos comprovados riscos de que o feto nasça com graves
anomalias psíquicas ou físicas.
Entretanto, como é normal no ordenamento jurídico, esse
instituto é rodeado de muitos pensamentos divergentes. Pois, de um lado, a
doutrina cristã defende que tal comportamento é egoísta e fere os princípios
da fé, e, por outro lado, a doutrina liberal, admite essa espécie de
abortamento, ao argumento que não sacrificar o feto, é, talvez, sacrificar um
futuro próximo e iminente, tanto da mulher, quanto do feto.
E, por conseguinte, ocasionou grande demanda ao poder
judiciário, sendo necessário, portanto, o parecer do Supremo Tribunal
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Federal em julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental sob o nº 54, que no qual, julgou procedente e deixou ao arbítrio
da mulher em escolher abortar o feto ou prosseguir com àquela gravidez,
onde a probabilidade de sobrevida é baixíssima.
Dessa forma, faz-se mister apontar os aspectos ético/moral,
psicológico e econômico da gestante, bem como a análise do princípio da
proporcionalidade como mecanismos essenciais para a tomada da tão
importante decisão para a vida. Uma vez que, esse princípio estabelece a
ponderação, a medida mais razoável para a resolução dos conflitos de
interesses jurídicos.
Portanto, é de grande relevância a compreensão de cada caso
concreto, se, é ético para as concepções religiosas, morais e filosóficas da
mulher; se, ao ser submetido por todo o período gestacional, em que corre
outras complicações médicas com um feto anencéfalo; e, se, a mulher tem
condições econômicas e sociais para montar com todo o carinho o enxoval,
adquirir os móveis, planejar com sua família o nome do bebê, suas
características físicas e após todo esse processo não tiver a oportunidade de
desfrutar, momentos únicos, da maternidade, pois, possui em seu ventre, um
feto que não tem qualquer chance de sobrevida, muito pelo contrário, tem
grandes chances de morrer ainda no ventre materno, ou em pouquíssimos
casos, sobrevive por algumas horas ou dias.
Diante de todo o exposto, concluo que seja necessário que a
Administração Pública auxilie todas as gestantes com feto anencéfalo, em
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todos os aspectos, pois, ao se deparar com o diagnóstico médico e com a
decisão do STF, em que lhe concede a oportunidade de escolha de manter ou
não uma gestação que resultará em uma vida infrutífera, encontra-se
desnorteada com tal situação.
Dessa forma, a Administração Pública deve disponibilizar
atendimentos psicológicos especializados, para acompanhar a sua decisão,
tanto antes, quanto depois; se escolher prosseguir com a gestação, deve
auxiliá-la economicamente, por exemplo, em todo o pré-natal, e durante o
parto; e até mesmo, caso a criança nasça e venha a morrer, que aproveite dela
alguns órgãos vitais importantes para transplantes, para que, ajude outras
crianças que lutam arduamente pela vida.
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