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NECC-ENTREVISTAS: intelectuais em foco NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados – UMFS Página - 1 - 12 Entrevista Professora Emérita Eneida Maria de Souza Realizada em 22 de abril de 2009. No saguão do Bahamas Apart Hotel – Campo Grande, MS NECC-ENTREVISTAS: intelectuais em foco Coordenador: Marcos Antônio Bessa-Oliveira Vinculado ao NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados - UFMS Orientação: Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco Entrevista Realizada por:Marcos Antônio Bessa-Oliveira e Rony Márcio Cardoso Ferreira Filmagem: Giselda Paula Tedesco e José Francisco Ferrari Transcrição da Entrevista: Gabriela Gusman Barros da Silva Correção Textual: Leilane Hardoim Simões Edição da Filmagem: Douglas Urbanek

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    Entrevista Professora Emrita Eneida Maria de Souza Realizada em 22 de abril de 2009.

    No saguo do Bahamas Apart Hotel Campo Grande, MS

    NECC-ENTREVISTAS: intelectuais em foco Coordenador: Marcos Antnio Bessa-Oliveira

    Vinculado ao NECC Ncleo de Estudos Culturais Comparados - UFMS

    Orientao: Prof. Dr. Edgar Czar Nolasco Entrevista Realizada por:Marcos Antnio Bessa-Oliveira e Rony Mrcio Cardoso Ferreira Filmagem: Giselda Paula Tedesco e Jos Francisco Ferrari Transcrio da Entrevista: Gabriela Gusman Barros da Silva Correo Textual: Leilane Hardoim Simes Edio da Filmagem: Douglas Urbanek

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    NECCENTREVISTAS - Desde 2004, nota-se um significativo aumento nos estudos de crtica biogrfica, crtica cultural e estudos latino-americanos na UFMS, principalmente nos Programas de ps-graduao e graduao, enviesados pelas propostas apresentadas em seus livros, a exemplo do Crtica Cult. A partir desses estudos comparados, como senhora v a criao de um ncleo que volta suas discusses exatamente para tais questes? ENEIDA Eu vejo como um grande empreendimento, pois penso que estamos cada vez mais aprendendo a tornar os ncleos de pesquisa mais variados. Como a estrutura da universidade j est um pouco viciada, a criao de um ncleo de pesquisa acaba sendo a grande sada para se discutir qualquer tema, assunto e teoria. Com relao questo biogrfica e cultural, percebemos que ela est em pleno avano e, ao mesmo tempo, preserva-se a crtica mais centrada para o texto em si, ou seja, antes de se concentrar nos estudos biogrficos, nas questes polticas, culturais, sociais e histricas, voc tambm tem que ter a experincia de utilizar certa perspiccia de anlise do prprio texto, seja ele literrio, jornalstico, mesmo o musical ou voltado para a entrevista. Acho que temos que levar em conta tudo. Por exemplo, no se pode falar de um autor, a ttulo de ilustrao Clarice Lispector, sem conhecer a fundo sua escrita, sua linguagem, pois a partir dessa anlise que se extrai uma metodologia, uma maneira especial de trabalhar o texto. NECCENTREVISTAS - Aquela idia do Crtica Cult, no ensaio de autobiografia, continua valendo ento vida e obra para se ler um trabalho atravs da crtica cultural? ENEIDA Sim, comprei recentemente um livro de vrios autores que discutem o conceito de autofico, que est sendo retomado atualmente pela crtica literria. Esse conceito foi criado por Serge Doubrovsky, escritor francs, em 1967. Distingue-se da autobiografia, na medida em que na autofico o autor j assume o texto como se fico. A autobiografia j , em princpio, fico. Distingue-se um pouco da autobiografia tout court, conceito muito bem desenvolvido por Lejeune, e que est sendo assumido, atualmente, por escritores como Silviano Santiago. Ao mesmo tempo que o escritor est fazendo autobiografia, revendo e recriando a memria de sua vida e de sua famlia, se instaura sempre o lance da fico, que atua como quebra de uma relao direta com a realidade.

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    NECCENTREVISTAS - Uma vez que o nosso ncleo intitula-se Ncleo de Estudos Culturais Comparados, fazemos a seguinte pergunta: como fica a disciplina Literatura Comparada depois do boom dos Estudos Culturais no Brasil? ENEIDA Essa uma boa pergunta, e ao mesmo tempo polmica. a questo de rtulo, de ttulos. Ao tentar definir a Literatura Comparada, teramos que distinguir o que literatura, o que se torna cada dia mais difcil, e o que a comparada, que por sua vez tambm difcil. At mesmo a definio de Estudos Culturais, disciplina que at hoje j se encontra um pouco descrente por estudiosos, porque aquela histria: as pessoas acham que modismo, que vai passar como toda moda. Em termos de crtica literria sempre assim, tem-se o fenmeno do boom e, depois, as teorias vo sendo substitudas por outras, ou, ao contrrio, nunca se abandona esta ou aquela teoria, este ou aquele conceito. Mas o que acho mais importante, tirando a questo da disciplina, a questo do ttulo; eu acho que isso no muito importante, porque hoje a gente pode passar por cima. Mas eu acho que a comparao o que mais importa. E aprendemos isso desde que comeamos a trabalhar com literatura comparada, que voc nunca pode trabalhar um texto,

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    estudar um autor ou estudar um momento sem que todos esses elementos sejam comparados com outros. E o que comparar? a grande dvida, porque os nossos opositores afirmam que agora se compara tudo, alhos com bugalhos, etc. Eu acho que no se trata mais de pensar na perspectiva de comparar um escritor europeu com um escritor brasileiro ou da Amrica Latina, mas a questo de se ampliar essa comparao. Se voc coloca em comparao trs escritores ou trs temas, amplia-se o foco da comparao, antes voltado para a relao entre dois escritores. A presena de uma muda um pouco a relao. Comparar no significa hierarquizar, usando preconceitos, como a questo do gosto, no gosto, que o hbito nosso do dia-a-dia. Estamos frequentemente sendo indagados sobre nossas predilees literrias: voc gosta desse livro, voc no gosta, de que voc gosta?. Convivemos o tempo todo com a questo do gosto, do valor. O gesto comparativo j sofreu grandes mudanas e transformaes. preciso comparar os temas que so semelhantes e o que diferente, aquilo que distorce. Se voc acrescentar outros elementos de comparao, o trabalho cresce em interesse e possvel brincar mais, jogar mais, pois no atrito entre idias diferentes que so produzidos melhores efeitos.

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    NECCENTREVISTAS - S para poder complementar mais essa questo, queria saber a opinio da senhora: estudar Literatura Brasileira estudar Literatura Comparada. Ento estudar Literatura Comparada seria estudar Estudos Culturais? ENEIDA Eu acho que sim. O problema o termo literatura, que a fica restrito a esse termo e no abarca outras manifestaes. Eu acho que j no tem mais interesse essa polmica entre os estudos culturais e a literatura comparada. Mas o que eu sinto que estamos voltando a um pensamento de gueto, de ficar defendendo a literatura em relao a outras disciplinas. Isso no me agrada. Eu assisti recentemente a um documentrio intitulado Palavra (en)cantada, um filme muito interessante. E discute justamente dessa questo. poeta o letrista de msica popular? Chico Buarque disse que no e apresentou suas razes. Mas a resposta que mais gostei foi a da Adriana Calcanhoto: para mim essa polmica completamente vazia. Se voc pensar o que poesia, o que ser poeta, , na realidade uma pergunta completamente vazia. Por qu? As pessoas ainda esto preocupadas em definir o que poesia. Como voc pode definir poesia? Como voc pode definir a letra de uma cano e dizer que Chico Buarque no um poeta? Claro, profissionalmente ele no um poeta, mas so as letras que contam, pois Chico considerado um dos melhores poetas da msica popular. NECCENTREVISTAS - Seria ento, professora, s para provocar um pouquinho, um grande erro dizer que os Estudos Culturais, como vrios outros crticos disseram, banalizaram a literatura comparada? ENEIDA Sim, mais ou menos isso. As pessoas que praticam e defendem no Brasil a Literatura Comparada citavam muitas vezes somente os europeus, os especialistas na disciplina, os franceses, os alemes, etc. Quando os Estudos Culturais entram na Amrica Latina, principalmente por meio da academia americana, mas se apropriando de conceitos de crtica e cultura pertencentes a tericos europeus, muda um pouco a recepo desses estudos entre ns. Criou-se uma polmica, porque o fato de no se preocupar com as noes de valor e de gosto, com o que bom e o que no , muda muito o parmetro analtico no interior dos estudos comparados e culturais. Para mim esta polmica j no tem muito sentido, embora exista ainda estudiosos que no aceitam a diluio dos critrios rgidos de valor.

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    NECC-ENTREVISTAS Nos ltimos anos, a crtica tem se voltado para a Amrica Latina. Por que isso ocorre e como a senhora se posiciona perante tal fato? ENEIDA Eu acho que a Amrica Latina ns somos a Amrica Latina, a gente se posiciona sempre de modo afastado, separado no se conhece. No conhecemos a literatura, a histria, a poltica, pelo fato de estarmos sempre com os olhos voltados para a Europa, para os Estados Unidos, e mais recentemente, para a literatura do Terceiro Mundo, recebendo as teorias, e as deglutindo. No entanto, hoje estamos muito preocupados em conhecer mais a Amrica Latina, to perto da gente, mas s vezes to distante. Na atualidade, o atraso em relao Amrica Latina est sendo corrigido, pois comeamos a trocar idias, a dialogar com os conceitos produzidos aqui e ali, a traduzir nossos textos e nossa literatura para os vizinhos. O leitor brasileiro sempre se interessou pela literatura latino-americana, sempre a traduzimos, mas eles se mostraram constantemente desinteressados com relao nossa cultura. A situao agora outra.

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    NECC-ENTREVISTAS A crtica latino-americana muito traduzida e estudada nas universidades brasileiras. A recproca verdadeira no que se refere crtica brasileira? Como senhora contextualizaria a crtica brasileira hoje na Amrica Latina? ENEIDA Eu acho que so poucos, ainda so poucos. Mas j h todo esforo. Na Argentina, por exemplo, h um grupo que liderado por Florencia Garramuo e seu marido, lvaro, alm de outros pesquisadores, que esto traduzindo textos brasileiros, estudando literatura brasileira. A Florencia acabou de publicar um livro que se chama Modernidades Primitivas, muito interessante, porque ela vai relacionar Carlos Gardel e Carmem Miranda ou seja, Argentina e Brasil. isso que est faltando a gente fazer. Quer dizer, voc no pode estudar a figura da Carmem Miranda como se ela existisse sozinha, tem que analis-la com a ajuda de outras personalidades e artistas, tais como, Evita Pern, outras cantoras do Caribe, ou mesmo do Brasil e que se projetaram nos Estados Unidos ou na Europa. O envolvimento do samba com o tango, o maxixe, os ritmos africanos, as tendncias do Caribe so hoje uma das mais visveis marcas da integrao do continente por meio da msica. Ento isso tudo no digo que d certa integridade Amrica Latina porque no isso mas fornece certo perfil e a bons resultados so atingidos atravs do mtodo comparativo. nesta direo que estou querendo colocar em dilogo os acontecimentos marcantes da dcada de 1950 no Brasil e na Argentina com as mortes de Carmem Miranda, Evita Pern, Getlio Vargas. Personagens polticas com personagens do meio musical, mas que provocaram efeitos surpreendentes na populao pelo seu carisma e, principalmente, pela sua morte prematura e trgica. Pelo fato de mostrar que essas mortes contm pontos semelhantes e diferentes, acrescento valores e interpretaes minha anlise de Carmem Miranda. Se o objetivo da pesquisa se concentrar numa figura apenas, no estabeleo possveis pontes culturais e polticas entre os dois pases, entre acontecimentos significativos para a compreenso de nosso to complexo continente. NECC-ENTREVISTAS Ento um bom exemplo dessa interlocuo entre as pesquisas, entre a crtica e entre a literatura, por conseqncia, seria o caso da revista Margens/ Mrgenes e a revista Cincia Hoje, que uma revista que recebemos como bolsistas de iniciao cientfica que trouxe no exemplar de maro uma edio bilnge, entre Argentina espanhol e castelhano e o portugus. Ento seria um bom exemplo dessa troca de informaes. ENEIDA Eu acho que a nossa sada. Nosso grupo de pesquisa do Acervo de Escritores Mineiros da UFMG est refazendo o antigo projeto que havia sido desenvolvido com a CAPES e o CNPq, e que vai ser rotulado de Resduos Margens. Trata-se de retomar as culturas das margens e desenvolver tpicos

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    relativos a esse tema, com o objetivo de dialogar nossa cultura com outras, consideradas marginalizadas pelo discurso oficial. NECC-ENTREVISTAS Acabou de ser lanado pela editora da UFMG o livro organizado pela senhora e pelo professor Reinaldo Marques Modernidades Alternativas na Amrica Latina. E tambm a senhora organizou um livro de memrias de sua me. Gostaramos que falasse um pouco a respeito desses livros. ENEIDA Vou falar primeiro do livro de minha me, que resultou de um projeto meu e da minha irm, Leila, foi ela quem comeou digitando os discursos dela. Minha me foi uma professora catedrtica de portugus do primeiro e segundo graus e defendeu sua tese em 1950, em Belo Horizonte. Trabalhou o tempo todo como professora e era sempre convidada a redigir e proferir discursos. Era sempre solicitada no s na escola como tambm no Rotary Club, tendo sido, com meu pai, um de seus fundadores. E ela guardou todo esse material, manuscritos e datiloscritos. Dividimos o livro em cinco partes e ficou muito bonito, est simples, mas muito interessante. O Paulo Schmidt foi o autor da programao grfica. E o ltimo livro, que j est saindo pela UFMG, foi o resultado de dois encontros que a gente fez em Belo Horizonte, ento resolvemos trabalhar com a noo de modernidades alternativas. justamente o que estamos desenvolvendo na pesquisa, em torno das modernidades tardias. Trata-se de outra denominao, pois no se concebe mais aceitar rtulos referentes modernidade hegemnica europia. O conceito de modernidade vai passar por esses crivos. O conceito de modernidades alternativas representa a idia de que, por exemplo, na sia, no prprio Oriente, j esto se desenvolvendo outros tipos de modernidades que no seguem o parmetro dos conceitos relativos modernidade hegemnica. Ento isso me agrada muito, ao lado da participao, nesse livro, de pesquisadores da Amrica Latina, como Hugo Achugar, Adriana Prsico, Julio Ramos, autor de um texto belssimo do livro, no qual discorre sobre a droga, o haxixe, e sobre a relao entre Walter Benjamin e a modernidade europia. Ao mesmo tempo que acredita numa modernidade urbana, parisiense, criada nas ruas e por meio dos flneurs, Benjamin, ao se encontrar em Marseille, assiste a um conjunto de jazz composto por negros, a ele percebe que outras modalidades de modernidade podero coexistir. preciso tentar mapear um pouco essas mltiplas modernidades e ps-modernidades que nos cercam e nos situam tambm no nosso cotidiano. NECC-ENTREVISTAS Ainda em relao ao livro de sua me, eu acho que deve ter sido um campo muito frtil lidar com esses documentos, uma vez que a senhora disse que conversas, fotos, entrevistas, palestras papis de modo geral contribuem para a crtica cultural biogrfica. A senhora faz alguma interveno diretamente no livro?

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    ENEIDA No, minha interveno foi apenas quanto a reviso dos textos e sua organizao, porque os discursos feitos por ela so desde 1945 at os anos 90 e precisavam ser um pouco atualizados. Tive ento de fazer uma reviso das repeties, das datas, etc. e organizar o livro por temas. Organizei o primeiro tema, que foi a famlia. Anexamos um discurso proferido na Academia Manhuauense de Letras no qual ela escreve a histria de meu pai, a histria da famlia e, em outra ocasio, ela narra a histria de sua famlia. Escreve tambm sobre a Escola em que lecionou durante mais de trinta anos, sobre os eventos da cidade, da Casa da Amizade, da qual foi secretria, alm de algumas cartas escritas por ela para amigos e familiares. Esse registro permite a contextualizao de uma vida que no s dela, como tambm das pessoas com as quais ela conviveu. As cidades hoje carecem de memria, preciso registrar os fatos, pois amanh ningum ir se lembrar dessas histrias.

    NECC-ENTREVISTAS O crtico Silviano Santiago viria pela primeira vez a Campo Grande, infelizmente no foi dessa vez. Deixamos aqui nossa frustrao pelo desencontro. Gostaramos que a senhora, que discpula crtica

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    direta dele, nos falasse da importncia de Silviano Santiago para a crtica brasileira hoje. ENEIDA Eu considero Silviano Santiago um dos maiores crticos hoje, de crtica cultural, literria e o considero ainda um grande escritor. Ele foi quem nos ensinou e nos ensina o tempo todo, com seu exemplo, a respeito da preocupao com a seriedade profissional, a seriedade de sempre preparar um texto quando vai se dirigir a este ou aquele auditrio. Nada se improvisa. perfeitamente antenado ao que se passa no mundo, est por dentro das novidades, por dentro de tudo aquilo que est surgindo em termos de teoria, de arte, etc. uma pessoa que pela manh se interessa pelas notcias de toda sorte adquiridas pela internet, l o The New York Times, os jornais mais importantes do mundo e do Brasil. Ele nos preparou ainda para os estudos de Literatura Comparada e dos Estudos Culturais. Retomando a afirmao do Antonio Candido, de que estudar Literatura Brasileira estudar Literatura Comparada, no sentido de que necessrio marcar o lugar de onde se fala. Se voc est falando do Brasil, voc tem sempre que puxar um pouco dessa sua reflexo, no s para o lugar de onde se est falando, mas tambm o momento em que voc est falando. Mesmo que esteja, no presente, realizando um trabalho do sculo 18, do sculo 19, a sua viso, suas leituras, so as de hoje. A sua experincia a de hoje. Somos leitores dos dias atuais. Essa ainda uma das boas lies que dele recebemos. H crticos, estudiosos que estudam o barroco do sculo 18 e ficam l no sculo XVIII. No tentam trazer essa mensagem para os dias contemporneos. A seriedade profissional seria, talvez, a sua maior qualidade como intelectual e escritor. NECC-ENTREVISTAS Em relao ao seu texto Nas margens, a metrpole, a senhora disse que as demarcaes polticas e geogrficas no existem mais. Isso vale ento, consequentemente, para a crtica, a literatura comparada e os estudos culturais e para qualquer tipo de estudo que a gente possa fazer hoje em qualquer produo artstica literria? ENEIDA um pouco temerrio dizer que as demarcaes geogrficas no existem mais, mas eu acho que se voc for pensar, por exemplo, em identidade nacional, em termos de literatura brasileira, essa priso a um certo regionalismo j um assunto descartado. Ento a gente tem hoje uma preocupao com o neo-regionalismo ou o ps-regionalismo, ou o local que est sempre em dilogo com o global, as periferias se relacionando com o centro, etc. Todas essas afirmaes so muito relativas. No ltimo nmero da revista Bravo! no tive tempo de ler mais vi a manchete, que trata das artes plsticas, revelando a como o motivo nacional no mais a primeira preocupao dos artistas. Essa preocupao eu tenho demonstrado em relao literatura, no a literatura modernista, da dcada de 1920. Com Mrio de Andrade, era preciso construir a cultura nacional, pois se estava tambm

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    construindo uma idia de nao e de Estado moderno. Toda essa proposta modernista foi importantssima para a criao de uma literatura brasileira. Mas hoje no se observa mais essa priso a um territrio, a uma geografia. Mas ao mesmo tempo voc est falando de um determinado lugar. Eu acabei de ler um livro do Bernardo Carvalho, O filho da me, vou fazer uma resenha. Achei um livro muito difcil, porque se passa em So Petersburgo e Moscou. E fiquei pensando justamente nessa questo dos territrios. Ele est h muito tempo trabalhando literariamente nesta direo, com os romances O sol se pe em So Paulo, Monglia e Nove Noites. A pergunta que se faz at que ponto essa estratgia de enfocar lugares estrangeiros, escrever sobre lugares talvez considerados por ns como exticos, aproveitando desse extico que a Rssia, a Monglia, para fazer literatura brasileira? Chico Buarque, por exemplo, escreveu Budapeste, livro no qual a ao se passa tanto em Budapeste como no Rio de Janeiro. Acaba de lanar outro livro com outra proposta mais brasileira. A caracterizao da literatura brasileira hoje se acha meio complexa, pois h vrias tendncias e caminhos s vezes opostos. A multiplicidade uma das tnicas de nossa poca. NECC-ENTREVISTAS A senhora falou de uma concepo de autofico que a senhora est estudando. Com relao ao ltimo romance do Silviano Santiago, Heranas, teria alguma relao com esse conceito de autofico? ENEIDA Sim, ele at assumiu que sua literatura procede segundo a autofico. Vai sair um artigo dele na Revista Aletria, da Faculdade de Letras da UFMG, organizada por mim e outros, em comemorao dos 40 anos da Faculdade de Letras e os 25 da ps-graduao. Nesse artigo ele desenvolve essa teoria da autofico ao se referir a sua obra. Na verdade o que ele realiza na literatura esse tipo de procedimento, diferente da autobiografia. O escritor est o tempo todo inserido na obra, mas sempre na condio de personagem. Constroi uma personagem que retira de conhecimentos pessoais, mas ela o tempo todo mesclada com outras de sua imaginao, alm de ter traos de outras. interessante perceber que quando se escreve um texto memorialista e ele escreve o tempo todo memrias, embora mentirosas - no se trata de uma literatura memorialista tout court, uma autobiografia; porque est sempre fingindo e descartando a relao com os acontecimentos vividos, com a biografia propriamente dita. NECC-ENTREVISTAS Que conselho a senhora daria para os alunos de graduao e de ps-graduao que esto se enveredando na pesquisa? ENEIDA Eu acho que vocs tm que continuar e conservar sempre o livro aberto, estudar muito, mas tambm, como j dizia Mrio de Andrade, se apropriar ainda da experincia da rua. No s ler, tambm relacionar essa leitura e essa literatura com a vida, caso contrrio, a vida se desloca da

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    literatura e essa situao no desejada. diferente de transformar a vida em literatura, ficcionaliz-la. Embora seja interessante a leitura da vida como se fosse um pouco semelhante a um texto. Gosto de repetir uma afirmao que encontrei numa revista sobre autobiografia, que a seguinte: Olha, depois que comecei a encarar meu marido como um personagem, o meu casamento melhorou. Quando voc est encarando e achando que ele pessoa, voc enxerga defeitos, quer que ele se comporte conforme seus desejos, vendo s qualidades nele. Quando voc observa que uma pessoa tem mais defeitos do que qualidades, voc a ficcionaliza e, assim, convive melhor com as diferenas(risos). NECC-ENTREVISTAS Agradecemos professora Eneida por essa entrevista e esperamos rev-la muitas outras vezes em Campo Grande para nos privilegiar e nos dar o prazer de sua companhia. Obrigada, professora, em nome do Ncleo, em nome de todos os membros do NECC. ENEIDA Eu que agradeo, sempre bom vir aqui e me encontrar com os amigos e colegas. ENEIDA MARIA DE SOUZA Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nvel 1A, Professora titular em Teoria da Literatura da UFMG; professora Emrita da UFMG; graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1966), mestre em Letras (Literatura Brasileira) pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (1975) e doutora em Literatura Comparada - Semiologia - Universit de Paris VII (1982). Tem experincia na rea de Letras, com nfase em Teoria Literria, atuando principalmente nos seguintes temas: critica cultural, dependncia cultural, Mrio de Andrade, biografia literria e crtica brasileira. Orientou 1 bolsista de ps-doutorado, 17 teses de doutorado, 3 dissertaes de mestrado, 4 monografias de final de curso, 11 bolsistas de Iniciao Cientfica. Tem 6 livros publicados, 12 livros sob sua organizao, vrios artigos em peridicos nacionais e estrangeiros, alm de mais de uma dezena de captulos de livros. ltimos ttulos publicados: Crtica cult (2002-2007); Pedro Nava - o risco da memria (2004); Tempo de ps-crtica (2007), O sculo de Borges, 2a edio, 2009. Participa do Projeto Integrado Acervo de Escritores Mineiros da FALE/UFMG, com o projeto "Biografias saem dos arquivos". Atua como membro do comit editorial de vrias revistas nacionais, destacando-se, entre elas, a revista Margens/Mrgenes, de mbito internacional. Exerce atividades interinstitucionais como professora-visitante em vrias universidades brasileiras, como a UFBA, UERJ, PUC/Rio, UFJF, UFRN, UFC, UFRGS, alm de universidades estrangeiras, como as de Nottingham (Inglaterra), Poitiers (Frana), San Andrs (Argentina).