a desapropriação sustentável da amazônia - o caso dos investimentos em dendê no pará

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Maria Backhouse Fair Fuels? Working Paper 6 A desapropriação sustentável da Amazônia O caso dos investimentos em dendê no Pará

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o Dendê na Amazonia

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  • Maria Backhouse

    Fair Fuels? Working Paper 6

    A desapropriao sustentvel da Amaznia

    O caso dos investimentos em dend no Par

  • 2 | Maria Backhouse

    Impressum

    Autora:

    Maria Backhouse

    Contato: [email protected]

    Tradutor: Fernando dos Santos Baldraia Sousa

    Contato: [email protected]

    Direo do projeto:

    Institut fr kologische Wirtschaftsforschung (IW), Berlin

    Potsdamer Str. 105, 10785 Berlin

    www.ioew.de

    Instituies parceiras:

    Instituto de Estudos Latino Americanos (LAI), Freien Universitt Berlin

    Rdesheimer Str. 54-56, 14195 Berlin

    www.lai.fu-berlin.de/pt

    Deutsches Institut fr Entwicklungspolitik (DIE)

    Im Tulpenfeld 6, 53113 Bonn

    www.die-gdi.de

    Citao

    Backhouse, Maria (2013): A despropriao sustentvel da Amaznia. O caso de investimentos em

    dend no Par, Fair Fuels? Working Paper 6, Berlin.

    A presente contribuio foi desenvolvida no mbito do projeto Fair Fuels? Entre sucumbir ou

    mudar as fontes de energia: uma multidimensional anlise socioecolgica da poltica transnacional

    para biocombustveis, o qual integra o programa Pesquisa Socioecolgica (SF Sozial-

    oklogische Forschung), financiado pelo Ministrio Alemo da Educao e Pesquisa Cientfica

    (BMBF). Para mais informaes consulte os sites www.fair-fuels.de/en e www.sozial-oekologische-

    forschung.org.

    Berlim, setembro 2013

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 3

    ndice

    1 Introduo ............................................................................................................. 5

    2 Green Grabbing sob a perspectiva da ecologia poltica ................................... 7

    2.1 Crise scio-ecolgica .......................................................................................................................... 8

    2.2 Green Grabbing e a acumulao primitiva continuada ....................................................................... 9

    3 A expanso das plantaes de palma de leo no Par ................................... 11

    3.1 O Programa de Produo Sustentvel de leo de Palma ............................................................... 12

    4 Novos atores ....................................................................................................... 14

    5 Green grabbing ................................................................................................... 16

    5.1 Reestruturao das relaes de acesso e propriedade da terra I: Compra e especulao ......... 17

    5.2 Reestruturao das relaes de acesso e propriedade da terra II: Titulao acelerada .............. 18

    5.3 Reestruturao das relaes de produo I: Agricultura familiar por contrato ................................. 18

    5.4 Reestruturao das relaes de produo II: O trabalho nas plantaes ........................................ 20

    5.5 Green grabbing: estratgia das empresas........................................................................................ 21

    5.6 A narrativa das reas degradadas .................................................................................................... 22

    6 Concluso ........................................................................................................... 24

    Bibliografia ....................................................................................................................... 26

  • 4 | Maria Backhouse

    Resumo

    O Brasil um dos maiores produtores e consumidores de agrocombustveis do mundo. Afim de

    diversificar sua base de matrias-primas para o biodiesel, que tem atualmente 80% de sua

    produo oriunda do leo de soja, desde 2010 vem sendo promovida na Amaznia Legal a

    produo de leo de palma atravs de um programa fomentado pelo Estado. O objetivo poltico da

    iniciativa , por intermdio da implementao de um cultivo ecologicamente sustentvel em reas

    chamadas antropizadas ou degradadas, construir uma situao de triplo ganho, isto , um

    cenrio em que setor de leo de palma, proteo ao meio ambiente, assim como desenvolvimento

    rural sejam igualmente beneficiados.

    Com base em levantamento emprico fruto de trabalho de campo realizado no Par, argumenta-se

    neste artigo que o Programa de Produo Sustentvel de Palma de leo desencadeia em verdade

    um processo de green grabbing. Sob esta denominao vm sendo discutidos atualmente

    variados processos de tomada, apropriao ou privatizao de terras impulsionados por medidas

    de proteo ao meio ambiente ou ao clima. No caso aqui estudado, este processo apresenta trs

    caractersticas correlacionadas: a crescente concentrao do controle sobre o acesso e uso da

    terra levada a cabo pelo complexo agroindustrial de leo de palma, novas alianas entre empresas

    transnacionais, Estado e elites locais e, por fim, a legitimao da explorao agroindustrial de

    reas denominadas como degradadas, com a finalidade de proteo ao clima.

    Abstract

    Brazil is one of the largest agrofuel producers and consumers in the world. In order to diversify the

    raw material basis of agrodiesel, of which 80% are currently produced from soy oil, palm oil

    production has been promoted through a state program in the Amazon Basin since 2010. By a

    sustainable implementation of oil palms on so-called degraded lands, the political aim is to

    contribute to a triple win situation for the palm oil industry, climate change policy, as well as, rural

    development.

    The paper challenges this aim by arguing on the basis of an empirical field research in Par that

    the expansion of palm oil production actually is an expression of green grabbing. Green grabbing

    refers to different processes of enclosure, land grabbing, or privatization processes that are

    initiated by environmental or climate protection measures. Green grabbing is characterized by an

    increasingly concentrated control over land access and land use in the palm oil sector, new

    alliances between transnational corporations, state and local elites, as well as, a legitimization of

    the agro-industrial use of so-called degraded areas for climate protection.

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 5

    1 Introduo1

    A produo mundial de leo de palma aumentou de 4,5 para 52,3 milhes de toneladas entre 1980

    e 2012 (USDA 2012c). De acordo com as projees da OCDE (Organizao para Cooperao e

    Desenvolvimento Econmico) e da FAO (Organizao das Naes Unidas para Alimentao e

    Agricultura) essa tendncia de crescimento deve prosseguir ao longo das prxima dcadas

    (OECD/FAO 2012: 134) e conduzir expanso da produo em mais de 40 pases (Teoh 2010:

    5).

    A exemplo do que ocorre com outras flex-crop2, a utilizao do leo de palma varia segundo o

    preo vigente no mercado, podendo ser empregado no setor de alimentos, farmacutico ou de

    agrocombustveis.3 Alm disso, pelo fato de oferecer maior produtividade por rea cultivada do

    que o de soja, o leo de palma considerado uma alternativa causadora de menor impacto sobre

    o clima.

    No obstante, seu cultivo se tornou alvo de crticas, e acabou por contribuir para uma crescente

    rejeio do financiamento estatal produo de agrocombustveis na Europa (Pye 2008: 429),

    dado que plantaes de palma de leo com finalidades agroindustriais vm sendo vistas como a

    principal razo da destruio de florestas, aumento das emisses de carbono e deslocamento

    forado de comunidades tradicionais e de agricultores familiares no sudeste asitico (Dudley,

    1997; Hooijer et al. 2006; Friends Of The Earth, 2006; Greenpeace, 2007, 2008). Tais crticas tm

    conduzido no a uma alterao substantiva das atuais polticas agrria e de proteo ao clima,

    mas antes a uma nova, supostamente sustentvel estratgia: a fomentao da produo de leo

    de palma em reas chamadas degradadas. Para evitar que este processo acarrete a expulso

    da populao local, tem-se recomendado a incluso desta na cadeia produtiva (Deininger et al.

    2011).

    O Brasil parece estar perseguindo tambm esta estratgia. At o presente momento o pas no

    desempenha um papel importante na produo mundial de leo de palma e importa mais da

    metade daquilo que consome. Eis a razo pela qual o governo federal agora investe num

    programa de expanso do setor. Diferentemente do ocorrido no sudoeste asitico, a variante

    brasileira objetiva ser sustentvel, e foi planejada de modo a restringir-se terras antropizadas,

    preferencialmente pastagens degradadas no estado do Par (EMBRAPA & MAPA, 2010). reas

    de proteo ambiental e territrios de comunidades tradicionais nas regies destinadas s

    plantaes de palma de leo devero permanecer resguardadas. Linhas especiais de crdito e

    regulamentao de cotas devero garantir que a agricultura familiar4 seja formalmente integrada

    ao setor. Esses planos foram recebidos positivamente por organizaes internacionais. O Banco

    Mundial, em seu Documento Estratgico para Produo Sustentvel de leo de Palma, cita

    elogiosamente o plano brasileiro de cultivo da palma de leo em terras abandonadas, degradadas

    e h muito desflorestadas (Banco Mundial 2011: 18).

    1 Esta publicao uma tradudo de Backhouse (2013a).

    2 Sobre o conceito de flex-crop ver Borras et al. (2011: 14).

    3 Usamos o termo agrocombustveis em vez de biocombustveis porque o prefixo bio sugere uma produo colgica ou

    sustentvel o que no o caso da produo agroindustrial de combustveis base de trigo, de soja, cana, dend.

    4 Neste trabalho, a expresso agricultura familiar usada como coneito operacional para qualquer unidade de produo

    em que a mo de obra familiar predomina em mais de 90% do pessoal ocupado. Hurtienne (2005: 21).

  • 6 | Maria Backhouse

    Em contraposio essas avaliaes, gostaramos de argumentar, com base em trabalho de

    campo5 realizado no estado do Par, que o Programa Federal de Produo Sustentvel de leo

    de Palma tem conduzido no quela mencionada situao de triplo ganho, em que setor

    produtivo de leo de palma, proteo ambiental e desenvolvimento rural so simultaneamente

    beneficiados, seno intensificado um fenmeno que h dcadas tem tido lugar na regio: o

    controle sobre acesso e uso da terra atravs do agronegcio transnacional. Comunidades

    tradicionais e agricultura familiar tm nisso menos a ganhar do que a perder. Em contraste com a

    violncia empregada nos anos 80, os atuais processos de apropriao de terras ocorrem de

    maneira em boa medida pacfica e, apresentados como projetos ecologicamente sustentveis e

    de desenvolvimento em reas j antropizadas, atravessam o debate pblico praticamente livres de

    questionamento. Essa aparentemente pacfica imposio do agronegcio ancorada em

    parmetros de sustentabilidade ecolgica apontam, em nossa opinio, para o fenmeno

    denominado green grabbing.

    Sob essa denominao vem sendo discutidos processos de apropriao de terra impulsionados

    por estratgias de proteo ao clima e ao meio ambiente (Vidal, 2008; Fairhead et al. 2012;

    Corson & MacDonald, 2012; Nalepa & Bauer, 2012). A supresso da agricultura familiar e de

    outras formas tradicionais de uso da terra levada a cabo pelo setor de agronegcio no em

    absoluto algo novo, acontece j h dcadas. Novo no green grabbing antes o modo de sua

    legitimao, efetivada na fixao de critrios ecolgicos, numa estratgia de apropriao

    aparentemente participativa e no estabelecimento de alianas novas entre os atores envolvidos,

    tais como empresas transnacionais, Estado, elites locais e em alguns casos ONGs

    (ambientalistas) (Corson & MacDonald, 2012: 263). A ampla legitimidade concedida explorao

    agroindustrial de reas supostamente degradadas tem profundas implicaes polticas, uma vez

    que, como se procurar demonstrar neste artigo, dificulta a oposio ou resistncia ao Programa

    de Produo Sustentvel de leo de Palma.

    A argumentao ser desenvolvida em cinco etapas: primeiramente, se delinear o marco

    analtico dessa investigao, que tem como base o conceito marxista de acumulao primitiva

    continuada (parte 2), ao qual sucede uma introduo temtica da recente expanso do setor de

    leo de palma no Par e a da decorrente mudana na constelao de atores sociais envolvidos

    (partes 3 e 4). A seguir, procede-se uma descrio das principais dinmicas do green grabbing, o

    responsvel por colocar em marcha uma reordenao do controle e do acesso aos recursos

    naturais na regio (parte 5). Ainda neste tpico trataremos da questo da legitimao discursiva

    da atual modalidade de apropriao de terras como sustentvel, e ento dos desdobramentos

    polticos deste processo. Por fim, apresenta-se um resumo da argumentao (parte 6).

    5 Em estadias de pesquisa que se estenderam por vrios meses entre os anos de 2010 (outubro at dezembro) e 2011

    (maro at julho), foram levantados dados qualitativos em Braslia, Belm e em cinco municpios paraenses (Moju, Acar,

    Tom-A, Concrdia e Bujaru), os quais foram complementados com dados secundrios e literatura no-acadmica. Este

    trabalho de campo foi empreendido como parte de tese de doutorado realizada no mbito do projeto Fair Fuels (www.fair-

    fuels.de), financiado pelo Ministrio Alemo da Educao e Pesquisa Cientfica (BMBF). Agradeo especialmente a Prof.

    Dr. Rosa Acevedo, ao Prof. Dr. Thomas Hurtienne e Luciano da Penha pelo apoio e cooperao.

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 7

    2 Green Grabbing sob a perspectiva da ecologia poltica

    O presente estudo situa-se na rea da Ecologia Poltica (Political Ecology). O termo refere-se a um

    amplo campo de pesquisas cujo desenvolvimento remonta aos anos 70. Denominador comum das

    diferentes abordagens que o conformam a conceituao de problemas ambientais como

    questes de natureza eminentemente poltica. Por essa razo, crises ecolgicas como

    esgotamento do solo ou mudana do clima no podem ser analisadas fora da teia de relaes

    de poder sociais e transnacionais6 nas quais esto inseridas (Blaikie & Brookfield, 1987; Bryant &

    Bailey, 2005; Escobar, 2008; Acselrad et al. 2008; Robbins, 2010; Peet & Watts, 2010).

    Para pensar a relao entre natureza e sociedade, recorro abordagem dialtica das relaes

    entre sociedade e natureza (em alemo gesellschaftliche Naturverhltnisse), elaborada por

    Christoph Grg (1999, 2004c, 2008). Segundo Grg, a natureza no existe como essncia, seno

    como algo produzido atravs da apropriao social. A maneira como os recursos naturais so

    cientificamente ou culturalmente construdos no , porm, neutra naquilo que concerne s

    relaes de poder. Se uma determinada regio se v classificada como degradada, para que ali

    seja cultivada matria-prima para produo de agrocombustveis, levanta-se pois, por um lado, a

    questo relativa a quem foi confiada a autoridade de classific-la como tal, uma vez que inexiste

    uma definio universalmente vlida de rea degradada (Blaikie & Brookfield, 1987; Nalepa &

    Bauer, 2012). Por outro lado, tambm de se perguntar quem viria a auferir lucros do fato dessa

    matria-prima para agrocombustveis vir a ser produzida em reas supostamente degradadas).

    Isso no significa, entretanto, que natureza seja aqui entendida exclusivamente como um

    construto. Eis porque no se contesta, por exemplo, que a fertilidade do solo seja suscetvel de se

    reduzir (Blaikie & Brookfield, 1987). O carter inovador da abordagem de Grg reside exatamente

    no fato de que ela nos permite pensar materialidade fsica da natureza (Wissen, 2008). Essa

    materialidade mostra-se, no caso da palma de leo, na necessidade que possui esse vegetal de

    um clima tropical para se desenvolver e a despeito de otimizaes tecnolgicas somente depois

    de sete anos alcana sua melhor safra. No obstante, a maneira como ela produzida e

    comercializada ao redor do mundo inseparavelmente ligada ao modo social, capitalista de sua

    apropriao.

    A incontrolabilidade da materialidade da natureza se mostra nitidamente experincia sensvel

    tambm quando de sua manifestao na forma de catstrofes naturais, mudana climtica ou

    infestao de plantaes por pragas ou doenas. Crises ecolgicas deste tipo evidenciam tambm

    a contradio do modo de produo capitalista, que constantemente ignora a materialidade da

    natureza, muito embora seja dela dependente (por exemplo, de recursos naturais ou combustveis

    fsseis) (Altvater, 2006).

    6 Com conceito de transnacionalidade pretende-se aqui considerar relaes sociais e de poder para alm dos limites

    nacionais, sem, contudo, subestimar a importncia do Estado Nacional.

  • 8 | Maria Backhouse

    2.1 Crise scio-ecolgica luz destas observaes, aderimos hiptese, segundo a qual h algumas dcadas uma crise

    scio-ecolgica vem se agravando, um complexo de variadas e interconectadas dinmicas de

    crise que concernem ao clima, energia e recursos naturais, uma crise da agricultura familiar e uma

    crise alimentar (Bader et al. 2011: 16). Este complexo de crises scio-ecolgicas , de uma

    perspectiva marxista, articulada com a crise do capitalismo financeiro neoliberal (Bader et al.

    2011), que aqui, recorrendo a David Harvey, ser entendida como uma crise de

    superacumulao iniciada j nos anos 70 (Harvey, 2005). Porm, em virtude da materialidade da

    natureza no possvel derivar o fenmeno da crise scio-ecolgica simplesmente da crise

    econmica atual. Crises scio-ecolgicas tem dinmicas temporais e espaciais prprias, que se

    desenvolvem com certo grau de autonomia relativamente outras dimenses sociais e

    econmicas (Bader et al. 2011: 13).

    A acumulao primitiva continuada entendida como estabelecimento ou reestruturao das

    relaes capitalistas de produo e de propriedade pode, neste contexto, aparecer como uma

    estratgia de enfrentamento das crises, na medida em que atravs de desapropriaes,

    cercamentos ou da imposio de relaes capitalista de propriedade, novos espaos de

    acumulao so conquistados (terras cultivveis) ou criados (mercado de crditos de carbono).

    Desta maneira, aponta Christian Zeller, a atual crise scio-ecolgica abre ao capital novas

    possibilidades de alocao do capital excedente (Zeller, 2010: 103). Ela pode, igualmente,

    desencadear a apropriao de terras para, digamos, produzir matrias-primas para

    agrocombustveis. Eis a razo pela qual gostaramos de argumentar que o chamado green

    grabbing, especialmente atravs da capitalizao da natureza, um elemento central do

    enfrentamento das crises.

    A principal ideologia legitimadora e ao mesmo tempo programa poltico dessa estratgia de

    enfrentamento da crise , como em muitos outros mbitos do social, a doutrina do

    neoliberalismo (Harvey, 2007: 8). O ncleo da ideologia neoliberal consiste na ideia de que um

    estado de prosperidade generalizada pode ser alcanado atravs da salvaguarda do direito

    propriedade privada, livre mercado, assim como reduo do Estado funo de garantidor do

    arcabouo institucional necessrio a isto (ibidem). Crescentemente incutida em todas as esferas

    sociais, essa doutrina legitima o processo pelo qual recursos naturais supostamente para sua

    prpria proteo so cercados, privatizados e transformados em mercadoria. O que aqui se

    realiza no uma neoliberalizao apenas dos recursos naturais, seno tambm das medidas de

    proteo ao meio ambiente (Fairhead et al. 2012).

    Consoante o contexto regional e o desenho dos conflitos sociais em jogo a doutrina neoliberal tem

    sido implantada em diferentes graus e assumido formas variadas. Assim, tomando as palavras de

    Noel Castree, prefere-se falar aqui no de neoliberalismo, mas sim de neoliberalizao da

    natureza (Castree, 2010).

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 9

    2.2 Green Grabbing e a acumulao primitiva continuada Com o conceito de acumulao primitiva Marx descreve, tomando o caso da Inglaterra como

    exemplo, a transio do feudalismo para o capitalismo como um processo em que os camponeses

    so separados de seus meios de produo. No centro dessa anlise se encontra a explicao da

    formao histrica do modo de produo capitalista, que se caracteriza pela oposio entre capital

    e trabalho (MEW 23: 741791).

    Entender a acumulao primitiva no como uma fase histrica singular, restrita fase inicial de

    formao do capitalismo, seno como trao permanente desse modo de produo, o

    denominador comum de um gama de autores (Zeller, 2004: 12; Harvey, 2005; De Angelis, 2001;

    2012; Glassman, 2006; Grg, 2004a, b; Kalmring, 2006). tambm o horizonte terico ao qual se

    filia o presente estudo. Essa concepo retoma a interpretao da obra de Marx feita por Rosa

    Luxemburgo (Luxemburgo 1923), para quem o capitalismo necessita de um exterior no-capitalista

    (espaos ou relaes sociais no-capitalistas) afim de poder reproduzir-se nas fases de crises (De

    Angelis, 2012).

    Em nossa opinio, o desdobramento do conceito de acumulao primitiva feito por Massimo de

    Angelis inovador porque o foco analtico passa a ser dirigido s implicaes polticas do

    processo de separao entre produtores e meios de produo (De Angelis, 2001). Angelis entende

    essa separao como um processo sempre em disputa e, por essa razo, contingente em seu

    transcorrer histrico. Se em uma determinada regio o agronegcio ir ou no se impor a outras

    formas de uso da terra depende tambm dos atores, suas alianas e estratgias de ao e de

    resistncia. Na anlise de tais processos, o voltar da ateno aos atores, seus atritos e

    resistncias contm um potencial subversivo e emancipador.

    Separaes caracterizam o sistema capitalista de produo. Uma vez produzida, uma separao

    se reproduzir em grau sempre crescente (MEW 23: 742). Diferentemente de processos de

    separao no transcorrer normal da acumulao, trata-se no caso da chamada acumulao

    primitiva, da produo primeira de relaes sociais capitalistas com a natureza ou, mais

    precisamente, na profunda reestruturao dessas relaes, agora, porm, alavancadas pelo

    capitalismo (De Angelis, 2001: 8f.). Caracterstico da acumulao primitiva continuada o fato de

    que o processo de separao posto em ao atravs de foras extraeconmicas, como o

    financiamento estatal, rearranjos jurdicos na legislao pertinente ou violncia. Quando o

    processo se mostra convincente do ponto de vista ideolgico ou discursivo, dizer, quando se

    torna hegemnico (em sentido gramsciano) (Hall 1989), pode ser levado adiante de maneira

    pacfica (Kelly, 2011). Assim, atenuada a violncia estrutural encerrada neste processo de

    separao.

    Acumulao primitiva continuada aqui entendida no em seu sentido marxista ortodoxo, como lei

    econmica, seno como um conceito flexvel para a anlise de transformaes sociais (Kalmring,

    2006; Kelly, 2011). Nisto consiste seu potencial analtico no diagnstico de questes

    contemporneas (Grg 2004b: 1501). Este conceito pode ser empregado tanto na anlise de

    processos histricos de separao relativos fase de formao do capitalismo, como na das

    atuais dinmicas, cujo contexto delineado pelas estratgias de enfrentamento de crises (De

    Angelis, 2001: 5). Consequentemente, o conceito usado de maneira diversificada, cobrindo de

    anlises que vo da precarizao do trabalho at privatizao do patrimnio pblico ou de

    commons (De Angelis, 2012).

  • 10 | Maria Backhouse

    Na rea de pesquisa agrria crtica o conceito de acumulao primitiva vem h dcadas sendo

    usado para explicar a transio rumo a uma agricultura de tipo capitalista (Bernstein, 2010: 27).

    Em pesquisas sobre a Amaznia, a trajetria deste conceito remonta dcada de 70, quando,

    relativamente ao contexto de ocupao territorial promovido pela ditadura militar na regio, era

    empregado na explicao do estabelecimento do capitalismo em espaos no-capitalistas (Velho,

    1972; Foweraker, 1981; Martins, 2009). Orientadas por uma viso dualista e economicista, estas

    anlises conduziam precipitadamente concluso de que a agricultura familiar estava fadada ao

    desaparecimento (Costa, 1989; Cleary, 1993). Assim, conflitos e estratgias de sobrevivncia,

    bem como formas possveis de coexistncia entre diferentes sistemas de utilizao dos recursos

    naturais disponveis no eram levados suficientemente em conta (Lna & Oliveira 1992). Ao

    mesmo tempo, partia-se do pressuposto de que o projeto hegemnico capitalista sairia vitorioso.

    No obstante, muitos dos grandes empreendimentos capitalistas iniciados na dcada de 70 foram

    os primeiros a serem considerados fracassados j em meados dos anos 90 (Cleary, 1993). Isso

    mostra que ganhadores e perdedores em processos de separao, assim como seu desfecho, no

    podem ser fixados de antemo.

    O conceito de acumulao primitiva continuada na acepo de Angelis oferece a vantagem de,

    pelo fato de manter-se focado na luta de classes, isto , nos atores envolvidos no processos de

    separao, tornar inteligveis as contradies e contingncias do processo de apropriao de

    terras. Tudo isso sem perder de vista contextos estruturais transnacionais uma crise scio-

    ecolgica, por exemplo.

    Apropriao de terras no envolve forosamente grilagem ou investimentos estrangeiros diretos,

    seno abrangem tambm formas legais de atuao, como a aquisio de grandes extenses de

    terra ou a incorporao formal de agricultores familiares na indstria do agronegcio (Borras et al.

    2011: 11). Tais processos podem vir acompanhados de novas definies da legislao

    concernente ao tema. Sem uma anlise das relaes de poder que atravessam o contexto jurdico

    envolvido, a exigncia do direito propriedade privada corre o risco de passar ao largo do

    problema (Peluso & Lund, 2011: 674).

    Quando nos referimos a green grabbing com base no conceito de acumulao primitiva

    continuada, temos em mente, portanto, no apenas a constatao, de que uma h dcadas

    existente e cada vez mais acentuada concentrao de terras nas mos das elites locais continua

    a ter lugar, mas sobretudo que tal processo implica uma reestruturao de relaes sociais.

    Reestruturao esta que impulsionada por uma nova ordenao relaes de propriedade, como

    acontece no caso da privatizao de terras, ou atravs da insero da agricultura familiar na

    cadeia produtiva agroindustrial. No ato mesmo de sua consecuo este processo legitimado

    ideologicamente pela doutrina neoliberal, e ganha assim contornos de projeto hegemnico. Por

    essa razo, concebemos o green grabbing como um processo tambm discursivo. No adjetivo

    "green" (verde) ancora-se um crescente consenso de natureza neoliberal que trespassa

    transversalmente o campo poltico e preconiza a mercadorizao de recursos naturais como o

    meio mais eficaz de proteg-los (Corson & MacDonald, 2012: 264). Especialmente eficiente se

    torna tal processo quando mesmo atores crticos se convencem da inevitabilidade da via

    agroindustrial para gerao de energia renovvel ou proteo de reas de preservao ambiental

    supostamente valiosas.

    O chamado green grabbing caracteriza-se ento pelo fato de que o uso da e o acesso terra so

    controlados pelo setor agroindustrial de leo de palma, o qual, em interesse prprio, reorganiza e

    legitima a atividade como sustentvel. Logo, as dimenses fundamentais da anlise do problema

    devem ser:

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 11

    A nova ordenao das relaes de propriedade da terra;

    O ora em curso processo de proletarizao [dos agricultores familiares] atravs dos contratos

    de trabalho nas plantaes de palma de leo.

    A narrativa concernente s reas degradadas e s nocivas prticas agrcolas prprias da

    agricultura familiar, articulada para legitimao do green grabbing na regio da Amaznia

    Legal.

    Essas trs dimenses sero abordadas levando-se em conta seu desenvolvimento historicamente

    contextualizado. Da perspectiva centrada na constelao de atores sociais envolvidos, procurar-

    se- analisar como esta vem se modificando ao longo do tempo e de quais estratgias se serve.

    Da perspectiva voltada s relaes dialticas entre sociedade e a natureza, ser considerada a

    especfica materialidade da palma de leo.

    3 A expanso das plantaes de palma de leo no Par

    A palma de leo no nativa do Brasil. Foram escravos oriundos da frica Ocidental que a

    introduziram no sculo XVI no Nordeste brasileiro, na regio hoje correspondente Bahia. O leo

    de palma (popularmente conhecido como dend), um importante ingrediente da culinria afro-

    brasileira, cultivado sobretudo em regime de agricultura familiar de subsistncia (Watkins, 2001).

    A espcie foi transplantada para a regio amaznica em 1942 (Silva et al. 2011), onde, a partir dos

    anos 70, seu plantio passou a ser subsidiado pelo Estado como parte do plano de colonizao da

    regio, e tambm pelo fato da espcie ter sido considerada apta para reflorestamento (Homma &

    Furlan Jnior, 2001; Furlan Junior et al. 2006). O grupo alvo dos estmulos financeiros foram

    empresas e bancos interessados em investir no plantio de palma de leo. A exemplo de outros

    grandes projetos ento empreendidos na regio, tambm esse foi marcado por apropriaes

    ilegais de terras (grilagem) e violentos conflitos fundirios (Acevedo, 2010). J poca

    agricultores familiares deveriam ter sido intergrados ao setor, coisa que, entretanto, nunca foi

    realizada (Cruz, 2006: 65). O programa de financiamento de biodiesel produzido a partir do leo

    de palma estava tambm em pauta j nos anos 80, e igualmente no foi levado a cabo, em virtude

    de problemas tcnicos e do decrescente preo do leo. No final dos anos 80 j no havia nenhum

    interesse poltico no financiamento pblico da produo de leo de palma, levando a cessar

    definitivamente a alocao de verbas para o programa (Homma & Furlan Jnior Jos, 2001). O

    programa de produo de leo de palma na regio amaznica significou, pois, nos seus princpios,

    um fracasso. Por essa razo o crescimento do cultivo de palma de leo na regio apresenta-se

    como insignificante se comparado com a expanso da pecuria bovina ou de outras espcies de

    vegetais. Em 2009, a rea cultivada com palma de leo no Par7 alcanava apenas 50.000

    hectares (IBGE 2009).

    O ponto de inflexo no setor de leo de palma na Amaznia situa-se entre 2002 e 2006, quando

    do projeto piloto de agricultura familiar por contrato, o qual foi implementado como PPP (Parceria-

    Pblico-Privada) entre a empresa brasileira Agropalma, 185 famlias de agricultores familiares e o

    7 Considerando o Brasil inteiro, foram cultivados neste mesmo ano 70.000 hectares com palma de leo, EMBRAPA

    Agroenergia (2011: 18).

  • 12 | Maria Backhouse

    Governo do Estado do Par8. O setor experimenta uma primeira onda de expanso a partir de

    2007, quando a empresa canadense Biopalma comea a adquirir terras nos municpios paraenses

    de Moju e Concrdia9.

    3.1 O Programa de Produo Sustentvel de leo de Palma Em 2010, o Programa de Produo Sustentvel de leo de Palma foi lanado publicamente pelo

    ento presidente Luiz Incio Lula da Silva na cidade de Tom-Au. A iniciativa fazia parte dos

    esforos do Governo Federal visando robustecer a posio do Brasil como potncia

    agroexportadora e energtica (Backhouse & Dietz 2012), assim como parte do plano de

    implantao de grandes projetos de infraestrutura na regio amaznica. Ao mesmo tempo, o

    governo tencionava combinar sua poltica para os setores de energia e desenvolvimento (agrrio)

    com as aspiraes transnacionais de proteo ao clima e ao meio ambiente. O programa

    apresentava-se, portanto, como uma multifacetada estratgia de enfrentamento das crises scio-

    ecolgicas transnacionais:

    A curto prazo, o objetivo do programa era cobrir a demanda domstica nos setores de

    alimentcio e de cosmticos, os quais importam mais de 50% de suas necessidades10

    .

    A mdio prazo, deveria cumprir a meta traada pelo governo de diversificar a matriz

    energtica do biodiesel, que tem em mdia 80% de produo baseada no leo de soja, um

    resduo da produo de farelo para a rao animal, gnero cuja demanda tem crescido devido

    ao aumento do consumo mundial de protena animal.

    O governo supunha ainda que a necessidade de mo de obra intensiva proveniente da

    expanso das plantaes de palma de leo pudesse dar impulso ao desenvolvimento de

    regies rurais atravs da gerao de empregos11

    . A populao local deveria ser integrada

    produo ou como assalariados nas plantaes ou atravs de linhas especiais de crdito

    destinadas a agricultura familiar por contrato. A esperana era de que atravs dessa

    integrao a produo de biodiesel, cujo mercado funciona sob regulao estatal, se

    apresentasse como uma experincia diferente daquela da cana-de-acar no setor de

    8 Nos primeiros trs projetos pilotos, cada um dos quais envolvendo 50 famlias, cada qual recebeu dez hectares, de uma

    rea total de 1.500 hectares. Assim dividida, esta plantao foi posta disposio pelo Instituto de Terras do Par

    (ITERPA). Em 2006, sob os auspcios do Programa Nacional de Biodiesel, foi implementado um outro programa, dessa vez

    abrangendo 35 familias oriundas de um assentamento do Instituto Nacional de Reforma Agrria (INCRA). Cada famlia

    dispunha nesse programa de seis hectares para cultivo. Esses dados foram coletados em entrevistas realizadas com

    membros do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA), Banco da Amaznia S/A (BASA) e da empresa Agropalma em

    novembro de 2010 e abril, maio, junho e julho de 2011.

    9 Fonte dessas informaes foram entrevistas com agricultores e sindicalistas em maro, maio e junho de 2011. Ademais,

    existe uma denncia, feita em 2008 por quilombolas da regio de Concrdia, relativa venda ilegal e retirada forada dos

    ttulos de propriedade de suas terras. Tal denncia foi publicada pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia

    (PNCSA) e pela Associao das Universidades Amaznicas (UNAMAZ), onde se encontra agora arquivada.

    10

    Segundo a Embrapa, 63% do leo de palma usado pelas indstrias de cosmticos, alimentcia e qumica no Brasil em

    2009 foi importado (vgl EMBRAPA; Agroenergia 2011: 7).

    11

    Diferentemente da produo de soja, onde predomina a mecanizao, o cultivo da palma de leo requer intenso

    emprego de mo-de-obra. So necessrios em mdia 350 trabalhadores para cada 1000 hectares plantados. Htz-Adams

    (2011).

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 13

    etanol12

    , na medida em que agora novas perspectivas econmicas para a agricultura familiar

    seriam efetivamente abertas. Assim, a linha de crdito do PRONAF-Eco foi elevada (em 2011)

    a oitenta mil reais. Tal medida atende de certa forma as exigncias impostas pela prpria

    materialidade da palma de leo, a qual exige um alto investimento inicial13

    , dado oferecer seus

    primeiros frutos somente depois de trs anos, sendo as melhores safras alcanadas entre o

    dcimo e dcimo oitavo anos. A partir do vigsimo ano a planta entra gradativamente na fase

    final de seu ciclo produtivo, que pode durar at 30 anos. A exemplo do Programa Nacional de

    Produo e Uso de Biodiesel (PNPB)14

    , um selo social foi criado afim de garantir a integrao

    da agricultura familiar ao mercado de agrocombustveis: empresas que se comprometerem a

    utilizar em sua produo pelo menos 15% leo de palma oriundo do cultivo em regime de

    agricultura familiar esto aptas a receber esse selo e, atravs dele, gozar tanto de iseno de

    impostos como de condies preferenciais na venda de seus produtos no mercado nacional.

    No concernente poltica ambiental, um plano de zoneamento agroecolgico (ZAE) foi

    elaborado afim de garantir que somente reas desflorestadas (antes de 2008) recebessem

    plantaes de palma de leo e que as taxas de sequestro de carbono alcanassem os nveis

    mais altos possveis. Assim, 31,8 milhes de hectares das chamadas reas antropizadas na

    Amaznia e do Nordeste brasileiro foram consideradas apropriadas ao cultivo de palma de

    leo (EMBRAPA & MAPA 2010). Ficou vedada a explorao agroindustrial do dend em reas

    de proteo ambiental e em territrios pertencentes comunidades tradicionais. Linhas de

    crdito para pequenos, mdios e grandes produtores rurais foram abertas por meio do

    programa ABC (Agricultura de Baixo Carbono), institudo pelo governo com a finalidade de

    implementar compromisso facultativamente assumido na Conferncia das Naes Unidas

    sobre as Mudanas Climticas de 2009, realizada em Copenhague (Dinamarca)15

    .

    A principal rea produtora est situada no Nordeste do Estado do Par. Segundo o Embrapa, h

    em toda regio 44 municpios e algo em torno de 5,5 milhes de hectares apropriados ao plantio

    de palma de leo (Muller et al. 2006). Neste permetro, de acordo com informaes fornecidas por

    polticos locais e pelas empresas do setor, a precedncia no cultivo ser dada s chamadas

    reas degradadas especialmente pastagens abandonadas. A favor da regio nordeste do Par

    conta ainda sua localizao, prxima a portos e capital, Belm, e afastada de hotspots de

    biodiversidade.

    12

    A produo de etanol para abastecimento da frota automobilstica nacional comeou a receber subsdio estatal atravs

    do Proalcool ainda nos anos 70. O programa, entretanto, beneficiou exclusivamente as elites agrrias. Borges et al. (1984).

    13

    O Banco Mundial estima que esta quantia varie de 4000 a 8000 dlares por hectare, Htz-Adams (2011: 8).

    14

    A meta do Programa Nacional de Produo e Uso de Biodiesel (PNPB), lanado em 2004, contribuir para a

    autossuficincia energtica, assim como para o combate pobreza nas regies rurais atravs da integrao da agricultura

    familiar ao setor de biodiesel. Ver: www.mda.gov.br/portal/saf/programas/biodiesel (acessado em 24.10.2012).

    15

    O objetivo do governo promover por meio do ABC a explorao sustentvel de reas degradadas afim de reduzir os

    nveis de emisso de gs carbnico da agroindstria e com isso diminuir a presso exercida sobre as florestas nativas.

    Para isso devem ser financiados plantaes comerciais de palma de leo, mas sobretudo de eucalipto, rvore utilizada na

    produo de celulose e carvo. MAPA (2010: 44); MAPA (2012: 28f.).

  • 14 | Maria Backhouse

    4 Novos atores

    Trs anos j se passaram desde o lanamento do programa pelo presidente Luiz Incio Lula da

    Silva. As plantaes de palma de leo na regio nordeste do Par quase triplicaram neste perodo,

    alcanando 140 mil hectares (Glass 2013). At a metade de 2012, ao todo 649 famlias de

    agricultores familiares haviam fechado contratos para produo de leo de palma com empresas

    ligadas do setor (MDA 2012).

    A inseparavelmente social e fsica materialidade da agroindstria do leo de palma se inscreve

    progressivamente na paisagem. Retalhada semelhana de um tabuleiro de xadrez, surgem

    vastas plantaes, cada uma delas podendo se estender por uma extenso de at 10.000

    hectares os chamados polos em cujo centro se encontram as instalaes para processamento

    da produo. As parcelas lavradas em regime de agricultura familiar espalham-se por um

    permetro de no mximo 30 quilmetros relativamente aos polos. Como os frutos colhidos

    precisam ser processados dentro de 24 horas, faz-se necessrio um aprimorado empenho

    logstico, que envolve rgida organizao do trabalho, infraestrutura de transporte adequada

    (estradas, vias fluviais, pontes, portos, etc.).

    Companhias de atuao transnacional, como a estatal da rea de energia Petrobras, a mineradora

    Vale (antigamente Vale do Rio Doce) ou a multinacional norte-americana ADM (Archer Daniels

    Midland Company) tm investido em plantaes de palma de leo e na indstria de

    processamento do produto. Estas grandes corporaes desenvolvem estudos a respeito do

    sequestro de carbono nas plantaes por elas recm-estabelecidas e entram na concorrncia por

    terras e mo de obra com as empresas de produo de leo de palma ora existentes na regio.

    Segundo estimativas de engenheiros agrnomos consultados, plantaes de palma de leo

    devero cobrir nas prximas dcadas uma rea que pode variar de um a quatro milhes de

    hectares. Atualmente, a dinmica de expanso liderada por duas grandes companhias

    Petrobras e Vale as quais perseguem diferentes objetivos16

    :

    A Petrobras recebeu do governo a incumbncia de produzir um total de 450.000 toneladas de leo

    de palma em 75.000 hectares de terra. Deste montante, prev-se que 150.000 toneladas

    abasteam o mercado interno, e as demais 300.000 produzidas em parceria com a empresa

    portuguesa Galp fluam para o mercado de diesel europeu. Da matria-prima necessria, 30%

    dever ser proveniente de terras arrendadas, 50% fornecida por mdios e grandes produtores e os

    demais 20% pela agricultura familiar17

    .

    Em 2012, a Vale adquiriu 70% da Biopalma por 173,5 milhes de dlares. A mineradora brasileira

    explica sua entrada no setor de leo de palma como parte de sua estratgia para estabelecer-se a

    nvel global como uma companhia ecologicamente responsvel e produtora de energia renovvel.

    At 2020, a empresa dever misturar 20% de biodiesel ao combustvel usado para abastecimento

    de sua frota de veculos. Segundo informaes fornecidas pela prpria Vale, seu consumo de

    energia corresponde 4% do total gasto no Brasil. A regio nordeste do Par interessante do

    ponto de vista estratgico, pois se situa ao alcance da malha ferroviria que vai de Carajs ao

    16 Outras companhias que j esto instaladas na regio e igualmente tencionam expandir sua produo so: Agropalma,

    empresa que desde a dcada de 80 atua no setor e conta com 39.000 hectares, a maior plantao de palma de leo da

    Amrica Latina , assim como empresas locais menores como Denpasa, Dend-Tau, Reasa, Marborges, Braspalma e

    Codenpa.

    17

    Dados fornecidos pela prpria Petrobras em evento pblico realizado na cidade de Tailndia (PA) em Junho de 2011.

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 15

    porto de So Lus. A empresa plantou at o momento 60.000 hectares de palma de leo no Par.

    Em 2014 deve ser iniciada a produo de biodiesel, para a qual se prev uma expanso anual

    continuada. Engenheiros da Vale estimam que as plantaes alcanaro quatro milhes de

    hectares nas prximas dcadas, grande parte das quais cultivadas em terras da prpria

    companhia, alm de uma porcentagem de no mnimo 15% designada para contratos a serem

    firmados com agricultores familiares18

    .

    Esta prenunciada expanso do setor de leo de palma promove deslocamentos na estrutura de

    poder da regio, sem que isso provoque mudanas para a populao rural marginalizada. Os

    poderosos do passado assumem presentemente novas funes intermedirias, atuando como

    negociantes de terras, proprietrios de empresas terceirizadas fornecedoras de mo de obra, ou

    de consultorias tcnicas para assuntos agroindustriais. Em 2011, com base em informaes

    coletadas durante o trabalho de campo e, portanto, sem pretenso de oferecer um quadro

    completo, foi possvel identificar na regio seis empresas terceirizadas19

    , quatro negociantes de

    terras20

    e trs consultorias21

    dedicadas ao setor de leo de palma. Na cidade de Moju e Tom-

    Au, membros da tradicional elite agrria local passaram a ocupar funes de direo na

    Petrobras e na Companhia Vale, encarregando-se da gesto dos polos ou dos departamentos

    responsveis pelo trabalho junto aos agricultores familiares. Esta nova aliana selada entre

    antigos latifundirios e companhias como a Vale ganhou chancela tambm no campo poltico-

    institucional, na forma de financiamento de campanhas nas eleies municipais de 201222

    . Os

    sindicatos da regio mostram-se divididos e no se posicionam de maneira coesa relativamente

    ao programa implementado pelo governo. Alguns sindicalistas cooperam diretamente com as

    empresas, outros aguardam sem tomar partido direto, e alguns se mobilizam contra.

    18 Entrevista com engenheiros da Vale realizadas em 2010 e 2011, assim como informaes oriundas do site da prpria

    empresa: http://www.vale.com/brasil/EN/aboutvale/initiatives/biodiesel/Pages/default.aspx, (acessado pela ltima vez em

    27.2.2013).

    19

    Braga e Braga, Servipalma Prestao de Servios, Pinheiro do Couto, Maria do Nazar Alves Ribeiro, Moreira Souza e

    Cia LTDA ME, Paulo Leite de Servios e Deniz.

    20

    Trata-se de influentes polticos e latifundirios. Por razes jurdicas, seus nomes no podem ser divulgados.

    21

    Palmatec, Santa Cruz e Eco-Dend.

    22

    Esta informao procede de declaraes de dirigentes sindicais, cuja anonimidade ser aqui preservada.

  • 16 | Maria Backhouse

    5 Green grabbing

    A alta concentrao da propriedade da terra considerada uma das principais razes histricas da

    crassa desigualdade social brasileira. No Brasil, de um modo geral, a relao entre propriedade e

    uso da terra segue um padro: em regime de agricultura familiar so produzidos alimentos para

    subsistncia e abastecimento regional, enquanto os grandes latifndios monocultores

    agroindustriais destinam sua produo exportao. Embora a agricultura familiar seja, se

    comparada ao grande agronegcio, negligenciada pelas polticas pblicas, ela quem garante a

    produo brasileira de gneros alimentcios23

    .

    O Par apresenta um alto ndice GINI de concentrao de terras de 0,82324

    , e a unidade

    federativa que lidera as estatsticas de apropriao ilegal de terras atravs da falsificao de

    ttulos de propriedade, crime conhecido como grilagem. Neste estado brasileiro, o status da

    propriedade da terra no mais das vezes indefinido25

    . Os cinco municpios (Moju, Acar, Bujaru,

    Tom-Au e Concrdia) investigados neste trabalho, que salvo Bujaru compem a microrregio de

    Tom-Au, no constituem exceo: nestas localidades, no mais das vezes, ttulos de propriedade

    da terra so irregulares ou simplesmente no existem. Estendendo-se por uma rea algo menor

    do que o estado de Sergipe, estes cinco municpios contam com aproximadamente 234 mil

    habitantes (em sua maioria agricultores familiares), metade dos quais residente nas reas rurais

    (IBGE 2010a). Consoante suas histrias, os povoados locais se desenvolveram de maneira

    culturalmente heterognea, dando margem a distintas formaes: ao lado de imigrantes

    nordestinos ou de uma colnia japonesa vivem populaes tradicionais ribeirinhas ou quilombolas,

    alm de algumas poucas comunidades indgenas26

    .

    Embora o desaparecimento da agricultura familiar na regio amaznica tenha sido repetidamente

    dado como certo no contexto da, no raro violenta, ocupao territorial subsidiada pelo Estado ao

    longo dos anos 70 e 80, ela continua existindo ao lado de imensas pastagens de pecuria

    bovina (Costa, 1989, 2000; Hurtienne, 1999, 2004), e se conforma atualmente como o principal

    esteio da produo de gneros alimentcios (mandioca, feijo, frutas, etc.) em nvel local e regional

    (Glass 2013). No obstante, a maior parte da populao rural ainda enfrenta difceis condies de

    vida. Muitos tm apenas acesso precrio educao formal, sistema de sade, energia eltrica e

    gua potvel. Segundo o censo agrrio do IBGE, de 40% a 50% da populao rural das reas na

    microrregio de Tom-A dispem de renda per capita mensal de no mais do que 70 reais, ou

    seja, vivem abaixo da linha de pobreza (IBGE 2003, 2010b). O programa estatal de apoio

    23 Segundo o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA) a agricultura familiar responde por 70% da produo brasileira

    de gneros alimentcios; MDA (2011); USDA (2012a).

    24

    Em virtude da inexistncia de um rgo institucional que se encarregue de centralizar dados estatsticos por ventura

    coletados, existem apenas estimativas do ndice GINI para a regio, a qual baseada em dados do INCRA para o ano de

    2003. Girardi; Alcantara Filho & Fontes (2009).

    25

    No Par, apontam estimativas da CPT (Comisso Pastoral da Terra), terras cuja propriedade reivindicada equivalem a

    quatro vezes o tamanho da rea efetivamente existente. De acordo com Treccani (1998; 2006), a maioria das escrituras

    so irregulares. No h estatsticas confiveis sobre a propriedade da terra em toda a regio amaznica; Brito & Barreto

    (2011).

    26 Segundo o censo demogrfico, poucas pessoas da regio se identificam como indgenas. Em todo o Nordeste

    Paraense, ao qual pertence a microrregio aqui estudada, h presumivelmente oito territrios indgenas

    (http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/nordesteparaensepa/one-community?page_num=0

    acessado em 5.1.2013).

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 17

    agricultura familiar no cultivo de pimenta, mandioca e frutas, assim como na pecuria de animais

    de pequeno porte, tido como fracassado pela grande maioria dos atores sociais consultados. De

    acordo com um funcionrio do Banco da Amaznia em Tom-Au, por conta desse programa, a

    maioria dos pequenos produtores familiares est inadimplente e, assim, inapta a receber novos

    crditos (entrevista julho 2011).

    Diante deste cenrio, governo e empresas do setor de leo afirmam que o Programa de Produo

    Sustentvel de leo de Palma se apresenta como uma possibilidade de combater a pobreza e,

    assim, evitar o xodo rural. Crticos do programa apontam, pelo contrrio, que a monocultura da

    palma de leo pode acentuar a tendncia observada nas ltimas dcadas: expanso do grande

    agronegcio e gradativa expulso de agricultores familiares e comunidades tradicionais (Acevedo,

    2010; Monteiro, 2011; Nahum & Malcher, 2012; Glass, 2013).

    5.1 Reestruturao das relaes de acesso e propriedade da terra I: Compra e especulao A expanso das plantaes de palma de leo encareceu o preo da terra e fez da especulao

    fundiria um negcio lucrativo. Compras de terras feitas geralmente de ex-prefeitos ou antigos

    latifundirios elevam o preo da terra. Em 2011 um lote plano, com poucas rvores e bem servido

    de vias de acesso podia alcanar o valor de at 50 mil reais27

    . Pelo menos desde 2008 pode-se

    observar nas regies de Concrdia, Bujaru, Tome-Au, Acar e Moju a compra crescente de terras

    de agricultores familiares. Muito embora a legislao proba a negociao de terras pertencentes

    comunidades tradicionais ou assentamentos frutos de reforma agrria, houve denncias de

    aquisio destes tipos de propriedades28

    . Isso significa que ampliao das plantaes de palma de

    leo em escala agroindustrial no tem se limitado nem s terras adquiridas legalmente para esse

    fim nem muito menos s pastagens degradadas.

    A prtica se assemelha em todos os municpios: lotes comprados de diferentes proprietrios so

    georreferenciados e reunidos sob uma escritura de propriedade nica supostamente autntica e

    legal29

    de modo a serem vendidos por preos consideravelmente altos, via de regra,

    Vale/Biopalma. Em Acar, Moju e Bujaru em alguns casos pequenos agricultores familiares

    informam terem vendido seus lotes, cujo tamanho mdio era de 25 hectares, por cinco mil reais.

    Casos isolados de venda de terra no conduzem, porm, ao green grabbing. Nem todos os

    pequenos produtores familiares, depois de terem vendidos suas terras, vo parar nos bairros

    pobres das pequenas cidades em redor, seno compram lotes em outros lugares. O efeito green

    grabbing se realiza quando da compra de grandes extenses de terra. Aquisies desta monta, e

    27 Dados obtidos em entrevistas realizadas em Moju, Abaetetuba, Bujaru e Acar no ano de 2011. Nahum & Malcher

    reportam que em 2012 um lote de cinco hectares j alcana o valor de 50 mil reais. Nahum & Malcher (2012). Essa

    extrema variao de cifras sugere que ou o preo se elevou fortemente ou quo disparatadas podem ser as informaes a

    respeito num mercado informal.

    28

    Em Tom-Au, a Companhia Vale precisou em 2011 devolver lotes pertencentes a um assentamento. A rea havia sido

    vendida ilegalmente para a empresa por um intermedirio. Em Concrdia, quilombolas denunciaram a venda ilegal de

    terras situadas em seu territrio. Fonte: entrevistas conduzidas na comunidade quilombola, assim como com os secretrios

    de assuntos agrrios e do meio ambiente da cidade de Concrdia (entrevistas junho 2011). Ambos confirmaram a

    denncia, mas no se pronunciaram sobre o caso.

    29

    No seria aqui possvel verificar a legalidade do documento. Porm, diante do comumente indefinido status da

    propriedade da terra na regio, no parece disparatado coloc-la em questo.

  • 18 | Maria Backhouse

    disso do prova os recentes casos de Acar e Bujaru, se desdobram num efeito redemoinho, que

    leva transmigrao de povoados inteiros, sem que para isso se empregue precisamente

    violncia direta30

    . Muito raramente os agricultores familiares conseguem resistir por longo tempo

    presso provocada pelo avano do agronegcio. Corre-se o risco de que, no fim, haja na regio

    somente plantaes de palma de leo geridas segundo relaes de produo agroindustriais.

    5.2 Reestruturao das relaes de acesso e propriedade da terra II: Titulao acelerada A reestruturao ora impulsionada pelo setor de leo de palma no , em muitos casos, livre de

    contradies no concernente uma definio mais clara da propriedade da terra e, nesse sentido,

    encerra, a longo prazo, um potencial de conflito. este, alis, afirmam polticos locais consultados,

    o maior obstculo aos investimentos na regio. Afim de evitar tais conflitos e garantir a segurana

    de investimentos, o governo planeja, por intermdio do programa Terra Legal31

    ou da Iterpa

    (Instituto de Terras do Par), conceder titulao preferencial das reas destinadas expanso da

    palma de leo (Entrevistas abril, maio 2011).

    Ainda no possvel prever se a presso por regularizao fundiria acelerada evita conflitos ou

    acaba por legalizar apropriaes irregulares de terra. Independentemente disto, o certo que o

    ttulo de propriedade individual no representa para os agricultores familiares a garantia de se

    manterem em suas terras, seno que pode mesmo surtir efeito contrrio, acelerando o processo

    de xodo (por conta da presso por venda exercida pelas empresas, especialmente sobre aqueles

    que j dispem da terra regularizada, ou se, por exemplo, a propriedade for hipotecada para

    obteno de emprstimos) (Borras & Franco 2012: 54; Borras 2008; Hecht 2005).

    5.3 Reestruturao das relaes de produo I: Agricultura familiar por contrato Segundo o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA), as empresas do setor de leo se

    comprometeram a no mais comprar terras de agricultores familiares, mas sim forar a

    cooperao destes pela via do trabalho por contrato. Pelo menos 15% da rea cultivada dever

    ser manejada em regime de agricultura familiar. Essa porcentagem j indica que se parte de um

    cenrio de forte concentrao da propriedade da terra, problema cujo enfrentamento no consta

    nos horizontes do programa, uma vez que seu objetivo , se muito, deter o processo de

    30 Em Acar, notrio o caso do povoado de Bucaia, onde grande parte dos moradores venderam suas terras. Ao longo

    do trabalho de campo foi possvel ainda documentar processo semelhante ocorrido no povoado de Conceio (conhecido

    como Mariquita), localizado em Bujaru. Este ltimo caso mencionado tambm por Nahum & Malcher (2012).

    31 O objetivo do Programa Terra Legal promover atravs de um procedimento simplificado a regularizao fundiria

    de 67,4 milhes de hectares de terras localizados em terras pblicas federais na regio amaznica; Brito & Barreto (2011).

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 19

    esvaziamento populacional que as reas rurais da regio vm experimentando nas ltimas

    dcadas.

    Levar a agricultura familiar a efeito como concebida nos moldes agroindustriais do Programa de

    Produo Sustentvel de leo de Palma implica em submet-la a uma profunda reestruturao,

    processo que pode ser observado h dcadas no apenas no Brasil, mas em diversas regies do

    mundo (Little & Watts, 1994):

    Os agricultores familiares se tornam fornecedores de matria-prima para a indstria de

    processamento do leo de palma. A fim de garantir nveis elevados de produtividade, cada

    etapa do trabalho passa a ser prescrita e fiscalizada por tcnicos das empresas contratantes.

    Isso significa que os agricultores abrem mo do controle sobre os recursos naturais que

    manejam e, ao mesmo tempo, ficam diretamente expostos variao de preos da commodity

    no mercado internacional.

    vedado aos agricultores o cultivo de outras espcies vegetais por entre as rvores de palma

    de leo. Plantaes consorciadas no esto previstas nos contratos. Funcionrios do governo

    at falam em experimentos, a serem feitos em parceria com a Petrobrs, envolvendo

    plantaes de palma de leo e culturas alimentcios locais. Porm, por questes de

    produtividade (e lucratividade), as empresas no permitem aos agricultores familiares qualquer

    desvio da produo monocultora.

    As linhas de crdito pblicas financiam a agricultura familiar da palma de leo at o mximo de

    10 hectares por famlia. Para manter reduzidas as despesas organizacionais com logstica, as

    empresas fixam o tamanho dos lotes a serem cultivados em regime de agricultura familiar

    exatamente nestes 10 hectares. Em razo da legislao florestal32

    vigente na regio, mesmo

    famlias detentoras de lotes maiores (25 hectares em mdia), dispem de pouco ou nenhum

    espao para o cultivo de outros produtos.

    O cultivo de dez hectares de palma de leo exige fora de trabalho que vai alm das

    possibilidades de uma famlia33

    e acarreta, por conseguinte, uma nova organizao da diviso

    do trabalho familiar ou a contratao (em regime precrio) de trabalhadores rurais.

    Crticos do programa consideram a agricultura familiar incompatvel com o setor leo de palma. H

    o temor de que a longo prazo ocorra um diminuio da produo regional de gneros alimentcios

    e a supresso da agricultura familiar (Glass 2013). O lobby do setor de leo de palma, por sua

    vez, levanta o argumento da perspectiva de elevao da renda dos agricultores, a qual, segundo o

    governo, poderia alcanar dois mil reais por ms, e segundo a Vale, quatro.

    At 2012, porm, no foi trazida a pblico nenhuma avaliao independente do projeto-piloto da

    PPP (Parceria Pblico-Privada) com a Agropalma que pudesse confirmar essas declaraes.

    Indagados a esse respeito, agricultores envolvidos no projeto apontam em sentido contrrio:

    apenas algumas poucas famlias, detentoras de extensas reas de cultivo (mais de 50 hectares) e

    com recursos financeiros para contratar empregados, percebem um rendimento mensal de trs mil

    reais. Vale observar que tais bem-sucedidas famlias comeam a concentrar sob seu domnio os

    32 O cdigo florestal define que na Amaznia Legal mesmo propriedades privadas podem ter somente 20% de sua rea

    total explorada agricolamente. Em virtude da expanso da palma de leo e do eucalipto no Par, uma exceo foi feita

    para este Estado, onde esse percentual foi elevado a 50% (Decreto N2099 de 20/01/2010, Estadual Par).

    33

    Informaes obtida em 2010 e 2011 junto a agricultores familiares do projeto piloto que se autodenominam como bem-

    sucedidos. Especialmente nos primeiros anos, o cultivo da palma de leo absorve muita fora de trabalho, o que beneficia

    famlias grandes ou aquelas que dispem de capital para contratao de mo de obra suplementar.

  • 20 | Maria Backhouse

    lotes contguos aos seus, assim como os membros das famlias vizinhas34

    . Aqui se insinua o

    processo que McCarthy descreve em seu estudo sobre a Indonsia: nem todos os agricultores

    familiares se tornam, de sada, perdedores quando decidem trabalhar por contrato para as

    empresas de leo de palma. O programa de palma de leo pode, entretanto, levar a um processo

    de concentrao de recursos dentro da prpria comunidade de agricultores familiares e, assim,

    acabar por expulsar de suas terras exatamente aqueles cuja situao socioeconmica era a mais

    precria j antes da implantao do programa (McCarthy 2010).

    Um total de 649 famlias j se integraram em 2012 ao Programa de Produo Sustentvel da

    Palma de leo. O nmero modesto e permanece bem aqum do objetivo das empresas, que

    planejam fechar contratos com alguns milhares de famlias. Segundo as companhias, seria difcil

    encontrar famlias apropriadas, noutras palavras, aquelas que possuem terra suficiente, podem

    contratar mo de obra e esto aptas a pleitear linhas de crdito. Ademais, muitos agricultores no

    confiam nas empresas. Um funcionrio da Vale menciona falsos boatos: os agricultores

    familiares estariam temerosos de que a empresa pudesse lhes tomar a terra. Um destes, morador

    de Bujaru, relata que alguns povoados se organizaram conjuntamente contra o programa do

    governo e no estariam dispostos a fechar nenhum contrato de trabalho (entrevistas junho 2011).

    5.4 Reestruturao das relaes de produo II: O trabalho nas plantaes Inquiridos sobre a questo, funcionrios do Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento

    (MAPA), assim como um poltico de Belm sustentam que o trabalho nas plantaes de palma de

    leo a melhor alternativa para a agricultura familiar, a qual, na opinio de ambos, de todo modo,

    seria improdutiva e a longo prazo viria a desaparecer.

    Este ponto de vista no compartilhado por sindicalistas e trabalhadores das plantaes da regio

    foco deste estudo, os quais alegam precrias condies de trabalho e baixa remunerao

    (Reprter Brasil, 2009, 2012). O pagamento por produtividade exige uma pesada carga de

    trabalho, que ao final do ms se converte num montante cujo valor inferior ao salrio mnimo

    vigente o que insuficiente para alimentar uma famlia.

    A julgar pelo relato destes atores, s se predispe a trabalhar nas plantaes quem no tem outra

    opo. Um quilombola de So Domingos do Capim, municpio vizinho regio estudada, encontra

    palavras cristalinas para descrever a situao: Para ns isto no desenvolvimento, isto

    semiescravido. Ao invs de fazer das pessoas (novamente) semiescravos, o governo deveria

    proteger as diversas formas de explorao dos recursos naturais existentes atravs de promoo

    de linhas de crdito e acompanhamento tcnico apropriados. Isso porque, prossegue o

    quilombola, ns no resistimos escravido para voltarmos a sermos escravos nas plantaes

    [de dend]. (Entrevista junho 2011)(Backhouse et al. 2013).

    34 Esta prtica proibida em assentamentos, assim como aos produtores que recebem linhas de crdito do PRONAF.

    Processo de concentrao semelhante foi observado num estudo de caso sobre o projeto piloto da Agropalma. (Monteiro,

    2011).

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 21

    5.5 Green grabbing: estratgia das empresas Atravs da agricultura familiar por contrato as empresas do setor de leo de palma se veem em

    condio de fazer recair sobre os prprios agricultores os riscos da produo (infestaes,

    pragas35

    , safras baixas, etc.), o cumprimento da legislao ambiental e trabalhista e mesmo as

    oscilaes do preo da commodity no mercado internacional. Tudo isso sem precisar comprar

    terras ou pagar o salrio mnimo fixado por lei. Os altos investimentos iniciais, a compra de mudas

    e agrotxicos, assim como o perodo de espera dos trs primeiros anos (quando as palmas ainda

    no do frutos) so financiados via emprstimos contrados pelos prprios produtores familiares

    junto ao governo. O risco que aqui se insinua o de se produzir um dissimulado processo de

    apropriao de terras por parte das empresas.

    Assegurar a disponibilidade de terras no exige forosamente nem compra nem apropriao

    indevida das mesmas. Diferentemente, digamos, de um rebanho bovino, a materialidade da palma

    de leo cria j no ato de seu cultivo fatos de longo prazo: por conta do ciclo de vida da planta,

    produtores esto ligados ao setor por um perodo de no mnimo 25 anos, dado a transformao de

    uma plantao de palma de leo em outro tipo de cultura ser trabalhoso e caro, o que faz dessa

    opo proibitiva para a maioria dos agricultores familiares. Por essa razo, as empresas do setor

    no se preocupam com o fato de disporem suas plantaes em terras sobre as quais no detm

    direito de propriedade: algum haver de cultiv-las (Backhouse, 2013b).

    O setor de leo de palma diferentemente dos empreendimentos pecurios e de extrao de

    carvo dos anos 80 e 90 perseguem uma estratgia baseada no dilogo. A assimetria de poder

    dentro do qual essa estratgia desenvolvida , contudo, patente. O dilogo entre uma

    companhia do porte da Vale e pequenos produtores familiares consiste numa negociao

    individualizada, caso a caso, de maneira que sindicatos e movimentos sociais acabam por ser

    excludos do processo. Nesse sentido, reunies entre empresas e agricultores tm muito mais do

    informativo e sedutor prprio das transaes comerciais de venda/aquisio do que do

    participativo e transparente dos processos polticos de negociao em que ambas as partes

    objetivam alcanar uma posio de benefcio mtuo.

    Preocupante tambm o fato de que durante todo o perodo de pesquisa de campo nem um nico

    exemplar de contrato entre Vale e agricultores pde ser localizado, seja em poder dos agricultores,

    seja de seus sindicatos. Casos j documentados do conta de que a Vale teria concedido

    emprstimo e adquirido mudas para produtores familiares que no tiveram linhas de crdito de

    80.000 reais aprovadas pelo governo porque eles eram inadimplente ou nao se enquadrarem na

    DAP (Declarao de Aptido ao PRONAF). Esse expediente pode levar ao surgimento de uma

    nova forma do antigo aviamento, prtica conhecida e h muito disseminada na regio amaznica.

    As crescentes compras de terra na regio pesquisada so, em alguns casos, processos

    conflituosos j de sada. Os conflitos atuais so, porm, resolvidos de maneira distinta daquela

    dos anos 80. Aqui, um exemplo pode ser instrutivo: agricultores familiares de Tom-Au que

    lograram impedir a venda de 21 lotes em seu assentamento, os quais estavam sendo ilegalmente

    negociados por um atravessador, receberam suas terras de volta; junto com elas contratos para

    35 No Brasil, o caso da praga conhecida como Amarelecimento Fatal AF ilustra bem a incontrolvel materialidade da

    natureza. Atravs do cruzamento da palmeira africana Elaeis guineensis com a espcie nativa da Amaznia Caiau (Elaeis

    oleifera) a Embrapa desenvolveu uma nova de palma de leo hbrida, chamada BRS Manicor, que resistente doena

    (Silva et al. 2011). Como a espcie hbrida precisa ser polinizada manualmente, o que implica em mudanas na

    organizao do trabalho, empresas do setor s a cultivam em reas de alto risco de infestao pela praga. Em 2011, no

    havia nenhum registro de agricultores familiares que trabalhassem com a verso hbrida.

  • 22 | Maria Backhouse

    trabalharem no cultivo de dend para a Vale. Eles receberam, pois, suas terras de volta, o controle

    sobre a explorao desta, assim como sobre seu trabalho, no entanto, foi entregue Vale.

    5.6 A narrativa das reas degradadas Fruto das entrevistas durante nossa pesquisa de campo foi a constatao de que a expanso das

    plantaes de palma de leo, em muitos casos, infringe a legislao ambiental. Queixas de

    ribeirinhos, quilombolas (entrevistas em outubro, novembro 2010 e maro at julho 2011) e do

    povo indgena Temb (Carvalho 2013) denunciando a contaminao de guas fluviais ou a

    derrubada de vegetao secundria, no foram investigadas. Audincias pblicas e estudos sobre

    impacto ambiental, ambos previstos como parte da implementao de projetos de grande porte,

    no foram realizados nem antes nem depois da implantao do programa.36

    E embora tenha sido

    anunciada a expanso das plantaes de palma de leo sobre regies inteiras, nenhuma delas

    muito distantes da capital, Belm, tais projetos no despertaram protestos exceo da parte de

    algumas poucas publicaes crticas (Acevedo, 2010; Reprter Brasil, 2009, 2012; Carvalho,

    2013; Glass, 2013) nem na regio nem em fruns transnacionais para assuntos socio-

    ambientais. Por qu?

    Isso de deve, em primeiro lugar, falta de transparncia do processo de implementao do

    programa, conduzido sem que a populao rural fosse ouvida e passando ao largo dos

    movimentos sociais. A crassa assimetria de poder dentro da microrregio, assim como a

    marginalizao da populao local no apenas aproveitada, seno reproduzida, quando

    tematizada em contextos transnacionais. Uma sindicalista expe sua postura de maneira crtica,

    porm resignada:

    A gente chega a dizer assim, que como ele um programa do governo federal com

    apoio internacional pela energia renovvel, n, ento muito difcil os sindicatos, se

    vocs viram, se voc foram em todos os sindicatos, viram a estrutura que a gente

    tem, como que ns vamos brigar com megaempresa? difcil. No impossvel,

    mas muito difcil, entendeu? (entrevista em Junho 2011).

    Para fazer frente ao amplo consenso, segundo o qual o leo de palma representa uma alternativa

    de desenvolvimento sustentvel ou "ecolgico" de uma "regio antropizada ou degradada", ,

    de fato, difcil encontrar parceiros. A diversos atores parece fazer muito sentido a ideia de cobrir

    com palma de leo "pastagens abandonadas que nada produzem nem trazem benefcio a

    ningum". O secretrio de assuntos agrrios de um municpio da regio explica que esta seria

    uma maneira de "criar postos de trabalho para nossa juventude que, sem qualificao profissional,

    tem poucas perspectivas de futuro" (entrevista em maio 2011). O Programa de Produo

    Sustentvel de leo de Palma, com suas linhas de crdito financiadas com fundos pblicos, viu-se

    assim transformado em estratgia eleitoral.

    Como mencionado acima, no h uma definio consensual do que seja "terra degradada".

    Entrevistas com especialistas dos setores pblicos e privados apontam que sob a definio

    "regio degradada" so agrupadas no apenas pastagens exauridas, seno tambm reas

    utilizadas em regime de agricultura familiar. A atual narrativa sobre as extensas pastagens

    degradadas no guarda, pois, relao com o nada nova narrativa sobre a degradao causada

    36 Audincias pblicas so previstas como o componente participativo dos processos de estudo sobre impacto ambiental,

    segundo resoluo do CONAMA (01/86 e 009/87). Agradeo a Verena Glass por essa informao.

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 23

    pelo cultivos tradicionais. No apenas a pecuria extensiva, mas tambm a agricultura familiar e

    povos tradicionais seriam, nesse sentido, responsveis pela "degradao" da regio.37

    Visto sob esta tica, a produo de leo de palma em escala agroindustrial apresenta-se como

    uma alternativa "sustentvel" ao tradicional plantio de mandioca, cujo cultivo constitui uma parte

    culturalmente importante da agricultura familiar da regio, assim como a abastece de seu principal

    gnero alimentcio.

    Isso implica dizer que por conta da rpida expanso espacial das plantaes de palma de leo a

    populao rural local se v no apenas progressivamente encurralada e oprimida, seno que

    tambm se questiona o carter ecolgico de suas prticas agrcolas, supostamente da "idade da

    pedra". Isso refora o consenso neoliberal, segundo o qual no existem outras alternativas, que

    est na base do programa e garante sua hegemonia ideolgica. Discordncias encontram

    expresso apenas na postura de recusa adotada por alguns quilombos e famlias de agricultores

    familiares, mas no podem ser articuladas politicamente.

    Esta situao no apresenta feio distinta quando observada no mbito internacional da poltica

    ambiental, onde os espaos de articulao poltica se encontram igualmente fechados. A

    estratgia de explorao das chamadas "reas degradadas" com base na monocultura intensiva,

    defendida por muitos como uma maneira de proteger tanto florestas nativas como o clima, s

    distncia uma estratgia de preservao da natureza. Em nvel local, essa estratgia atua de

    modo a restringir a grupos marginalizados o controle e acesso aos recursos naturais dos quais

    dependem para sobreviver. somente a estreiteza tecnocrata de uma poltica ambiental que

    baseia suas aes em clculos sobre emisso e sequestro de carbono aquilo que permite alar a

    prtica da monocultura nas reas degradadas categoria de "sustentvel". Ao mesmo tempo,

    atravs da definio naturalizada de uma regio inteira como "degradada", pe-se em curso um

    processo que deprecia e deslegitima o sistema local de explorao da terra baseado na agricultura

    familiar. Esse processo opera um escamoteamento e despolitizao das relaes de poder, as

    quais, por um lado, aliceram o delegar de autoridade sobre a definio do que possa ser "rea

    degradada", e por outro a legitimao mesma do modo de produo agroindustrial do leo de

    palma, o que, por sua vez, guarda ntima relao com as relaes assimtricas de poder na

    regio.

    37 Veja a crtica do Thomas Hurtienne (1999, 2004, 2005) e do Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008).

  • 24 | Maria Backhouse

    6 Concluso

    A esperana, de que a cooperao entre Estado, iniciativa privada e sindicatos pudesse em

    contraposio ao setor de cana-de-acar/etanol introduzir uma mudana de paradigma no

    modo de lidar com a agricultura familiar (Abramovay & Magalhes 2007), no parece estar se

    efetivando no que diz respeito ao setor de leo de palma. O que est em curso na regio

    amaznica antes um novo avano do agronegcio, e com ele uma crescente concentrao do

    acesso e do uso da terra nas mos do setor de leo de palma para produo de

    agrocombustveis (Vale, Petrobras) e alimentos (ADM, Agropalma).

    O Programa de Produo Sustentvel de leo de Palma, pensado como estratgia governamental

    para enfrentar a crise de energia, a mudana climtica e a decadncia da agricultura familiar em

    uma regio marginalizada, pe em curso uma profunda transformao social, que, aqui, com base

    no conceito de acumulao primitiva continuada, foi qualificada como green grabbing. Esse

    processo tem impulsionado uma ampla reestruturao das prticas de agricultura familiar na

    regio, dando prosseguimento a uma tendncia de desenvolvimento da agricultura como

    concentrao de terra e xodo rural iniciada j nos tempos coloniais, e que desde a conformao

    da agroindstria brasileira, na dcada de 70, vem sendo intensificada. A despeito das

    continuidades, o green grabbing apresenta um carter distinto e, de certa forma, novo (Fairhead et

    al. 2012), na medida em que sedimenta novas constelaes e alianas entre atores, adota

    estratgias verdes, sustentveis ou ecolgicas de implementao e se vale de narrativas

    legitimadoras especficas.

    O Programa de Produo Sustentvel de Palma de leo impulsionou um profundo processo

    de reestruturao do controle sobre o uso e do acesso terra, cuja notria feio uma

    crescente concentrao da terra sob controle de empresas de atuao transnacional dos

    setores de energia e minerao. A antiga elite agrria tem assumido um importante papel no

    processo de implementao do programa, na forma de funcionrios das empresas do setor de

    leo de palma, donos de empresas terceirizadas e atravessadores de terra. Os sistemas de

    agricultura familiar, em contrapartida, tm sido submetidos intensa presso por parte do ora

    em expanso setor de palma de leo. No permetro ocupado pelas plantaes, a opo

    parece se resumir a adeso agricultura familiar por contrato nas plantaes de dend ou a

    venda das terras.

    Em que medida a integrao da agricultura familiar ao agroindstria de leo de palma pela via

    de contratos de trabalho se mostrar exitosa, e se ela de fato no ser suprimida pelo

    agronegcio, como foi o caso das experincias com cana-de-acar e com soja, no se pode

    dizer ainda. Igualmente incerto quem sero, a longo prazo, caso se aceite que a incluso

    da agricultura familiar no setor de palma de leo seja bem sucedida, os ganhadores e os

    perdedores. Isso haver de se evidenciar nos prximos anos. A anlise do programa, assim

    como das dificuldades enfrentadas durante de sua implementao, j demonstra no ter sido

    ele concebido a partir das necessidades dos produtores familiares locais e comunidades

    tradicionais. O que se v em primeiro plano antes o inverso: a explorao de toda uma

    regio pelo agronegcio transnacional.

    A ampla reestruturao ora em curso na microrregio de Tom-A se realiza de maneira

    patentemente pacfica, sobretudo porque legitimada como projeto de desenvolvimento

  • A desapropriao sustentvel da Amaznia | 25

    ecologicamente sustentvel. Especialmente eficaz na construo dessa legitimidade o

    entrelaamento entre as narrativas sobre as chamadas reas degradadas e as relativas aos

    sistemas de explorao de recursos naturais prprios da agricultura familiar, caracterizados

    nesta narrativa como nocivos ao meio ambiente. Por essa razo, a violao dos direitos das

    comunidades tradicionais, assim como da legislao ambiental, no tem despertado protestos

    em nvel transnacional, como de praxe acontece em grandes projetos envolvendo hotspots de

    biodiversidade. Neste caso mostra-se como a tendncia de preservao de matas nativas na

    Amaznia na forma em que ela se configura transnacionalmente como poltica de proteo

    do meio ambiente implica em desincumbir-se daqueles que vivem em regies supostamente

    menos merecedoras de proteo (Hecht 2005).

    A apropriao de terras atravs da incluso da agricultura familiar facilitada pela

    materialidade da palma de leo, a qual, uma vez plantada, possibilita uma forma de

    apropriao da terra que no exige nem emprego de violncia direta nem de ttulo de

    propriedade. A consequncia disso pode ser o xodo rural ou um gradativo processo de

    supresso da agricultura familiar atravs da implantao de relaes de produo

    agroindustriais.

    A proteo do clima e do meio ambiente, enunciados objetivos tanto do programa estatal

    como da atuao da iniciativa privada, tm levado a uma modalidade de apropriao de terras

    que persegue a estratgia do dilogo e da participao. Uma observao mais atenta do

    problema revela, porm, que esse dilogo no consiste numa negociao democrtica entre

    empresas do setor de leo de palma e agricultores, de modo a construir um cenrio em que

    ambos os atores sejam beneficiados. Pelo contrrio, mesmo porque aos agricultores familiares

    no facultada a possibilidade de decidir sobre a principal questo em pauta, isto , se esto

    ou no de acordo com o cultivo de palma de leo na regio em que vivem.

    Neste contexto, reivindicaes por parte dos agricultores familiares, bem como resistncia

    poltica so dificultadas pela cada vez mais acentuada assimetria de poder na regio.

    O desenlace deste green grabbing ainda incerto e no pode, presentemente, ser antecipado.

    Seu transcorrer depende de uma srie de fatores, tais como a evoluo dos preos no mercado de

    commodities, a vontade poltica do governo, pragas na plantao, etc. Igualmente importante a

    legitimidade conferida a atores, suas alianas e lutas, tanto pelo direito ou poder de definio

    sobre as supostas reas degradadas, como pelo acesso, controle e uso da terra. Como

    assinalemos no segundo tpico deste artigo, recorrendo a de Angelis, a acumulao primitiva

    continuada no uma lei do movimento econmico, seno um processo incessantemente em

    disputa. A recusa de agricultores familiares a fechar contratos com empresas do setor de leo de

    palma, as denncias de quilombolas e do povo indgena Temb relativas violao da legislao

    ambiental ocorridas ao longo da implantao do programa, assim como a ao dos sindicatos,

    revelando as pssimas condies trabalho imperantes nas plantaes, podem ser os primeiros

    sinais de um forte movimento em direo oposta preconizada pelo Programa de Produo

    Sustentvel de leo de Palma. E podem mudar seu curso.

  • 26 | Maria Backhouse

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