modelos assistenciais em saúde bucal no brasil

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(2):241-246, fev, 2008 241 Modelos assistenciais em saúde bucal no Brasil Dental care models in Brazil 1 Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. 2 Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil. 3 Prefeitura Municipal de Canguçu, Canguçu, Brasil. 4 Centro de Especialidades Odontológicas, Pelotas, Brasil. Correspondência D. A. Nickel Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina. Rua Andrade Neves 2895, apto. 401, Pelotas, RS 96020-080, Brasil. [email protected] Daniela Alba Nickel 1 Fábio Garcia Lima 2 Beatriz Bidigaray da Silva 3,4 Abstract This article provides a literature review of den- tal care models in Brazil, with a specific focus on the Incremental System. Other models that ap- peared in the research were the Inversion of Care, Early Dental Care, and Family Health Programs. The various authors analyzed the pros and cons, origins, program principles, and evolution of the different dental care models. Finally, the authors observed a common deficiency that impeded ac- cess to dental care services: exclusion of the cli- entele. Community Dentistry; Dental Health Services; Dental Care Introdução O quadro epidemiológico da população jovem brasileira vem se modificando nas últimas dé- cadas. Segundo dados do Ministério da Saúde, coletados em dois grandes levantamentos epi- demiológicos nos anos de 1986 e 2004, houve uma diminuição significativa do índice de cárie da população brasileira 1,2,3 . Ao menos, esta é a realidade na faixa etária de 12 anos: o CPOD mé- dio nesta idade, que era de 6,7 no ano de 1986, passou para 2,7 no ano de 2004 1,3 . Como determinante principal da redução do índice de cárie desde os anos 80 está a inclusão de fluoretos tanto na água de abastecimento público dos municípios, quanto nos dentifrícios comercializados 2,4 . Como determinante coadju- vante está a odontologia, em sua atuação preven- tiva e curativa. A cárie dentária sempre se caracterizou como uma preocupação do setor de atenção público odontológico. Mesmo que outros agravos, como doença periodontal e câncer de boca, tenham expressão na população brasileira 3 , os progra- mas de prevenção e educação em saúde bucal se detêm quase que exclusivamente à prevenção da cárie dentária 2 . Uma dessas programações de caráter preven- tivo-curativo que se destaca na prática odontoló- gica moderna é o Sistema Incremental, elabora- do na década de 50 (e já ultrapassado), o qual, até REVISÃO REVIEW

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Odontologia

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  • Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 24(2):241-246, fev, 2008

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    Modelos assistenciais em sade bucal no Brasil

    Dental care models in Brazil

    1 Programa de Ps-Graduaoem Sade Pblica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, Brasil.2 Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil.3 Prefeitura Municipal de Canguu, Canguu, Brasil.4 Centro de Especialidades Odontolgicas, Pelotas, Brasil.

    CorrespondnciaD. A. NickelPrograma de Ps-Graduao em Sade Pblica, Universidade Federal de Santa Catarina.Rua Andrade Neves 2895, apto. 401, Pelotas, RS96020-080, [email protected]

    Daniela Alba Nickel 1

    Fbio Garcia Lima 2

    Beatriz Bidigaray da Silva 3,4

    Abstract

    This article provides a literature review of den-tal care models in Brazil, with a specific focus on the Incremental System. Other models that ap-peared in the research were the Inversion of Care, Early Dental Care, and Family Health Programs. The various authors analyzed the pros and cons, origins, program principles, and evolution of the different dental care models. Finally, the authors observed a common deficiency that impeded ac-cess to dental care services: exclusion of the cli-entele.

    Community Dentistry; Dental Health Services; Dental Care

    Introduo

    O quadro epidemiolgico da populao jovem brasileira vem se modificando nas ltimas d-cadas. Segundo dados do Ministrio da Sade, coletados em dois grandes levantamentos epi-demiolgicos nos anos de 1986 e 2004, houve uma diminuio significativa do ndice de crie da populao brasileira 1,2,3. Ao menos, esta a realidade na faixa etria de 12 anos: o CPOD m-dio nesta idade, que era de 6,7 no ano de 1986, passou para 2,7 no ano de 2004 1,3.

    Como determinante principal da reduo do ndice de crie desde os anos 80 est a incluso de fluoretos tanto na gua de abastecimento pblico dos municpios, quanto nos dentifrcios comercializados 2,4. Como determinante coadju-vante est a odontologia, em sua atuao preven-tiva e curativa.

    A crie dentria sempre se caracterizou como uma preocupao do setor de ateno pblico odontolgico. Mesmo que outros agravos, como doena periodontal e cncer de boca, tenham expresso na populao brasileira 3, os progra-mas de preveno e educao em sade bucal se detm quase que exclusivamente preveno da crie dentria 2.

    Uma dessas programaes de carter preven-tivo-curativo que se destaca na prtica odontol-gica moderna o Sistema Incremental, elabora-do na dcada de 50 (e j ultrapassado), o qual, at

    REVISO REVIEW

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    hoje, utilizado por alguns profissionais como modelo de atendimento.

    Graas a essa hegemonia do Sistema Incre-mental, a sade bucal de crianas em idade esco-lar foi priorizada, diferentemente do que ocorreu com outras faixas etrias, que acabaram sendo excludas da ateno odontolgica pblica.

    No entanto, no mais se admite esta exclu-so de clientelas em um Sistema nico de Sade (SUS), baseado nos princpios de universalidade de ateno todo cidado tem direito sade e de integralidade de servios as necessida-des da populao devem ser atendidas em sua totalidade.

    Na reviso de literatura, sero apresentados os modelos assistenciais em sade bucal, desen-volvidos a partir do Sistema Incremental, com maior destaque nas publicaes cientficas. So eles, alm do prprio Sistema Incremental, o Pro-grama de Inverso da Ateno, a Ateno Precoce em Odontologia e o Programa Sade da Famlia (PSF).

    Narvai 5 (p. 4) traz uma discusso respeito do termo modelo assistencial. Segundo o autor, a palavra assistncia remete a uma certa limi-tao do objeto, pois se refere exclusivamente ao conjunto de procedimentos clnico-cirrgicos dirigidos a consumidores individuais.

    Em oposio palavra assistncia, feita referncia palavra ateno, sendo definida como um conjunto de aes que, incluindo a as-sistncia odontolgica individual, no se esgota nela 5 (p. 4), podendo inclusive agregar aes externas ao setor sade.

    Diante das definies de assistncia e aten-o, o autor utiliza o termo sistemas de trabalho em sade bucal para caracterizar a organizao das aes coletivas e individuais prestadas po-pulao 5.

    Aqui, ser utilizado o termo modelo assis-tencial tal qual o modo como so produzidas as aes de sade e a maneira como os servios de sade e o Estado se organizam para produzi-las e distribu-las 6 (p. 10). Lembramos que mo-delo no significa uma receita a ser copiada 5, sendo apenas uma forma de expressar uma or-ganizao de servios odontolgicos prestados, a qual deve sempre estar em acordo com as neces-sidades da populao atendida.

    Reviso da literatura comentada

    Anteriormente criao do SUS, a assistncia odontolgica pblica, a exemplo de outros seto-res da sade, atendia somente os trabalhadores contribuintes ao Instituto Nacional de Assistn-cia Mdica da Previdncia Social (INAMPS), por

    meio de convnios e credenciamentos do Estado com o setor privado 7.

    Somente com a promulgao da Constituio Federal de 1988, o acesso universal da populao aos servios de sade foi garantido legalmente. Pires 8 acredita que a criao do SUS representou o rompimento com a lgica da assistncia vin-culada aos interesses do patronato e com a ao curativista.

    Na poca, o Sistema Incremental era o mo-delo assistencial em sade bucal vigente no pas, sinnimo do tipo de atendimento prestado pe-la Fundao Servio Especial de Sade Pblica (Fundao SESP), importante rgo responsvel pela assistncia sade da populao desde a dcada de 50 e financiado pelo governo norte-americano 6,9. Esse modelo surgiu como pro-posta de prestao de servios odontolgicos de forma diferencial, programada e sistemtica, em contraponto ao sistema de livre demanda utiliza-do pela odontologia nas dcadas anteriores 10.

    O municpio pioneiro na implantao do mo-delo incremental foi Aimors, no Estado de Mi-nas Gerais, ainda na dcada de 50. O objetivo de sua programao era tratar as necessidades acu-muladas da populao definida, at o completo tratamento para posterior controle 10,11. Embora tenha sido desenvolvido para ser aplicado em quaisquer populaes, tornou-se um exemplo de assistncia aos escolares de 6 a 14 anos de idade. Esta faixa etria foi eleita por possuir uma maior incidncia de crie com leses em fase inicial e por dispor de um grupo, na maioria das vezes, constante para atendimento 12,13.

    Os recursos preventivos do Sistema Incre-mental restringiam-se fluoretao da gua de abastecimento ou, quando este recurso no esta-va disponvel para a populao, recomendao de aplicaes tpicas de fluoreto de sdio a 2% nas crianas com idades de 7, 10 e 13 anos 13.

    Portanto, o modelo, mesmo sendo caracteri-zado como misto (preventivo-curativo), enfatiza a ao restauradora e coloca em segundo plano as aes educativas e preventivas, simploria-mente abordadas atravs de aplicaes tpicas de flor.

    Outro fato que o programa tradicional no apresenta preocupao quanto ao fator de risco de desenvolvimento da crie e excludente por atender somente escolares de 6 a 14 anos. Com isso, a populao fora desta faixa etria, inclusive aquela recm-egressa do programa, permanece desassistida pelos servios odontolgicos.

    O Sistema Incremental resume-se em um programa intensivo e curativo, amparado em po-bre metodologia preventiva-educativa, que tenta resolver em curto espao de tempo problemas acumulados em uma pequena parcela popula-

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    cional 9. Seus resultados so satisfatrios quan-to aos tratamentos completados em escolares, porm no haver reduo do ndice de crie da populao brasileira, como pretendia seu objeti-vo inicial 10. Os elementos cariados sero substi-tudos pelos restaurados, no alterando o valor final no ndice CPOD.

    Apesar das crticas, o modelo incremental teve sua importncia na odontologia porque foi um marco da programao do servio pblico odontolgico, quebrou a hegemonia da livre demanda dos consultrios. Deve-se considerar, ainda, a poca em que este modelo foi idealizado, quando os conhecimentos a respeito de cario-logia, microbiologia e planejamento em sade estavam em um patamar inferior ao hoje expe-rimentado 9.

    Outra ressalva feita quanto fluoretao da gua de abastecimento pblico, priorizada pelo programa e com eficcia comprovada de reduo do ndice de crie na populao 11.

    Todavia, pode-se dizer que o incremental um sistema ultrapassado para a atual odonto-logia, preocupada com a preveno da doena, embora muitos municpios ainda insistam em utiliz-lo como referencial de assistncia odon-tolgica 9.

    Diante de novos conhecimentos sobre a pre-veno e o controle da crie, das discusses acer-ca do atendimento odontolgico prestado pelo Estado e dos resultados epidemiolgicos insatis-fatrios em todo o Brasil, novas opes progra-mticas surgiram, como a Odontologia Integral, a qual se baseava no modelo incremental sespia-no com certas alteraes 9.

    A Odontologia Integral ou o Incremental Mo-dificado enfatiza a preveno, reconhece a crie como doena infecto-contagiosa, institui o re-torno programado para manuteno preventiva e utiliza a idia de equipe odontolgica, formada pelo cirurgio-dentista, pelo tcnico de higie-nizao dentria e pelo auxiliar de consultrio dentrio 9.

    Em decorrncia das crticas ao Sistema In-cremental, surgiu, no fim da dcada de 80, o Programa Inverso da Ateno, elaborado pe-los professores Loureiro e Oliveira, da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais 6,9. Esse modelo contrariou as aes curativas do Sistema Incremental e da Odontologia Integral, descen-tralizando a ateno curativa clssica, buscando estabilizar o meio bucal para a eficcia dos mto-dos preventivos 9.

    Ele adapta sua estrutura organizativa dou-trina do SUS e apresenta como caracterstica o controle epidemiolgico da doena crie atravs da utilizao de mtodos preventivos 6. Somente aps controlada a doena, inicia-se o tratamento

    restaurador definitivo, reabilitao oral e amplia-o da cobertura populacional 9.

    Diante das caractersticas do modelo, so da-das outras denominaes para o Programa In-verso da Ateno: Sistema Universal, Sistema de Aes de Natureza Coletiva e Sistema de Controle Epidemiolgico da Crie 5.

    A organizao do modelo ocorre em fases or-denadas de procedimentos com objetivos pr-definidos, so elas: estabilizao, reabilitao e declnio. O Programa Inverso da Ateno de-senvolvido seqencialmente e uma fase s inicia aps o trmino da anterior 6.

    Comparado ao Sistema Incremental, o Pro-grama Inverso da Ateno difere-se por no tra-balhar sob a tica de acmulo de necessidades e tratamentos completados individuais em se-qncia 5; orienta-se pela prioridade de controlar a doena com conceitos modernos de preven-o e educao em sade. Por isso, tornou-se um modelo oposto ao tratamento cirrgico-restau-rador.

    Porm, existem crticas quanto abrangncia do Programa Inverso da Ateno. Para Zanetti & Lima 9, esse modelo necessita de um coletivo restrito para atuar e, mais uma vez, as escolas e creches foram alvos do atendimento odontolgi-co. Conseqentemente, os princpios de univer-salidade, integralidade e eqidade preconizados teoricamente por este sistema no foram segui-dos, j que apenas um nico grupo populacional atingido.

    Um ponto discutido por Narvai 5 o esclareci-mento prvio das aes e objetivos do programa para seus usurios, pois, quando as necessidades individuais no so resolvidas imediatamente, pode haver resistncia e oposio dos usurios que no entendem claramente o objetivo do programa, confundindo aes intermedirias de adequao do meio bucal com prestao de ser-vios de baixa qualidade.

    Em resumo, o Programa Inverso da Aten-o conseguiu romper com o tratamento odon-tolgico cirrgico-restaurador, enfatizando as medidas preventivas para o controle da doena crie, no entanto permaneceu com a priorida-de (ou exclusividade) de prestao de servios a um grupo restrito. Ele teve sua implantao em vrios municpios para cobrir as falhas do Siste-ma Incremental curativo, no levando em conta as reais necessidades epidemiolgicas da popu-lao, que permaneceu com alto ndice CPOD, principalmente aquela no pertencente faixa etria usuria do modelo.

    Outro modelo difundido na odontologia a Ateno Precoce, que teve como pressuposto a observao de freqentes problemas bucais em pacientes na primeira infncia 14. Esse modelo

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    resgatou a clientela com idade inferior a seis anos, abandonada desde a dcada de 50 em virtude da fora do modelo incremental, e introduziu nova mentalidade junto populao e profissionais de sade sobre a importncia da preveno da crie dentria ainda na dentio decdua 6,15.

    A primeira experincia do modelo de Aten-o Precoce no Brasil ocorreu na Universidade Estadual de Londrina, Paran, com a criao da Beb-Clnica, em 1985 14,15,16. No servio pbli-co de assistncia odontolgica, os municpios de Camb, Londrina ambos no Estado do Paran e Araatuba no Estado de So Paulo foram os pioneiros na implantao da ateno precoce no formato clnicas de bebs 15,16.

    A Ateno Precoce propunha o atendimento criana antes do primeiro ano de vida, podendo incluir as gestantes, e visava educao do n-cleo familiar para realizao de tarefas de higie-nizao da cavidade bucal, controle da amamen-tao noturna aps os seis meses de vida e con-sumo racional de acar 16. Conforme Pinto 11, a clnica de bebs considerada uma promissora linha de prestao de cuidados preventivos im-plementada desde o nascimento da criana.

    A metodologia desenvolvida na clnica de be-bs engloba duas fases principais: a fase educa-tiva, em que os pais recebem informaes sobre sade bucal e sobre o funcionamento do progra-ma, e a fase preventiva, na qual a criana recebe o atendimento clnico, com retorno previsto a cada dois meses 15.

    Observamos na Ateno Precoce um modelo de sucesso para a clientela especfica de crianas menores de trs anos de idade, com resultados interessantes na reduo de crie dental tanto na idade assistida, quanto nas idades subseqen-tes, incluindo os escolares de seis anos de idade poca importante pela erupo do primeiro molar permanente 16. Provavelmente o sucesso na reduo do ndice de crie ocorre pela nfase dada preveno e educao em sade bucal 16. H questes de motivao envolvidas na fase educativa, diferentemente do que ocorria ante-riormente com os modelos Sistema Incremental e Programa Inverso da Ateno.

    Entretanto, em alguns municpios, as clni-cas de bebs so implantadas sem lgica e estru-turao programtica 6. A eficcia do modelo alterada pela sua individualidade de ao e essa deficincia na conexo da ateno odontolgica pblica traz deficincias semelhantes s encon-tradas nos modelos anteriores, no-cumprimen-to da universalidade, integralidade e eqidade nas aes de sade bucal.

    Assim, buscando a integralidade e universa-lidade de ateno, o Ministrio da Sade criou, em 1994, o PSF 17. Segundo Pires 8, o PSF se

    constitui em uma nova porta de acesso ao SUS, uma incorporao prtica e reafirmao dos seus princpios.

    A base operacional do programa centraliza-se no atendimento do ncleo familiar, tendo as seguintes diretrizes: carter substitutivo, integra-lidade e hierarquizao, territorializao, adscri-o da clientela e equipe multidisciplinar 18,19. Portanto, o PSF surge para alterar o modelo hos-pital-cntrico e propor a humanizao do aten-dimento e integrao entre as aes clnicas e de coletividade 20.

    Embora a formao das equipes de sade bucal no PSF tenha ocorrido tardiamente sua criao, sendo somente regulamentada pela Por-taria GM/MS n. 267, de 6 de maro de 2001 21, a incluso da odontologia no PSF contribui pa-ra a construo de um modelo de ateno que melhore efetivamente as condies de vida dos brasileiros 17.

    O sistema de atendimento utilizado no PSF pelas equipes de sade bucal deve ser voltado promoo de sade, controle e tratamento das doenas bucais, sendo prioritria a eliminao da dor e da infeco. recomendada a utiliza-o de recursos epidemiolgicos na identificao dos problemas da populao adscrita para, pos-teriormente, agir segundo critrios de risco 17.

    Na concepo terica desse programa, os conceitos de universalidade e integralidade tor-nam-se concretos, auxiliando a rede bsica de sade na diminuio do fluxo dos usurios para a ateno complexa.

    Entretanto, para Narvai 22, o acesso integral dos indivduos aos servios pblicos de sade no assegurado em todas as unidades de sa-de da famlia. Muitas no adquirem de forma resolutiva os servios de referncia e contra-re-ferncia, tornando o PSF um programa restrito ateno bsica.

    Ainda segundo esse autor, deve haver cau-tela na implantao de atividades preventivas educativas, as quais no devem sobrecarregar os recursos humanos responsveis pelas atividades curativas, uma vez que h real necessidade de cura de uma demanda remanescente da popu-lao assistida. Destaca que o desenvolvimento do programa deve ocorrer sob acompanhamen-to do conselho de sade e a partir de prticas de-mocrticas de gesto 22.

    O autor tambm questiona a forma de im-plantao do modelo assistencial, que no deve ter estratgia nica e imutvel, desvinculada das necessidades da populao assistida. Deve, sim, produzir dilogo e discusso sobre os servios a serem prestados na unidade bsica de sade ou na unidade de sade da famlia e respeitar os princpios do SUS 22.

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    Uma crtica pertinente ao PSF seria a hege-monia da figura do mdico nas equipes multi-profissionais 19, que refletida muitas vezes nas melhores condies salariais da classe mdica, quando esta comparada a outras classes pro-fissionais vinculadas equipe. A inexistncia da paridade salarial poder produzir efeitos indese-jveis no funcionamento da equipe, prejudican-do as metas de trabalho e conseqentemente o servio prestado comunidade.

    Outro fato negativo a forma de contrata-o dos profissionais 19 em alguns municpios que no utilizam concursos pblicos. Assim, o ingresso de profissionais realmente capacitados torna-se restrito, suscetvel a polticas partidrias e favorecimentos desleais.

    O PSF deve seguir seus princpios iniciais pa-ra conseguir reorganizar a sade pblica e atingir sua meta principal de promover condies ideais de vida e sade para a populao brasileira, de forma integral e universal. Logo, indispensvel tornar disponveis servios de referncia e con-tra-referncia atualizados para o atendimento da populao, contratar profissionais concursa-dos para assegurar sua qualificao e manter o nmero pr-estabelecido de equipes de acordo com o nmero de famlias adscritas, evitando o excesso de demanda e queda na qualidade dos servios prestados.

    Consideraes finais

    Acredita-se que as falhas dos modelos analisa-dos so semelhantes quanto universalidade e integralidade de ateno. Os modelos foram concebidos para atuar em clientelas especficas e existiram como principal ou nica forma de acesso aos servios odontolgicos. Um modelo assistencial deve ser vinculado s aes de sade da unidade bsica e no tornar-se nica forma de acesso da populao aos servios de assistncia odontolgica. Portanto, imprescindvel a pro-gramao na implantao dos modelos para evi-tar a excluso de usurios.

    Entretanto, todos os modelos at ento ela-borados constituram a evoluo da assistncia odontolgica pblica brasileira. Consideramos a apropriao do conhecimento acerca da evolu-o dos modelos assistenciais em sade bucal no Brasil indispensvel para a construo de uma odontologia pblica de maior eficcia e qualida-de, a fim de finalmente fazer valer para a popula-o os princpios do SUS.

    Resumo

    Foi realizada uma reviso da literatura sobre os mo-delos assistenciais em sade bucal no Brasil, desen-volvidos a partir do Sistema Incremental. Os modelos destacados nas publicaes cientficas utilizadas como referncia foram, alm do Sistema Incremental, o Pro-grama de Inverso da Ateno, a Ateno Precoce em Odontologia e o Programa Sade da Famlia. Foram descritas as origens e as bases da programao, ca-racterizando-se os fatos positivos e negativos de cada modelo. Ao fim, foi constatada uma falha comum que dificulta o acesso universal e integral ateno odon-tolgica: a excluso de clientelas.

    Odontologia Comunitria; Servios de Sade Bucal; Assistncia Odontolgica

    Colaboradores

    D. A. Nickel participou na reviso da literatura e redao do artigo. B. B. Silva e F. G. Lima colaboraram na redao e organizao do texto.

  • Nickel DA et al.246

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    Recebido em 22/Mar/2006Verso final reapresentada em 02/Mai/2007Aprovado em 05/Jun/2007