pontifÍcia universidade catÓlica de goiÁs mestrado
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE GOIS
MESTRADO EM SERVIO SOCIAL
ERLNDIA SILVA PEREIRA
TRABALHADOR DE CONTRATO TEMPORRIO NO CENTRO DE CONTROLE
DE ZOONOSES DE UBERLNDIA E O SERVIO SOCIAL
COM COLETIVO: UMA APOSTA NA INVENO
GOINIA
2011
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ERLNDIA SILVA PEREIRA
TRABALHADOR DE CONTRATO TEMPORRIO NO CENTRO DE CONTROLE
DE ZOONOSES DE UBERLNDIA E O SERVIO SOCIAL
COM COLETIVO: UMA APOSTA NA INVENO Dissertao apresentada ao Curso de
Mestrado em Servio Social da Pontifcia
Universidade Catlica de Gois (PUC) sob a
orientao da Profa. Dra. Margot Riemann
Costa e Silva
GOINIA 2011
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P436t Pereira, Erlndia Silva. Trabalhador de contrato temporrio no Centro de Controle
de Zoonoses de Uberlndia e o Servio Social com coletivo : uma aposta na inveno [manuscrito] / Erlndia Silva Pereira. 2011.
161 f. : il. colors Bibliografia: p.128-132 Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de
Gois, 2011. Orientao da Prof. Dr. Margot Riemann Costa e Silva. Inclui lista de figuras, grficos, siglas e abreviaturas. Inclui anexo
1. Trabalhador contrato temporrio qualidade de vida
Centro de Controle de Zoonoses Uberlndia (MG). 2. Sade do trabalhador. 3. Servio social coletivo. I. Ttulo.
CDU: 364:613.6(815.1Uberlndia)(043.3) 331.484
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ERLNDIA SILVA PEREIRA Trabalhador de contrato temporrio no Centro de Controle de Zoonoses de
Uberlndia e o Servio Social com coletivo: uma aposta na inveno.
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Servio Social da Pontifcia Universidade Catlica de Gois (PUC) como requisito para a obteno do ttulo de Mestre em Servio Social. rea de Concentrao: Servio Social, Poltica Social e Movimentos Sociais.
Goinia, 11 novembro 2011.
Banca Examinadora:
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Prof Dr Margot Riemann Costa e Silva (PUC Gois)
Orientadora
_______________________________________________
Prof Dr Rosuita Frattari Bonito (UFU)
_______________________________________________
Prof Dr Liliana Patrcia L. S. Pereira (PUC Gois)
_______________________________________________
Prof Dr Constantina Ana Guerreiro Lacerda (PUC-Gois)
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Dedico este estudo a vocs que esto do lado de l, de l deste mar, deste cu azul: meu pai, homem trabalhador que continua a inspirar em mim o desejo de continuar o trajeto e aos meus tios Roque e Zenita, que me conduziram vida crist. Minha eterna saudade! Vocs estaro sempre presentes, pois a partida no apaga as palavras ditas e o afeto construdo. minha me, mulher forte e humilde, que tem me ensinado sobre a vida e me permitido atentar voz daqueles que no so ouvidos. Aos meus irmos, Enilton e Roslia, simplesmente presentes, independentemente das circunstncias. minha filha Natlia, com quem tenho desenvolvido o ato de amar.
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AGRADECIMENTOS
minha orientadora, Prof Dr Margot Riemann Costa e Silva (PUC Gois),
minha gratido por ter tido o interesse tico e acadmico pela minha pesquisa. Agradeo por
voc disponibilizar sua magnitude intelectual para direcionar-me na tentativa de falar de
minha experincia profissional. Nessa busca de pequenos corredores, suas palavras
iluminaram meu vale escuro nos momentos em que mais necessitei.
Prof Dr Liliana Patrcia L. S. Pereira (PUC Gois), meu agradecimento pelas
contribuies na fase de crditos, qualificao e defesa, pela seriedade tica e por suas
relevantes sugestes. Prof Dr Rosuita Frattari Bonito, profissional da sade a quem
admiro e respeito: obrigada por ter aceitado contribuir na minha defesa. Aos demais
professores do Programa de Mestrado em Servio Social da PUC Gois, quero agradecer
em nome da Prof Dr Regina Sueli de Sousa pelo acolhimento que recebi, bem como pelas
contribuies relevantes para minha formao.
s colegas de mestrado, na pessoa de Lila de Ftima de Carvalho Ramos, pela
partilha de novos conhecimentos. Em especial, minha colega Marlia Nogueira Neves,
companheira, amiga das idas e vindas nessa estrada. Juliana Espndola de Castro,
secretria do Programa de Ps Graduao do Mestrado em Servio Social da PUC Gois,
que de forma carinhosa e eficiente contribuiu comigo nas atividades administrativas.
Aos alunos e ex alunos do curso de servio social da Faculdade Catlica de
Uberlndia sendo estmulo na minha opo em fazer a ps-graduao. Ao Prof. Pedro Alves
Fernandes, professor da Faculdade Catlica de Uberlndia, por ter acreditado no meu
trabalho possibilitando a minha trajetria acadmica. A Prof. Maria Izabel da Silva,
coordenadora da graduao e do curso servio social da Faculdade Catlica de Uberlndia,
uma amiga que tem me incentivado e apoiado nesta caminhada.
Ao diretor do Centro de Controle de Zoonoses - CCZ, Adalberto Pajuaba, que
acreditou no meu trabalho, permitindo no somente minha atuao profissional, mas
tambm o desenvolvimento da pesquisa. Ao coordenador do Programa de Controle da
Dengue, Jos Humberto Arruda, por disponibilizar os trabalhadores para a participao na
pesquisa e pelo apoio ao meu trabalho. Aos colegas, Teilor, Jean e Yosef do CCZ, que
contriburam na coleta de dados documentais desta pesquisa. Ao Rogrio da UFU pelo
apoio estatstico.
Finalmente, aos trabalhadores sujeitos desta pesquisa, aqueles que no tm o
direito de falar, meu respeito e agradecimento pela confiana.
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Palavras Tits
Palavras no so ms
Palavras no so quentes Palavras so iguais
Sendo diferentes Palavras no so frias
Palavras no so boas Os nmeros pra os dias
E os nomes pra as pessoas Palavra eu preciso
Preciso com urgncia Palavras que se usem
em caso de emergncia Dizer o que se sente
Cumprir uma sentena Palavras que se diz
Se diz e no se pensa Palavras no tm cor
Palavras no tm culpa Palavras de amor
Pra pedir desculpas Palavras doentias Pginas rasgadas
Palavras no se curam Certas ou erradas
Palavras so sombras As sombras viram jogos
Palavras pra brincar Brinquedos quebram logo
Palavras pra esquecer Versos que repito Palavras pra dizer
De novo o que foi dito Todas as folhas em branco
Todos os livros fechados Tudo com todas as letras
Nada de novo debaixo do sol
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RESUMO
A abordagem investigativa pretende analisar a percepo da qualidade de vida dos
trabalhadores sob regime de contrato temporrio no Centro de Controle de
Zoonoses do Municpio de Uberlndia CCZ. O questionamento que direcionou este
estudo relativo ao fato de que o trabalho por contrato temporrio interfere
negativamente na qualidade de vida do trabalhador, repercutindo em sua sade,
relaes sociais, atividade laboral e vida cotidiana. Nesse sentido, a partir de uma
atuao crtica e resguardadas as limitaes prprias das condies objetivas de
trabalho, o assistente social poderia desenvolver com o coletivo alternativas de
enfrentamento das demandas trazidas nos atendimentos profissionais. A
investigao foi estruturada por meio de pesquisa-ao, colhendo dados qualitativos
(depoimentos) nas rodas de conversas durante doze encontros. Colhemos dados
quantitativos em dois momentos: antes e aps as rodas de conversa, utilizando o
questionrio da OMS, WHOQOL-bref (World Health Organization Quality of Life),
em modelo simplificado, o qual tem por finalidade de medir estatisticamente a
percepo da Qualidade de Vida. Posteriormente, confrontamos os dados e
pudemos constatar que o regime de contrato temporrio, uma das modalidades do
trabalho flexvel dentre outras estratgias da reestruturao produtiva, precariza a
qualidade de vida destes trabalhadores. No que se refere interveno do Servio
Social, observamos que o trabalho com coletivos apresentou resultados satisfatrios
no sentido de promover junto a estes trabalhadores uma sensvel melhora da
percepo sobre a qualidade de vida, embora seja claro ao nosso estudo o peso da
questo social na vida cotidiana destes trabalhadores.
Palavras-Chave: Trabalhador temporrio. Servio social. Qualidade de Vida.
Coletivo.
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ABSTRACT
The investigative approach intends to examine the perception of quality of life of
workers under temporary contract at the Zoonosis Control Center of the Municipality
of Uberlndia - CCZ. The research question raised the question that the temporary
contract job infers in the quality of life of the worker, reverberating in health, social
relationships, work and daily life activity and that the social worker, from a critical
role, safeguarding the limitations of the objective conditions of the work, with the
collective could develop alternative coping demands brought from the professionals
care. The investigation was structured through action research collecting qualitative
data (testimonies) in the meetings for twelve times. We collect quantitative data on
two occasions, before and after the meetings, using the OMS questionnaire,
WHOQOL-bref-World Health Organization Quality of Life (simplified model) that aims
to statistically measure the perceived quality of life. Later, we confront the data and
we can see that the system of temporary contracts, one of the types of flexible
working, among other strategies of productive restructure, undermines the quality of
life of these workers. As regards the intervention of social work, we can observe that
the collective work achieved satisfactory results promoting in the workers a significant
improvement in the perception of the quality of life although it is clear to our study the
weight of the social question in everyday life of these workers.
KEYWORDS: Temporary worker, social service, quality of life, collective
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Desenho retratando o significado de Qualidade de Vida 73 FIGURA 2 Desenho retratando significado de Qualidade de Vida 80 FIGURA 3 Desenho retratando o significado de Qualidade de Vida 80 FIGURA 4 Desenho retratando significado de Qualidade de Vida 81 FIGURA 5 Desenho retratando significado de Qualidade de Vida 81 FIGURA 6 Desenho retratando significado de Qualidade de Vida 82 FIGURA 7 Desenho retratando significado de Qualidade de Vida 82 FIGURA 8 Desenho retratando o significado de Qualidade de Vida 83 FIGURA 9 Desenho retratando significado de Qualidade de Vida 107
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LISTA DE GRFICOS
GRFICO 1 Casos Notificados de Dengue por ano, Uberlndia-MG (at 07/2011)..........................................................................
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GRFICO 2 Percepo dos trabalhadores referente Qualidade de Vida Momento 0 e Momento 1 .........................................................
87
GRFICO 3 Avaliao do trabalhador sobre a Qualidade de Vida ............ 88 GRFICO 4 Avaliao do trabalhador sobre o nvel de satisfao em relao
Sade ...................................................................................
89 GRFICO 5 Avaliao do trabalhador sobre a dor fsica 90 GRFICO 6 Avaliao do trabalhador sobre a necessidade de tratamento
mdico................................................................................
91 GRFICO 7 Avaliao do trabalhador sobre energia (disposio) para o dia-
a-dia ...................................................................................
91 GRFICO 8 Avaliao do trabalhador sobre sua capacidade de locomoo 92 GRFICO 9 Avaliao do trabalhador sobre satisfao com o sono 93 GRFICO 10 Avaliao do trabalhador sobre a capacidade para desempenhar as
atividades do di-a-dia ...........................................................
94 GRFICO 11 Avaliao do trabalhador sobre a capacidade para o trabalho 95 GRFICO 12 Avaliao do trabalhador sobre o aproveitamento da vida 96 GRFICO 13 Avaliao do trabalhador sobre o sentido de sua vida ......... 97 GRFICO 14 Avaliao do trabalhador sobre a capacidade para concentrao 98 GRFICO 15 Avaliao do trabalhador sobre a aceitao da sua aparncia fsica 98 GRFICO 16 Avaliao do trabalhador sobre satisfao consigo mesmo 99 GRFICO 17 Avaliao do trabalhador sobre sentimentos negativos........ 100 GRFICO 18 Avaliao do trabalhador sobre as relaes pessoais......... 102 GRFICO 19 Avaliao do trabalhador sobre vida sexual........................ 103 GRFICO 20 Avaliao do trabalhador sobre apoio que recebe dos amigos 104 GRFICO 21 Avaliao do trabalhador sobre segurana na vida diria 106 GRFICO 22 Avaliao do trabalhador sobre o meio-ambiente................ 106 GRFICO 23 Avaliao do trabalhador sobre dinheiro para suas necessidades 108 GRFICO 24 Avaliao do trabalhador sobre as informaes para o dia-a-dia 109 GRFICO 25 Avaliao do trabalhador sobre oportunidade de lazer.............. 110 GRFICO 26 Avaliao do trabalhador sobre condio do local onde mora 111 GRFICO 27 Avaliao do trabalhador sobre acesso aos servios de sade 112 GRFICO 28 Avaliao do trabalhador sobre acesso ao meio de transporte 113
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AT - Acidente de Trabalho CCZ - Centro de Controle de Zoonoses CF - Constituio Federal CRESS - Conselho Regional de Servio Social ECA - Estatuto da Criana e do Adolescente EPI- Equipamento de Proteo Individual IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica LOAS - Lei Orgnica da Assistncia Social LT - Lder de Turma OIT - Organizao Internacional do Trabalho OMS - Organizao Mundial de Sade PNAS - Poltica Nacional de Assistncia Social PNUD - Pesquisa Nacional de Unidade de Domiclios QT - Qualidade Total QV - Qualidade de Vida SPSS Statistical Package for the Social Sciences (em Portugus: Programa essencial para trabalhar com estatstica) SUAS - Sistema nico da Assistncia Social SUS - Sistema nico de Sade UAI - Unidade de Atendimento Integrado WHOQOL-100 - World Health Organization Quality of Life (em Portugus: Organizao Mundial de Sade Qualidade de Vida questionrio completo) WHOQOLBref - (World Health Organization Quality of Life (em Portugus: Organizao Mundial de Sade Qualidade questionrio abrevidado)
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QUADRO
QUADRO 1 Percepo dos trabalhadores referente a qualidade de vida no Momento 0 e Momento 1
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SUMRIO INTRODUO 13CAPTULO 1 O TRABALHO TEMPORRIO NO CONTEXTO CAPITALISTA NEOLIBERAL
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1.1 Reestruturao produtiva e o trabalho temporrio 191.2 O trabalhador de contrato temporrio, a questo da autonomia e da
cooperao 24
CAPTULO 2 O ASSISTENTE SOCIAL ATUANDO NO CONTEXTO DA REESTRUTURAO PRODUTIVA
28
2.1 Os movimentos sociais na luta por direitos 282.2 Breves consideraes sobre os mnimos sociais, bsicos de proteo e
necessidades humanas 32
2.3 Qualidade de vida e necessidades bsicas 352.4 A construo poltica com o servio social: em busca da sade do
trabalhador, resgate da autonomia e do sentimento de cooperao 40
2.5 A constituio histrica do exerccio profissional do assistente social: um tcnico operativo mais alm do tcnico
47
CAPTULO 3 O TRABALHADOR DE CONTRATO TEMPORRIO NO CENTRO DE CONTROLE DE ZOONOSES
57
3.1 O Centro de Controle de Zoonoses 573.2 O Agente de Controle de Zoonoses e o trabalho de Combate Dengue 583.3 O papel do Servio Social no CCZ 623.4 A pesquisa com coletivo de trabalhadores por contrato temporrio: uma
experincia aplicada entre qualitativo e quantitativo de dados 64
3.5. Procedimentos ticos da pesquisa 66CAPTULO 4 O TRABALHADOR DE CONTRATO TEMPORRIO NO CCZ, O SERVIO SOCIAL E AS RODAS DE CONVERSA
69
4.1 As rodas de conversa em doze encontros 694.2 As Rodas de Conversa e a percepo da questo social 714.3 Qualidade de vida na percepo do ACZ 794.4 A mudana da percepo subjetiva de qualidade de vida registrada pelo
instrumental WHOQOL-bref 85
4.5 Anlise quantitativa Percepo da Qualidade de Vida na viso dos trabalhadores
88
4.5.1 Aspecto fsico 904.5.2 Aspecto psicolgico 954.5.3 Aspecto social 1024.5.4 Aspecto meio ambiente 1054.6 Novos espaos scio-ocupacionais para o Assistente Social 1134.7 A fora do coletivo recriando vnculos 116CONSIDERAES FINAIS 122REFERNCIAS 128ANEXO A AES REALIZADAS PELO PROGRAMA MUNICIPAL DE CONTROLE DA DENGUE
133
ANEXO B INSTRUMENTAL DE PESQUISA 136ANEXO C A DINMICA DAS RODAS DE CONVERSA 142ANEXO D TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO 159
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INTRODUO
Essa dissertao rene o resultado de minhas reflexes e experincias
acumuladas durante os ltimos vinte anos atuando em organizaes privadas,
inicialmente e, posteriormente, correspondendo ao meu maior tempo de trabalho,
em organizao pblica municipal. Essa trajetria no servio pblico iniciou-se no
ano de 1994, quando fui admitida por concurso como assistente social na Secretaria
Municipal de Administrao, atuando junto aos trabalhadores. Em 2009 iniciei o
trabalho de Assistente Social no Centro de Controle de Zoonoses CCZ, atendendo
s demandas dos trabalhadores dessa Unidade.
O Centro de Controle de Zoonoses no Municpio est no Plano de gesto da
Secretaria Municipal de Sade, desenvolvendo atividades junto vigilncia
epidemiolgica. O Centro tem como finalidade o planejamento, coordenao e
execuo das aes de controle de doenas comuns aos homens e animais, entre
elas o combate dengue.
Em Uberlndia, o segmento que mais emprega assistentes sociais a Sade,
e esse dado um indicador importante para localizar a participao do Assistente
Social nas discusses deste segmento. O municpio conta com uma populao de
604.013 habitantes, conforme dados do IBGE (BRASIL, 2011), o que o categoriza na
gesto plena na disposio dos servios do Sistema nico de Sade SUS.
De acordo com o previsto na Poltica Pblica, o territrio dividido em cinco setores
sanitrios para atendimento na Ateno Primria, Secundria e Terciria e conta
com um hospital universitrio de grande porte, com 500 leitos, que atende a uma
macrorregio, bem como, com um hospital municipal com 258 leitos, uma conquista
recente, e mais oito Unidades de Atendimento Integral (UAIs) para atendimento na
Ateno Primria e Secundria. Alm das oito Unidades Bsicas de Sade, h 41
Unidades Bsica Sade da Famlia para atendimento na Ateno Primria, alm de
convnios com hospitais privados e laboratrios. H 11 programas subordinados
Secretaria Municipal de Sade, dentre eles, a Coordenao de Servio Social e
Servios de Vigilncia em Sade: Centro Controle de Zoonoses (CCZ), com 399
Agentes de Zoonoses sendo 381 contratados e 18 efetivos , que tem como
finalidade fazer vigilncia das zoonoses endmicas atravs dos Laboratrios de
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Animais Peonhentos, Laboratrio de Controle de Qualidade em Sade Pblica,
Vigilncia Epidemiolgica e Vigilncia Sanitria.
O Servio Social iniciou suas aes no CCZ no ano de 2002. Entre as
atividades tcnico-operativas, identifica-se o atendimento aos trabalhadores da
unidade, variando mltiplas aes como: encaminhamentos-acompanhamento,
formao visitas domiciliares e, por ltimo, atendimento de alguns casos de pessoas
da comunidade.
As demandas se apresentam em duplo carter. O que identifico como
demanda espontnea so os casos em que o trabalhador, tanto no mbito de
gesto, como operacional, procura diretamente a colaborao do Servio Social nas
questes que envolvem sade, situaes familiares e relacionamento profissional.
Ao segundo caso, identifico-o por busca ativa, o qual decorre dos casos em que o
trabalhador se encontra afastado, necessitando de acompanhamento e assistncia.
A interveno se delineia por intermdio da rede scio- assistencial e dos setores
disponveis no mbito da Prefeitura Municipal.
A base da interveno segue as orientaes legais no que se refere aos
direitos dos trabalhadores e normatizao das condies previstas no Cdigo de
tica e Regulamentao Profissional. Os atendimentos so realizados em sala
especfica do Servio Social, com todo equipamento at hoje solicitado ao gestor da
unidade, bem como todo o servio de suporte necessrio execuo das atividades,
tais como: motorista, sala de formao com equipamento tcnico e suporte de reas
afins, em acordo com o que a demanda exige. O servio social ao longo desses
anos, conquistou um espao de respeitabilidade em funo dos servios realizados,
o que vem ultimamente facilitando a continuidade das aes ali empreendidas.
O universo de pesquisa se inscreve no mbito do CCZ e representa um
espao peculiar de investigao, com um recorte inscrito junto aos funcionrios que
atuam no Programa de Preveno da Dengue, possuindo o maior nmero de
funcionrios no regime de contratos temporrios, o que se contrape menor
quantidade de funcionrios estatutrios do setor.
O objetivo da pesquisa foi desenvolver uma interveno que permitisse ao
trabalhador refletir e verbalizar a percepo de sua condio como trabalhador e,
tambm, como cidado. O conceito de Qualidade de Vida assumiu um papel
central no trabalho de interveno, pois, ao longo dos atendimentos realizados pelo
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Servio Social, observou-se que essa expresso fazia parte do universo vocabular
dos trabalhadores quando estes falavam da questo do desgaste fsico e mental.
Considerando suas falas, compreende-se que o significado da expresso Qualidade
de Vida est diretamente associado s necessidades humanas bsicas, ou seja:
relacionamento familiar, sade, bem-estar, liberdade e autonomia.
A base da pesquisa inscrita na pesquisa-ao (THIOLLENT, 1986),
vinculando-se os aportes tericos-metodolgicos para configurar um processo de
investigao aplicado. Os atendimentos profissionais foram realizados por meio de
oficinas com coletivos de trabalhadores denominados Rodas de Conversa,
espaos de fala livre para a verbalizao da realidade.
A expresso coletivo de trabalhadores utilizada ao longo do trabalho com
o objetivo de recuperar a condio de classe trabalhadora, como classe que vive do
trabalho e, no trabalho, se reproduz como ser social. Evitou-se usar o termo
tradicional grupo, pois a palavra poderia ser associada trilogia funcionalista da
dcada de 1960: caso, grupo e comunidade. Assim, a noo coletivo de
trabalhadores facilitou-nos uma aproximao da epistemologia marxiana que tem o
trabalho como eixo ontolgico do ser social. Ao pensar o trabalho como uma
categoria social, portanto coletiva, a proposta de se valer dessa expresso
pretendeu resgatar a significao da condio de classe, indo na direo oposta da
competio, prerrogativa predatria do capitalismo. No coletivo, recupera-se o
conceito de cooperao discutido no final dO capital, v. I livro 1, de Marx (1988), em
que os trabalhadores, por estarem numa atividade conjunta, desenvolvem vnculos e
experincias compartilhadas, assumindo a dimenso cognoscente e, ao mesmo
tempo poltica de sua histria
A investigao compe o desenvolvimento do meu trabalho como Assistente
Social e inserida no contexto profissional no servio pblico com o objetivo de
garantir os direitos sade do trabalhador a partir da atuao profissional. Procurei
desenvolver atividades interventivas com os coletivos de trabalhadores em regime
de contrato temporrio e parti da hiptese inicial de que o trabalho por contrato
temporrio interfere negativamente na qualidade de vida do trabalhador,
repercutindo em sua sade, relaes sociais, na forma como ele desempenha suas
atividades profissionais e vida cotidiana. Diante disso, o objetivo da interveno junto
ao coletivo de trabalhadores, resguardadas as limitaes prprias das condies
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objetivas de trabalho, buscar alternativas de enfrentamento das demandas trazidas
aos atendimentos profissionais, revividas e explicitadas nas falas das rodas de
conversa.
A interveno junto aos trabalhadores teve tambm o propsito de mitigao
do sofrimento advindo da condio de trabalhador temporrio, valendo-se dos
processos desenvolvidos nas oficinas com as rodas de conversa, em que ao sujeito
se oportuniza a possibilidade de falar de sua realidade e ouvir os demais
companheiros para, juntos, encontrarem alternativas e/ou inventar sadas para seus
problemas.
Ressalto as limitaes impostas ao profissional de servio social pelas
condies objetivas de trabalho, numa esfera de macroestrutura, que atua como
agente limitadora das potencialidades individuais e coletivas. No entanto, advogo a
posio de que a Assistente Social deve buscar, em suas aes interventivas, a
reflexo e ao crtica por parte dos trabalhadores. preciso descolar-se do
maniquesmo de que nada possvel e que tudo est perdido, postura imobilizadora
que reproduz o modelo de opresso das elites que subjugam o trabalhador para
mant-lo no circuito de alienao e sem referncias crticas que possam empoder-
lo para resistncia s condies injustas da relao de trabalho e para a busca da
garantia a seus direitos.
Utilizo aqui o conceito de empoderamento no sentido do educador Paulo
Freire, que difere do sentido da mesma palavra usada na lngua inglesa
empowerment (dar poder a algum para realizao de uma tarefa sem que se
precise da permisso de outros). Para Freire (1990), a pessoa, grupo ou instituio
empoderada aquela que realiza, por si mesma, as mudanas e aes que a levam
a evoluir e se fortalecer em seus objetivos e necessidades. A diferena marcante
que Freire imprime nesta palavra em seus textos justamente o fato de considerar a
posio de sujeito autor, diferente do conceito no ingls, em que algum doa algo a
outro, subsumindo a condio de sujeito. A nfase de Freire difere da concepo
formal pela nfase no grupo mais do que nos indivduos, e pelo seu foco na
transformao cultural mais do que na adaptao social.
A pesquisa/ao deu-se na forma de realizao de doze oficinas de 120
minutos denominadas por mim de rodas de conversa, sem roteiro pr-determinado,
nas quais ocorreram conversas sobre o cotidiano de vida e de trabalho. Foram
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transcritas aproximadamente vinte e cinco horas de registros em udio-digital e,
paralelamente, foram analisados os desenhos feitos ao longo das oficinas com lpis
de cor em papel A4.
Utilizei tambm como recurso de investigao um instrumental da
Organizao Mundial da Sade (OMS), o World Health Organization Quality of Life
(WHOQOL). De acordo com as informaes levantadas na fase bibliogrfica, este
questionrio utilizado de duas formas: o formulrio completo, contendo 100
questes e o abreviado, com 26 questes. Este ltimo foi o utilizado na pesquisa
para aferir as respostas referentes aos aspectos da qualidade de vida e coletar os
dados das questes fechadas em funo de suas caractersticas de abordagem no
enfoque da multidimensionalidade, ou seja, a abordagem das dimenses fsica,
psquica, do meio-ambiente e social do ser humano, que traduzem importantes
referncias da realidade do pblico-alvo pesquisado.
A pesquisa bibliogrfica para apoio conceitual se delineia entre vrios autores
que discutem o conceito de Sade, Sade do Trabalhador e Qualidade de Vida,
dentre eles Bravo (2007), Bertani; Rezende (2007), Ferlauto; Kern (1997), Loureno
(2009), Freire (2003) e Fleck (2003). Este ltimo, membro da equipe de
pesquisadores que aplicou a metodologia definida como WHOQOL-1001, utilizada
pela OMS e referenciada nessa pesquisa na construo do instrumental.
Pereira (2008) contribuiu com a recuperao de conceitos importantes, com a
problematizao sobre o que bsico e mnimo, sobre as necessidades humanas
bsicas e no enfoque para a autonomia do sujeito. Entendo que, alm da elucidao
conceitual, as conquistas sociais esto intimamente condicionadas participao
popular como fator central de consolidao das polticas pblicas.
Do ponto de vista da discusso das questes ligadas ao trabalho e ao
sofrimento a ele inerente, encontrei contribuies significativas nos trabalhos de
Dejours (1992). Ao discutir a contradio entre capital e trabalho na matriz crtica
marxiana, busquei referncias nas anlises de Iamamoto (1988, 2008a, 2008b),
Oliveira (1998), Netto (2007), Mota (2008) e Antunes (1999, 2004, 2006),
considerando a centralidade do trabalho e o paradigma de referncia. A abordagem 1 WHOQOL-100 (em Portugus, Organizao Mundial de Sade Qualidade de Vida). Questionrio
completo.
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da instrumentalidade do Servio Social baseou-se nas discusses do campo
tcnico-operativo, nos trabalhos de Guerra (2000, 2002).
Quanto estruturao do presente trabalho, tem-se quatro partes. No
primeiro captulo, desenvolvo uma discusso do trabalho temporrio na conjuntura
atual de contexto neoliberal e suas repercusses na sade do trabalhador.
No segundo captulo, abordo as discusses de qualidade de vida no olhar dos
autores que empregam esse conceito, apurando a importante relao da teoria com
a prtica no trabalho do Assistente Social.
No terceiro captulo, trago uma apresentao do Centro de Controle de
Zoonoses no contexto institucional, do perfil do Agente de Controle de Zoonoses no
Programa de Combate Dengue e do trabalho do assistente social. Em seguida,
discuto os procedimentos ticos de pesquisa quantitativa e qualitativa. No quarto captulo, trago a metodologia das Rodas de Conversa e as doze
etapas. Busquei capturar a percepo subjetiva do cotidiano dos trabalhadores, o
entendimento da qualidade de vida pela oralidade. Ainda, apresento a anlise e
discusso dos dados das Rodas de Conversa e do instrumental WHOQOL-bref.
Finalizo o captulo comentando os novos espaos scio-ocupacionais para o
assistente social decorrentes de minhas observaes.
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CAPTULO 1 O TRABALHO TEMPORRIO NO CONTEXTO CAPITALISTA NEOLIBERAL
Este captulo aborda um breve panorama do capitalismo contemporneo,
considerando as transformaes decorrentes da reestruturao produtiva e seus
reflexos para os trabalhadores. Segue-se uma reflexo sobre os contratos de
trabalho temporrio com um recorte especial para o setor pblico, luz de tericos
contemporneos que comentam o mundo do trabalho e as posies dos
trabalhadores frente s transformaes atuais.
1.1. Reestruturao produtiva e o trabalho temporrio
J em 1867, na ocasio da publicao de sua obra O Capital, Karl Marx
apontava o aumento crescente do capital constante2 em relao ao varivel
(MARX, 1985, p. 723-724)3 Na era do capitalismo, em verso neoliberal, acentua-se
o processo de reduo do trabalho-vivo que, de alguma forma, reflete no mundo
do trabalho. Observa-se uma crescente expanso do assalariamento do setor de
servios e crescente incorporao do trabalho feminino com remunerao inferior ao
trabalho masculino. Concomitantemente, h uma expanso do trabalho temporrio
do trabalho precarizado e das subcontrataes das chamadas terceirizaes.
O capitalismo contemporneo revela, a partir das suas contradies internas,
a capacidade de regenerar e superar as crises cclicas. Exemplo disso so os
diversos modelos de produo de empregados nas indstrias para que se recupere
a lucratividade ameaada em perodos de recesso. Objetiva-se sempre uma
extrao crescente e cada vez mais aprimorada da mais-valia. Dentre os modelos
de produo apresentados pelo capitalismo, destacam-se o taylorismo, o fordismo e
o mais recente, toyotismo. Todos tm por objetivo o aumento de produtividade e a
expropriao efetiva da fora de trabalho, sem, contudo, ampliar postos de trabalho.
O capitalismo dos monoplios (NETTO, 2007, p. 19) vem reorganizando a 2 Capital constante o dinheiro investido pelo capitalista para obter rea fsica, equipamentos,
matrias-primas e outros meios de produo. 3 Capital varivel o dinheiro utilizado pelo capitalista para comprar a fora de trabalho.
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produo exigindo nveis de qualificao crescente e desempenho multifuncional.
A partir da globalizao das economias e baseado na hegemonia do capital
financeiro e na produo flexvel, o capitalismo contemporneo veio substituir o
capitalismo concorrencial do perodo taylorista-fordista de industrializao vertical. A
acumulao flexvel apoiada na flexibilidade dos processos de trabalho, dos
mercados, dos produtos e dos padres de consumo. Para Harvey (1993, p. 141), a
acumulao flexvel envolve um novo movimento, ao qual ele chama de
compresso do espao-tempo, e algumas implicaes tais como nveis altos de
desemprego estrutural, rpida destruio e reconstruo de habilidades, salrios
reais diminutos quando existentes e retrocesso do poder sindical.
A flexibilizao vai alm da linha de produo, atinge tambm as relaes de
trabalho, destri os postos de trabalho, retira a estabilidade dos trabalhadores e
burla a legislao de proteo social com novas formas precarizadas da relao de
trabalho. As influncias do toyotismo e sua base shumpteriana priorizam a questo
da inovao tecnolgica como propulsora das alteraes econmicas no ciclo atual
do capitalismo. Cabe retomar, a teoria de Josseph Schumpeter defende a
importncia do surgimento de alguma inovao do ponto de vista econmico no
momento das crises cclicas para que estas possam ser superadas e se ingresse em
um processo de expanso (boom).
As mudanas da reestruturao produtiva, tendo como alimentadoras do
processo as inovaes tecnolgicas, tiveram como consequncia a eliminao de
postos de trabalho e a criao de novos postos, exigindo uma mo de obra mais
especializada. No entanto, verifica-se que, ao contrrio do que preconiza o iderio
neoliberal, no foi proporcional a gerao de empregos criados em relao aos
eliminados e, de igual modo, os postos criados no absorveram os contingentes do
exrcito de mo de obra qualificado, isso sem falar daqueles trabalhadores sem
escolarizao que no conseguem vender sua fora de trabalho num mundo
amplamente tecnificado.
O fator tecnolgico exigiu dos trabalhadores uma maior intelectualizao para
a realizao dos processos de trabalho. Nessa mesma linha, verificou-se, no
segundo lustro dos anos 1980, um incremento do trabalho qualificado. Ao mesmo
tempo h um processo de desqualificao ou subproletarizao de vastos
contingentes de trabalhadores. Nesse cenrio, o trabalho abstrato cumpre papel
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cada vez maior na criao de valores de troca. Para Marx (1985, p. 723-724) o que
realmente decorre dessas transformaes refere-se diminuio do fator subjetivo
do processo de trabalho em relao aos fatores objetivos ou, dito de outro modo, a
diminuio do fator subjetivo reduz relativamente, mas no elimina o papel do
trabalho coletivo na produo de valores de troca.
Com a diminuio do trabalho vivo na produo e com a reduo de postos
de trabalho, criou-se a idia da perda da centralidade no trabalho, que defendida
como um fato pelo neoliberalismo. Friedman (2005) espelha esse iderio quando
justifica a falta de compromisso social em nome de uma suposta mo invisvel do
mercado que a tudo regular (sic). Todo esse processo vai atingir visceralmente a
organizao dos trabalhadores nas suas organizaes sindicais, fragilizando mais
ainda a classe que vive do trabalho.
Para Oliveira (1998) o processo demandado pela reestruturao produtiva,
atingiu todos os setores da atividade humana, apresentando maior intensidade a
partir de 1980, com a ascenso das doutrinas neoliberais pelo mundo. De modo
especial, remete a um investimento emocional, intelectual, com forte apelo ao
controle pessoal, centrado no sujeito como o principal responsvel pelo
sucesso/insucesso no trabalho e mistificando a hierarquizao com retricas de
cooperao horizontal, que encobre a verso perversa de expropriao da mais-
valia em nveis sempre crescentes. Sobre esse aspecto importante ressaltar o
componente ideopoltico da concepo de gesto presente nas instituies, sejam
pblicas ou privadas.
Vivem-se formas transitrias de produo, cujos desdobramentos so tambm agudos, no que diz respeito aos direito do trabalho. Estes so desregulamentados, so flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental necessrio para adequar-se a sua nova fase. Direitos e conquistas histricas dos trabalhadores so substitudos e eliminados do mundo da produo. (ANTUNES, 2006, p. 24).
No que se refere s ideologias de gesto de pessoas inspiradas no toyotismo,
a proposta da Qualidade Total vem seduzindo muitos gestores pblicos e privados,
preconizando-se um tipo de trabalhador polivalente, disponvel em diversos horrios
e disposto a trabalhar com contratos temporrios. Para Iamamoto (2008a), esse
cenrio se constitui da seguinte forma:
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[...] estimulada dentro das empresas a preocupao com a qualidade do produto tendo em vista a competitividade, por meio de novas formas de gesto da fora de trabalho, novas polticas gerenciais e administrativas. Fala-se cada vez mais em qualidade total, que apresentada como qualidade nas condies de trabalhos e qualidade de vida, mas visa, de fato, a rentabilidade do capital investido (IAMAMOTO, 2008a, p. 32).
No contexto da reestruturao produtiva se destaca uma forma de
precarizao do trabalho, o contrato de trabalho temporrio, amplamente adotado
por empresas e instituies pblicas e privadas com objetivo de fugir das obrigaes
trabalhistas e garantir lucros.
O contrato de trabalho temporrio o meio do qual as instituies pblicas e
privadas, na era do neoliberalismo, se valem para fugir dos encargos trabalhistas.
Este recurso consorcia a outros como: flexibilizao da legislao, subcontratao,
controle de qualidade total, tcnica de gesto para eliminao do desperdcio, a
iluso da gerncia participativa, sindicalismo de empresa, dentre outros. Estes
fazem parte do modelo inspirado em grande medida no toyotismo, que, ao contrrio
da lgica da integrao vertical do fordismo, propugna uma nova lgica
horizontalizada nas empresas. Os trabalhadores, sob o regime de contrato
temporrio, encontram-se em situao juridicamente diferente dos demais
trabalhadores e dificilmente procuram filiar-se s organizaes sindicais. Primeiro,
porque os contratos so de curta durao podendo ser renovados ou no. O que
provoca uma soluo de continuidade na relao de trabalho. Dessa forma, h uma
dificuldade para este trabalhador criar um vnculo histrico com sua classe e, em
decorrncia disso, firmar-se numa organizao sindical. Em segundo lugar, o
trabalhador por contrato temporrio permanentemente fiscalizado no que se refere
sua eficincia e conduta no emprego, o que implica: se este trabalhador optar por
sindicalizar-se, o empregador deixar de recontrat-lo por representar para os
demais trabalhadores do grupo uma frente de resistncia.
Vale dizer, as polticas neoliberais adotadas nos anos 1990 atingiram tambm
a organizao do Estado. Foram desencadeadas nessa dcada aes de reforma
do Estado e das legislaes, permitindo a macia contratao de mo de obra
temporria. Segundo a Constituio Federal de 1988, o servio pblico entendido
como aquele prestado coletividade pelo Estado ou por seus delegados, sendo os
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trabalhadores que compem os quadros funcionais denominados servidores
pblicos, que ingressam na administrao pblica por meio de concurso, conforme
os arts. 39 a 41 da C.F./1988, adquirindo estabilidade ao final do perodo probatrio
de trs anos. A luta dos trabalhadores do servio pblico garantiu na Constituio
Federal direito estabilidade nos termos da lei, bem o direito a processos de
carreira funcional. Percebe-se a importncia das lutas sindicais no sentido da
garantia dos direitos sociais ao trabalho e da estabilidade, que permite ao
trabalhador ter sua vida planejada a mdio e longo prazo, embora valha dizer que o
achatamento salarial tenha corrompido os ganhos das lutas sindicais.
A Lei n 9.983 de 14/07/2000 permitiu ao gestor pblico a contratao de
trabalhadores sem concurso para cargos comissionados ou funes de confiana
(SIMES, 2010, p. 55). No caso das contrataes temporrias, esses trabalhadores
no detm estabilidade e podem ser exonerados ad nutum4. Todavia, quem exerce
cargo, emprego ou funo em entidades de natureza estatal e quem trabalha para
empresa privada prestadora de servio contratada ou conveniada tendo em vista a
execuo de atividade tpica da administrao pblica equiparado aos agentes
pblicos.
Entre as modalidades de contratao de servios, o municpio tambm pode
utilizar o contrato de trabalho temporrio, prestado por pessoa fsica, para atender a
necessidades transitrias de substituio de pessoal regular e permanente ou nos
acrscimos extraordinrios de servios. De acordo com o Estatuto dos Servidores
Pblicos Municipais de Uberlndia, local onde se desenvolveu a pesquisa, assim
est definida na Lei Municipal de Contrataes Temporrias: As contrataes para
atender s necessidades temporrias de excepcional interesse pblico, especificada
em lei, sero feitas mediante contrato de locao de servios5 (UBERLNDIA,
1995). O decreto 10.917, de 29 de outubro de 2007, regulamenta o processo
seletivo simplificado a que se refere o art. 5 da lei 9.626 de 22 de outubro de 2007,
que dispe sobre a contratao por tempo determinado para atender a necessidade
temporria de excepcional interesse pblico do Municpio de Uberlndia, conforme
4 Sem qualquer motivo. 5 Cf. Ttulo V, Captulo nico, artigo 234, Das Contrataes Temporrias.
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se acha registrado no DOU eletrnico do municpio de Uberlndia6.
O regime de contrato temporrio conforma uma relao de trabalho precrio
que fere garantias individuais do trabalhador. Nesse regime, identifica-se a ausncia
do Fundo de Garantia por Tempo de Servio, e ainda, constata-se o fato de que o
contratado no pode ter duas faltas no ms ou trs faltas durante todo o contrato,
mesmo com justificativa. O municpio se justifica com o argumento de que, como
esto contratados temporariamente para atender a uma necessidade pblica de
interesse coletivo em tempo determinado, a ausncia, mesmo que justificada, no
permitida.
1.2 O trabalhador de contrato temporrio, a questo da autonomia e da cooperao
O trabalho entendido como a fonte de toda a riqueza, afirmam os economistas
clssicos. Assim, eleito como o processo de mudana da natureza, a qual fornece
as matrias primas convertidas pelo homem em manufatura e riqueza. O trabalho,
porm, mais do que isso. a condio bsica e fundamental de toda a vida
humana. E, em tal grau, at certo ponto podemos afirmar que o trabalho criou o
prprio homem (ANTUNES, 1999).
Thomas Hobbes (1588-1679), em sua obra Leviathan (1651), expressa a
viso burguesa do trabalho quando assinala que O valor de um homem , como
para todas as outras coisas, o seu preo, isto , depende de quanto seria dado pelo
uso do seu poder (HOBBES, 2009, p. 71). Assim sendo, a fora de trabalho de um
homem consumida, ou usada, gerando o processo de trabalho do ser social, assim
como se consome ou se usa uma mquina, fazendo-a funcionar. Portanto, ao
comprar o valor dirio (ou semanal) da fora de trabalho do operrio, o capitalista
adquire o direito de servir-se dela ou de faz-la funcionar durante todo o dia ou toda
a semana (ANTUNES, 2004).
Desde a revoluo industrial, esse processo vem se tornando mais agudo. A
transformao do trabalho humano em mercadoria fez com que aqueles que detm
6 Disponvel em http://www3.uberlandia.mg.gov.br/midia/documentos/procuradoria/2790especial(f).pdf.
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os meios de produo sejam os que se beneficiam deste processo, pois conseguem
maximizar seu lucro a partir da crescente taxa de extrao de mais-valia da classe
assalariada. Essa classe, em contrapartida, se distancia progressivamente da
repartio da riqueza produzida pelo trabalho, que gerada coletivamente e
acumulada de forma privada pela classe que detm os meios de produo. Esse
processo de reproduo da desigualdade atinge os trabalhadores de todas as
maneiras, afeta tanto as condies materiais para sua reproduo como as suas
condies subjetivas. Fragiliza a condio de sujeito dos trabalhadores que, nesse
momento, olha para sua prpria vida e percebe um sofrimento (CODO; SAMPAIO;
HITOMI, 1993) que no sabe de onde vem. No percebe o resultado da
precarizao ampliada de si mesmo a coisificao de sua vida que traz como
consequncia a alienao pelo trabalho e, no campo poltico, a perda de sua
autonomia como ser social produtor de riquezas.
Pereira discute a autonomia bsica como um fator fundamental e constitutivo
das necessidades bsicas humanas:
Por autonomia bsica entendemos a capacidade do indivduo de eleger objetivos e crenas, de valor-los com discernimento e de p-los em prtica sem opresses. Isso se ope noo de auto-suficincia do indivduo perante as instituies coletivas ou, como querem os liberais, a mera ausncia de constrangimentos sobre preferncias individuais incluindo no rol destes constrangimentos os direitos sociais que visam proteg-lo. (PEREIRA, 2008, p. 70).
O entendimento do conceito de autonomia, com o olhar clarificado de Pereira,
diverge da perspectiva neoliberal, cujo fundamento a ideologia alienante baseada
no individualismo. J o conceito de autonomia crtica, segundo Pereira (2008, p.74),
[...] um estgio mais avanado de autonomia, que deve estar ao alcance de todos. Revela- se como a capacidade das pessoas de no apenas saber eleger e avaliar informaes com vista ao, mas de criticar e se necessrio, mudar as regras e prticas da cultura a que pertencem.
Trata-se da conquista de valores que perpassam a vida privada, a sade, as
relaes no trabalho. O indivduo que desenvolve um certo grau de autonomia
crtica, descola de sua infncia poltica, passando a possuir uma viso crtica sobre o
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mundo dos valores. Circunscreve um processo de estabelecimento de relaes
sociais solidrias, buscar sonhos e lutar pela cidadania.
A autonomia crtica pode ser tambm entendida como resultado do
estabelecimento de coletivos, quando so compartilhadas potencialidades e
fragilidades, aprendendo-se uns com os outros em processos de superao criativa
diante de problemas comuns. Conforme o conceito de cooperao em Marx (1988),
os trabalhadores unidos no trabalho j cooperam ou trabalham em cooperao. A
atividade laboral mediada por interaes entre os trabalhadores, as quais geram
vnculos afetivos e, consequentemente, se desdobram em relaes de
pertencimento.
A cooperao est definida no primeiro livro dO Capital, ocupando todo o
captulo XI, em que Marx (1988, p. 246) afirma: Quando numerosos trabalhadores
trabalham lado a lado, seja num nico e mesmo processo, ou em processos
diferentes, mas relacionados, diz-se que eles cooperam, ou trabalham em
cooperao. A partir da, tomamos o conceito de cooperao, ligando-o
experincia que o coletivo produziu subjetivamente, referindo-se ao produto gerado
nos dilogos das rodas de conversa.
Decorrente deste processo, pensamos na categoria da cooperao como
fora, como efeito poltico do coletivo de trabalho. Para Marx (1988, p. 249) quando
o trabalhador coopera sistematicamente com outros livra dos grilhes de sua
individualidade e desenvolve as possibilidades de sua espcie.
Agnes Heller aprofunda o conceito da cooperao de Marx
[...] esse amadurecimento para a cotidianidade comea sempre por grupos (em nossos dias, de modo geral, na famlia, na escola, em pequenas comunidades). E esses grupos face-to-face estabelecem uma mediao entre o indivduo e os costumes, as normas e a tica de outras integraes maiores. O homem aprende no grupo os elementos da cotidianidade. (HELLER, 1989, p. 19).
Valendo-nos do conceito de cooperao empregado por Marx e da idia de
Heller, de que o homem aprende no grupo, foi proposto, no Centro de Controle de
Zoonozes de Uberlndia, o compartilhamento das vivncias individuais dos
trabalhadores com contrato temporrio em Rodas de Conversa. O objetivo foi
estabelecer, entre os trabalhadores, uma relao social, dialgica, uma experincia
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de cooperao-poltico-social, mediada pelo conjunto das histrias pessoais do
coletivo. A histria contada do cotidiano da vida poderia ganhar a dimenso da
cooperao partilhada. Se, na trama da cotidianidade, a alienao do trabalho
consome as possibilidades de o trabalhador desvencilhar-se de suas amarras
alienantes e alienadoras, esse trabalhador, quando tem a oportunidade de retomar o
efeito cooperativo de seu coletivo, encontra a cooperao poltica como
caracterstica central de sua classe. A fala de uma trabalhadora nas Rodas de
Conversa expressa essa perspectiva:
A sabedoria da vida vale mais que a dos livros, a fala de cada um aqui importante. As pessoas precisam aprender a conhecer a gente como somos e no como elas vem a gente. A gente faz aquilo que a gente pode tentando acertar e hoje o que foi dito aqui me tocou muito. O grupo tem me ajudado muito a ter foras para suportar tudo que estou passando, a melhorar minha vida buscando melhor qualidade de vida e ter mais sabedoria. Independente das nossas falhas ns temos muita coisa boa. Tudo que a gente vai fazer, fazer da melhor maneira possvel, a gente se sente melhor [...]. (T9, 10/12/10).
As Rodas de Conversa puderam constituir, para os trabalhadores, uma
estratgia de dar voz, encontrar identidades e construir laos, que a rotina de
trabalho normalmente no permite construir, dadas as especificidades da situao
do trabalhador de contrato temporrio.
Entendo que o espao do coletivo politiza e uma ferramenta fundamental
para o processo de enfrentamento das lutas cotidianas. O coletivo constitui um
espao privilegiado onde o indivduo prepara-se para o exerccio da poltica e pode
resgatar sua autonomia
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CAPTULO 2 O ASSISTENTE SOCIAL ATUANDO NO CONTEXTO DA
REESTRUTURAO PRODUTIVA
Neste captulo, pretendo recuperar os apontamentos tecidos por Pereira
(2008), que estabelece uma ponte singular na discusso de assistncia social,
rebatendo o olhar sobre a poltica pblica luz das necessidades humanas.
Estabeleceremos um paralelo entre os apontamentos de Pereira no que diz respeito
s necessidades humanas e qualidade de vida. Pretendo tambm discutir os
conceitos de qualidade de vida, significantes para a pesquisa-ao que foi
desenvolvida.
Finalmente, tecida uma breve abordagem sobre a constituio histrica do
exerccio profissional do assistente social com nfase na crtica do aspecto tcnico-
operativo (mero executor de polticas), tendo em vista a importncia da criatividade
decorrente do seu olhar crtico e propositivo.
2.1 Os movimentos sociais na luta por direitos
A globalizao e o neoliberalismo na dcada de 1990 provocam a piora dos
indicadores sociais que j vinham retrocedendo desde a crise de meados de 1970.
Entre 1980 e 2000, o desemprego salta de 2,8% para 15,0%; o emprego precrio,
por sua vez, de 34,1% para 40,4%, e o emprego informal, de 13,6% para 20,9%
(POCHMANN, 2005, p. 50). Essa deteriorao se d paralelamente a uma reao
dos movimentos sociais a partir tambm da dcada de 1980.
A VIII Conferncia Nacional de Sade em 1986, a promulgao do texto da
Constituio Federal de 1988, da Lei Orgnica da Sade em 1990, do Sistema
nico da Sade em 1990 e da Lei Orgnica da Assistncia Social em 1993 foram
divisores de gua no que se refere s conquistas dos movimentos sociais na direo
da garantia dos direitos.
Relatando os movimentos pelo direito universal sade, apontamos que,
desde a Ditadura Militar, vinham sendo agravadas as demandas na rea da sade
em funo do modelo econmico privatista impresso pelo governo militar. A respeito
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deste perodo de anti-democracia, Bravo (2007) afirma:
Houve o desenvolvimento de um Estado estranho, estrangeiro, inimigo, que anulou o cidado, mantendo a grande maioria da sociedade civil sob controle e explorao. Baniu a dbil representao das classes subordinadas (em especial, dos operrios urbanos e rurais e dos camponeses) de todas as esferas do aparelho estatal, representao conquistada nas dcadas anteriores a 1964. (BRAVO, 2007, p. 40)
No Brasil, o movimento pela Reforma Sanitria se d no final da dcada de
1970, culminando com a VIII Conferncia de Sade no ano de 1986. Esse processo
envolvendo a sociedade civil e os movimentos sociais organizados prope que a
sade seja um direito do cidado e dever do Estado, e que seja de carter universal.
Esse entendimento resultou em duas diretrizes basilares do Sistema nico de
Sade: a universalidade do acesso e a integralidade das aes. Nos anos 1970, o
mundo passa um momento de crise econmica que atingiu todos os pases, de
modo especial os pases de economia frgil como o Brasil, que, nesse perodo, j
acumulava altos ndices de endividamento externo. Tem-se, nesse momento, uma
conjuntura agressiva em que ainda se vive os ltimos suspiros do milagre
econmico da Ditadura Militar.
A crise do milagre econmico brasileiro, que se evidenciou a partir de 1974, e seus efeitos sobre a populao brasileira permitiram o reaparecimento, no cenrio poltico, de foras sociais que lutavam para recuperar o espao vedado com o golpe de 1964, cabendo destacar o sindicalismo operrio, aliado s categorias profissionais dos estratos mdios; os trabalhadores rurais, uma parcela da Igreja, que se posicionou em favor das classes trabalhadoras, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associao Brasileira de Imprensa (ABI), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC), bem como os movimentos sociais urbanos. (BRAVO, 2007, p. 46).
Por outro lado, a assistncia mdica curativa no Brasil tradicionalmente foi
caracterizada pela compra de servios no mercado de sade, seja pelas vias de
convnios privados ou pelo atendimento de empresas de sade. A mercantilizao
da sade, em paralelo com a tecnificao crescente da medicina, favoreceu a
criao de lobbies privados, o que gerou um crescimento desordenado de gastos
pblicos com a sade sem, contudo, haver uma ampliao da assistncia sade
com qualidade.
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As presses impetradas pela sociedade ao Estado, tendo em vista melhorar
os servios de sade para o conjunto da populao brasileira foram exercidas tanto
pelas classes populares quanto por trabalhadores da sade. Bravo (2007) analisa o
movimento social pela sade pblica promovido pelos trabalhadores da sade:
alguns profissionais da sade, nesse momento, iniciaram uma reao pretendendo transformar o setor atravs de modificaes no sistema atual (caracterizado pela dicotomia das aes estatais, predominncia do setor privado, nfase no atendimento hospitalar e corrupo), mas enfrentaram embates constantes com os interesses empresariais e industriais que eram hegemnicos nas definies da poltica de sade, tendo como um dos articuladores a Federao Brasileira de Hospitais (FBH), que congregava os interesses do setor privado. (BRAVO, 2007, p. 57).
Podemos afirmar que a reforma sanitria provocou mudanas considerveis
no sistema de sade, bem como no padro nacional de poltica social. A
universalizao do acesso sade e mudanas na estrutura organizacional e de
poder no setor representaram avanos importantes. Processos esses que geraram
novas formas de financiamento, atribuio de novos papis s distintas esferas de
governo que culminaram em modelos de gesto incluindo a participao social.
Embora essas mudanas sejam muito significativas, o sistema ainda exibe baixos
nveis de financiamento e de qualidade dos servios, fatores que no asseguram o
necessrio impacto na melhoria da sade populao. O que podemos observar na
atualidade que um importante segmento da populao ainda tem que buscar
servios fora do sistema pblico pelo fato de que o SUS no consegue atender toda
a demanda na medida da necessidade dos cidados.
No obstante ter conseguido alguns avanos, o SUS real est muito longe do SUS constitucional. H uma enorme distncia entre a proposta do movimento sanitrio e a prtica social do sistema pblico de sade vigente. O SUS foi se consolidando como espao destinado aos que no tm acesso aos subsistemas privados, como parte de um sistema segmentado. A proposio do SUS inscrita na Constituio de 1988 de um sistema pblico universal no se efetivou. (BRAVO, 2008, p. 106).
Esse conjunto de avanos normativos oriundos das lutas dos movimentos
sociais rebateram no trabalho do assistente social que atua na sade considerando,
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a articulao intersetorial com as demais polticas pblicas.
O final de 1980 foi marcado por intensa mobilizao de trabalhadores em
vrios pases do mundo. Esse momento coincide tambm com um perodo de
acirramento do neoliberalismo em mbito mundial. No Brasil, tem-se o perodo das
Diretas j, do fim da Ditadura Militar em 1985 e da retomada democrtica dos
governos civis. tambm nessa dcada que aconteceu a virada epistemolgica no
servio social, o projeto tico-poltico, o rompimento com o conservadorismo e a
opo pela matriz marxiana (IAMAMOTO, 2008). Assim, foras progressistas e
conservadoras entram em confronto por hegemonia no cenrio social. No caso
brasileiro, a denominada Constituio Cidad (BRASIL, 1988) foi um marco para dar
bases jurdicas sociedade organizada na mobilizao por direitos sociais
represados pela poltica monetarista dos anos da Ditadura.
Na Constituio de 1988, a Seguridade Social brasileira est garantida e
envolve Previdncia, Sade e Assistncia Social. Por estarem estas garantidas no
mesmo artigo, o processo de luta social em busca da Seguridade est estreitamente
ligado luta dos direitos trabalhistas. J a Previdncia Social Brasileira oriunda
das polticas trabalhistas e, at a promulgao da Constituio de 1988, a Sade
tambm estava diretamente vinculada a Previdncia.
No final do sculo XIX, alguns pases capitalistas da Europa Central,
seguiram tendncias de polticas sociais inspirados nos modelos bismarckiano, da
Alemanha, e beveridgiano, da Inglaterra; alguns pases seguiram a lgica dos dois
modelos, como o caso do Brasil. (BOSCHETTI, 2009, p. 35).
O modelo bismarckiano caracterizado pelo sistema de seguro social, em
que o cidado tem direito ao benefcio mediante prvia contribuio vinculada
Folha de Pagamento. Nesse modelo, as polticas sociais so financiadas pelo
prprio trabalhador, o Estado apenas gerencia as contribuies. O modelo
beveridgiano, por sua vez, caracterizado pelo conceito de direito universal, em que
os benefcios so destinados a todos os cidados, independentemente de
contribuio; o financiamento das polticas sociais propostas por esse modelo so
provenientes dos impostos fiscais.
O modelo de Seguridade Social brasileiro segue tendncias tanto do modelo
bismarckiano quanto do modelo beveridgiano. Ao se considerar a sade e a
assistncia social como polticas pblicas no contributivas, prevalece o modelo
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beveridgiano e, ao vincular previdncia social contribuio em Folha de
Pagamento, caracterizando-a como seguro social, prevalece o modelo bismarckiano. Boschetti; Salvador (2006) avaliaram a ligao entre lutas trabalhistas e
garantia da seguridade social na Constituio de 1988:
[...] a movimentao no mercado de trabalho tem imbricaes diretas na Seguridade Social no Brasil, visto que com o modelo de seguros institudos no Brasil a partir do incio do sculo XX, baseado no sistema bismarckiano alemo, tinha por objetivo garantir maior segurana ao trabalhador assalariado e sua famlia em situaes de perda da capacidade laborativa, no contexto da sociedade urbana crescente. (BOSCHETTI; SALVADOR, 2006, p. 27).
A Constituio de 1988 o resultado de uma forte mobilizao popular que
materializa os esforos da sociedade organizada nos seus movimentos sociais, para
consolidar uma poltica de direitos, envolvendo sade, previdncia, assistncia
social, trabalho, dentre outros. Por outro lado, as polticas neoliberais globalizantes
interferem no mundo do trabalho no apenas no Brasil, mas em todo mundo. Como
resistncia a esse movimento de no-direitos, comeam a se manifestar
organizaes internacionais como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e
a Organizao Mundial de Sade (OMS), ambas de fundamental importncia nos
processos internos para a garantia de direitos nos vrios pases.
2.2 Breves consideraes sobre os mnimos sociais, bsicos de proteo e necessidades humanas
Uma poltica de direitos sociais num pas sem histria de direitos, implantada
sob influncias polticas conservadoras dificilmente contemplaria de imediato e em
profundidade os interesses da grande maioria a quem a poltica se destina. E
dificilmente conseguiria implantar um patamar justo de cobertura, fosse nas polticas
de transferncia de renda ou outros benefcios pblicos.
Necessidades Humanas: subsdios a crtica dos mnimos sociais, de Potyara
A. Pereira, traz importante crtica sobre o texto original da Lei Orgnica da
Assistncia Social no que se refere definio de mnimos sociais, em que o
mnimo tem a conotao de menor e de menos na sua concepo mais nfima,
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identificada com patamares de satisfao de necessidades que beiram a
desproteo social. (PEREIRA, 2008, p. 26).
Para a autora, num contexto de desigualdades extremas, a garantia das
necessidades bsicas no se realizar para os sujeitos-alvo da poltica por partir de
uma viso minimalista, tradicionalmente alimentada numa concepo de cidadania
regulada. Assim, o que est previsto na poltica pblica e denominado mnimos, em
seu nascedouro, segue uma representao social que beira uma realidade
minimalista, considerando que no coincide com o real das necessidades scio-
histricas dos segmentos pauperizados.
Acompanhando o texto de Pereira (2008, p. 57) na identificao que a autora
cunha em relao ao termo necessidades bsicas encontram-se importantes
demarcaes:
a) Entendidas como diferentes dimenses da vida humana: fsica ou
biolgica, social, cultural, poltica, psicolgica, moral, afetiva. Autores
hierarquizam as necessidades a partir de uma dimenso primria biolgica
ou psicolgica.
b) Como fenmeno passivo, mas tambm ativo, ou como motivao em
busca do preenchimento de alguma falta ou lacuna.
c) Heller se fundamenta em Marx e afirma as necessidades naturais no
constituem um conjunto de necessidades, mas um conceito limite, um
nvel bestial, indigno do homem. Para Heller, tais necessidades no
podem ser definidas como naturais, j que so susceptveis de
interpretao como necessidades concretas no seio de um contexto social
determinado.
d) Marx foi um dos que, antes de falar de necessidades humanas, introduziu
o conceito de necessidades existenciais relacionadas ao instinto de
autoconservao, havendo ainda diferenciaes fundamentais entre os
seres humanos e os animais. Marx deixava entrever que necessidade era
um conceito extraeconmico (histrico, filosfico e antropolgico), no qual
o bem-estar humano estaria acima dos interesses do capital.
e) Na concepo da Pesquisa Nacional de Unidade de Domiclios (PNUD), o
desenvolvimento humano um processo de ampliao de oportunidades,
tanto individual como coletivo, para que se possa desenvolver potenciais e
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levar uma vida produtiva e criativamente, conforme necessidades e
interesses.
f) Doyal; Gough (1991 apud PEREIRA (2008, p. 66-72) rejeitam as
convencionais concepes naturalistas, relativistas e culturalistas das
necessidades e sustentam que todos os seres humanos, em todos os
tempos e lugares, tm necessidades bsicas comuns, contrapondo-se
concepo naturalista e, de certo modo, utilitarista, incluindo a concepo
da Nova Direita, que toma o mercado como paradigma para
necessidades, preferncias e desejos. Os autores se contrapem aos
culturalistas e, em particular, aos fenomenlogos. Assim, as necessidades
humanas bsicas estipulam que as pessoas devem conseguir evitar srios
e prolongados prejuzos, pois a satisfao dessas necessidades uma
condio necessria preveno de tais prejuzos. Para os autores,
existem dois conjuntos de necessidades bsicas objetivas e universais:
sade fsica e autonomia. Essas necessidades no tm um fim em si
mesmo, mas so pr-condies para alcanarem objetivos universais de
participao social. A autonomia consiste em possuir capacidade de
eleger opes informadas sobre o que se tem que fazer e como finalizar,
ser capaz de eleger objetivos e crenas, valor-los e sentir-se responsvel
por suas decises e atos. Doyal e Gough identificam trs as categorias-
chaves que afetam a autonomia individual na sua forma mais elementar:
1) O grau de compreenso que uma pessoa tem si mesma, de sua cultura
e do que se espera dela como indivduo na cultura. 2) A capacidade
psicolgica que a pessoa possui de formular opes para si mesma e 3)
as oportunidades objetivas que lhe permitam atuar. Doyal; Gough (1991
apud PEREIRA 2008, p. 71-72).
g) Para Little (1998 apud PEREIRA, 2008, p. 69), os dois princpios chaves
que orientam as necessidades humanas bsicas so a participao e a
libertao humana.
Seguindo a crtica realizada por Pereira (2008), ao olhar para a atual poltica
da assistncia social, percebe-se que h distores nos processos de aplicao da
poltica que entram em conflito com as diretrizes da Poltica Nacional de Assistncia
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Social (PNAS). Por exemplo, a ingerncia do Executivo ou do Legislativo Municipal
em vrios municpios, que se valem dos programas de transferncia de renda para
granjear apoio poltico e, assim, distorcem as finalidades tico-poltico-
metodolgicas previstas na poltica pblica. Criam-se os balces de favores e
bloqueada a intersetorialidade, que tem o papel de costura com as demais polticas
sociais para potencializao das aes. A execuo na ponta invariavelmente
fortalecer as caractersticas minimalistas do Programa. A partir da LOAS, a noo de mnimos sociais est associada noo de
necessidades humanas bsicas (cidadania e tica). A Assistncia Social direito do cidado, dever do Estado, e no contributiva. Assim, entende-se Mnimo como proviso: proviso de bens, servios e direitos em relao s necessidades a
serem providas. Por bsico, entende-se o atendimento das necessidades bsicas,
dos quais nenhum indivduo pode abrir mo em sua vida social.
Dessa forma, Mnimo e Bsico so equiparados no plano poltico-decisrio,
mas conceitualmente no o so, pois, Mnimo identificado nos patamares que
beiram a desproteo social e Bsico algo fundamental, principal, que serve de
sustentao, indispensvel ao exerccio cidado. Mnimo pressupe supresso ou
cortes de atendimentos (do iderio neoliberal). Bsico, requer investimentos sociais
de qualidade com lastro de oramento que o suporta, enquanto que o Mnimo
pressupe negar o timo de atendimentos. Assim, o Bsico pressupe uma ao
concreta quanto satisfao bsica de necessidades humanas. A autora defende
que o Bsico deve assumir o lugar do mnimo para garantir a efetividade da proviso
social, prope conceber provises e necessidades como conceitos correlatos. Para
Pereira (2008, p. 32) h propositura da busca do timo, ou seja: o bsico direito
indisponvel (isto , inegocivel) e incondicional de todos, e quem no tem, por
falhas do sistema socioeconmico, ter que ser ressarcido desse dficit pelo prprio
sistema.
2.3 Qualidade de vida e necessidades bsicas
A expresso qualidade de vida faz parte do campo semntico identificado
nas falas dos trabalhadores ao se referiram s suas necessidades bsicas. Opto por
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us-la como conceito central ao longo do processo da pesquisa. Na fase de
recuperao bibliogrfica desse conceito, encontrei uma discusso que se
aproximou da abordagem terico-metodolgica e, convertida para os dados da
pesquisa, apontou interessantes aproximaes com o discurso dos trabalhadores.
Doyal; Gough (1991 apud PEREIRA 2008, p. 75) identificam a expresso em ingls
satisfiers (satisfadores de bens, servios, atividades, relaes, medidas, poltica),
que, em maior ou menor extenso, pode ser empregada para atender a essas
necessidades. Entre os satisfadores, nove deles se aplicam indistintamente a todas
as pessoas, e os identifiquei no discurso dos trabalhadores. So eles: a)
alimentao nutritiva e gua potvel; b) habitao adequada; c) ambiente de
trabalho desprovido de riscos; d) ambiente fsico saudvel; e) cuidados de sade
apropriados; f) relaes primrias significativas; g) segurana fsica; h) segurana
econmica; i) educao apropriada. Pereira (2008, p. 75), ao utilizar os conceitos
destes autores, se vale deles para tecer sua abordagem sobre necessidades
humanas bsicas.
Percebi, nas entrevistas, que esses satisfadores aparecem como significado
do conceito de qualidade de vida para os trabalhadores. Foi possvel identificar uma
relao entre o conceito de necessidades bsicas de Pereira e o conceito de
necessidades psicossociais, presente em todas as culturas e definido em
documentos da Organizao Mundial da Sade (OMS): necessidade de carinho e
segurana implicando relaes estveis, contnuas e seguras de pais ou
responsveis; necessidades de novas experincias com desenvolvimento cognitivo,
social e emocional; necessidade de reconhecimento e apreciao de uma ateno
positiva dentro do marco de normas claras e justas; e, por ltimo, a necessidade de
estender paulatinamente responsabilidades (DOYAL; GOUGH, 1991 apud PEREIRA
2008, p. 79). Mesmo que a aplicabilidade desses quatro itens esteja direcionada ao
pblico infantil, em certa medida, pude observ-los tambm em nveis diferenciados,
verbalizado, por parte dos trabalhadores pesquisados.
De acordo com a representao significante que o termo qualidade de vida
assume nos mltiplos contextos, vai sendo composta uma percepo de seu
significado e, ento, ele se generaliza, estendendo sentidos para os que o
empregam. Quando Pereira discute proviso social, a autora pretende abstrair uma
racionalidade que se objetiva por intermdio de interrelaes ou nexos orgnicos
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entre as diversas medidas de proteo que visam incrementar a qualidade de vida e
de cidadania dos segmentos sociais desprotegidos. (PEREIRA, 2008, p. 28).
As pesquisas na rea da sade do trabalhador realizadas por Bertani (2007)
apontam para a importncia de recuperar o conceito de qualidade de vida a partir
das relaes sociais, focando bem-estar, liberdade e autonomia.
[...] a questo da sade relacionada com qualidade de vida d-se no conjunto das relaes sociais. Viver bem uma aspirao humana, e s isso j justificaria as tentativas em atend-la, buscando-a nas possibilidades do corrente estgio da civilizao. Qualidade de vida, apesar de contar com uma multiplicidade de definies, muitas vezes at controvertidas, e deve ser relacionada com sade, bem estar, liberdade e autonomia (BERTANI, 2007, p. 20).
Confrontando o conceito de qualidade de vida citado por Bertani (2007)
realidade vivida por trabalhadores de contrato temporrio, percebi, na escuta das
queixas, nos atendimentos individuais e coletivos, que os trabalhadores se tornavam
vulnerveis devido instabilidade dos postos de trabalho. perceptvel que, sem
perspectiva de emprego estvel e de qualidade, inviabiliza-se a possibilidade de
planejar-se na vida, o que provoca ansiedades e sofrimentos que repercutem na
sade, pois o trabalhador vive na incerteza de conseguir suprir suas necessidades
bsicas de alimentao, educao, lazer, dentre outras.
Para Bertani (2007), a sade passa a ser definida como vida do ser humano
no planeta terra a partir desse conceito abrangente e multidimensional, no h
debate possvel que possa ser realizado margem das condies da sade
humana (BERTANI, 2007, p. 21). A autora d uma dimenso de totalidade a partir
das abordagens subjetivas, sem, contudo, fugir do eixo epistemolgico que discute a
contradio capital versus trabalho. A qualidade de vida est, portanto, diretamente
associada autonomia e liberdade de planejar a vida profissional e pessoal.
Pensar a qualidade de vida sem autonomia de decidir a prpria vida soa vago
na representao imaginria dos sujeitos; portanto, necessrio compor novas
percepes aplicadas a uma Qualidade que no se v na Vida. Os mitos so
construdos sob os vus da ideologia para omitir a verdade sobre as relaes
injustas no trabalho. Para tanto, no suficiente fazer conhecer os direitos, as leis
ou os benefcios, ou mesmo todas as demais vantagens institucionais. Faz-se
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necessrio percorrer um caminho no e com o mundo desses sujeitos, conhecendo
suas angstias pessoais, que se misturam s angstias profissionais, o conjunto
inseparvel do mundo pessoal e do mundo profissional. Processo esse que exige do
assistente social reconhecer o sujeito em sua singularidade, que emerge no
atendimento, e que no se pode ignorar como se fosse algo parte; ao contrrio,
no dilogo trazido para ser digerido nas oficinas de atendimento em que a
singularidade do trabalhador passa a ser reelaborada na fora da coletividade pelo
uso da palavra, no apoio dos demais, na partilha de suas limitaes e,
principalmente, de suas potencialidades que se vai tecer o caminho novo,
desvelado com o apoio dos demais.
Ferlauto; Kern (1997) fundamentam o caminho metodolgico tomado quando
optei por partir da vivncia subjetiva das expresses da questo social:
Os dados subjetivos oportunizam conhecer a viso do prprio trabalhador em relao s suas aspiraes, necessidades e interesses. Essa identificao de prioridades feita pelo prprio sujeito insere-se dentro da linha terica da qualidade de vida, pois atravs de seu depoimento de sua viso global dos problemas, recursos e solues, poder haver seu engajamento ativo e participativo na dinmica social. (FERLAUTO; KERN 1997, p. 13-14)
O trabalhador, quando ouvido e chamado a verbalizar coletivamente suas
aspiraes, necessidades e interesses, torna-se capaz no apenas de refletir sobre
sua condio, mas possibilitado a ele assumir novas propostas para sua
reproduo como ser social de modo crtico e sintonizado com seu desejo.
O reconhecimento da singularidade do sujeito potencializado na riqueza do
debate no coletivo. Perceber a importncia em desvendar seu modo de vida por
meio de suas experincias faladas norteou a metodologia adotada na pesquisa-
ao.Identificar singularidades, modos de vida e experincia social coletiva
pressupe aproximar-se de uma leitura de totalidade, pois o sujeito no est
desvinculado de seu mundo particular e/ou coletivo. Da mesma forma como ele
percebe a si prprio, ele v o outro, seu igual, nas mesmas condies de
desigualdade.
Perceber o trabalhador na trama do cotidiano, quando ele reporta suas
queixas e sofrimentos oriundos do trabalho, apropriar-se de dados inerentes ao
conflito capital versus trabalho. Se o assistente social que atua com trabalhadores
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no est atento para perceber a complexa trama cotidiana dessa demanda que se
lhe apresenta, perde um importante espao de cidadania que o cdigo de tica lhe
assegura.
Dejours (1992, p.138) ressalta a importncia da verbalizao dizendo: na
palavra, e atravs dos sistemas defensivos, que preciso ler o sofrimento operrio.
Ainda, aponta uma perspectiva terico-metodolgica:
Considerando o lugar dedicado ao trabalho na existncia, a questo saber que tipo de homens a sociedade fabrica atravs da organizao do trabalho. Entretanto, o problema no , absolutamente criar novos homens, mas encontrar solues que permitiriam por fim desestruturao de um certo nmero deles pelo trabalho (DEJOURS, 1992, p. 139).
Elegi as Rodas de Conversa espaos de fala livre, mediadas pelo(a)
assistente social, onde pudesse separar-se o mtico do real como instrumental que
favorecesse a verbalizao do cotidiano por parte dos trabalhadores.
A expresso qualidade de vida, ao emergir no discurso espontneo dos
trabalhadores, despertou-me para a importncia de recuperar esse conceito numa
matriz crtica, instrumentalizando-o apropriadamente como uma mediao nas
oficinas a partir das falas colhidas nas rodas de conversa.
Esse exerccio de fala proporcionou aos trabalhadores uma melhor elucidao
sobre o contexto profissional e vida pessoal. O dilogo nas oficinas permitiu uma
dimenso de construo de conhecimento, ao mesmo tempo em que funcionou
como um operador reflexivo de situaes cristalizadas que, trazidas para o debate,
assumiam novas configuraes e desvendamentos. Assim, o debate provocou a
entrada em cena do mtico confrontando o concreto em consequncia dos dilogos
travados coletivamente sobre os ganhos com o trabalho, as perdas a ele atribudas e
a vida cotidiana dos participantes.
Esse processo proporcionou ao coletivo, em certa medida, a desmistificao
ideolgica de leituras ingnuas sobre o trabalho na perspectiva da qualidade de
vida, sem negar o vocabulrio dos sujeitos, mas permitindo que os debates
revelassem pontos que uma leitura superficial no permitiria, pois se avanava na
direo de repensar a qualidade de vida para um processo ampliado que remeteu
categoria da autonomia dos trabalhadores, pensando essa possibilidade por meio
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da percepo histrica do trabalho.
2.4 A construo poltica com o servio social: em busca da sade do trabalhador, resgate da autonomia e do sentimento de cooperao
A importncia de desenvolver um paralelo entre a concepo de mnimo e
bsico em relao s necessidades humanas, se revela quando adentramos o
cotidiano dos trabalhadores do CCZ por meio de suas falas no atendimento do
Servio Social. Percebi que o coletivo de trabalhadores possui necessidades bsicas
que no so atendidas, e que os mnimos que conseguem com o seu trabalho esto
distantes do que esperam na atividade laboral.
O contato com os trabalhadores permitiu identificar, nos atendimentos, a
presena de um tipo de sofrimento advindo do trabalho em funo da instabilidade
gerada pelos contratos temporrios, pelas condies de trabalho inadequadas
(vesturio, instrumentos entre outros), agravados pela ausncia de reconhecimento
da populao. Considerando os apontamentos de Pereira (2008), a recuperao do
conceito de bsicos de proteo social foi percebida numa relao prxima ao que
foi relatado pelos trabalhadores pesquisados.
Como complicador conjuntural, constata-se, pelas falas no atendimento, que a
questo social pesa sobre o cotidiano dos trabalhadores, agravando-lhes os
problemas da vida j precarizada por baixas condies econmicas. Soma-se a isso
as desigualdades funcionais em decorrncia das estratgias de contratao da
reestruturao produtiva manifesta nas precarizaes e flexibilizaes. Ainda, h
complicadores de gesto a emergncia da contradio em relao s diferenas
entre os trabalhadores efetivos (concursados da Prefeitura) e em regime de contrato
temporrio. Os segundos se sentem desvalorizados em relao aos primeiros,
considerando que exercem a mesma funo. Os primeiros possuem conquistas
trabalhistas que so negadas aos segundos, embora estes realizem o mesmo
trabalho. As condies do contrato temporrio funcionam como um controlador
automtico em virtude do medo da demisso. Sobre esse ponto pesa a crise sindical
que envolve a maioria dos trabalhadores contemporneos. A esse respeito, Antunes
(2006, p.70) reitera:
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Um outro elemento decisivo no desenvolvimento e expanso da crise sindical encontrado no fosso existente entre os trabalhadores estveis, de um lado, e aqueles que resultam do trabalho precarizado etc., de outro. [...] reduz-se fortemente o poder sindical, historicamente vinculado aos trabalhadores estveis e, at agora, incapaz de aglutinar os trabalhadores parciais, temporrios, precrios, da economia informal etc.
Considerando todos esses fatores, identifica-se um cenrio preocupante no
que se refere a direitos e garantias violadas em funo do processo de flexibilizao
trabalhista, um dos aspectos da questo social, no recorte do mundo do trabalho.
Assim sendo, considerando a centralidade do trabalho para a reproduo dos
homens como sujeitos sociais histricos, os aportes de Pereira (2008) sobre as
necessidades bsicas despertaram-nos a percepo da importncia destas no que
se refere isonomia de direitos entre trabalhadores de mesma funo, sendo o
trabalho uma necessidade bsica que qualifica as relaes profissionais.
O ambiente de trabalho outro espao que compe o habitat do indivduo e que, com maior freqncia afeta sua sade. Trs tipos graves sade do trabalhador podem derivar das suas condies de trabalho: a) jornada prolongada, b) ambiente inseguro c) formas de trabalho suscetveis de limitar a autonomia do trabalhador, dando lugar a depresso, ansiedade e falta de autoestima. Este um aspecto que dever ser considerado quando se eleger indistintamente o trabalho como um fator de auto-sustentao e de empowerment individual e, inclusive, como um contraponto sempre positivo assistncia social pblica (PEREIRA, 2008, p. 78).
O agente de controle de zoonose, em contato com os elementos da vida
cotidiana, depara-se com as circunstncias de sua atividade humano-genrica
(HELLER, 1989) ao estabelecer uma proximidade com a populao. Este processo
desencadeia um despertamento crtico das contradies decorrentes do processo de
objetivao de sua funo profissional no combate dengue. Ao se deparar com as
lutas da populao, percebe que tambm so as suas lutas, ou seja, a questo
social atinge a todos.
Embora sua funo esteja restrita ao controle da dengue, ele confrontado
com questes que extrapolam sua atribuio. Ao se deparar com a questo social
(criana e idoso abandonados, violncia intra-familiar, drogadio, enfermidades
etc.), sente-se afetado como cidado, como sujeito que se v espelhado em muitas
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dessas demandas apresentadas. Sua rotina laboral o coloca diante do outro cidado
vivendo em condies de sofrimento ou necessitando de apoio e reconhecimento de
suas necessidades humanas.
Outra situao conflituosa que se apresenta para o ACZ relativa ao fato de
que a populao o identifica como representante do Estado, muitas vezes ausente,
transferindo a esse trabalhador seu descontentamento e justa raiva (FREIRE,
2000). Assim, o agente agredido verbalmente ou sua presena hostilizada no
domiclio. O ACZ est ali para cumprir uma funo pblica, assalariada, com uma
finalidade objetiva. Receber o rechao da populao gera nele um sofrimento
relativo a um no reconhecimento, pois, em verdade, o que a populao recusa o
Estado ausente que, naquele momento, o agente representa.
Na escuta dos atendimentos, deparei-me com os impasses tico-polticos e
econmico-sociais, observei esta dupla contradio em que os agentes ora esto na
condio de supostos salvadores da populao, ora na condio de antema. Tais
fatos do cotidiano no podem ser ignorados, pois compem a realidade de seu
trabalho, e requisitam do assistente social uma estratgia poltica e uma resposta
tica. Se assim no for, a profisso do assistente social tambm repete a
contradio de ser ausente estando presente, descumprindo o cdigo de tica
profissional, que intima o profissional a assumir uma posio junto aos segmentos
excludos.
Os agentes de controle de zoonoses, testemunhando os problemas da
questo social, sentem-se impotentes, angustiados, pois nada podem fazer. Tais
situaes criam rebatimentos na relao de trabalho de modo indireto, pois, embora
no seja de sua competncia resolver as demandas que aparecem, a angstia do
sofrimento alheio provoca impotncia nos agentes frente dor do outro.
Todo este conjunto processual da relao laboral envolvendo os agentes, a
populao e o trabalho da assistente social geram, alm das demandas j
existentes, novas demandas, provocando a emergncia de condutas criativas em
face da especificidade dos problemas.
Os agentes de controle de zoonoses relatam sua insegurana em relao ao
ambiente inseguro (PEREIRA, 2008, p. 78), percebida na nossa discusso por dois
flancos distintos: o primeiro deles refere-se s condies objetivas de trabalho,
materializada na inadequao dos equipamentos de proteo individual (EPIs) e o
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segundo refere-se natureza do contrato de trabalho temporrio. Portanto, h uma
dupla instabilidade que vai das necessidades materiais objetivas do trabalhador s
necessidades vinculadas ao emocional psquico, reproduzindo uma carga de
sofrimento neste trabalhador, controlado pela ameaa da demisso eminente.
Pode-se observar que, n