bem-vindo ao libano 4

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Page 1: Bem-Vindo ao Libano 4

ROLLING STONE BRASIL, AGOSTO 2007 107106 ROLLING STONE BRASIL, AGOSTO 2007

inofensivo. Uma delas é tão extraordináriaque parece mentira – mas não é.

Em Marjayoun, uma vila no sul doLíbano majoritariamente cristã, a situaçãoparecia péssima para o general AdnanDaoud em agosto de 2006. Perto da fron-teira com Israel, com mísseis e fogueteszunindo por cima da sua cabeça, o generalchefiava uma pequena força policial-militarque mal tinha condições de proteger a simesma, muito menos os moradores. Apoucos dias do fim do conflito, o posto dogeneral Daoud foi invadido pelo exércitoisraelense. Naquela que virou uma dashistórias mais surreais da última guerra,sob a ameaça de um poderio militar infini-tamente maior que o seu e incapaz de sedefender, o General não teve dúvida: ao sever invadido, aplicou o que o libanês temde melhor, a hospitalidade, e serviu chápara os invasores. Convidando os israe-lenses para entrar, o general mostrou a elesque não havia guerrilheiros do Hezbollahno local e que o arsenal daquele batalhãoera praticamente inofensivo. Mas a elegân-

cia não foi recíproca – nem a honestidade. De acordo com relato dos próprios

israelenses confirmando a versão deDaoud, a hospitalidade do general seriarecompensada: cerca de 3 mil refugiados esoldados iriam poder escapar com segu-rança, num comboio que sairia de um localespecífico com hora marcada. Apesar doacordo, num desfecho que muitos árabesvêem como uma lição sobre o estilo israe-lense, o comboio seguiu a rota predetermi-nada, mas mesmo assim foi bombardeadopor um avião da força aérea de Israel,matando pelo menos sete pessoas e ferindodezenas. Mas o drama de Daoud não tinhaacabado. Para adicionar insulto ao feri-mento, as visitas israelenses, mal-edu-cadas, tinham filmado a hospitalidadelibanesa e mostraram as cenas em TVs domundo todo. Caído em desgraça, o generalDaoud se viu na TV mostrando as insta-lações do posto e servindo chá na bandejapara os invasores. Daoud foi preso, e poli-ciais que nem participaram da históriaamargaram por muito tempo a humilhaçãode ver carros passando pela polícia a todovapor e gritando da janela: “Vê dois chásaí, por favor”.

Mas israel, apesar de ser o único paísoficialmente em estado de guerra com oLíbano, não é seu único inimigo. Desde2005, políticos que antes tinham umarelação untuosa com a Síria começaram ase ressentir do poder do vizinho e da sua

intromissão na política local – até então,quase nenhum político libanês era eleitosem a bênção da família Assad, que gover-na a Síria há 37 anos. A maior demanda dogrupo era a retirada das tropas sírias, insta-ladas desde a guerra civil com o consenti-mento do próprio Líbano, que precisava deuma força externa pra proteger o libanêsdo libanês. Rafic Hariri, o bilionário que foicinco vezes primeiro-ministro, responsá-vel por grande parte do débito e da cor-rupção do país, mas também pela suareconstrução pós-guerra civil, resolveuencabeçar o movimento anti-sírio.

Em fevereiro de 2005, com umaforça que derrubou janelas em pré-dios a até 2 quilômetros do local,300 quilos de explosivos mataram

Hariri e pelo menos outras 20 pessoas.Depois disso, mais políticos e jornalistasopostos à Síria foram morrendo, geral-mente em explosões de carro-bomba, umdeles metralhado à luz do dia em plenotráfego. Perguntei para Saad Hariri, o filhoque herdou a carreira política do pai, se elevia alguma possibilidade, ainda que remo-ta, de que a Síria não fosse a autora docrime. “Não”, disse ele. “Todas as pessoasassassinadas eram da mesma linha política.Talvez a ferramenta tenha sido diferente,mas a fonte foi a mesma.” A última vítimafoi assassinada em junho. O governo, queainda tem uma pequena maioria no parla-

mento, está com seus parlamentares escon-didos: se mais três morrerem, o governoperde a maioria e é derrubado.

Desde o assassinato de Hariri, o Líbanoestá dividido, apesar da suposta uniãoadvinda da guerra com Israel. Paraexplicar de forma simples uma questãoque é pra lá de complicada, de um ladoestão as forças do governo, na sua maiorparte sunita e cristã, que depois da retira-da das tropas sírias demandam o desarma-mento do Hezbollah. Do outro lado está oHezbollah, a Síria e certos partidoscristãos aliados por conveniência política,mais do que por ideologia. Seguindo aretórica do Hezbollah, a oposição alegaque o exército não tem poder suficientepara defender o Líbano de um ataqueisraelense, e que portanto as armas doHezbollah são justificáveis. Eles tambémsão contra o tribunal internacional que vaijulgar os possíveis culpados pelo assassi-nato de Rafic Hariri e dos outros políticose jornalistas, adversários do regime sírio.O governo acusa a oposição de estarfazendo o jogo da Síria e do Irã, o maiorfinanciador do Hezbollah. A oposiçãoacusa o governo de estar seguindo ordensdos Estados Unidos e de Israel. No anopassado, a tensão aumentou quando sim-patizantes da oposição se instalaram embarracas no centro da cidade.

Desde 1º de dezembro, centenas de ten-das e centenas de membros do Hezbollah

mudaram o cenário do centro de Beirute.Acampados na frente do palácio doprimeiro-ministro, eles pedem um novogoverno em que a oposição teria maispoder, entre outras coisas, para derrubar acriação do tribunal internacional. Mesesdepois de uma guerra com Israel quedeixou mais de 1.200 mortos, mais de 80pontes destruídas, que derrubou antenasde comunicação, explodiu reservatórios deágua e sujou várias praias com vazamentode petróleo, a ocupação do centro pelaoposição é mais um golpe na economialibanesa. Lotado de bares, lojas, cafés edanceterias, o centro de Beirute é uma dasmaiores atrações para os endinheiradosturistas do Golfo. Depois do ataque de 11de setembro, turistas árabes, que deixaramde ser bem-vindos na Europa e nosEstados Unidos, vêm gastar seu dinheirono Líbano, fomentando uma indústria queaté recentemente era a terceira maior fontede moeda estrangeira no Líbano.

Hoje, o centro de Beirute está pratica-mente morto, e isso se deve mais aoHezbollah do que a Israel – é o que dizMichael Karam, editor da Executive, umadas mais vendidas revistas de economia noOriente Médio, escrita em inglês e editadaem Beirute. Segundo Karam, “desde a ocu-pação do centro pelos simpatizantes doHezbollah, 80 pontos comerciais foramfechados”. De acordo com Paul Ariss, pre-sidente do Sindicato de Proprietários de

Restaurantes e Casas Noturnas, 30 dessespontos comerciais fecharam permanente-mente. Assim que os militantes doHezbollah começaram a substituir os turis-tas, deu-se início a uma guerra ideológica,que, desta vez, usou como arma o outdoor.

Na guerra publicitária que se travou,simpatizantes do governo e a oposiçãocomeçaram a espalhar outdoors pelacidade. Usando a figura do coraçãopara substituir o verbo amar, osdois lados lutam para verquem ama mais o Líbano e avida – ou quem conseguegastar mais dinheiro juran-do amor. “Eu amo a vida”,dizia o outdoor pró-gover-no, aludindo à suposta faci-lidade com que membros doHezbollah dão a vida pelacausa do partido. “Eu amo a vida– com dignidade”, respondia oHezbollah. Os executivos pró-governoentão tentaram esclarecer o conceito devida: “Eu tenho escola”, “Eu vou para otrabalho”, “Eu quero sair”, diziam os out-doors. “Eu amo a vida sem interferênciaestrangeira”, insistiu o Hezbollah, acusan-do o governo de relações extraconjugaiscom o Ocidente enquanto esquecia seupróprio namoro com o Irã e a Síria.Segundo Eli Khoury, presidente da agên-cia de publicidade Saatchi & SaatchiLevant e fundador da campanha pró-go-verno, “nós somos independentes, masnão podemos nos dar ao luxo de sermosneutros.” Já foram mais de 1,2 milhão dedólares gastos numa guerra tão amorosaque estava dando náusea. A campanhaacabou dando cria e, professando umamor menos altaneiro, empresas comer-ciais começaram a imprimir seus pró-prios outdoors com “Eu amo tapetes”,“Eu amo jóias”. Libaneses mais criativos,e sem afiliação nenhuma, imprimiramseu próprio pôster com fotos de políti-cos e líderes religiosos de todas as ver-tentes, com a frase acima das fotos “Euamo a vida – sem eles”. E para confirmarque o Líbano é o país onde a sabedoriasocrática esbarra na gente o tempotodo, até eu professei meu amor poralgo que, anos atrás, só teria dito sobtortura. Em um país onde quase todosos níveis do governo e da adminis-tração federal são divididos por reli-gião, e onde o exército é praticamente aúnica instituição onde todas as reli-giões estão unidas lutando por umacausa comum, pintei minha própriacamiseta: “Eu amo o exército libanês”.Caminhando pelo calçadão da praia,passando por gente de todas as cores ecrenças, vou ouvindo, ainda que timi-damente, libaneses de religião desconhe-cida gritando: “Eu também”.

PAULA SCHMITT é jornalista e foi corres-pondente do SBT no Líbano de 2005 a 2007.Ela faz mestrado em Ciências Políticas naUniversidade Americana de Beirute, masestá levando tanto tempo pra terminar quemais parece doutorado.

Líbano tenha que abandonar a produçãode haxixe para agradar aos EstadosUnidos e à ONU, seguindo uma proi-bição bastante questionável. Enquantoisso, os produtores libaneses vão empo-brecendo e os consumidores dos EstadosUnidos e Europa consomem haxixe doAfeganistão e da Turquia”. Mas apesardos Estados Unidos e do Hezbollah,pode-se achar haxixe em Baalbeck, aindaque seja difícil encontrar a seda – isto é,difícil para os não-iniciados. Para driblarxeretas e dedos-duros, o consumo de haxi-xe criou uma pequena anomalia econômi-ca que deve estar fazendo sair fumaça decérebro japonês.

Em homenagem a deus (ao deusBacchus), um grupo de amigos saiu paraachar seda. Fui junto. No carro, umdeles, morador de Baalbeck, insistiu paraque procurássemos uma farmácia ou umsupermercado. Achei estranho, já queseda no Líbano se acha em posto degasolina e banca de revista (a tal Aledabrasileira, transparente, já virou líder devendas em alguns postos). Parando emum supermercado, o amigo, que preferiunão sair do carro, insistiu: pode pedirseda que tem. Perguntamos ao caixa, esem olhar pra gente ele já foi apontandopara a estante dos cosméticos. Ficamosintrigados, olhando para a estante e nãovendo nada. Percebendo que não éramosdo local, o caixa se aproximou e pegou aseda mais improvável que eu já vi na vidadepois das páginas do Novo Testamento:um pacotinho da Shiseido com um blocode “oil blotting paper”, um papel queretira o excesso de óleo da pele semestragar a maquiagem, feito de arrozjaponês. Os executivos da Shiseidodevem estar quebrando a cabeça praentender como aquele produto tem umasaída tão boa exatamente numa áreaonde tantas mulheres cobrem o rosto enão usam maquiagem.

O haxixe é consumido em praticamentetodo o Oriente Médio. Estatísticas nãoexistem, mas encontra-se haxixe com facili-dade desde o Egito até a Arábia Saudita.No Líbano, durante a guerra civil, o haxixechegou a virar moeda para comprar armasdos soldados israelenses que ocupavamcertas áreas do país. Uma das histórias queeu conheço é de um membro da milíciacristã Forças Libanesas, contada por elemesmo. Em um dos negócios para a com-

pra e venda de armas, sobrou um tijolode haxixe. Com tanta abundância,

o cara deu uma festa no seuchalé nas montanhas neva-

das, acendeu a lareira e,como não era fumante,além da lenha ele queimoumais de 2 quilos da droga.No verão do ano passado,

uma das reclamações dosjovens israelenses durante a

guerra era que a maconha tinhadesaparecido do país – no conflito

com o Líbano, o tráfico entre os dois paí-ses teve que ser interrompido. Mas sãoraras as histórias da guerra com final

OO TTeemmppoo nnooLLííbbaannoo

Fatos importantes da históriarecente do país – guerras,

retaliações e acordos entrenações vizinhas

11994433.. DDeezzeemmbbrroo O Líbano setorna independente da França.

11996688.. DDeezzeemmbbrroo Depois quedois membros da FrentePopular para a Libertação daPalestina atacam um avião em Atenas (Grécia), Israelretalia atacando o aeroportode Beirute e destruindo 13aviões comerciais.

11997755 AAbbrriill Depois de umataque a uma igreja contraum líder cristão – supostamente cometido por palestinos refugiados no Líbano – a milícia cristãKataeb ataca um ônibus,cujos passageiros eram namaioria palestinos, e mata 27deles. Esse acontecimentomarca o começo da guerracivil no país.

11997766 OOuuttuubbrroo Um acordoentre países árabes e o Líbanodetermina que uma força militar árabe-síria seja estabelecida no Líbano para manter a ordem.

11997788 MMaarrççoo Em retaliação a um ataque palestino lançadode território libanês, Israelinvade o Líbano e ocupa o sul do país.

11998822 JJuunnhhoo Depois de umatentativa de assassinato contra o embaixador israelense na Inglaterra,Israel retalia o Líbano,invadindo o país, inclusivea capital, Beirute.

11998899 MMaarrççoo O general cristãoMichel Aoun declara guerracontra a Síria, cujas tropasainda estão no Líbano.

11999900.. OOuuttuubbrroo A Síria ataca o palácio presidencial e MichelAoun se refugia naFrança. É o fim daguerra civil noLíbano. Cerca de150 mil pessoasmorreram nos 15anos da guerra.

22000000.. MMaaiioo Israel se retira do sul do Líbano depois de 22 anos de ocupação.

OO TTeemmppoo nnooLLííbbaannoo

Outros fatos importantes dahistória recente do país

22000055.. FFeevveerreeiirroo O ex-primeiroministro Rafic Hariri, então

adversário da Síria, é assassinado numa

explosão de umcarro-bomba.

22000055.. AAbbrriill Astropas sírias seretiram do Líbanodepois de 29 anos.

22000055.. JJuunnhhoo O jornalista Samir

Kassir, crítico ferrenhodo regime sírio, é assassinadocom uma bomba plantada no carro. Dias depois, GeorgeHawi, líder do PartidoComunista Libanês e tambémcrítico da Síria, é assassinadoem um carro-bomba.

22000055.. DDeezzeemmbbrroo Gibran Tueni,parlamentar adversário da Síriae dono de um dos maiores jornais libaneses, é assassinadoem um carro-bomba.

22000066.. JJuullhhoo Depois que o Hezbollah captura dois soldados israelenses na fronteira com o Líbano numataque que matou outros oitosoldados israelenses, Israelataca o aeroporto de Beirute.Começa a guerra.

22000066.. AAggoossttooFim da guerra com Israel.

22000066.. DDeezzeemmbbrroo Em protestocontra o governo, militantes do Hezbollah acampam no centro da cidade em centenas de barracas

22000077.. MMaaiioo––jjuullhhoo O Exércitolibanês luta contra grupo fundamentalista islâmico ocu-pando um campo de refugiadospalestinos. Apenas uma minoriados guerrilheiros é de origempalestina ou libanesa. Mais de 100 soldados e 70 militantessão mortos. Os refugiadospalestinos se recolhem de novo.Muitos morrem no conflito.

22000077.. JJuunnhhoo Dois ataques a bomba acontecem em shopping centers de Beirute,matando uma pessoa e ferindocerca de dez. Um carro-bombamata o parlamentar pró-governo Walid Eido, seu filhomais velho e pelo menos outras oito pessoas.

Apartamentos e carrosdestruídos em Beirute pelas

forças aéreas de Israel emagosto de 2006

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Após a morte do primeiro-ministro Rafik Hariri, milharesde libaneses ocupam o centrode Beirute em protesto contra

a ocupação síria

“É estranho que o Líbano tenhaque abandonar a produção de

haxixe para agradar aos EstadosUnidos e à ONU”

MMaarrwwaann IIsskkaannddaarr, economista libanês

Menino libanês posa em frente à imagem da Virgem Maria que seencontra em uma vila maronita quefica a 35 quilômetros de Beirute

Michel Aoun

Após a morte do primeiro-ministro Rafik Hariri, milharesde libaneses ocupam o centrode Beirute em protesto contra

a ocupação síria

Rafic HaririRafic Hariri