há livros que nos fazem mal? - público

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20/02/2016 15:12 Há livros que nos fazem mal? - PÚBLICO Page 1 sur 16 https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/ha-livros-que-nos-podem-fazer-mal-1722455 ISABEL LUCAS (texto) e RUI GAUDÊNCIO (fotografia) 07/02/2016 - 00:41 Há um movimento de estudantes universitários norte-americanos a pedir que os protejam dos conteúdos de alguns livros que consideram Há livros que nos fazem mal? 41 9403

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Sobre livros censurados.

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ISABEL LUCAS (texto) e RUI GAUDÊNCIO (fotografia)07/02/2016 - 00:41

Há um movimento de estudantes universitários

norte-americanos a pedir que os protejam dos

conteúdos de alguns livros que consideram

Há livros que nos fazemmal?

41 9403"!

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E

perigosos. Em causa estão sobretudo clássicos da

literatura grega e romana. A psiquiatra Manuela

Correia fala em “infantilização” da sociedade.

m Lisístrata, comédia do ano 411 a.C., o dramaturgogrego Aristófanes põe na voz de uma mulher umapelo à paz: enquanto durar a guerra entre Atenas eEsparta, as atenienses recusam ter sexo com os seus

maridos. O livro seria pouco depois proibido naquela que éuma das primeiras censuras literárias do Ocidente.Perigoso por propor uma alteração à norma decomportamento.

Muitos séculos depois, noutro país também do Ocidente,um grupo de estudantes universitários pede para quealguns clássicos da literatura, sobretudo da antiguidadegrega e romana, que fazem parte dos programascurriculares, surjam com uma advertência na capa,chamando a atenção para o “perigo” para o “bem-estarmental” que representam os seus conteúdos,potencialmente causadores de sofrimento, trauma ouangústia.

Metamorfoses, do poeta latino Ovídio, é uma das obras queesses estudantes consideram conter “matéria perigosa”. Opoema dividido em 15 livros é tido como um dos livrosmais influentes da cultura e civilização ocidentais e narra atransformação exercida pelo tempo no homem e na suahistória, cruzando ficção e realidade, e apresentando osmitos como essenciais na evolução humana. Deuses,homens, plantas, animais, elementos convivemfantasiosamente em histórias de amor, traição, incesto,punição, violência, morte, redenção, sem qualquer tipo de

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apreciação moral. Entre estes “interditos, está a descriçãodo rapto de Prosérpina, mulher de Plutão e filha deDeméter, que Ovídio começa a narrar assim: “Um diacolhia violetas e brancos lírios, e ia enchendo, comentusiasmo juvenil, cestas e o regaço, à compita com asamigas a ver quem colhia mais, quando Dite a viu e, quaseem simultâneo, se enamora e rapta-a: tão precipitado era oseu amor. Aterrada, desata a deusa a chamar, com vozdesolada, pela mãe e as companheiras, sobretudo pela mãe.Rasgando a parte de cima do vestido, a túnica soltou-se eas flores colhidas caíram por terra. E tal era a candura quepresidia aos seus anos de menina, que até também a perdadas flores consternou a rapariga.” (Cotovia, 2007)

O pedido aconteceu no início do Verão passado, veio dosestudantes da Universidade de Columbia, em Nova Iorque,uma das mais prestigiadas do país, e foi rejeitado peladirecção, mas é simbólico em relação ao que se está apassar em muitas universidades nos Estados Unidos. EmSetembro do ano passado, a revista Atlantic publicava umartigo com o título O afago da mente americana,escrevendo que, “em nome do bem-estar emocional, osestudantes universitários exigem uma protecção cada vezmaior em relação a palavras e ideias de que não gostam”, oque está, dizem os autores do texto, “a ser desastroso paraa educação e para a saúde mental”. E dão mais exemplos.Os estudantes de Direito de Harvard pediram que nãofosse ensinada a lei sobre violação. O problema, diziam,estava na palavra “violação” (rape), que podia reacender otrauma em estudantes que pudessem ter sido vítimas dessetipo de abuso.

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Absurdo? Os pedidos de protecção “literária” sucedem-se(https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-censores-perdem-sempre-1633432). Pouco tempo depois, aAeon publicava um ensaio, partindo do facto de que a ideiade que os livros são perigosos é tão antiga como aliteratura. “Não se fala tanto de ‘perigo’ político, mas moralou mental. O romance de Chinua Achebe Quando Tudo seDesmorona (1958) está também entre os problemáticospor poder despertar instintos racistas ou reavivar osofrimento de quem foi alvo de racismo; O Grande Gatsby,por estimular violência doméstica; Mrs Dalloway, deVirginia Woolf, por poder levar ao suicídio, assim como APiada Infinita, de David Foster Wallace, por narrar ossintomas da depressão crónica experimentada pelo autor eque o levaria a suicidar-se em 2006, dois anos após apublicação do livro. Fala de uma sensação que “é o motivopelo qual quero morrer”. E define-a assim: “É como se nãofosse capaz de encontrar nada fora dessa sensação e porisso não sei que nome lhe posso dar. É mais horror quetristeza. É mais horror. É como se uma coisa horrorosaestivesse prestes a acontecer, a coisa mais horrível que sepossa imaginar, não, pior do que se possa imaginar porquehá também a sensação de que é preciso fazer qualquercoisa de imediato para se deter aquilo mas não se sabe oque se deve fazer e de repente está a acontecer, durante otempo todo, está prestes a acontecer e ao mesmo tempoestá a acontecer.” (Quetzal, 2012)

Os campus universitários americanos parecem viver nopânico do trauma, na obsessão da linguagem politicamentecorrecta, de tal forma que — e lembra ainda o artigo daAtlantic — humoristas como Jerry Seinfeld estão a recusardar espectáculos nas universidades, alegando que osestudantes “não são capazes de suportar uma piada”.

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“E“Infantilização” da sociedade

stamos perante uma excessiva psiquiatrizaçãoda sociedade”, afirma Manuela Correia,psiquiatra, psicoterapeuta, com um vastotrabalho e investigação desenvolvidos na área

do suicídio na adolescência e juventude, e uma leitoravoraz. Conhece todas as obras aqui apontadas como“perigosas” e tenta responder a uma questão muitosimples: há livros que nos fazem mal? Ou — recuperando aterminologia usada por quem pede protecção — há livros“perigosos”? E a outra pergunta que pode precisar deresposta mais complexa: o que é que este medo poderepresentar, não apenas para quem dele padece, mas paraa sociedade que o alimenta e dele parece alimentar-se?

“Pode falar-se em três categorias de interditos: o político, oreligioso(https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/codigo-da-vinci-na-lista-dos-livros-proibidos-pelo-vaticano-1218232)e o moral. E no moral está o uso de drogas, o apelo àviolência, a sexualidade, o incesto, a prostituição, os termosimpróprios. E parece ser aqui que estamos nestemomento”, diz, remetendo para um termo que vem dasociologia, e que no seu entender está a regressar: anomiasocial.

O conceito desenvolvido por Émile Durkheim no final doséculo XIX no livro O Suicídio (1897) refere-se à ausênciaou falta de normas ou regras numa estrutura ou gruposocial. “Foi criado numa altura em que por diminuição doimpacto religioso e dos valores das sociedadesconservadoras, com a pulverização de valores através dodesenvolvimento de uma economia capitalista e da razão,

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houve um aumento dessa regulação. Houve uma anomiasocial. É um conceito que tem a ver com a perda daidentidade nas sociedades e dos seus objectivos. A religião,bem ou mal, dá um fim, um sentido”, contextualiza.

“A psiquiatrização excessiva do comportamento humano éa forma que as sociedades capitalistas — porqueformalmente são laicas — têm para controlar a tal anomiasocial. Antes, ela era controlada pela religião e por umpoder político muito vertical. Hoje, nas democracias, opoder político é mais transversal, e aí, como já aconteceu

Com A Paixão do Jovem Werther, de Goethe,

associou-se um livro à prática do suicídio. Foi

retirado em alguns países mas voltou. Nunca

ficou cientificamente provado que

potenciasse esse efeito

Manuela Correia

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há uns anos, patologiza-se o comportamento e patologiza-se uma pessoa que saia da norma. É uma forma decontrolar a sociedade. O movimento dos anos 1960 daantipsiquiatria tinha que ver com isso. A psiquiatriafuncionava como polícia da sociedade.”

Esse controlo pela psiquiatria está a voltar através de umatentativa de normalizar os comportamentos. “Para mim, oscasos mais graves, nem são os adolescentes, mas ascrianças”, afirma. Leva a que, por exemplo, “se confundamuitas vezes uma criança irrequieta como hiperactiva” elhe seja “medicada Ritalina”; ou a temer-se que contosclássicos como os dos Irmãos Grimm ou de Andersenpossam ser traumáticos.

Uma das primeiras vezes em que se associou uma obraliterária à prática do suicídio e isso deu lugar a umainvestigação do tipo causa-efeito foi com A Paixão doJovem Werther, de Goethe (1774, obra do romantismo quefaz parte do Plano Nacional de Leitura). Ao longo doromance, o desespero toma conta do protagonista nascartas que faz chegar ao narrador. “Ah!, por mais de cemvezes já peguei uma faca para dar vazão a este coraçãoamargurado. Fala-se de uma raça de cavalos nobres que,quando são terrivelmente perseguidos e encurralados,arrebatam eles mesmos, por instinto, uma veia parafacilitar a respiração. Sinto-me assim muitas vezes egostaria de abrir uma veia que me desse a liberdadeeterna…”

Manuela Correia refere-a como iniciática no estudo darelação entre literatura e suicídio. “Foi a partir daí que secomeçou a estudar o efeito de contaminação. O livro foiretirado em alguns países, mas voltou. Nunca ficou

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cientificamente provado que potenciasse esse efeito”,refere, salientando que essa ideia de contaminação estádirectamente associada à adolescência. “É a fase daformação, ainda não há um código de valores. Naadolescência temos várias tarefas, que passam pelaalteração da relação com os pais, com os pares e aaquisição de uma identidade, onde está também aidentidade sexual. Quem sou eu? O que quero ser? Qual omeu código de valores? A maior parte dos adolescentes sãosaudáveis, mas há umas franjas, mínimas em termospercentuais. E há um facto: esses jovens quando têmsofrimento psicológico, nomeadamente depressão, podemcometer suicídio. Em 90% dos casos de suicídio, há doençapsiquiátrica por detrás, um sofrimento mantido:depressão, esquizofrenia, mania. Não há nunca uma causaúnica”, muito menos um livro.

“Nos adolescentes acontece muito mudarem decomportamento”, afirma. “Ou se isolam, ou mudam degrupo, ou têm vários comportamentos de risco mantidosno tempo, mudam os hábitos de vestuário, começam a lerlivros e a ouvir músicas ligadas à temática da morte. Sãosinais de alerta”, explica, enquanto chama a atenção para operigo de se achar que toda a sociedade é potencialmentecomposta por suicidas, deprimidos, traumatizados a quemum livro ou uma palavra num livro pode desencadear aacção limite.

“Os livros em si não são perigosos, eles fazem parte de umaconstelação de comportamentos”, conclui, antes de voltar aexemplos que podem determinar uma incapacidade delidar com o real que vem da infância e de umasobreprotecção ligada ao medo dos pais de que a criançasofra.

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Daí a preocupação de alguns educadores com os contos deAndersen ou do Grimm. “Falam de temas que as pessoasacham que não se deve falar às crianças, como a morte ou abruxa má, e também em transgressões. Há nas crianças,naturalmente, uma ideia de liberdade ligada àtransgressão. Mas varia de cultura para cultura. Porexemplo, na China, Alice no Pais das Maravilhas, de LewisCarroll, está proibido, porque os animais têm equiparaçãoaos humanos. As sociedades sempre controlaram e éimportante que o colectivo tenha um autocontrolo. Mas…”

É neste “mas” que reside a resposta, que, no entender deManuela Correia, não deve passar pela restrição da leitura,muitos menos desses contos que, entre outras coisas,ensinam o medo. “Os pais têm medo que as criançastenham medo, mas é muito importante a aprendizagem domedo. Não faz mal que a criança chore e é bom que tenhamedo.”

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O que é o medo? “O medo é qualquer coisa que está ligadaao desconhecido e ao perigo e quando aprendemos issoadquirimos capacidades de lidar com ele. Há muitosestudos sobre os contos infantis. Os meninos que vão peloscaminhos à aventura, pelo desconhecido, deixam lá ossinais, mas depois acontece qualquer coisa e a marcadesaparece e eles ficam perdidos. A criança chora. Não temmal. O problema é quando a criança tem essa vivênciasozinha. Antigamente, essas vivências eram acompanhadaspela família. Hoje a criança está muito sozinha. Está comos pais de forma muito instrumental, vestir, pequeno-almoço, ir para a escola, e à noite, despir, banho, trabalhosde casa, jantar, deitar. Há um estilo de vida que põe ascrianças em frente à televisão, aos smartphones, noFacebook, sem o contacto olho a olho.” Estão ocupados.Este vocábulo, no entender de Manuela Correia, é ocontrário de outro essencial para o desenvolvimento: oócio, o tédio. “Os jovens hoje não têm tempo para ter tédio.O bom tédio, o bom ócio. Têm o tédio de ‘não sei o que éque hei-de fazer’. No bom tédio, uma pessoa pode estarsentada no jardim ou no sofá, uma hora, a cabeça adivagar. Isto é o ócio. Não há tempo para isto, paraelaborar.”

Grupos como os dos universitários norte-americanos ou asassociações de pais de muitas escolas surgem com este tipode solicitação proteccionista em substituição de um papelque antes pertencia a um estado autoritário ou à religião.Segundo Manuela Correia, são o reflexo — no caso dosestudantes — e a origem — nos casos das gerações maisvelhas (pais e avós) — de uma “infantilização” dasociedade; a sociedade que não consegue lidar com o medoou com a pluralidade da linguagem.

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A

Mas há também factores económicos determinantes,defende. “A própria austeridade reforça a anomia social, ouseja, a desagregação do tecido social. Mas o bom de tudoisto é que quando há muito movimento num sentido hátendência para haver um outro no sentido contrário paraque essa anomia não seja excessiva e a sociedade possaestar autocontrolada, auto-regulada. Porque a sociedadecomo um todo também se auto-regula. É viva”, contém oproblema e a sua solução.

Mas nunca se assistiu, reforça, ao pedido de protecçãocontra a liberdade de expressão por parte de umacomunidade de estudantes de elite, como está a acontecernos Estados Unidos.

Os “transgressores”

História tem casos de livros proscritos, na filosofia,na política, na ciência(https://www.publico.pt/ciencias/jornal//os-livros-cientificos-dos-seculos-xvi-e-xvii-ou-como-a-

inquisicao-limpou-as-bibliotecas-26448333), os livros-ameaça ao estipulado. O Bom Selvagem, de Rousseau,Cândido, de Voltaire. “Eram indivíduos de uma elite quetinha conhecimento. E eram vistos como perigosos porquepensar é muito perigoso. Pensar dá poder. E por que é quenormalmente são os grandes clássicos que agora sãoquestionados por estes estudantes? Porque são os grandesclássicos que tratam os grandes temas, são os temas dafilosofia. O que é que trata o James Joyce? Ou o Homero?Tratam a ideia de liberdade, e a liberdade é muito perigosa.A partir do século XIX, quando surge o romance, osinterditos deixam de ser tanto os cientistas e os filósofos —

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com excepções como a de Charles Darwin [contestado peloCriacionismo que rejeita a ideia de o homem e o universoterem sido criados por uma entidade que nãosobrenatural].

A Origem das Espécies, de Darwin, foi retirado doprograma oficial das escolas norte-americanas porque “aforça do movimento Criacionista no país é muito grande”,lembra a psiquiatra, sublinhando “que nem a intenção doPresidente Obama em repor o livro como básico escolarconseguiu mudar as coisas”.

Um exemplo diferente é o que decorre do uso de linguagemconsiderada imprópria e um perigo em si mesma. “NoBrasil, chegou a ser publicada uma versão light de OAlienista [1882], de Machado de Assis. Ele fala da mulherda vida airada, que é uma prostituta. Há livros que foramproibidos porque havia a palavra ‘puta’. Tambémaconteceu nos EUA. É a linguagem que ou ofende a religiãoou o poder político, ou os costumes. E depois há a ideia deque as crianças não compreendem, o que é perigoso porquea linguagem e o pensamento estão ligados. Por isso aquestão da língua é muito importante. Os adolescentes emtodas as gerações têm códigos próprios e quando acaba aadolescência ficam com a linguagem de um adulto. Mas

Desenvolvemos a linguagem se pensarmos, e

se tivermos uma linguagem rica também

pensamos melhor. Há um empobrecimento

do vocabulário e um empobrecimento do

pensamento.”

Manuela Correia

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agora esses estereótipos estão a generalizar-se a todas asfaixas etárias. Desenvolvemos a linguagem se pensarmos e,se tivermos uma linguagem rica, também pensamosmelhor. Há um empobrecimento do vocabulário e umempobrecimento do pensamento.”

E há os livros “tabu” pela temática, periodicamente mais oumenos sensíveis conforme a geografia e a sensibilidade dacomunidade. “Agitam as mentes”, comenta ManuelaCorreia.

Virginia Woolf está entre as escritoras mais visadas. “Ele —pois não poderia haver dúvidas quanto ao seu sexo, emboraa moda da época contribuísse até certo ponto para odissimular — estava a golpear uma cabeça de mourosuspensa das vigas do telhado”, primeira frase de Orlando,romance de 1928 que “pode entrar na construção social dogénero”, exemplifica a psiquiatra que vai à biografia daescritora, que “tinha relações amorosas com a VitaSackeville-West, uma grande amiga e uma grande paixão.Teve uma depressão grave, o diagnóstico não está bemdefinido, mas havia uma esquizofrenia, porque às vezesouvia vozes”.

Há mais. Anna Karenina, de Tolstoi, O Livro doDesassossego, de Fernando Pessoa, as obras de Kafka,Ulisses, de James Joyce. Todas são apontadas comoexemplos de conterem “elementos perturbantes”. “Todosos grandes autores pegam nas questões existenciais: oquem sou eu, o que eu quero ser, como é que eu gostaria deser visto pelos outros, como gostaria de me ver, ter umlugar. Por exemplo, o lugar de Fernando Pessoa eracompletamente conceptual, interior e feito de vivências queexpressava através da língua. Foster Wallace descreve a

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depressão tal como ela é, de forma crua, dorida. Mas, doponto de vista clínico, estes livros nunca são perigosos.Podem é fazer parte da tal constelação de comportamentosde um jovem já em sofrimento. Impedir os livros da grandeliteratura, desde a infância, é infantilizar. A infantilizaçãotraz um grande perigo: o de haver outra vez sociedadesconcentracionárias e com um poder vertical.”

A literatura “ajuda a construir a identidade. Éfundamental. Se eu pensar que a ideia de democracia, acultura humanista, a valorização da ciência, a relação como outro, se regem por um determinado código de ética e devalores, tenho de defender o acesso aos bens culturais, umdireito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Etenho de aceder aos cânones dessa cultura. Desde oHomero, desde a Epopeia de Gilgamesh [poema da antigaMesopotâmia, actual Iraque] que trata da condiçãohumana, da relação interpessoal e a ideia da viagem, que éa ideia de conhecer, ir para o desconhecido, ir para o medo.E depois os interditos: o suicídio, o incesto, a sexualidade,os valores. Todos os livros canónicos são uma preparaçãopara a vida. E, se pudermos, ler os clássicos das váriasculturas. Porque somos isso tudo.”

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COMENTÁRIOS

10/02/2016 13:31

Hugo CharBielefeld, Germany - Ljubljana, Slovenia

até se pode compreender uma sociedade que proiba um livropor motivos politicos ou religiosos (no caso desses livros seremcontrarios à doutrina q esse estado quer impor) agora proibir por"disturbios" da moral, francamente, é preciso ser retrogado ...

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09/02/2016 09:19

José Milton FerreiraAcajutiba - Acajutiba

Infantilizar um sociedade é exatamente começar a bsurdoscomo este: proibir livros poque os tem como perigosos. Éjustamente fo proibido que gostam as multidoes curiosas. O quese busca é a preguiça intelectuai com o objetivo fe um niilismo,na mente humana universal, há muito fesejado por uma elite quese julga senhora absoluta do conhecimento, da verdade e do se"direito" de impor. Como criticar algo se não o conheço? Se naome deixaram, ler, apalpar, ver, cheirar, viver?

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Lígia

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08/02/2016 18:30

Por favor, da próxima vez entrevistem também uma socióloga. Oconceito de anomia social está totalmente equivocado. Aanomia social ocorre quando indivíduos não se identificam coma moral e os costumes impostos pela sociedade a qualpertencem. Sugiro, ao autor, a leitura da obra "O suicídio", deDurkheim.

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08/02/2016 18:13

André Pereira

David Foster Wallace morreu a 12 de Setembro de 2008.

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08/02/2016 18:10

PSGLisboa

Do admirável novo mundo das sociedades de consumo demassas, ao retrocesso civilizacional do islamismo salafista e doultracoservadorismo do Tea Party, juntamente com o"politicamente correcto" e doses massivas de senso comum,resulta que a anomia a que o texto volta uma e outra vez não émais do que a causa e efeito do poder exercido pelas classesdirigentes sobre os que a ele se submetem. Independentementeda fonte ( religiosa ou política), legitimada (preferencialmente) ounão, o facto é que as correntes de auto-regulação (comosugeridas no texto) das estruturas dominantes estão aí paraficar, e parecem fortalecer - se à medida que os valores e a éticahumanista vão perdendo terreno no tabuleiro das sociedadesflageladas pelas assimetrias socioeconómicas.

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08/02/2016 17:44

Rubens Rates de Albuquerque

Penso da necessidade de parâmetros que a sociedade deve tere sempre repensá-los. Mas ao impôr certos preceitos sobre apossibilidade de livros serem perigosos estamos protegendo aninguém. Vale a ressalva sobre uma avaliação literária da obra,nas primeiras páginas da mesma. Isso para dar ao leitor umaidéia, ampliando sua visão do conteúdo. Fazer acusação: "Estáobra é classificada como perigosa... Não nos responsabilizamossobre sei conteúdo." é algo infantil.

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