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  • 8/16/2019 Vende-se uma Lisboa multicultural - PÚBLICO

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    Vende-se uma Lisboa

    multicultural

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    JOANA GORJÃO HENRIQUES

    17/04/2016 - 07:37

    Os dados do turismo crescem em Portugal, há bares

    lendários a fechar para dar lugar a hotéis, lojas

    centenárias em risco e um rol de protestos pelo

    “tradicional”. Que filão se segue no turismo em

    Lisboa? Como é que a cidade está a vender a sua

    diversidade cultural?

    O ponto de encontro é junto à Igreja de São Domingos, no

    Rossio, em Lisboa. Uma mulher guineense vende

    amendoins, e cola (espécie de castanha bem amarga que

    tem propriedades antioxidantes e estimulantes e costuma

    ser vendida na Guiné-Bissau). “Não se tiram fotografias a

    esta senhora”, diz Filipa Bolotinha, responsável pela

     Associação Renovar a Mouraria, que organiza tours no

     bairro feitas por “guias locais” – hoje é Fátima Ramos,

    historiadora, quem vai liderar.

    Mais à frente, outra vendedora tem uma banca com cajus,

    cola e piticola, cabacera, quiabos, óleo de palma. Os

    “turistas” do grupo espreitam os produtos por cima dos

    ombros uns dos outros. Mais uns passos e é subir as

    Escadinhas da Barroca. Paragem num supermercado com

    produtos africanos: bolachas típicas de Cabo Verde,tâmaras, tapetes para rezar “que não podem ter figuras de

    animais, nem imagens com olhos”, diz a guia. Lá dentro há

    tabaco, farinhas várias, pilões para moer grãos.

    Fátima Ramos, professora, 40 anos, faz estes tours de vez

    em quando há ano e meio. Quer mostrar a diversidade

    cultural e “como é que neste pequeno espaço conseguemestar culturas diferentes e viver de forma pacífica”, culturas

    que “representam também uma parte da própria cultura

    portuguesa”. “Se formos à praça do Martim Moniz temos de

    https://www.publico.pt/autor/joana-gorjao-henriques

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    um lado os paquistaneses a jogarem cricket, do outro os

    chineses a fazerem as suas ginásticas matinais, do outro um

    muçulmano a rezar… E estão ali pacificamente no meio da

    comunidade portuguesa”, assinala entusiasmada e

    optimista.

     Vai olhando à volta para descrever esta “babel”, que

    “contraria o mito” porque aqui convivem línguas, religiões e

    culturas diferentes mas “não se afastam”. “Quando há

    celebrações cristãs, os muçulmanos, hindus participam. Há

    cabeleireiros onde têm a imagem de nossa senhorade Fátima ao lado dos hindus”.

     A tour andará muito à volta do comércio da zona, isto

    porque, justifica, é a actividade a que se dedica grande fatia

    da população imigrante do bairro.

    David Kong, 35 anos, suíço, olha em volta com óculosescuros. Vai mandando piadas mais sarcásticas. Vive há dois

    anos em Portugal e queria conhecer a Mouraria. “Não gosto

    muito da gentrificação que estão a fazer, prefiro o meu

    (//imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1043609?tp=UH&db=IMAGENS)

    Fátima Ramos, historiadora (ao centro na fotografia) serve hoje de guia pelo tour na Mouraria MIGUEL MANSO

    https://imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1043609?tp=UH&db=IMAGENS

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     bairro, a Colina de Santana”, comenta. Acha que a guia

    deveria mostrar o lado negativo, a sujidade, a prostituição,

    as drogas, coisas que ele sabe que existem porque já viu

     várias vezes. “Devia expor tudo e depois nós tiramos a nossa

    conclusão”.

     A historiadora aponta agora: está aqui apraça do Martim Moniz, para onde levou

    o grupo, um lugar que já teve várias

    funções, e hoje é “alusivo à fusão cultural

    que existe na zona”. À frente está o

    Mercado de Fusão, com quiosques de

    gastronomia de várias partes do mundo.

     Atravessamos o centro comercial da

    Mouraria: na cave as lojas vendem coisas

    de várias partes do mundo, saris

    indianos, bijutaria, roupas com padrões

    “étnicos”, alimentos e especiarias que só

    se encontram mesmo aqui. O grupo

    “entope” a entrada da mercearia de onde vem um cheirointenso. O dono gosta desta “invasão” porque em cada

     visitante vê um potencial cliente. “É bom para a zona que

    está a ficar um bocado morta”, comenta.

    Mas esta harmonia não é dominante, como, aliás, notou

    David. Não haverá o risco de passar uma imagem

    demasiado idílica da diversidade cultural lisboeta,perguntamos a Fátima Ramos? “Na parte institucional,

    existem muitas barreiras e dificuldades para o imigrante

    poder exercer os seus direitos”, reconhece a historiadora

    filha de cabo-verdianos. “Mas no terreno as pessoas

    conseguem fazer essa integração de forma mais rápida e

    natural”, conclui, pouco antes de apontar para as muralhas

    da cidade.

    (https://static.publico.pt/infografia/2016/po

    https://static.publico.pt/infografia/2016/portugal/Lisboa_estrangeiros1.svg

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    Uma das visitantes, Joana Jacinto, 24 anos, moradora na

    Mouraria há ano e meio, não dá, porém, essa imagem tão

    harmoniosa do convívio. “Falo com as velhotas do prédio e

    continuam a referir-se a esta multiculturalidade como os

    ‘monhés’. Continua a haver um bocadinho o choquecultural. Isso tem a ver com uma mudança muito rápida na

    Mouraria, os filhos que se foram embora e não querem viver

    aqui e estas diferentes culturas a aparecerem e a

    revitalizarem as lojas”, analisa.

    Não existem dados sobre a diversidade étnica e racial dos

    portugueses porque não é permitido esse tipo de recolha dedados, então ela mede-se apenas pela imigração. Na

    Mouraria, estima-se que existam cerca de 50

    nacionalidades, correspondendo a um quarto dos

    habitantes, diz o Censos 2011.

    Só no concelho de Lisboa, ao contrário da tendência do resto

    do país, é que a população imigrante tem crescido: em 2013

    esse crescimento foi de 1,1%, perfazendo um total de quase

    46 500 imigrantes, valor que aumentou para 50 mil em

    (//imagens0.publico.pt/imagens.aspx/1043610?tp=UH&db=IMAGENS)

    De uma mercearia vem um cheiro intenso. O dono gosta desta “invasão” porqueem cada visitante vê um potencial cliente MIGUEL MANSO

    https://imagens0.publico.pt/imagens.aspx/1043610?tp=UH&db=IMAGENS

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    2014 – para se ter uma ideia, no Porto a

    população estrangeira é de 8 mil e só

    Sintra se aproxima de Lisboa com quase

    33 mil (dados do Serviço de Estrangeiros

    e Fronteiras relativos a 2014).

    Como é que Lisboa, e a área

    metropolitana, estão assim a trabalhar a

    sua diversidade cultural em termos

    turísticos numa altura em que os

    números desta área não param de

    crescer? (Dados

    (https://www.publico.pt/economia/noticia/do-emprego-

    ao-peso-na-economia-turismo-vai-crescer-em-toda-a-linha-

    1726824) do World Travel & Tourism Council para Portugal

    mostram que o contributo directo do turismo para o PIB

    português deverá aumentar de 11,3 mil milhões de euros -

    6,4% do PIB em 2015 - para 11,7 mil milhões este ano).

     Algumas mudanças na Mouraria podem servir de

     barómetro. Por isso mesmo os “turistas” que hoje fazem este

    percurso com Fátima Ramos interrogam-se. Joana Jacinto

    quer saber o que os moradores pensam da injecção de

    dinheiro nesta zona.

    O bairro foi mudando, sobretudo depois do projecto da

    Câmara Municipal de Lisboa de requalificação, com a

    renovação de praças e edifícios e o investimento em

    (https://static.publico.pt/infografia/2016/po

    https://static.publico.pt/infografia/2016/portugal/Lisboa_estrangeiros2.svghttps://www.publico.pt/economia/noticia/do-emprego-ao-peso-na-economia-turismo-vai-crescer-em-toda-a-linha-1726824

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    percursos turísticos. Houve a mudança (2011) do gabinete

    do então presidente da Câmara, António Costa, hoje

    primeiro-ministro, para o Largo do Intendente. Daí tornou-

    se pólo de atracção turística, não só para lisboetas como

    para restantes portugueses e estrangeiros.

    “As pessoas mais novas se calhar vêem aqui oportunidadesde negócio, talvez os mais velhos sintam que há mais

     barulho”, por exemplo – responde a guia. “Mas a injecção

    para quebrar a exclusão social faz todo o sentido”, sublinha.

    CARLA ROSADO

    Filipa Bolotinha, que vive e trabalha na Mouraria, intervém

    para dizer que “não se deve diabolizar o que está a

    acontecer” porque até agora as “pessoas estão contentescom o que aconteceu no seu bairro”. Reconhece que se

    chegou a “um ponto em que é possível vir a ser necessária

    uma segunda intervenção que tem a ver com a questão do

    turismo e dos apartamentos”. Ela própria nota que o grande

    problema hoje é que quem quer ir para lá viver não

    consegue, “não há apartamentos para alugar”, desabafa para

    o grupo. “Conheço muita gente que está à procura e não

    encontra”. É verdade que talvez o preço das casas tenha que

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    N

    subir, “porque estamos no centro de Lisboa”, mas a questão

    é que a escassez se deve ao facto de “toda a gente querer

    alugar a turistas”, pois “ganha muito mais dinheiro”.

    Independentemente disso, as visitas organizadas na

    Mouraria têm como objectivo mudar a maneira de pensar

    da população portuguesa sobre as questões damulticulturalidade, diz Filipa Bolotinha, também

    responsável pelo projecto Migrantour, uma rede europeia

    em que guias locais fazem passeios “interculturais” no qual

    este se integra. A ideia é quebrar os estigmas e ideias pré-

    concebidas e, ao mesmo tempo, “contribuir para a

    integração das comunidades migrantes no seu território, e

    da sua apropriação desse território”.

    “Já te tinha dito para ires

    embora!”

    em sempre a convivialidade é pacífica na Mouraria.Dia de semana à tarde e, num passeio pelas ruas

    estreitas do bairro que fica numa colina, vêem-se

    alguns turistas, poucos moradores. Numa esquina

    há um restaurante que já veio em guias turísticos. O dono do

    espaço há 30 anos confessa que nem toda essa diversidade é

    aceite com bom grado. “A população vai embora, os

    ‘monhés’ vêm para aqui. Acha que nós gostamos deles?!Pedem 350 euros por uma casa que ninguém dá mas os

    ‘monhés’ metem-se lá oito e dão…”

    Um dos clientes, um jovem com boné e fato de treino, sai de

    dentro do restaurante e desata à pancada a um homem de

    etnia cigana que está a vender pastilhas elásticas e outros

    produtos. “Já te tinha dito para ires embora!”, gritaenquanto lhe bate. O saco preto fica espalhado na rua,

    ouvem-se berros. “O homem entra aqui 80 vezes a oferecer

    coisas às pessoas, as pessoas dizem que não e ele volta…”,

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     justifica o dono do restaurante, desculpabilizando o cliente.

    Mas neste bairro há respeito, defende, e “há mais bandidos

    fora do que dentro”. Turistas são bem-vindos, e estrangeiros

    que queiram investir também.

     A florista Fernanda, que vive na

    Mouraria há 40 anos, conta que umaagência imobiliária lhe chegou a oferecer

    o dobro pelo seu apartamento - não

    aceitou. A proliferação de hostels está a

    descaracterizar o bairro, acusa. As

    mudanças foram muito grandes: “Havia

     bairrismo e essa tradição está a acabar”,

    lamenta. “Toda esta imigração conseguiuencaixar na Mouraria. Antigamente as

    pessoas tinham a sua porta aberta, roupa

    estendida e agora vêem-se muitos

    chineses, paquistaneses, indianos, que se

    infiltram dentro de uma casa, duas ou

    três famílias. O bairro começa a não ser

    lisboeta. A tradição de fazer o fogareiro à

    porta, assar sardinhas e convidar os

     vizinhos está-se a perder”.

    Timóteo Macedo recebe-nos na sede da

     Associação Solidariedade Imigrante, que

    tem 26 600 associados de mais de 97

    nacionalidades. É um espaço em plena Baixa, num prédio

     junto ao Terreiro do Paço. Lá dentro, a mesa tem vários

    homens com papéis à frente, ajudados por um dos

    funcionários da associação. Atendem dezenas de pessoas

    por dia. “O que acontece neste momento é que de repente

    transforma-se o Martim Moniz no ‘mercado de fusão’. E

    quem frequentava antes? Eram muitos imigrantes que

    moravam nas imediações, os seus filhos que iam jogar à

    20 14

    2013

    Setúbal

    Faro

    Lisboa

    (https://static.publico.pt/infografia/2016/po

    https://static.publico.pt/infografia/2016/portugal/Lisboa_estrangeiros3.svg

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     bola. Eram espaços de partilha. Há o fenómeno de

    centrifugação e as pessoas são cada vez mais afastadas para

    mais longe”, critica.

    Timóteo Macedo nem sequer considera positivo para a

    imigração a afluência de turistas e a revitalização com a

    organização de eventos em lugares como o Mouraria eIntendente. “Ali estigmatiza-se a própria imigração”, critica.

    “Faz-se folclore”.

    Mouraria, Intendente, Martim Moniz são zonas com muitosimigrantes. Chamam-se turistas para “ver o exótico”. “Não

    podemos alimentar estas políticas. Não é de exotismos que a

    cidade de Lisboa tem que viver. Acantonam ali a imigração e

    muitas vezes a ‘imigração indesejável’: são paquistaneses,

    chineses, do Bangladesh e de outras origens. Muitos não

    estão documentados, estão em fase de transição, à procura

    de se documentarem.”

    (//imagens3.publico.pt/imagens.aspx/1043613?tp=UH&db=IMAGENS)

    Mouraria, Intendente, Martim Moniz são zonas com muitos imigrantes. Chamam-se turistas para “ver o exótico” MIGUEL MANSO

    https://imagens3.publico.pt/imagens.aspx/1043613?tp=UH&db=IMAGENS

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    M

     A Solidariedade Imigrante organiza eventos, como o Festival

    ImigrArte – debates, exposições, teatro e dança – com

     várias organizações de imigrantes. O que gostava era de ver

    as comunidades fazerem actividades com as suas próprias

    dinâmicas, e não algo que é imposto “de cima para baixo”.

    Quer o quê?

    anuela Júdice está à frente do gabinete da câmara

    Lisboa Encruzilhada de Mundos desde 2008 que,

    entre outras coisas, organiza o Festival Todos - a

    política é promover a interculturalidade e de três

    em três anos mudam a zona da cidade onde estão

    implementados.

    Em 2009, o primeiro Todos “ocupou” a zona da Mouraria e

    Intendente, abrindo-a ao turismo, define. Porque “havia

    medo de entrar”. Foram depois para São Bento/Poço dos

    Negros/zona perto da Assembleia da República, onde houve

    muita imigração cabo-verdiana há várias décadas, mas queagora desapareceu - encontraram muitos estudantes

    Erasmus. Desde 2015 que o Todos se mudou para o Campo

    Santana.

    “Queremos passar a imagem de que Lisboa só tem a ganhar

    com a incorporação das várias culturas. A diversidade é uma

     vantagem que tem sobre muitas outras cidades”, diz, nogabinete em plena Baixa.

     A ex-vereadora considera que é positivo ter pessoas de fora,

    mesmo nos bairros como a Mouraria, a tirar fotografias, a

     visitar. “Nunca mais me esqueço que na primeira edição

    convidámos um fotógrafo francês, Georges Dussaud e o

    cartaz desse ano foi este ‘quer frô’ [nome pejorativo que sedá aos vendedores de flores de origem sul asiática] numa

    festa da Senhora da Saúde na Mouraria [mostra o cartaz

    com a fotografia de um senhor com um ramo de flores]. O

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    facto de ele ter sido olhado e fotografado por um estrangeiro

    e o facto de poder mostrar foi tão, tão importante para a

    auto-estima…Agarrou-se a nós e disse: ‘muito obrigado,

     vivemos escondidos e só saímos à noite para vender as

    flores’.”

    MIGUEL MANSO

    Perguntamos à responsável por um gabinete que tem comolinha de acção a diversidade se tem noção de que acabou de

    usar uma expressão discriminatória - “quer frô”. “Para mim

    não é de todo pejorativa ou racista, é ternurenta. O facto de

    estar a vender flores - foi a expressão que usei”.

     Além do Todos, o gabinete organiza a semana da harmonia

    inter-religiosa e o dia internacional da língua materna, masestes eventos não são propriamente pensados como atracção

    turística – não há um gabinete camarário focado no turismo

    da diversidade cultural.

    Há uns tempos, uma jornalista francesa questionou a

    também secretária-geral da Casa da América Latina sobre

    porque é que em Lisboa não havia nenhum monumento,

    mural ou museu dedicado à escravatura – nada, quando

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    D

    Portugal foi um dos principais actores do comércio de

    escravos transatlântico. Não consegue encontrar nenhuma

    razão. “E eu nunca tinha pensado nisso”, confessa.

    Neste momento, o Museu Judaico

    (https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/patrao-da-

    altice-apoia-construcao-do-museu-judaico-de-lisboa-1725493) tem inauguração planeada para 2017 – foi a

    câmara que teve que ir procurar o financiamento, diz,

    apesar do apoio da fundação do patrão da Altice, Patrick 

    Drahi, dono da Portugal Telecom.

     As memórias apagadase facto, mesmo no circuito comercial é mais fácil

    encontrar passeios ligados à cultura judaica do que

    africana, por exemplo.

     A Lisbon Walker é uma das empresas de animação turística

    que fazem os dois tipos de passeios. O historiador José

     Antunes vai hoje fazer para o PÚBLICO um condensado de

    um percurso que dura umas três horas. Costuma avisar:

    “Não vão ver nada, eu vou-vos contar histórias, não há

    nada”. Trabalha com a imaginação: além de ter existido

    Inquisição durante séculos que eliminou elementos da

    cultura judaica, houve o terramoto de 1755. José Antunes

    percorre as ruas de Alfama onde foi identificada umasinagoga e aquela que ainda hoje tem o nome de Rua da

    Judiaria (bairro judeu). “Não há nada de palpável”, repete.

     A única sinagoga que existe em Lisboa, construída no início

    do século XX, não tem fachada para a rua porque os templos

    não católicos não podiam estar visíveis e fica na Rua

     Alexandre Herculano.

     A judiaria de Alfama era pequena, com uma comunidade

    “supostamente mais pobre”, sublinha. A grande judiaria era

    na baixa, próximo da Praça do Município (havia ainda outra

    https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/patrao-da-altice-apoia-construcao-do-museu-judaico-de-lisboa-1725493

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     junto ao Convento do Carmo).

    Costuma passar pela Praça do Comércio para falar das

    origens da presença judaica, ponto que fica próximo das três judiarias em Lisboa - e aqui chegaram a acontecer autos de

    fé, nota. Na Casa dos Bicos refere a forma como se

    organizava a vida e negócios dos judeus. Perto da Sé há um

    painel de Padre António Vieira onde fala dos “filossemitas”,

    amigos de judeus. Na Mouraria faz o contraponto entre as

    duas comunidades, os mouros e os judeus. Na Praça da

    Figueira descreve o Hospital de Todos os Santos, construído

    com “muita pedraria trazida dos cemitérios dos mouros e

     judeus, saqueados”. Termina no Rossio, com o massacre dos

     judeus - não vai à Sinagoga de Lisboa porque é preciso

    marcar, há fortes restrições por causa da segurança e a

    fachada está escondida. Mas dá números sobre a

    actualidade: o último Censos identificou 5 mil judeus.

     A tour é procurada por americanos, israelitas, ingleses,

    holandeses, belgas. É o terceiro passeio para o qual têm

    mais pedidos - os dois primeiros são genéricos.

    (//imagens0.publico.pt/imagens.aspx/1043620?tp=UH&db=IMAGENS)

    No percurso da Lisboa judaica o historiador José Antunes avisa: "Não vão vernada, eu vou-vos contar histórias, não há nada." Na fotografia, memorial aomassacre dos judeus em 1506 MIGUEL MANSO

    https://imagens0.publico.pt/imagens.aspx/1043620?tp=UH&db=IMAGENS

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    Paramos, em Alfama, junto ao Chafariz d’El Rei, local

    simbólico da presença judaica - D. Manuel, em sequência do

    massacre dos judeus em 1506, tinha feito saber que as bicas

    no chafariz seriam usadas, cada uma, por marinheiros,

    escravos, mouros, cristãos novos, segundo José Antunes.

    Este é também um marco da presença africana em Lisboa,

    até por causa do quadro de um anónimo do século XVI onde

    aparece uma grande quantidade de população africana.

    “Com certeza que o que o autor fez foi concentrar na mesma

    imagem muito do que viu em Lisboa”, interpreta.

    José Antunes é dos poucos a fazerem a tour da Presença Africana, e isto surpreende já que é bem antiga. Fazendo

    uma busca na Internet não se encontram referências a

    circuitos com este tema noutras agências.

    O próprio José Antunes faz muito menos este tour do que o

    da Presença Judaica (tem uma média de um pedido

    semanal). Estima que, por ano, a tour da Presença Africana,desenhada há uns cinco anos, seja feita umas “quatro ou

    cinco vezes”. E é procurado sobretudo por americanos e

    portugueses. “Diz-se que Portugal é uma nação de tráfico de

    escravos, mas em sítio algum me lembro de terem dito que

    em Lisboa havia 15% de africanos no século XVI - o que

    mostra uma presença muito mais forte do que a que aparece

    nos livros.”

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    José não vê qual seja o entrave em mostrar a História como

    ela foi. “Era uma obrigação ter um Museu da Escravatura, e

    isso pode trazer vantagens. A parte da História não é tão

    agradável, continuamos a pensar nos Descobrimentos como

    ‘Portugal deu novos mundos ao mundo’.”

     Até mesmo a nível turístico, “não podemos ter paninhos

    quentes”, salienta. “Não vamos assumir que Portugal era um

    país escravocrata porquê!?”

     A tour passa sobretudo nos lugares da história da

    escravatura e normalmente a pé: Largo de São Domingos,

    Praça do Comércio, Chafariz, Poço dos Negros, Mouraria,

    Cais do Sodré, Madragoa - o antigo Mocambo

    (https://www.publico.pt/portugal/noticia/mocambo-o-

     bairro-mais-africano-da-cidade-1662175) (lugar de refúgio

    em umbundo, língua angolana). Gosta de combinar com a

    comida africana na Baixa, terminando com a presença

    africana actual - fala também da casa dos estudantes do

    império como marco da negritude, do facto de existirtrabalho forçado em São Tomé e Príncipe, por exemplo, até

    ao século XX, ou da ausência de negros em lugares de

    destaque na sociedade portuguesa actual.

    (//imagens3.publico.pt/imagens.aspx/1043623?tp=UH&db=IMAGENS)

    https://imagens3.publico.pt/imagens.aspx/1043623?tp=UH&db=IMAGENShttps://www.publico.pt/portugal/noticia/mocambo-o-bairro-mais-africano-da-cidade-1662175

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    É em Lisboa, Cidade Africana — Percursos e Lugares de

     Memória da Presença Africana, Séculos XV-XXI , de Isabel

    Castro Henriques e Pedro Pereira Leite (disponível, aliás, na

    Internet) que se encontra a presença da escravatura na

    cidade. E é essencialmente nela que se baseia outra tour do

    género feita por Naky Gaglo, imigrante do Togo (o circuito é

    anunciado no site trip4real.com (http://trip4real.com/)).

    Sarah e Elisha James, casados, são dois afro-americanos de

    Nova Iorque que estão de visita a Lisboa. Ela é a segunda

     vez que vem, depois de ter vivido em Espanha e de ter

     visitado a capital lisboeta há uns anos. Na altura ficou

    surpreendida pelo facto de haver tanta gente negra na rua

    quando em Espanha “está escondida”. “Não é assim tãocomum encontrar tours onde se aprende sobre cultura

    africana”, diz Sarah.

    Naky Gaglo, que estuda Geografia, faz este percurso há dois

    anos – ao todo, umas 14 vezes desde então, sobretudo com

    turistas afro-americanos. Começa pela Praça do Comércio

    para se falar da relação com o Rio Tejo e a partida e chegada

    (//imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1043639?tp=UH&db=IMAGENS)

    O casal afro-americano Sarah e Elisha James vieram de Nova Iorque e estão devisita a Lisboa. Participam num tour pela capital naquilo que tem para mostrar deraízes africanas. O guia é Naky Gaglo, imigrante do Togo MIGUEL MANSO

    https://imagens9.publico.pt/imagens.aspx/1043639?tp=UH&db=IMAGENShttp://trip4real.com/

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    de navios negreiros no século XV. Sarah e Elisha vão

    fazendo várias perguntas para as quais o guia não tem

    respostas prontas. Qual era a diferença entre a escravatura

    em África e na Europa, como eram tratadas as mulheres e

    crianças, há escravos que a determinada altura se libertam,

    como é a convivência hoje entre os negros e os brancos em

    Portugal?

     A chuva que cai neste dia de Março é forte, é preciso ir para

    debaixo de um telheiro. Para-se agora em frente à estátua do

    Marquês Sá da Bandeira, na Praça D. Luís I, junto ao

    Mercado da Ribeira. Ali se vê a homenagem ao homem que

    publicou os decretos que iriam abolir o comércio de

    escravos (1836) e a escravatura (1869) em todo o territórioportuguês. Aos pés do marquês uma figura que representa

    uma mulher, supostamente Fernanda do Vale, uma

    escritora e toureira mestiça, conhecida por ‘Preta Fernanda’,

    segundo Isabel Castro Henriques.

    Sarah James gosta deste tipo de turismo onde se ganha

    outra perspectiva da cidade que está a visitar, e se tem aoportunidade “de ver mais profundamente a história de um

    país”. A tour tem muita história mas à medida que se avança

    repara que há muita coisa do passado que ainda está

    presente diz, enquanto sobe as escadinhas longas e

    íngremes da Bica. "O que é que as pessoas negras em

    Portugal sabem desta história e quanto é ensinado nas

    escolas?”, quer saber.

    Iremos parar na Rua das Gáveas, no Bairro Alto, onde

     viveram vários africanos; na Igreja de Santa Catarina, onde

    há uma pintura com um casal de africanos; em Cruz de Pau,

    onde se infligiam os castigos aos escravos; e logo a seguir no

    Poço dos Negros onde “em 1515 D. Manuel I mandou

    construir (o poço) para que aí fossem lançados os ‘escravos

    que falecem nessa cidade’”, como se lê no guia de

    Henriques.

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    O

     Antes de terminar a visita mais de cinco horas depois numa

    tasca angolana no Martim Moniz, Naky Gaglo ainda pára no

    Largo de São Domingos para mostrar a Igreja - que abriu as

    portas à confraria de Nossa Senhora do Rosário dos

    Homens Pretos, protectora dos africanos.

    “Levou-nos a muitos sítios onde se consegue perceber a

    história”, comenta Elisha James no final. “Foi muito cool, e

    estou contente de ter trazido ténis porque andámos

    imenso!”

    Desconstruir estereótipos

    grupo de quase 30 pessoas que hoje visita a Cova da

    Moura, na Amadora, tem um interesse específico -

    são do núcleo de Acção Social do Instituto Superior

    de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). O estudante

     Afonso, 20 anos, presidente do núcleo, explica que querem

     ver de perto realidades diferentes e acha este tipo de visitas

    essenciais para “desconstruir estereótipos”.

    Por isso quiseram conhecer o projecto desenvolvido pela

     Associação Moinho da Juventude, que apoia a comunidade

    em diversas frentes desde que foi fundada em meados dos

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    anos 1980 (oficialmente em 1987) por uma belga, Godelieve

    Meersschaert, e o seu marido Eduardo Pontes. O bairro, que

    nasceu nos anos 1960, foi ganhando população

    essencialmente vinda do Países Africanos de Língua Oficial

    Portuguesa.

    Estamos em frente a um dos grandes graffitis que seespalham pelas ruas da Cova da Moura. Olhamos para o

    topo da colina e ali está Amílcar Cabral, herói das

    independências e uma das grandes referências da negritude.

     A sua boina e os óculos são inconfundíveis – é o símbolo de

    um bairro que tem na sua maioria habitantes de origem

    cabo-verdiana.

    Bino, ou Silvino Furtado, faz as visitas do Sabura, como se

    chama o projecto de “tour” pelo bairro, há “cerca de 10

    anos”. Criado em 2004, o Sabura quer quebrar os estigmas

    ligados a um bairro que está na mira da polícia e de alguns

    media pelos piores motivos (droga, violência). “Como

    moradores essa não é a nossa percepção, e quisemos criar

    algo para as pessoas conhecerem melhor o trabalho daassociação e o quotidiano do bairro, mostrar que é como

    outro qualquer.”

    Outra das ideias foi criar parcerias com a economia informal

    como os restaurantes, mercearias, cabeleireiros e inseri-los

    no projecto -há a hipótese de se fazer a marcação para jantar

    ou almoçar por 7,5 euros, menu completo. Recebemportugueses mas também estrangeiros.

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    Os moradores já estão habituados, conta Bino, 33 anos,

    auxiliar de educação e animador cultural. “Para o bairro

    também é bom, abre para fora e é uma oportunidade para

    travarem relações com outras pessoas. Se não houvesse as

     visitas muita gente nunca viria aqui.”

     As visitas variam consoante o grupo - a padrão passa pelas

     várias valências do Moinho da Juventude, mas se se quiser

    focar, por exemplo, nos cabeleireiros, ele também o faz.

    Paragem agora no Espaço Jovem, onde funciona um estúdio

    de gravação, para Bino fazer a introdução. Sobem-se depois

    umas escadas que vão dar ao Espaço Polivalente, e onde de

    uma cozinha sai o cheiro a almoço. Aqui funciona a cantina

    social, onde dão assistência a famílias mais carenciadas. O

    espaço é luminoso e tem nas paredes alguns quadros. Serve

    para ensaios de grupos como o de batuques Finca Pé. Vê-se

    material que costuma ir nas Festas de Kola San Jon, a festa

    tradicional de São Vicente e Santo Antão celebrada aqui há

    anos.

    (//imagens1.publico.pt/imagens.aspx/1043641?tp=UH&db=IMAGENS)

     As visitas pelo bairo da Cova da Moura, na Amadora, existem há já dez anos DR

    https://imagens1.publico.pt/imagens.aspx/1043641?tp=UH&db=IMAGENS

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     Visitam-se outros espaços, percorrendo as ruas íngremes,

    enquanto nos cruzamos com moradores: o Centro de

     Actividades de Tempos Livres, que abre às 7h30 - é Bino

    quem vai buscar os meninos à creche, onde alguns chegam

    às 6h; o Gabinete de Inserção Profissional, onde se

    desenvolvem projectos de empreendorismo; o Ninho dos

    Jovens onde as crianças e bebés estão a fazer ginástica –aqui à tarde trabalha-se com o “pessoal mais velho” a quem

    se ensina a ler e escrever; a Biblioteca e centro de

    documentação, que era uma antiga garagem e foi adquirido

    com um donativo da fundadora do Moinho com o dinheiro

    do prémio Mulher Activa 2005.

     Álvaro, 29 anos, é de Moçambique e estáem Portugal há seis meses para estudar

    no primeiro ano do curso de Acção Social

    - já é funcionário no Instituto Nacional

    de Segurança Social. Visto de fora,

    parece-lhe que o próprio bairro fica

    motivado com estas visitas, mas é

    importante que não se passe aos

    habitantes a sensação de que estão a ser

    objecto de uma pesquisa ou de auditoria.

     

    Uma hora e meia de visita depois, as estudantes Sara

    Ramos, 20 anos, e Eurídice Maurício, 22, não têm dúvidas

    de que já mudaram a ideia que tinham da Cova da Moura.

    “Quando aparece nas notícias é sempre de forma negativa, e

    as pessoas constroem rótulos sobre quem vive aqui: é tudo

     bandido”, diz Eurídice Maurício. “E não é assim. Vi pessoas

    que se conhecem bem e um trabalho em equipa para mudar

    a realidade de quem está excluído.”

    Sara Ramos defende que este tipo de visitas deveria existir

    em todos os bairros sociais.

    Para o bairro também é

     bom, abre para fora e é

    uma oportunidade para

    travarem relações com

    outras pessoas. Se não

    houvesse as visitas muita

     gente nunca viria aqui.”

    Silvino Furtado, animador cultural

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    O

     A visita ajuda a desconstruir estereótipos - mas convence a

    ir lá morar, por exemplo? “Se tivesse que ser”, responde

    Eurídice. “Acho que nem as pessoas que vivem aqui

    gostariam. Porque é uma forma de exclusão social - o facto

    de estarem aqui é exclusão.” Sara completa: “Por mais que

    as pessoas queiram mudar a imagem, o pensamento vai

    sempre para aquele lado.” Mariana Castelo completa: “Sãoprecisos muitos anos para mudar uma coisa que aconteceu

    em cinco minutos. Até podem acontecer noutro lado, mas só

    o facto de ser aqui…”.

     À saída, uma moradora, Isabel Andrade, que é ama há 12

    anos, diz-nos que gosta de ver gente de fora a visitar a Cova

    da Moura: é importante sentir que as pessoas não têm medode entrar.

     A suspensão da realidade

    ideal era que as entradas e saídas destes territórios

    como a Cova da Moura ou a Mouraria fossem

    naturais, que as pessoas pudessem cruzar as várias

    esferas - a comunal do bairro e a mais pública,

    analisa António Brito Guterres, investigador de Estudos

    Urbanos no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da

    Empresa (ISCTE). “Sabemos que a cidade está construída de

    tal forma segmentada que é quase impossível transpor essas

     barreiras”, continua, sentado num espaço comunitário da

    Curraleira, um dos vários bairros sociais onde já trabalhou.

    No entra e sai de jovens e crianças, toda a gente o

    cumprimenta, com afecto.

    “Lisboa é uma cidade sobre a qual existe o discurso de que

    há ainda muito por explorar em termos turísticos mas tem

    um problema: o conteúdo desse turismo tem sido o espaço

    territorial de 500 mil pessoas (o centro do concelho) quando

    a escala de Lisboa é muito maior”, continua.

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    Brito Guterres problematiza a questão dos percursos “pelos

    ditos bairros problemáticos”. “A que é que isso responde? E

    a quem responde? O que desenvolvem?”

    O posicionamento, mesmo dentro dos

    próprios bairros, é naturalmente

    diferente de pessoa para pessoa. Haveráquem ganha com as visitas, haverá quem

    não gosta. Mas de qualquer forma há

    sempre diferenças entre os circuitos na

    Cova da Moura e da Mouraria, nota: no

    primeiro, o envolvimento comunitário

    que permite o apoio entre os moradores

    fica exposto quando as pessoas lá vãoporque o espaço público é mais uma

    extensão do espaço privado; já no

    Martim Moniz essa invasão não será tão

    forte porque “o espaço é público per si ”.

    Por outro lado, alerta: “Há uma romantização à volta de

    percursos de vida que não são bons, de pessoas que saem às5h para trabalhar….”

     Acontece também uma contradição: o empreendedor que

    aparece para dinamizar o bairro ser uma pessoa de fora e no

     bairro desenvolverem-se actividades de economia paralela

    em que não se pode fazer uma cachupa em casa para vender

    aos visitantes por causa da ASAE. Ou seja, “mitiga-se umdeterminado tipo de vida à volta desses circuitos, ao mesmo

    tempo que as políticas públicas censuram o que vem de uma

    economia doméstica.”

    Na Quinta da Fonte é relativamente larga a avenida

    principal pela qual se distribuem os prédios pintados de

    uma cor amarelada, blocos de habitação social e outros de

    cooperativa onde vivem mais de 2500 pessoas, muitos de

    origem africana e cigana.

    Lisboa é uma cidade sobre

    a qual existe o discurso deque há ainda muito por

    explorar em termos

    turísticos mas tem um

    problema: o conteúdo

    desse turismo tem sido o

    espaço do centro, quando a

    escala de Lisboa é muito

    maior”

     António Brito Guterres, investigador

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    É de manhã, e há jovens, em grupos, sentados em muros a

    conversar.

     A “receber” os visitantes está uma enorme fachada com

    graffiti, fruto do festival O Bairro i o Mundo, uma

    colaboração entre o Teatro Ibisco (que é mais do que um

    teatro, tem projecto de emprego, por exemplo) e a CâmaraMunicipal de Loures, com apoio do programa Escolhas do

     Alto Comissariado para Migrações. Hoje organizam visitas a

    esta galeria de arte pública.

    Eunice Rocha, produtora do Ibisco, vai contando a história

    do festival que começou em 2013 neste lugar e que no ano

    seguinte foi para a Quinta do Mocho, também em Loures.

    Os dois bairros são conhecidos como sendo rivais e o

    trabalho do teatro em várias actividades tem conseguido

    quebrar algumas barreiras. “As pessoas temiam entrar aqui,

    não se sentiam confortáveis”.

    (//imagens4.publico.pt/imagens.aspx/1043644?tp=UH&db=IMAGENS)

    Na Quinta da Fonte os visitantes são recebidos por fachadas com graffiti, fruto dofestival O Bairro i o Mundo RUI GAUDÊNCIO

    https://imagens4.publico.pt/imagens.aspx/1043644?tp=UH&db=IMAGENS

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    O bairro hoje aparece nos media por bons motivos, mas

    normalmente era pela “má fama”, rixas e violência. Verdade

    que muita gente nunca sai do bairro, nem tem noção do que

    se passa lá fora, admite Carlos, morador. Mas vir gente de

    fora entrar com mais confiança anima, defende. Eunice

    complementa: “Só podemos estar aqui se a comunidade nos

    der essa confiança, porque se houver alguma coisa que nãoseja do agrado rapidamente somos corridos.”

    Estamos em frente de uma parede de um prédio em que há

    quatro rostos pintados a graffiti, rostos de diferentes

    “heróis”, entre eles Salgueiro Maia e Che Guevara,

    desenhados a negro. Houve gruas, pessoas a ajudar e a

    aproximarem-se, debate, algumas lutas sobre quem colocarali e negociações. “A equipa de produção escolheu Salgueiro

    Maia”. Eles queriam Amílcar Cabral. “O Salgueiro Maia não

    lhes dizia nada”, comenta Eunice Rocha.

    Em baixo, noutra fachada, o rosto de Nelson Mandela a

    preto e branco impõe-se, com algumas citações do líder sul-

    africano. Atrás de nós há um relvado enorme que circundaeste bairro. Há outros graffitis cheios de cor. David Luís, 34

    anos, que tem uma empresa de remoção de graffitis,

    intervém: “Ao princípio muitos deles ficaram desconfiados,

    é normal. Há cinco anos vocês não podiam estar aqui a tirar

    fotos, eram assaltados. Hoje não. Há muitos jovens que não

    saem do seu local de conforto, mas quando saírem vão

    sentir-se incomodados porque pararam no tempo. Vão à

    procura de quem esteve a dar formação para irem para fora.

    Mas também queremos pessoas que venham cá para dentro:

    pessoas, empresas e tudo mais porque o bairro continua a

    precisar de ajuda, de manutenção, e até de manutenção

    psicológica.”

     A poucos minutos de carro da Quinta da Fonte está a Quinta

    do Mocho, com uma maioria de população angolana, cerca

    de mil famílias. O guia agora é Edilson Nunes, 31 anos - ou

    Deidei.

  • 8/16/2019 Vende-se uma Lisboa multicultural - PÚBLICO

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    O impacto dos 50 murais nas fachadas

    dos prédios é poderoso. O título galeria

    de arte pública faz jus ao nome: é

    exactamente essa a sensação que se tem

    enquanto se circula nas pequenas ruas do

     bairro: estamos a caminhar numa galeriaa céu aberto.

     A maioria dos artistas é de fora do bairro

    e reconhecidos. Deidei mostra-os

    orgulhoso, passa por murais de artistas como Utopia,

    Tamara: Vhils é o mais conhecido e desenhou o rosto de um

    DJ do bairro, Nervoso, causando polémica já que não éfigura consensual.

    Podemos ver o rosto de Amílcar Cabral, feito por António

     Alves; a figura de alguém a usar uma máscara,

    representando o gesto do que era entrar e sair do bairro

    onde era problemático dizer que se vivia. “Às vezes as

    pessoas escondem-se quando vão à procura de emprego”,comenta Deidei. Antes o bairro tinha assaltos e “coisas do

    género”, continua, e isso “era uma forma de gritaria para

    chamar a atenção da sociedade e dizer que também

    existíamos”. “Hoje temos pessoas que trabalham para o

    positivismo. Somos conhecidos pelo que fazemos, pela

    música.”

     Vamos passeando entre a galeria, há até murais com a

    chanceler alemã Angela Merkel. Deidei vai contando as

    histórias à volta da pintura de determinados murais - sabe

    de cor os nomes dos artistas. Os moradores olham

    indiferentes a nossa passagem. A estender roupa, Gilberto

    diz-nos que é indiferente abrir a janela e ver a parede da

    frente pintada com um grande mural. Sentadas junto a uma

    árvore, duas jovens moradoras, Mariana e Leo, respondem

    que gostam de ver as pinturas mas uma delas comenta: “Já

    tem muitos desenhos, depois acaba por ficar esquisito. Não

    Queremos pessoas que

     venham cá para dentro:

    pessoas, empresas e tudo

    mais porque o bairro

    continua a precisar de

    ajuda, de manutenção, e até

    de manutenção

    psicológica.”

    David Luís

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    tem graça ficar em todos os prédios.” As visitas ao bairro de

    turistas é “bom” para “não dar aquela fama”. “Não é um

     bairro pior que os outros. É normal. Antigamente era mais

    coiso, agora não se vê tanta confusão.”

     A obra de arte número 50 é da mexicana Eva, uma das

    artistas mais jovens, com 23 anos. A maioria dos artistas sãode fora do bairro e fora do país - não são remunerados. “No

     bairro até existiam artistas mas de tal categoria não”,

     justifica Deidei. Começaram por 10 artistas, sem nunca

    pensar que as candidaturas podiam crescer tanto - e a partir

    daí foram-se oferecendo cada vez mais artistas. Hoje há uma

    lista de 30 à espera de trepar as paredes dos prédios da

    Quinta do Mocho.

     As intervenções e esta abertura ajudaram o bairro a superar

    alguns dos problemas. Mas como diz Eunice Rocha: “Não

    podemos ser demasiado românticos. Estamos a falar de

    coisas bonitas mas é óbvio que há problemas diários e

    estamos aqui para ajudar a solucionar esses problemas:

    como em todo o lado, a pequena criminalidade continua.”

    Regressamos à Curraleira, onde por enquanto não há nada

    de turístico para mostrar, aparentemente. Com o

    crescimento do turismo em Portugal e em Lisboa o mais

    natural é que se comecem a explorar cada vez mais os

    circuitos da diversidade em termos comerciais, prevê António Brito Guterres: a Lisboa do pós-colonialismo, a

    Lisboa cigana, a Lisboa africana, do bairro excêntrico onde

    ainda há barracas... “Lisboa é tão segmentada que isso vai

    ser explorado de certeza. Quem vai ganhar? E como se vai

    lidar com a incoerência de se ir à procura de um tema e

    forma de estar, que depois as políticas públicas castigam?”

    O paradoxo, continua, é que de repente há uma série de

    fronteiras que podem ser pacotes turísticos numa cidade

    que não circula, que tem várias diversidades que não se dão

  • 8/16/2019 Vende-se uma Lisboa multicultural - PÚBLICO

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    entre si. “A existência desse circuito turístico quase é uma

    demonstração de que há uma cidade que exclui, que está

    segmentada.”

    Na verdade, os circuitos turísticos acabam por assinalar

    ainda mais as diferenças: aqui estamos nós, ali estão eles.

    “Sempre que fazemos um tour desses há uma suspensão da

    realidade, há muita mediação no meio portanto acabamos

    por ter uma análise estética, pré-concebida e não

    aprofundada. Continua a ser um consumo e não é muito

    diferente de ir ver um espectáculo em que não me relaciono

    mas consumo.”

    COMENTÁRIOS

    17/04/2016 12:48

    Camila Pohlmann

    Rio de Janeiro, Brazil - Lisbon, Portugal

    Ótimo artigo. A respeito do comentário sobre por que não se falanos escravos eu também já me perguntei o mesmo. E a respostaque encontrei é que o português médio não acha que teveenvolvimento na escravatura. Já ouvi, mais de uma vez: "todos ospaíses usavam mão de obra escrava e o português ia lá na Africae não pegava ninguém, já os recebia das tribos e 'só' o que faziaera levar a quem queria comprar". Acho uma visão, no mínimo,ingênua, mas já a escutei mais de uma vez.

               

    17/04/2016 19:46

    Maraf 

    Não sei como classifica o "português médio".Talvez se esteja a referir às gerações mais velhaseducadas durante o tempo da ditadura, comquem terá dito oportunidade de conversardurante alguma estadia em Portugal. Dificilmenteencontrará alguém de 30 anos ,que tenhaterminado o Ensino Secundário a dizer que osportugueses não tiveram envolvimento naescravatura. Agora duvido que um brasileiro de30 anos saiba que após a independência doBrasil os heróis brasileiros, "lutadores contra oopressor colonial português" (como é aprendidonas escolas brasileiras) decidiram manter aescravatura por mais 70 anos. Muitoconveniente...infelizmente a história tem sido

               

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    usada para construir sentimentos nacionalistas.Reveja o que aprendeu na escola à luz desteprincípio e surpreenda-se.

    17/04/2016 20:19

    Suave

    Não foi assim que aprendi na escola. Este

    contexto “opressor colonial português” é umcontexto africano. No Brasil não foi destamaneira. O que aprendemos foi o seguinte:Quando Dom João abandonou Portugal a sortedos franceses de Napoleão, fugiu com todo oseu séquito para o Brasil de forma a criar umnovo Portugal no Brasil já que nem por sombrasacreditava que o povo português, liderado pormilitares ingleses, poderia rechaçar as tropasfrancesas. Após a improvável vitória do povoportuguês, o Rei voltou a Portugal com apromessa de que o Brasil deixaria de ser umacolónia e passaria para o estatuto de um EstadoPortuguês.

               

    17/04/2016 20:19

    Suave

    Quando chegou a Portugal, quebrou a promessae o nosso Imperador Dom Pedro I declarou a

    independência as margens do Rio Ipiranga faceas novas exigências de remessas do Brasil paraPortugal. Portanto, não foi uma independênciagerada pelo ódio mas pela estupidez e burricedo Rei daquela época.

               

    17/04/2016 20:19

    Suave

    Por outro lado, percebo o ponto de vista de

    Camila. A escravatura é ainda um assunto tabuem Portugal. Assim como a descolonização de África. Alias, há um artigo espetacular do Públicoa expor os problemas e perseguiçõesacadémicas toda vez que alguém tenta levantaresta dado histórico de forma a encarar osfantasmas do passado. Já no Brasil, podemosdizer que não é um assunto tabu. Basta ver aquantidade de filmes e novelas a esmiuçar estatriste passagem da história do Brasil. Portugal

    hoje sabe mais acerca da escravatura de séculospassados no Brasil por causa do Brasil noentanto sabe muito pouco da escravatura vividaaté a década de 70 das antigas colóniasafricanas.

               

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    17/04/2016 11:47

    Nuno Pessoa

    Bom artigo. Parabéns!