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PEDAGOGIAS DA NOITE - UM ESTUDO SOBRE A MODELAGEM DA VIDA URBANA NOTURNA Eloenes Lima da Silva UFRGS/PPGEdu Suave é a noite, é a noite que eu saio. Pra conhecer a cidade, e me perder por aí! Engenheiros do Hawaii (1986) Marco Polo descrevia cidades para o imperador Kublai Khan. Inventava cidades ocultas, cidades-olhos, cidades-memória, cidades-símbolos. Criava cidades invisíveis e fantásticas na imensa geografia comandada pelo imperador. Poderes, saberes, territórios e sonhos confundiam-se na narrativa imaginativa do escritor Italo Calvino (1990). Efetuar pesquisas nas metrópoles contemporâneas também exige certas doses de invenção, seja para criar percursos, selecionar o que será investigado ou para escolher quais teorias e metodologias levaremos em nossa caminhada na procura dos espaços e tempos que existem dentro dos múltiplos territórios urbanos. Uma procura que, em grande parte, iniciou-se através da pesquisa de mestrado em que problematizei as práticas culturais juvenis de grafiteiros e pichadores de determinadas regiões de Porto Alegre RS entre os anos de 2008 e 2010. A socialização e a demarcação de territórios através das práticas do grafite e da pichação, a constante interação nos espaços urbanos, além de uma crescente institucionalização dessas práticas culturais em escolas, museus e galerias de arte apontaram para uma “pedagogização” do grafite. O estudo demonstrou que grafiteiros e pichadores atuam em redes plurais móveis e dinâmicas, atestando as condições e situações das culturas juvenis em contextos contemporâneos. No entanto, ao concluir tal pesquisa, percebi que a multiplicidade cultural presente nos ambientes urbanos continua oferecendo um vasto campo para estudos. Sendo assim, este trabalho se configura como um primeiro movimento investigativo de meu atual estudo de doutorado que procura lançar um olhar mais apurado em direção as pedagogias que são colocadas em circulação nas metrópoles contemporâneas. De maneira ainda preliminar, estou denominando a temática trabalhada neste momento da pesquisa como pedagogias da noite. Para tanto, o texto está dividido em duas partes distintas:

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PEDAGOGIAS DA NOITE - UM ESTUDO SOBRE A MODELAGEM DA VIDA

URBANA NOTURNA

Eloenes Lima da Silva – UFRGS/PPGEdu

Suave é a noite,

é a noite que eu saio.

Pra conhecer a cidade,

e me perder por aí!

Engenheiros do Hawaii (1986)

Marco Polo descrevia cidades para o imperador Kublai Khan. Inventava cidades

ocultas, cidades-olhos, cidades-memória, cidades-símbolos. Criava cidades invisíveis e

fantásticas na imensa geografia comandada pelo imperador. Poderes, saberes, territórios e

sonhos confundiam-se na narrativa imaginativa do escritor Italo Calvino (1990). Efetuar

pesquisas nas metrópoles contemporâneas também exige certas doses de invenção, seja para

criar percursos, selecionar o que será investigado ou para escolher quais teorias e

metodologias levaremos em nossa caminhada na procura dos espaços e tempos que existem

dentro dos múltiplos territórios urbanos.

Uma procura que, em grande parte, iniciou-se através da pesquisa de mestrado em que

problematizei as práticas culturais juvenis de grafiteiros e pichadores de determinadas regiões

de Porto Alegre – RS entre os anos de 2008 e 2010. A socialização e a demarcação de

territórios através das práticas do grafite e da pichação, a constante interação nos espaços

urbanos, além de uma crescente institucionalização dessas práticas culturais em escolas,

museus e galerias de arte apontaram para uma “pedagogização” do grafite. O estudo

demonstrou que grafiteiros e pichadores atuam em redes plurais móveis e dinâmicas,

atestando as condições e situações das culturas juvenis em contextos contemporâneos. No

entanto, ao concluir tal pesquisa, percebi que a multiplicidade cultural presente nos ambientes

urbanos continua oferecendo um vasto campo para estudos.

Sendo assim, este trabalho se configura como um primeiro movimento investigativo

de meu atual estudo de doutorado que procura lançar um olhar mais apurado em direção as

pedagogias que são colocadas em circulação nas metrópoles contemporâneas. De maneira

ainda preliminar, estou denominando a temática trabalhada neste momento da pesquisa como

pedagogias da noite. Para tanto, o texto está dividido em duas partes distintas:

primeiramente– por se tratar da fase inicial de pesquisa–, apresento um levantamento das

produções acadêmicas que investem em temas como cidades e metrópoles contemporâneas,

urbanismo e modos de vida. Teses e dissertações acadêmicas cujas propostas se colocam de

perspectivas variadas e multidisciplinares para compor investigações, problematizações e

análises que me auxiliam para a definição de contornos em minha pesquisa. Na segunda parte

do texto, apresento excertos dos diários de campo e as escolhas teórico-metodológicas que

embasam as abordagens iniciais nos espaços e tempos noturnos em que se misturam os modos

de vida urbana. Busco com isso, arrolar alguns dados que permitam identificar determinadas

pedagogias que operam e são colocadas em circulação nos espaços noturnos das cidades.

Parte 1: O Estado “transdisciplinar” da arte

A realização de um levantamento inicial para a temática pretendida se revelou tão

amplo quanto às possibilidades de pesquisar nas metrópoles. Romanowski e Ens (2006, p.

39), ao discutirem os procedimentos e limites de estudos denominados “estados da arte”, nos

auxiliam e indicam alguns caminhos metodológicos para o mapeamento de um determinado

tema. Para as autoras (id. Ibidem), a realização do “estado da arte” procura apontar as

restrições da pesquisa, bem como “as suas lacunas de disseminação, identificar experiências

inovadoras investigadas que apontem alternativas de solução para os problemas da prática e

reconhecer as contribuições da pesquisa na constituição de propostas na área focalizada”. Um

mapeamento preliminar composto de teses de doutorado, dissertações de mestrado que além

de apresentar conceitos, autores e demonstrar outras possibilidades analíticas, discutem

teorias e apontam caminhos metodológicos que auxiliam na definição dos contornos de minha

pesquisa.

Assim, a partir da definição de palavras-chave como cidades, metrópoles, noite,

modos de vida e pedagogias, dei inicio às buscas nos portal da CAPES e nas bibliotecas

virtuais de universidades como UFRGS, USP e UERJ. Destacaram-se produções nas áreas da

educação, da comunicação, da geografia, da história, da psicologia, da arquitetura e do

urbanismo. No entanto, se levarmos em conta que nas teses e dissertações selecionadas,

encontramos referências, autores e a utilização teórica e metodológica dos campos das artes,

da sociologia, da antropologia e da filosofia, observa-se que nas diversas áreas do

conhecimento a temática urbana e seus modos de vida tem se tornado um interesse de

pesquisa.

No campo da educação, a dissertação de mestrado Educação do Lugar: Saúde Mental

e Pedagogias da Cidade articula a educação como um desafio para abalar a “zona de

fronteira” entre o serviço de atenção psicossocial, as ruas, a cultura da cidade, as zonas de

resistir e criar nas redes sociais contemporâneas (SILVA, 2008, p.01). Para a autora (id.), o

encontro da saúde com a educação, em uma pedagogia da cidade, é uma aposta na construção

de aprendizagens por encontro, exposições e interações para a emergência de laços sociais em

uma educação do lugar que não se impõe, já que emerge das forças de resistir e criar. Outro

trabalho que possui como temática cidade e educabilidade e como objeto de pesquisa

pedagogias da cidade é a tese de doutorado em educação Cidade, sociabilidades e

educabilidades (Príncipe, Rio Grande do Norte – século XIX). Nela, Olivia Morais de

Medeiros Neta (2011) problematiza como a relação entre cidade e sociabilidade constitui

educabilidades a partir de espaços considerados pedagógicos na cidade de Príncipe do século

XIX, uma vez que o modus vivendi do habitante da urbe, composto de práticas sociais,

valores da vida material e simbólica é enredado por sociabilidades conferindo à cidade uma

instância pedagógica. Um trabalho que se inscreve na dimensão da história cultural enquanto

estudo dos processos de produção de sentido em um tempo e espaço próprios.

Destaco duas produções acadêmicas, que mesmo de diferentes áreas do conhecimento,

se ocupam da construção de sentidos e a relação dos habitantes com e nos espaços da cidade.

Na área literária, a dissertação Andar nas ruas do Rio de Janeiro, a Arte de Rubem Fonseca

analisa as formas que o espaço urbano de uma metrópole assume quando observado pela

perspectiva de seus usuários. Neste trabalho, a autora estabelece uma relação com espaço

urbano representado em alguns contos de Rubem Fonseca, como em “A arte de andar nas ruas

do Rio de Janeiro”. Na tese de doutorado em Ciências da Comunicação A praça dos sentidos:

comunicação, imaginário social e espaço público, Daniela Palma (2010) observa como se

constroem sentidos sociais de um espaço público, no caso a Praça Roosevelt, localizada no

centro da cidade de São Paulo.

Seleciono também, tanto pelo seu método ensaístico de escrita, quanto pela forma que

foi organizada (a partir de cadernos-verbetes que podem ser lidos e consultados de modo não

linear), a tese de Aline Couri Fabião (2011) intitulada Incons[ciências] do olhar: por outras

cartografias do espaço. Neste trabalho, vinculado à arquitetura e urbanismo, a autora explora

as relações entre as práticas de “diagnóstico urbano” e suas “representações gráficas e

visuais”. “Diagnósticos urbanos” são instrumentos do urbanismo pouco questionáveis

enquanto exercícios de descrição, montagem e apresentação das cidades, uma vez que na

diversidade material e de formas sociais e culturais que constituem as cidades, “diagnosticar”

implica interpretar e discriminar o que se considera como objeto do “olhar”, de um “juízo” e

de “projetos de mudança.” (FABIÃO, 2011). Insiste-se assim, para que as práticas

articuladoras de representações e de sentidos, próprias de um discurso contemporâneo sobre o

direito à cidade, envolvam todo aquele que vive, experimenta e constrói, cotidianamente, o

espaço urbano.

A dissertação Práticas sensíveis sobre o espaço comum, de Marcelo Reis, onde o

autor parte das práticas (sensíveis) para pensar o papel do arquiteto e do designer enquanto

propositor de uma cultura urbana, sem ser mero espectador e reprodutor de correntes e

tendências da cultura. Fotografias digitais, vídeos, músicas e registros sonoros práticos são

linguagens eletrônicas utilizadas para perceber, intervir, experimentar e impulsionar a

sensibilidade em espaços urbanos. A tese de doutorado em Teoria e História da Arquitetura e

Urbanismo A Cidade sob a Poética do Andar: as Deambulações de Hélio Oiticica investiga

as proximidades entre as proposições de Helio Oiticica e os conceitos como “construção de

situação”, “deriva”, e “urbanismo unitário” desenvolvidos pelo movimento Internacional

Situacionista (1957-1972). A partir da reconstituição das caminhadas urbanas de Hélio

Oiticica, a tese procura relacionar as ações que refletem as críticas do artista à cidade e aos

seus modos de vida, com a crítica social e urbana desenvolvida pelos situacionistas. Para

tanto, foram consultados arquivos, manuscritos, cartas, entrevistas e demais documentos do

artista e os boletins da Internacional Situacionista. Tais trabalhos, ligados ao campo da

arquitetura, além de destacarem o uso do tema do ambiente urbano como cenário de releitura

crítica do espaço e do tempo na sociedade urbana, servem de inspiração teórico-metodológica,

já que possibilitam analisar e reconstituir de distintos pontos de vista os diferentes modos de

estabelecer relações com as metrópoles contemporâneas.

Arte, corpo e cartografias do desejo na cidade, são temas destacados na dissertação de

mestrado em Psicologia Institucional Entre corpos e cidades: pensamentos e interferências

sobre a construção de cidades e modos de vida. Analisando a cidade como corpo social,

projetado e em construção, este trabalho – que surge quase como um desabado de seu autor

arquiteto e urbanista ao perceber que tais campos não necessitam estar desvinculados da

política e da filosofia – parte de dois pontos de ação/reflexão: primeiramente, investiga como

o movimento de institucionalização age sobre o saberes e o poderes do corpo-cidade, e em

segundo lugar, busca entender como as potências subjetivantes presentes nos objetos

arquitetônicos e urbanístico participam da fabricação de subjetividade e da experiência

urbana. A potência ética-estética-política, presente no trabalho, busca contribuir para a

produção de subjetividades comprometida com a construção coletiva e comum.

A noite e seus espaços de lazer são destacados na dissertação de mestrado Do Bom

Fim à Cidade Baixa: O uso dos Espaços de Lazer Noturno (1964-2006), de Vanessi

Reis(2013), que reconstituiu os espaços de lazer noturnos dos Bairros Cidade Baixa e Bom

Fim na cidade de Porto Alegre – RS. A partir de fontes históricas como entrevistas,

reportagens e depoimentos de pessoas que vivenciaram os acontecimentos na vida noturna

daqueles locais, a autora mostra a migração do público de um bairro para outro. Alegre – RS.

Entender o fenômeno da iluminação urbana em sua relação com o espaço físico, dos

comportamentos humanos e seus significados, é a proposta da dissertação de mestrado

Cenários Noturnos: sobre a espacialidade e os significados da iluminação urbana na área

central da cidade do Rio de Janeiro. A partir dos conhecimentos advindos da geografia, da

arquitetura e da teoria teatral, o trabalho propõe uma leitura da paisagem como cenário para a

classificação de cenas noturnas. Tais produções, ao demonstrarem a importância dos espaços

de lazer, da vivência noturna e da organização espacial (no caso da iluminação, que vai

instaurar outros significados para a noite da cidade), permitem vincular os valores políticos,

sociais e culturais de uma sociedade com a formatação e condução de sujeitos em

determinadas épocas

A partir da seleção dos trabalhos, foi possível observar produções oriundas de distintas

áreas do conhecimento científico. Este primeiro mapeamento revelou algumas questões

importantes para auxiliar na definição dos contornos de minha pesquisa. São eles: a percepção

de que a educação nas metrópoles é feita de encontros em espaços públicos; a relação entre

cidade e sociabilidade para a produção de educabilidade; relevância das práticas sociais e das

vivências urbanas; preponderância da tecnologia multimidiática nos contextos pesquisados;

valorização da arquitetura, da memória e da história e a importância das narrativas e discursos

para os constantes processos de significação e ressignificação nos espaços e tempos urbanos.

Entendo as cidades e a noite urbana como ambientes contemporâneos por onde

circulam as pedagogias do nosso tempo, na sessão seguinte, procuro esboçar quais

ferramentas teóricas e metodológicas permitem aproximações com a temática proposta e

possibilitam abordagens aos espaços e tempos de uma metrópole. Trata-se de uma

investigação inicial aos diferentes ambientes que compõe a noite urbana da cidade de Porto

Alegre – RS, mas, desde já permitem observações, registros, na busca das possíveis relações

entre as pedagogias e os distintos modos de vida que habitam essa metrópole contemporânea.

Parte 2: Quando estranhos se encontram: em busca das pedagogias da noite.

Chego ao local do show por volta das dez horas da noite de sábado. Filas de

carros, de flanelinhas e de vendedores ambulantes se aglomeram pelas

redondezas do local que já foi uma fábrica e agora é um espaço para shows

patrocinado por uma famosa marca de refrigerantes. A apresentação da noite:

três bandas que investem em um estilo de rock “pesado”, tipo heavymetal e

punkhardcore. Entro no local. Uma imensidão de pessoas, vestidas em sua grande

maioria de roupas pretas, toma conta do espaço. O som produzido pelos músicos é

ensurdecedor, mesmo assim, muitos sobem no palco e se jogam de volta para a

platéia. Durante a apresentação da segunda banda é o próprio guitarrista e

vocalista que se junta ao seu público. Observo a reação de alguns que perambulam

pelo local, bebem cerveja, conversam. Embora, em sua maioria, desconhecidos

entre si, as sensações proporcionadas e presentes naquele ambiente parece

promover uma interessante união. Todos separados, mas ao mesmo tempo juntos,

numa estranha e intensa comunhão coletiva. Ao final do evento, saem em grupos

ou individualmente, seguindo tão dispersos quanto chegaram àquele local.

Inclusive eu!

(Excerto do diário de campo, novembro de 2014)

No excerto acima, que compõe meu diário de campo, procuro destacar abordagens e

observações em um dos múltiplos cenários noturnos presentes na noite da cidade de Porto

Alegre - RS. Como afirmam Almeida e Tracy (2003), ao ser entendida como uma experiência

espacial, a noite das metrópoles transformou-se em circuito para pesquisas e uma categoria

fundamental para estudos. Assim, me coloco nestes cenários como um pesquisador-

observador e neles transito com um olhar acurado para observar ambientes, sujeitos, registrar

locais e situações onde as urbanidades noturnas acontecem.

Ao adentrar na metrópole como um pesquisador, é preciso estar atento em suas

transformações e perceber seus ritmos. O próprio trabalho de campo se configura nômade,

transitando entre visualizações dos espaços urbanos, registros de pesquisa, diálogo com os

habitantes e, articulado com tudo isso, o uso de teorias e metodologias que nos permitam

apreender e descrever aspectos das dinâmicas que acontecem na metrópole. É preciso levar

em conta que o próprio pesquisador já se encontra muitas vezes inserido em campo, fazendo

parte do cenário, interagindo com os sujeitos pesquisados.

Nesse sentido, opto por trabalhar com, a metodologia etnográfica pós-moderna, pois

segundo Gottschalk (1994, p. 3), ela difere de uma etnografia ‘tradicional’ por exigir que seu

autor permaneça constante e criticamente atento às subjetividades e aos “[...] movimentos

retóricos e aos problemas da voz, poder, política textual, limites à autoridade, asserções de

verdade, desejos inconscientes e assim por diante”. Para Gottschalk (1994), esta bricolagem

crítica e autoreflexiva é pertinente, pois a criatividade, a flexibilidade e a adaptação ética ao

campo deveriam contar mais do que a submissão a regras produzidas alhures por outra pessoa,

em outro tempo, e com propósitos diferentes. A possibilidade do pesquisador de experimentar

a sensação de ser “menos estrangeiro”, misturar-se com hábitos, valores, crenças dos grupos

ou indivíduos de sua pesquisa pode evidenciar “[...] uma compreensão através do

reconhecimento, identificação, experiências pessoais, emoção e formas de comunicação que

comprometam o leitor com planos outros que não unicamente o racional”. (GOTTSCHALK

1994, p. 9).

Nas metrópoles, desde a própria arquitetura, passando pelos lugares públicos e

privados até a dinâmica social que institui os ritmos, o habitante urbano é educado a cada

passo ou movimento que executa na cidade. Nesse ponto, é fundamental destacar os

movimentos e transformações dos processos educativos na contemporaneidade, e

especificamente da pedagogia, que atinge todos os âmbitos da sociedade, não se restringindo

apenas aos espaços escolares. Costa e Camozzato (2013) entendem que as múltiplas

condições culturais contemporâneas acionam um conjunto de forças para intensificar e

refinar, por via das pedagogias, as aprendizagens necessárias para nos tornarmos sujeitos

desse tempo. Na modernidade líquida, as pedagogias encontram uma necessidade constante

de se transformar e de se reinventar para acompanhar as verdades. Assim, os espaços e

tempos em que as pedagogias atuam se multiplicam e se pluralizam (id., ibid.).

Para Margulis (2005, p. 12), assim como a geografia urbana se descentralizou, também

a cultura da noite se transformou num cenário de intensa atividade. Nos espaços e tempos da

noite “a cidade renasce na madrugada e se povoa [principalmente] de jovens de ambos os

sexos. Durante a noite muitos territórios urbanos carregam um significado diferente e também

complexos itinerários se cruzam”. Para o mesmo autor (2005), uma das oposições que permite

aproximar a significação do espaço urbano é a de dia-noite, a oposição entre luz e escuridão,

ou o tempo processado socialmente que regula a vida urbana, os horários de trabalho e

descanso. Segundo o autor (id. Ibid.), “as atividades da população estão regidas por marcos

institucionais que estabelecem os usos possíveis dos lugares em distintas horas, a

institucionalização espacial e temporal das praticas sociais”.

As horas, uma invenção da modernidade industrial para regular o tempo, é utilizada

como amparo e refúgio pela urbanidade noturna. As obscuridades ressurgem a cada final de

dia, de expediente de trabalho. Enquanto alguns se dirigem para suas residências, outros

ocupam os espaços noturnos. Ao refugiar-se na noite, o sujeito possui a ilusão de resignificar

a cidade e o tempo, de não mais estar colonizado pelo poderes constituídos, nem por eles

controlado (MARGULIS, 2005). No entanto, se outra cidade se apresenta para os habitantes

noturnos, também outras relações de poder se estabelecem e outros saberes são colocados em

ação, emergindo assim outras práticas sociais.

Isso nos permite refletir sobre os “processos de educação dos corpos e das

subjetividades humanas que se passam fora do recinto das escolas”, como aponta

Albuquerque Junior (2010, p.01). Ao ampliar o leque para as possibilidades de pensar outras

formas de educação e pedagogias que são engendradas na contemporaneidade, o autor (id.,

ibid.) adverte que a transformação da pedagogia em curso escolar

dificulta a percepção que vivemos em sociedades e culturas em que

uma multiplicidade de pedagogias opera no cotidiano, visando

elaborar subjetividades, produzir identidades, adestrar e dirigir corpos

e gestos, interditar, permitir e incitar ou ensinar hábitos, costumes e

habilidades, traçar interditos, marcar diferenças entre o admitido e o

excluído, valorar diferencialmente e hierarquicamente gostos,

preferências, opções, pertencimentos, etc.

A vida urbana contemporânea pode ser observada a partir de muitas perspectivas. E, se

os processos pedagógicos operam em diversos âmbitos socioculturais, acredito que as lentes

que estou colocando para analisar práticas sociais contemporâneas possibilitam perceber que

os modos de viver e de se constituir como sujeitos nas cidades estão engendrados com as

pedagogias encontradas nos ambientes urbanos.

Sabemos, a partir de Hall (1997), que a cultura se tornou constitutiva em todos os

aspectos da vida social do nosso tempo. Nesse sentido, para Camozzato (2014), as

transformações culturais fazem com que a pedagogia entre num processo constante de

atualização para conectar-se com exigências e as necessidades contemporâneas. E, nesse

entendimento, podemos salientar uma multiplicação dos lugares em que se ancoram e operam

as pedagogias. “Multiplicação dos modos de olhar e ser olhado, e falar e ser falado [...],

multiplicação mesma das diferenças” (CAMOZZATO, 2014, p. 574).

A sensação de não ser controlado, de afastar-se dos poderes instituídos, parece liberar

o sujeito para práticas sociais no espaço-tempo noturno. No entanto, a noite pode estar eivada

de pedagogias que, de uma forma ou de outra, conduzem, produzem e enleiam os seus

habitantes. Como argumenta Camozzato (2013), se os ambientes contemporâneos estão em

constante transformação, as pedagogias deste tempo presente operam e produzem em muitos

lugares. Argumenta a autora (id., p. 584):

a pedagogia parece-me ser o ponto de articulação importante quando

se trata de produzir e incitar uma injunção entre os valores e

significados expressos e colocados como mais fortes num tempo-

espaço preciso – evidenciando embates pela significação, por ser

próprio de uma vontade de pedagogia querer estruturar o campo de

ação dos outros nesse mesmo movimento [...].

Colocado em posição direta com os saberes, os valores, os significados e as verdades

que determinam suas práticas sociais, o sujeito se constitui através desses processos de

subjetivação constantes no espaço e no tempo. A pedagogia, ou pedagogia(s), presentes na

noite, encontram condições de operar nos sujeitos, de conduzi-los, de moldá-los. No entanto,

é importante destacar a partir de Larrosa (1994, p. 36), que nessas práticas pedagógicas “[...] o

mais importante é que não se aprenda algo ‘exterior’, um corpo de conhecimentos, mas que se

elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do ‘educando’ consigo mesmo.

Diante do argumento de Larrosa (1994, p. 36), podemos inferir que as vivências, as

experiências e as múltiplas formas de interações adquiridas em meio aos ambientes noturnos e

urbanos são processos pedagógicos. Se considerarmos que práticas pedagógicas são “[...]

aquelas nas quais se produz ou se transforma a experiência que as pessoas têm de si mesmas”

( id., ibid.), podemos atribuir aos espaços e tempos noturnos uma constante elaboração das

relações do sujeito para consigo mesmo.

Nesse sentido, as vestimentas, os locais noturnos com sua arquitetura e ambientação,

os gestos corporais, a música, possibilitam observar e registrar que na noite urbana se

modificam e se transformam as relações dos sujeitos para consigo e para os outros. Estar no

espaço-tempo da noite, além de conectar-se com práticas sociais de toda ordem é provocar

intensas sensações em que corpo e mente estão a todo tempo sendo conduzidos, moldados,

resignificados. Na noite, o sujeito se faz em contato com o outro, mede sua aparência, está

constantemente, para usar um termo contemporâneo, conectado com o outro. À noite, os

sujeitos estabelecem modos de viver distintos àqueles do dia. Na cultura da noite urbana e

contemporânea, os sujeitos são conduzidos para a execução de determinadas ações e atitudes

nos seus espaços. Processos pedagógicos que, através dessas relações estabelecidas, governam

vontades, regulam práticas e comportamentos e produzem verdades de ser e estar na noite. No

espaço-tempo noturno a obscuridade é um disfarce ambivalente, ao mesmo tempo em que

possibilita esconderijos permite-se reveladora de desejos. Diante de tudo isso, fica a questão:

se o sujeito se constitui através do outro, os estranhos que se cruzam na noite das cidades se

fazem sujeitos?

Considerações finais

Por se tratar de uma pesquisa em estágio inicial, como foi possível observar, selecionei

na primeira seção deste texto algumas produções acadêmicas que se ocuparam de temáticas

semelhantes. Estudos de diferentes áreas do conhecimento que ao proporcionar reflexões,

inspirações e descobertas, possibilitam direcionamentos no caminho da pesquisa.

Posteriormente, a partir de abordagens iniciais em um dos locais onde as praticas sociais

noturnas e urbana acontecem, apontei os possíveis caminhos metodológicos da pesquisa e um

esboço analítico em que procurei demonstrar como estou entendo e operando com o tema

pedagogias da noite. Um caminho inicial que, se por um lado parece possuir uma perspectiva

ampla em se tratando de metrópoles contemporâneas, por outro, ao abordar praticas sociais de

determinados modos de vida urbana e noturna, segue afinando seus contornos de pesquisa.

Sendo assim, foi possível perceber que as pedagogias contemporâneas podem ser colocadas

em ação a partir de determinadas práticas sociais, modos de vida e condutas individuais ou

coletivas encontradas em espaços e tempos da noite da metrópole porto-alegrense. .

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