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Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana 1ª Edição Belo Horizonte, 2012 Organização: Adriano Stanley Rocha Souza

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Page 1: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás

Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional

da Dignidade da Pessoa Humana

1ª Edição

Belo Horizonte, 2012

Organização: Adriano Stanley Rocha Souza

Page 2: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de

19 de fevereiro de 1998.

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Organização Adriano Stanley Rocha Souza

Design Gráfi co e Diagramação Equipe de Design da PUC Minas Virtual

ISBN 978-85-61045-08-1

2012Impresso no Brasil

Page 3: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás

Sumário

ALGUNS ASPECTOS DA FUNÇÃO SOCIAL

DA PROPRIEDADE NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Eleimar da Rocha Brandão ........................................................................... 08

1. Introdução .............................................................................. 08

2. Direito de propriedade – Histórico ................................................ 08

3. O advento da função social da propriedade em nosso direito ............... 09

4. A função social da propriedade no Código Civil Brasileiro .................... 11

5. A função social da posse .............................................................. 13

6. Conclusão ............................................................................... 14

Referências ................................................................................. 14

POR UMA ADEQUADA INTERPRETAÇÃO DO PRINCÍPIO

DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: LINEAMENTOS

DE UMA TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO

Cláudia Fialho ...................................................................................... 18

1. Introdução .............................................................................. 18

2. Propriedade privada: breve incursão histórica ................................. 19

3. Princípios jurídicos norteadores ................................................... 23

4. Autonomia privada e autonomia pública na Teoria Discursiva do Direito . 25

5. Função social da propriedade ....................................................... 26

6. Considerações finais .................................................................. 30

Referências ................................................................................. 31

Page 4: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A PROPRIEDADE PRIVADA

Hugo Rios Bretas ................................................................................... 36

1. Introdução .............................................................................. 36

2. Propriedade privada .................................................................. 37

3. Dignidade da pessoa humana........................................................ 41

4. Pós-modernidade como elemento justifi cadorda interface entre a dignidade da pessoa humananos horizontes do Direito Civil ..................................................... 43

5. Conclusão ............................................................................... 45

Referências ................................................................................. 45

A BUSCA PELO DIREITO À MORADIA NAS DIVERSAS MODALIDADES DE USUCAPIÃO

Náglia Naiara Sales ................................................................................ 50

1. Introdução .............................................................................. 50

2. Direito à moradia ...................................................................... 51

3. A usucapião ............................................................................. 54

4. Conclusão ............................................................................... 59

Referências ................................................................................. 60

O DIREITO REAL DE SUPERFÍCIE, REGULARIZAÇÃO

FUNDIÁRIA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

Wânia Triginelli .................................................................................... 64

1. O Direito Real de Superfície ......................................................... 64

2. Da Regularização Fundiária .......................................................... 68

Referências ................................................................................. 72

Page 5: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás

AS INCONGRUÊNCIAS DA LEI 11.481/07 – UM ESTUDO ACERCA

DA CONCESSÃO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA COMO UM

DIREITO REAL QUE PODE SER DADO EM GARANTIA

Douglas Eduardo Figueiredo Souza ............................................................... 74

1. Introdução .............................................................................. 74

2. Concessão especial para fins de moradia ......................................... 75

3. Direitos reais ........................................................................... 79

4. Conclusão ............................................................................... 83

Referências ................................................................................. 84

A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS E A FUNÇÃO

SOCIAL DA PROPRIEDADE NOS CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS

Ana Alvarenga Moreira Magalhães ............................................................... 88

1. Introdução .............................................................................. 88

2. Os condomínios edilícios– entre o Código Civil e a Lei Federal nº 4.591/1964 .......................... 89

3. A função social dos condomínios edilícios e o Direito Urbanístico .......... 91

4. Função social da propriedade nos condomínios edilícios– relação interna ...................................................................... 95

5. Conclusão ............................................................................... 99

Referências ................................................................................. 100

UMA ANÁLISE ACERCA DO INSTITUTO PREVISTO NO

ART. 1.228 DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002

Caroline Amorim Costa ............................................................................ 104

1. Introdução .............................................................................. 104

2. Breves considerações acerca da evolução históricado Direito de Propriedade ........................................................... 105

3. Dos limites ao Direito Real de Propriedade– dissecando o art. 1.228, do CCB/02 .............................................. 106

4. Considerações finais .................................................................. 113

Referências ................................................................................. 114

Page 6: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás
Page 7: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás

Alguns aspectos da função social da propriedade no Código Civil de 2002

Eleimar da Rocha Brandão

Page 8: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás

8 PUC Minas Virtual

Alguns aspectos da função social da propriedadeno Código Civil de 2002

1. Introdução

O presente trabalho objetiva desenvolver um entendimento acerca do Princípio da Função Social da Propriedade, hoje definitivamente introduzido em nosso sistema de Direito Civil. A proprie-dade constitui, ao lado das instituições do contrato e da família, um dos três vértices do Direito Civil. Entretanto, em nossa codificação anterior, o que predominava era o caráter patrimonialista e consequen-temente individualista.A função social da propriedade é conceito que foi aos poucos se solidificando em nosso ordenamento jurídico, fortalecido ao longo dos tempos e consolidado através do advento da Constituição Federal de 1988, que o fixou como direito e garantia fundamental, objetivando assegurar o uso da coisa se conformando com os ditames esperados pelo bem comum. Nas palavras de Cortiano Júnior (2001)2,

Desta sorte, o direito de propriedade, “ao invés de permanecer simplesmente um direito civil, entrou, cada vez mais, nas dependências do direito público”. Esta publicização se acentua, na medida em que o progresso, gerando o desenvolvimento econômico, impõe necessariamente incômodos que conduzem o Estado, em nome do interesse público, a reduzir os direitos do proprietário. Nesta conformidade, subsiste uma propriedade, que teoricamente ainda é uma propriedade privada, mas ombreando o direito público, simultaneamente pela forma e pelas suas prerrogativas.

Entretanto, ainda há divergências doutrinárias no que se refere ao conceito de propriedade e sua função social.

Assim, o que se desenvolverá neste trabalho serão os aspectos acerca da função social da propriedade no Código Civil de 2002, e a importância que hoje adquiriu em nosso direito.

2. Direito de propriedade – Histórico

Para tanto, é necessário informar que o instituto da propriedade tem longa base histórica, mais propria-mente desde os tempos romanos. E nessa época em especial, não havia uma definição sistemática, Tomando como marco inicial o período romano, a propriedade tinha caráter de absoluteidade, no sentido de não comportar limites ou restrições, o qual conferia ao seu titular um poder de usar, gozar e dispor da coisa.

1 Especialista em Direito Civil pelo IEC-PUC Minas. Advogado.2 CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.

Eleimar da Rocha Brandão1

Page 9: Os Direitos Reais como Instrumento de ... - PUC Goiás

Três eram os poderes conferidos através da propriedade: usus (o poder de utilizar-se da coisa); o fructus (o poder de perceber frutos ou produtos do bem); e o abusus (o poder de consumir ou alienar a coisa).

Após o encerramento do Período Romano, conferiu-se a propriedade uma característica de prestígio perante a sociedade e referidos proprietários assim se tornaram donos absolutos de suas terras, podendo fazer com elas o que bem lhes aprouvessem, o que invariavelmente fazia com que estes as explorassem na melhor maneira que lhes convia.

Exatamente por esse caráter de liberalidade, se favorecia a absoluteidade da propriedade para os proprie-tários, e por conseqüência se impedia a ascensão social daqueles que não possuíam propriedades, o que demonstra indubitavelmente que historicamente a impossibilidade de adquirir propriedade significa o impedimento de perspectiva de uma vida melhor.

O poder político se exteriorizava através de extensões territoriais independentes, no caso os feudos, e através dos feudos, se exercia funções administrativas e judiciárias, dominando aqueles que não tinham referidos poderes, havendo uma grande relação entre contratos, pactos e compromissos. Os senhores de terras eram dotados de poder coercitivo, exercendo funções públicas, não havendo a idéia do estado soberano.

A propriedade tinha conceito de ser intocável, representando o poder, e com isso os senhores feudais ti-nham posição de destaque na sociedade, diante do exercício de suas propriedades. Ou seja, a propriedade deveria ser exclusiva, não admitindo transferência.

É também no final do Período Feudal que se propiciaram as bases materiais para a construção do Estado Liberal. O Poder da monarquia, à época, tinha alto nível de superioridade, e buscando à época a unificação do poder, trouxe com isso a existência de um novo estamento social, no caso o Município. No Estado Liberal, foram alicerçadas as bases teóricas da propriedade e da posse, que veio a perdurar até meados do século XX.

3. O advento da função social da propriedade em nosso direito

O termo “função social” e sua introdução e aquisição de importância no ordenamento jurídico brasileiro é algo que pode ser considerado como recente, mas que sem dúvida, teve a contribuição da evolução histórica ocorrida em outros ordenamentos.

É notório que o direito deve acompanhar as evoluções sociais, e assim a função social da propriedade hoje não se trata de mero princípio constitucional e civil.

A primeira ocorrência conhecida da função social em um ordenamento jurídico advém da Constituição do México de 1917, ao dispor em seu art. 27 que "A Nação terá, a todo tempo, o direito de impor à pro-priedade privada as determinações ditadas pelo interesse público [...]".

Já a segunda ocorrência se origina da sempre mencionada Constituição da Alemanha de 1919 - Cons-tituição de Weimar, que dispôs, em seu art. 153, que "A propriedade obriga e seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social".

Já no Brasil, é indispensável a tratativa da introdução da função social conforme se iniciou, ou seja, através de nossas Constituições.

No Brasil, tem-se a Constituição de 1934 como a primeira idéia incipiente de função social, em seu art. 113, XVII, ao dispor que “ É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse individual ou coletivo, na forma que a lei determinar.”

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10 PUC Minas Virtual

Em seguida, na Constituição de 1937, se assegurou “o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício”. Vê-se aqui que não se tratou de conferir uma função social da propriedade, estabelecendo uma situação mais restrita que a constituição anterior.

Na Constituição de 1946, retoma-se uma idéia de função social, ainda que não nesses termos, ao dis-por no art. 147 que “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”

O Estatuto da Terra foi a primeira legislação de nosso país a inserir a expressão “função social da pro-priedade”, ao determinar em seu art. 2° 1º, os requisitos para que a propriedade desempenhasse integral-mente essa função e que deveriam atuar simultaneamente, que são os seguintes; a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; e d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.

A inserção da expressão “função social da propriedade” apareceu pela primeira vez em nossa Constituição no ano de 1967, no art. 157, bem como na Emenda n° 1, de 1969, no art. 160, III.

E o advento da Constituição de 1988 consagrou definitivamente a expressão, que hoje é elevada a con-dição de princípio, presente em vários dispositivos, tais como no art. 5°, XXIII, na situação de garantia fundamental; na situação de cláusula pétrea, conforme o parágrafo 4° do art. 60; aparece como princípio de ordem econômica e financeira, conforme art. 170, III; e por fim, no parágrafo 2° do art. 182, como política urbana, e no parágrafo único do art. 185 e art. 186, como política agrária.

Importante ressaltar que nos momentos legislativos anteriores, não existia a diferenciação entre a impor-tância da função social no meio urbano e no meio agrário., o que foi afastado de vez com o advento da Constituição: a propriedade deve ser principalmente funcionalizada, não importando o meio. Em seu último trabalho, Pereira (2001)3, afirmou:

Resta uma palavra sobre a “socialização” da propriedade, que estaria incrustada na concepção mais ampla de socialização do direito. A expressão, para designar o sentido de proteção do mais fraco, ou para a realização da justiça comutativa; ou para a redução dos poderes do proprietário, em benefício do maior numerso tem sido substituída por “paternalismo” (Colin et Capitant), ou “proletarização” (Georges Ripert), ou como “humanização da propriedade” (Orlando Gomes). Em verdade, não tem cabida a sua pretensa “socialização”. Como escrevi no mencionado estudo da “Sociologia da Propriedade”, para se determinar se ocorreu mesmo o fenômeno jurídico-político da socialização cumpre investigar se a propriedade mudou de substância, e é reconhecida apenas sobre bens de utilidade pessoal; ou se foi estatizada a referente aos bens de produção.

O que é certo, absolutamente certo é que a propriedade cada vez mais perde o caráter excessivamente individualista que raiava pelo absoluto. Cada vez mais se acentuará a sua função social, marcando a ten-dência crescente de subordinar o seu uso a parâmetros condizentes com o respeito aos direitos alheios e às limitações em benefício da coletividade.

Apresentados os momentos históricos em nossa legislação e na legislação estrangeira, passa-se ao Código Civil.

3 PEREIRA, Cáio Mário da Silva. Direito Civil: alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 78-79.

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11Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

4. A função social da propriedade no Código Civil Brasileiro

Inicialmente, importante ressaltar que a importância e a inserção da função social da propriedade como princípio em nossa codificação civil não existia anteriormente, o que só ocorreu no diploma de 2002.

O Código Civil de 1916, devido ao caráter patrimonialista e ao momento social e legislativo de outros tempos, não mencionava o princípio em apreço, determinando e assegurando ao proprietário um caráter eminentemente excluisivo e absoluto ao proprietário, ao assegurar a este o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.

O Código Civil de 2002 afastou o caráter exclusivista do diploma anterior revogado para atentar-se a conjugação da importância social e da importância econômica para consolidação do princípio, e dessa forma deve-se entender que não basta a propriedade existir, deve ser funcionalizada, ou seja, ser dotada de aproveitamento racional e adequado, deixando de ser mera faculdade dos proprietários o efetivo aproveitamento para se tornar uma obrigação, como diz Souza (2009)4:

O Código alterou profundamente a estrutura desse direito. Abandonamos um direito de propriedade absoluto, em que o seu titular reinava soberano sobre a sociedade, já que a lei lhe assegurava o direito de usar, gozar, dispor, sem qualquer tipo de limitações, e chegamos a uma propriedade privada cujo uso é facultado ao seu titular, desde que seja exercida em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que não prejudique a coletividade, observando a preservação do meio ambiente, do patrimônio histórico e artístico.

Além disso, ao contrário da segurança que o antigo ordenamento civil dedicava à proteção do direito de propriedade em benefício de seu titular, o novo ordenamento destaca que o proprietário pode ser privado sim de seu exercício, em casos de necessidade pública.

Definitivamente, essa propriedade não é mais aquela propriedade burguesa que dominou grande parte do século XX. Poderíamos chamar essa propriedade de “propriedade-função”, haja vista que a nova codificação não garante mais a propriedade por si mesma. O direito de propriedade é protegido, desde que o seu titular a utilize em prol do desenvolvimento de toda a sociedade.

Assim se posiciona Viana (2003)5:

Não temos um conceito definitivo de função social, porque ele evolui, e está intimamente vinculado ao critério econômico. O que se pretende é evitar que a propriedade tenha uma utilização que se volte apenas ao egoísmo do proprietário, e prejudique sua destinação econômica e social. Se o proprietário rural deixa sua terra improdutiva, ou desnatura o seu uso, levando-o a improdutividade, temos um uso anti-social, na mesma medida em que o titular de domínio de imóvel urbano fere a função social quando não utiliza o bem.

Essa foi a intenção do art. 1.288, ao prever a função social da propriedade. O § 1.º de referido artigo estabelece que "O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas."

4 SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito das Coisas. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 69.

5 VIANA, Marco Aurélio da Silva. Comentários ao Novo Código Civil, volume XVI: dos direitos reais. Coordenador:

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Da mesma maneira, o caráter obrigacional ao proprietário é previsto no 2.º: "São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem."

Está clara a inserção da propriedade nas limitações exigidas pelo bem da sociedade, o que não deixa de representar uma manifestação de socialidade no Direito Civil, dando ao não proprietário a possibilidade de exercer um direito à moradia, o que sem dúvida é valorização da pessoa, ou nas palavras de Cortiano Júnior (2002)6,

O Direito volta-se para recuperar aos excluídos o sentido do viver social, e tem relevância a função que desempenha no mundo jurídico e econômico aquele instituto – a propriedade – que era a cidadela do direito privado liberal. Se antes a função social da propriedade era exercida à medida que refletia a autonomia e liberdade humanas, impõe-se agora compreender sua função em face dos desprivilegiados, dos não proprietários; daqueles cuja autonomia e liberdade inexistiam por não serem proprietários.

Ou seja, reprime-se a utilização da propriedade com finalidade egoística, o que prejudica interesses da coletividade, direcionando-se para o bem comum.

A expressão “função social”, embora de conceituação vaga, tem definida seu contorno ao se tratar de questões relativas a direito das coisas. Isso se demonstra através do fato que se tem reconhecido que os poderes do proprietário não podem ser utilizados para satisfação única e exclusiva de seu interesse.

Isso faz com que a propriedade tenha caráter dinâmico, e assim o exercício do domínio é constante, atra-vés do estabelecimento de deveres ao proprietário, como assim manifestam Farias e Rosenvald (2008)7:

A locução função social traduz o comportamento regular do proprietário, exigindo que ele atue numa dimensão na qual realize interesses sociais, sem a eliminação do direito privado do bem que lhe asse-gure as faculdades de uso, gozo e disposição. Vale dizer, a propriedade mantém-se privada e livremente transmissível, porém detendo finalidade que se concilie com as metas do organismo social.

Busca-se paralisar o egoísmo do proprietário, com prevalência de valores ligados à solidariedade social, a fim de que o exercício dos poderes dominiais seja guiado por uma conduta ética, pautada no respeito aos interesses metaindividuais que sejam dignos de tutela, e o acesso de todos a bens mínimos capazes de conferir-lhes uma vida digna.

Dessa forma também se posiciona Aronne (1999)8:

A propriedade, na mesma medida em que positiva um dever negativo dos demais em relação ao titular, positiva deveres positivos deste em relação à comunidade em que resta inserida, cambiantes em face do caso concreto (ambos os aspectos), eis que tanto o direito de propriedade como sua função social somente ganham concreticidade na tópica incidência, axiologicamente hierarquizante.

O domínio ganha novas feições pela permeabilidade principiológica. Os direitos subjetivos correspon-dentes às faculdades in re do proprietário, em que pese sua natureza jurídica real, não se concebem como desmedidos em razão da obrigacionalizaçãoi da propriedade a vincular seu titular no âmbito do exercício de seus poderes no bem da vida, direcionando-os para o bem-estar social.

Não se pode esquecer que esta idéia de função social tem íntima relação com a chamada função promo-cional do Direito, idealizada por Norberto Bobbio, uma vez que a imposição de sanções se opera tendo um caráter positivo.

6 CORTIANO JÚNIOR, Eroutlhs. Ob. cit, p. 141.

7 FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 5 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 203-204

8 ARONNE, Ricardo. Propriedade e Domínio: reexame sistemático das noções nucleares de direitos reais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 210.

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13Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

O que o Direito Civil busca, através das linhas destinadas a tratar da maneira como deve ser exercida a propriedade, não é penalizar o proprietário, e sim garantir os direitos a ele, desde que este exerça seus direitos de proprietário de modo a que não haja prejuízo a outras pessoas, e saiba emprestar a sua pro-priedade um caráter dinâmico, que aqui deve ser visto como a exteriorização de uma preocupação com sua propriedade, como afirma Perlingieri (2002)9:

A função social predeterminada para a propriedade privada não diz respeito exclusivamente aos seus limites. A letra do art. 42 Const. Estabelece que a lei determina “os modos de aquisição, de gozo e os limites com o objetivo de assegurar a sua “função social”, de maneira que esta última concerne o conteúdo global da disciplina proprietária, não apenas os limites. A função social, construída como o conjunto dos limites, representaria uma noção somente de tipo negativo voltada a comprimir os poderes proprietários, os quais sem os limites, ficariam íntegros e livres. Este resultado está próximo à perspectiva tradicional. Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2 Const.) o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção “em ódio” à propriedade privada, mas torna-se “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito”, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular.

Importante ressaltar que juntamente com a previsão legal da função social da propriedade, existe a pre-visão da função socioambiental, ao determinar a proteção da flora, da fauna, da diversidade ecológica, do patrimônio cultural e artístico, da águas e do ar, nos termos do § 1o do art. 1228 do Código Civil.

Ademais, prevê o § 3º do mesmo dispositivo legal que o proprietário pode ser privado da coisa nos casos de desapropriação por necessidade, utilidade pública ou interesse social, bem como no caso de requisição, em caso de perigo público iminente.

5. A função social da posse

Não se pode desconsiderar a existência de uma função social também para a posse.

Embora não exista para a legislação esta possibilidade, isto não pode ser afastado no todo, uma vez que é possível considerar o exercício da posse, em algumas situações, como funcionalizada, a partir do mo-mento em que o proprietário e o possuidor, quando em conflito, geram uma relação em que se pode vislumbrar uma funcionalidade.

Isto se conclui porque o exercício da posse, como se proprietário fosse o possuidor, dá à posse uma função social, a medida em que a propriedade gera moradia e o amplo desenvolvimento ao possuidor, promo-vendo sua dignidade, ao dar ao possuidor este acesso, assegurando o chamado patrimônio mínimo, ou nas palavras de Aronne (1999)10, o exercício de um domínio sobre um lugar:

O proprietário não pode negligenciar o bem da vida que possui, sem aproveitá-lo razoavelmente, abandonando-o, sob pena de ter a propriedade perdida por dominus negligente, mediante intervenção

9 PERLINGIERI, Pietro. Perfi s do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 226.

10 ARONNE, Ricardo. Ob. cit., P. 181-182.

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estatal pela via jurisdicional ou administrativa. Tal interferência estatal na propriedade individual poderá resultar em transferi-la para quem possa dar destinação social positivamente prevista.

Arranca-se, assim, o traço de absolutividade do direito de propriedade e passa-se o mesmo ao domínio, onde lhe advém um sentido outro, que não o de submissão geral, posto que se instrumentaliza por um direito obrigacional, relativizando-se por força de sua própria estrutura.

6. Conclusão

O Direito não pode fechar os olhos para as evoluções sociais, e deve tentar, na medida do possível, acompanhar referidas evoluções.

Seguindo essa diretriz, a função social da propriedade adquiriu consistência e eficácia através do tempo para se constituir em norma e direito fundamental do cidadão. Abandonando a concepção individualista determinada no Código Civil de 1916, hoje se apresenta a propriedade como menos ofensiva ao bem--estar coletivo, não se podendo dar força a propriedade se esta não atende a uma função social.

O problema do direito à moradia, bem como a questão da reforma agrária são situações que nunca dei-xaram de ser discutidas, uma vez que sempre prevaleceu o interesse individual sobre o geral.

Hoje, deve prevalecer o aproveitamento racional da propriedade, bem como deve ser utilizada de forma adequada, no que se refere a recursos naturais e preocupação com a preservação do meio ambiente, o que é chamado de desenvolvimento sustentável.

Portanto, a função social da propriedade deve atuar como o vetor da utilização da propriedade, e para que isso aconteça, é preciso muito mais do que a simples aplicação da lei, sendo necessário ver a impor-tância de que a efetiva aplicação do princípio é oferecer aos excluídos, ou seja, os sem propriedade, a oportunidade de se desenvolver, podendo assim, conferir-lhes importância como cidadãos.

Referências

ARONNE, Ricardo. Propriedade e domínio – reexame sintético das noções nucleares de Direitos Reais. Rio de Janeiro: Renovar. 1998.

FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Civil: alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001. P. 78 e 78-79.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 226.

SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito das Coisas. Coleção Direito Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

VIANA, Marco Aurélio da Silva. Comentários ao Novo Código Civil, volume XVI: dos direitos reais. Coordenador: Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.20.

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Por uma adequada interpretaçãodo Princípio da Função Social

da Propriedade: lineamentos deuma teoria discursiva do Direito

Cláudia Fialho

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1. Introdução

“... Somos muitos Severinos. Iguais em tudo e na sina: A de abrandar essas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza...”.

O verso de João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, (1994, p. 25), nos convida a refletir sobre a propriedade privada, o princípio da função social da propriedade e o drama de milhões de ex-cluídos, retirantes da zona rural, que vieram viver nas grandes Cidades, onde encontraram a miséria, a falta de moradia e tantas outras mazelas sociais, propiciadas, em grande parte, pelos extensos latifúndios, muitas terras improdutivas nas mãos de poucos!

Nesse sentido, vale lembrar que, mesmo com o enorme avanço jurídico alcançado a partir da Constitui-ção Federal de 1988, as desigualdades sociais em nosso país são alarmantes. Por oportuno, relembramos, nesse momento, importantes debates travados quando da elaboração do texto constitucional. A bancada ruralista, denominada União Democrática Ruralista (UDR), presente na Constituinte de 1988, contribuiu para uma extensa disciplina da propriedade rural no texto constitucional. No entanto, a participação dos representantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) colaborou para a inserção do princípio da função social como elemento essencial para assegurar o direito de propriedade como fundamental. A partir de então, aguardar-se a efetividade da tão sonhada reforma agrária e tantas outras políticas públicas necessárias em nosso país, pois os governos, timidamente, não as promovem.

Somos herdeiros dos grandes latifúndios, presentes nas mãos de poucos Cidadãos, como à época da colonização portuguesa, em que os “amigos do rei” recebiam diversos privilégios, dentre eles os extensos latifúndios. No Brasil, houve um esvaziamento da zona rural e uma grande aglomeração de pessoas nas Cidades, que, também, sem estrutura, propiciaram o fenômeno da favelização e da falta de moradia. Muda-se apenas o espaço geográfico, a situação de milhares de Cidadãos é a exclusão social. Falta-lhes o mínimo para viver dignamente. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana é totalmente des-respeitado. Os extensos latifúndios, improdutivos, contrastam com o fenômeno dos moradores de rua, sem teto, nem chão. Nesse sentido, ousamos indagar: o que é uma vida digna? É permitido aos milhões de excluídos traçarem um projeto de vida e ter um ideal de vida boa? Relembrando o professor Fachin: não deveria ser destinado um patrimônio mínimo a todos os Cidadãos?

11 Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo CAD⁄Universidade Gama Filho – RJ. Especialista em Direito Civil pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor orientador: Adriano Stanley Rocha Sousa. E-mail: claudiafi [email protected].

Por uma adequada interpretação do Princípio da Função Social da Propriedade: lineamentos de uma teoria discursiva do Direito

Cláudia Fialho11

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19Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

Como, nesse contexto, abordar a propriedade privada e a função social da propriedade? Podemos falar em propriedade privada quando esta não cumpre uma função social? Trata-se de direito fundamental a propriedade privada que não cumpre uma função social? O princípio da função social da propriedade é limitador ou estruturador do direito de propriedade? É possível falar em função social no Estado De-mocrático de Direito ou o princípio se amolda ao paradigma do Estado social?

Pretende-se responder às questões suscitadas a partir das reflexões desse trabalho, que tem por objetivo demonstrar como o instituto da propriedade privada foi sendo modelado e remodelado ao longo da his-tória. Como surgiu, nessa dimensão, o princípio da função social da propriedade. E qual a interpretação adequada do princípio da função social da propriedade no Estado Democrático de Direito.

2. Propriedade privada: breve incursão histórica

A propriedade privada era um direito sacralizado, absoluto. No Direito Romano, ela foi individual, desde o seu nascedouro. “Dotada de caráter místico nos primeiros tempos. Mesclada de determinações políticas. Somente o cidadão romano podia adquirir a propriedade; somente o solo romano podia ser seu objeto.” (SILVA, 2005, p. 82).

Posteriormente, o direito de propriedade é estendido aos estrangeiros. Está presente no Código de Jus-tiniano, no século VI, no Corpus Iuris Civilis.

Ocorre a invasão dos bárbaros e a terra é transferida aos poderosos com juramento de submissão e vassalagem em troca de segurança e proteção devido à forte insegurança e instabilidade desencadeadas. (SILVA, 2005, p. 82).

A Revolução Francesa vem dar outro contorno a propriedade: pretende democratizá-la, abolir privilégios, cancelar direitos perpétuos. Concentrou sua atenção nas coisas imóveis. Conferiu enorme prestígio à propriedade imobiliária, gerou o Código de Napoleão, que ficou conhecido como Código de Proprie-dade e foi modelo inspirador para outros países no movimento de codificação no século XIX. A partir de então, surgiu uma nova forma de aristocracia: a econômica (SILVA, 2005, p. 83). Esse período da história consagra o modelo liberal de Estado.

Posteriormente, com o Estado Social, a propriedade privada sofre intervenções por parte do Estado. É preciso dissuadir o desequilíbrio e evitar formas de dominação. Surge a função social como limite objetivo ao direito de propriedade.

Sendo importante salientar que a Constituição de Weimar, em 1919, foi a primeira a elevar a idéia de função social à categoria de princípio jurídico. (FACHIN, 1988, p. 17). Trata-se de um período nota-damente antidemocrático, fascista.

No Brasil, a concepção oitocentista do direito de propriedade, que estava insculpida no Código Civil de 1916, cede lugar aos princípios constitucionais balizadores do direito de propriedade. (ZANARDI, 2003, p.108).

A nova concepção de propriedade que a ordem constitucional impõe traduz um poder-dever. O proprie-tário não pode mais exercer seu direito de forma absoluta, deve compatibilizá-lo com a função social. O caráter é solidarista e intervencionista.

Percebe-se, então, que o tempo atual, marcado por constantes transformações, tem imposto restrições legais ao direito de propriedade. A propriedade privada deve realizar os valores consitucionais.

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Conforme Lôbo, (2003), a propriedade é o grande foco de tensão entre as correntes ideológicas do li-beralismo e do igualitarismo.

o direito de propriedade, no Estado democrático e social de direito, como o da Constituição brasileira de 1988, termina por refletir esse conflito. No artigo 5º, dois incisos estabelecem regras que constituem uma antinomia, se lidos isoladamente: o XXII (XXII – é garantido o direito de propriedade) é a clás-sica garantia da propriedade privada, do Estado liberal; o XXIII (XXIII – a propriedade atenderá a sua função social) é a dimensão coletiva e intervencionista, própria do Estado social. A antinomia é repro-duzida no artigo 170, que trata da atividade econômica. Em um, dominante é o interesse individual; em outro, é o interesse social. Mais que uma solução de compromisso, houve uma acomodação do conflito.  (LÔBO, 2003, p. 211).

Esclarece o autor que a antinomia é aparente e termina por concluir que a função social importa limitação interna, positiva. O exercício do direito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade12, não somente para si, mas para todos. (LÔBO, 2002, p. 212 grifo nosso).

Percebe-se que os argumentos trazidos por Lôbo retomam a feição utilitarista de posse desenvolvida por Jhering. Argumenta Jhering (1999) que “a posse é indispensável ao proprietário para utilização econômica da propriedade”. (grifo nosso).

Jhering, segundo Larenz (2003), é adepto da Jurisprudência dos Interesses que tem por objetivo “facilitar a função do juiz, de sorte que a investigação tanto da lei como das relações da vida prepare a decisão objetivamente adequada”. (LARENZ, 2003, p. 64). E acrescenta: “o objetivo final da atividade judicial e da resolução pelo juiz dos casos concretos é, por seu turno, a satisfação das necessidades da vida, a satisfa-ção das apetências, interesses, presentes na comunidade jurídica”. (LARENZ, 2003, p. 64, grifo nosso).

Esclarece Lôbo (2003):

o Estado social, no plano do direito, é todo aquele que tem incluída na Constituição a regulação da ordem econômica e social. Além da limitação ao poder político, limita-se o poder econômico e projeta-se para além dos indivíduos a tutela dos direitos, incluindo o trabalho, a educação, a cultura, a saúde, a seguridade social, o meio ambiente, todos com inegáveis reflexos nas dimensões materiais do direito civil.  (LÔBO, 2003, p. 202).

Dessa forma, imperiosa a reconstrução da propriedade privada coerente com a função social, pois no paradigma do Estado Democrático de Direito a propriedade privada é “Instrumento fundamental para a realização da dimensão existencial da pessoa”. (Varela, 2002, p. 731).

2.1 Limitações ao direito de propriedade

Não é objetivo desse trabalho abordar, detalhadamente, as limitações ocorridas na propriedade privada em todas as formas de Estado, mas fazer algumas considerações históricas sobre o tema.

Partimos da obra de Fustel Coulagens, em A Cidade Antiga, para anotar que a terra onde os mortos eram sepultados era considerada um “solo sagrado”. Esse período é notadamente primitivo e estamos no direito romano. Impera o caráter religioso na sociedade de então. Eram celebrados cultos sagrados em honra ao morto. Acreditavam que os mortos ficavam na sepultura. Não havia relacionamento com a alma que

12 Segundo NAVES (2009, p. 311-312) a noção de interesse foge, muitas vezes, da normatividade. A democracia atual é garantida pelo acesso de valo-res e interesses plúrimos, mas esses interesses não são elementos jurídicos, mas fáticos, metajurídicos, referentes a um processo anímico ou político. Interesses são valores, isto é, elementos sociais, econômicos, religiosos e políticos ligados à utilidade que desempenham na vida. Os valores devem ser observados no discurso de justifi cação da norma. Pressupor que um valor seja meio de solução de confl itos é permitir que a subjetividade seja determinante na solução de confl itos. Interesse não é norma.

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só adveio com o cristianismo. Era necessário proteger aquele solo, sob pena dos deuses abandonarem o morto e o lar. A propriedade privada estava adstrita à religião, conforme assinalado:

A idéia de propriedade privada estava na própria religião. Cada família tinha o seu lar e os seus antepas-sados. Esses deuses só podiam ser adorados pela família, só a família protegiam; eram propriedade sua. [...]. O deus da família quer ter moradia fixa; materialmente, a pedra, sobre a qual ele brilha, torna-se de difícil transporte; religiosamente, isso parece-lhe ainda mais difícil, só sendo permitido ao homem quando dura necessidade o obriga, o inimigo o expulsa ou a terra não pode alimentá-lo. [...] Assim o lar toma posse do solo; apossa-se desta parte de terra que fica sendo, assim, sua propriedade. (FUSTEL DE COULANGES, 1961, p. 93).

Os fatos narrados por Fustel deixam claro o caráter absoluto, perpétuo e exclusivo da propriedade romana. A limitação existente era apenas de cunho religioso.

A propriedade privada no Estado Liberal foi considerada um direito absoluto, perpétuo, unitário, exclusivo e ilimitado nos termos do Código Napoleônico-pandectista. (AMARAL, 2003, p. 145). A burguesia lutou contra o abuso de poder que imperava naquela época e contra o sistema feudal, período em que segundo Camila Bottaro Sales (2010, p. 22) “permaneceram as limitações existentes no Direito Romano, aquelas derivadas do direito de vizinhança, do direito urbanístico e, de forma muito restrita, às derivadas da ordem social”.

Porém, com o Liberalismo adveio também o abuso de direito, além de um individualismo exacerbado. O Estado devia se ocupar em conceder segurança e regular as relações individuais. A propriedade privada assume uma feição nitidamente egoística e patrimonialista.

Posteriormente, na Inglaterra, com a Revolução Industrial, a classe operária passa a reivindicar direitos. Então, tornou-se necessária a proteção de outros direitos, os sociais e coletivos. O extremismo do Estado Liberal-burguês propiciou a massificação do trabalhado operário.

O panorama agora é o Brasil. Ao longo da história vários diplomas legislativos abordaram a propriedade privada. Mas, após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e com uma nova leitura dos insti-tutos do direito civil, sob a perspectiva civil-constitucional, a propriedade privada assume uma feição compatível com os valores existenciais, passa a ser lida sob uma perspectiva funcionalizada.

Os direitos reais, a partir da Constituição Federal, são humanizados. Ensina Souza (200, p. 222) que “o direito real deixa o lugar de Direito que pode tudo e passa para o lugar de Direito que pode ser privado de tudo, sempre para atender aos novos princípios constitucionais”.

Nesse sentido, a propriedade privada é vista como um poder-dever do proprietário que deverá atender aos princípios constitucionais, sob pena de ilegitimidade. No artigo 5° do texto constitucional é garantido o direito de propriedade, mas não por si só, na medida em que no mesmo artigo consagra-se o princípio da função social da propriedade. No código civil de 2002 outras limitações são impostas à propriedade privada113.

A propriedade privada sofre limitações de ordem econômica, social, ambiental e cultural. E, o descum-primento pode ensejar até mesmo a desapropriação pelo poder público. (SOUZA, 2009, p. 70-71).

13Art. 5°, inciso XXIII, da Constituição Federal, está disposto: “a propriedade atenderá a sua função social”. (BRASIL, 2009, p. 25). Por sua vez, o art. 1228 do Código Civil assim dispõe: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la de quem quer que a injustamente a possua ou detenha”. (BRASIL, 2009, p. 190).

O § 1°, do mesmo artigo dispõe: o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas fi nalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a fl ora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (BRASIL, 2009, p. 190).

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Adriano Stanley Rocha Souza (2009, p. 71-73) classifica as limitações em: 1) limitações ou funções de cunho econômico, social, ambiental e cultural; 2) limites à prática de atos meramente emulativos; 3) limites (ou funções) da propriedade por sua necessidade ou utilidades públicas ou por seu interesse social.

Por outro lado, Fiuza (2008, p. 762-763) classifica as restrições à propriedade privada em legais e voluntárias. As legais são impostas por lei, dentre elas os direitos de vizinhança, as servidões legais, as restrições ao uso do solo, etc. Já as voluntárias são impostas pelo próprio titular da propriedade, sendo elas: a inalienabilidade, a impenhorabilidade e a incomunicabilidade.

As limitações aqui trazidas foram trabalhadas para que se perceba a nova roupagem da propriedade privada na modernidade. Não mais um instituto unitário, mas plural. Não mais a propriedade, mas as propriedades, devido à diversidade de objetos. Não mais um instituto estático, mas dinâmico. Não mais direito individual absoluto, mas social. (AMARAL, 2003, p. 146-147).

2.2 Funcionalização do direito de propriedade

Inicialmente cumpre informar que o conceito de função em direito significa o papel que um princípio, norma ou instituo desempenha no interior de um sistema ou estrutura. (BOBBIO apud AMARAL, 2003, p. 366).

Particularmente, no que tange à funcionalização dos institutos jurídicos, isso significa que o direito e a sociedade passam a se preocupar com a eficácia das normas e dos institutos vigentes, não só referente ao controle ou disciplina social, mas, também, no que diz respeito à organização e à direção da sociedade. Abandona-se a tradicional função repressiva do direito, em favor de novas funções, de natureza distributiva, promocional e inovadora, principalmente na relação do direito e economia. (AMARAL, 2003, p. 367).

A função econômico-social representa a eficácia social do instituto, no caso em tela, a propriedade privada.

Então, a funcionalização de um princípio, norma, instituto ou direito implica, na sua positivação norma-tiva. O ordenamento jurídico para alcançar a eficácia pretendida com a funcionalização estabelece para o exercício das faculdades subjetivas (no caso concreto) que possa caracterizar abuso de direito, limites à atuação. (AMARAL, 2003, p. 367).

Francisco Amaral, ainda, esclarece:

Emprestar ao direito uma função social significa considerar que os interesses da sociedade se sobrepõem aos do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, a anulação da pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pela necessidade de acabar com as injustiças sociais. Função social significa não-individual, sendo critério de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvimento das atividades da ordem econômica. Seu objetivo é o bem comum, o bem-estar econômico coletivo. (AMARAL, 2003, 367).

Importante destacar que a discussão em torno de se realizarem os interesses coletivos não implica em solapar o indivíduo.

“A função social se configura como princípio superior ordenador da disciplina da propriedade, legitimando a intervenção do estado, por meio de normas excepcionais, e, como critério de interpretação jurídica”. (AMARAL, 2003, p. 368).

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Acrescenta Francisco Amaral:

a função social é, por tudo isso, um princípio geral, um verdadeiro standard jurídico, uma diretiva mais ou menos flexível,uma indicação programática que não colide, nem torna ineficazes os direitos subjetivos, orientando-lhes o respectivo exercício na direção mais consentânea com o bem comum e a justiça social. (AMARAL, 2003, p. 368).

Diante do exposto, fundamental que a realização da justiça social e do bem comum não se torne uma antinomia com os direitos subjetivos individuais. A funcionalização dos institutos jurídicos, particular-mente, da propriedade privada, não pode significar supressão dos direitos subjetivos individuais, mas a garantia de iguais liberdades fundamentais, a ser verificada no caso concreto.

3. Princípios jurídicos norteadores

3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana

A Constituição Federal de 1988, em seu art.1°, inc. III14, prevê que o Estado Democrático de Direito possui como fundamento a dignidade da pessoa humana. Trata-se de um princípio da mais indigitada relevância e que tem sido utilizado para fundamentar os mais diversos temas em nosso ordenamento jurídico.

Com a repersonalização do direito civil, os valores existenciais ocupando lugar de destaque nas relações humanas, a dignidade humana surge, como o princípio vetor para dirimir situações inquietantes e confli-tantes que permeiam a vida. Nesse sentido, relevante a existência de um patrimônio mínimo, que significa, conforme lição do professor Fachin (2006, p. 20-21) “a garantia de um patrimônio mínimo que se funda na dignidade da pessoa para apreendê-la, concretamente, na realização de necessidades fundamentais”.

Importante salientar, que, o princípio da dignidade humana leva ao requestionamento de vários dogmas civilísticos, dentre eles o patrimônio. Com a Constituição de 1988 o patrimônio deixou de ocupar o centro de interesses do ordenamento jurídico. O “ser” ocupa, desde então, o lugar de destaque nas situ-ações jurídicas, e não mais o “ter”. Mas, como identificar, no caso concreto, o princípio da dignidade humana? O que é uma vida digna quando o tema em análise é a propriedade privada?

A resposta a esses questionamentos serão dadas no caso concreto, mas é certo que não se vive mais sob a égide do individualismo Liberal, como tampouco do paternalismo do Estado Social. No Estado Demo-crático de Direito a propriedade privada há de atender a sua função social, o que implica dinamismo, realização de atividades econômicas, pagamento de tributos, produtividade, dentre outros.

Como norma jurídica, a aplicação do princípio da função social da propriedade é imediata, no entanto, há que ser observado com cautela, a fim de que não seja banalizado.

14 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

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3.2 Princípio do solidarismo social

Dentre os objetivos da República está a solidariedade social, conforme consignado no art. 3° da Cons-tituição Federal de 198815.

Dessa feita, com a introdução do princípio do solidarismo social pela Constituição Federal, necessário se torna a busca do bem estar social, a compatibilização dos direitos individuais com os valores coletivos, como forma de construção de uma sociedade com justiça social. (ZANARDI, 2003, p. 102).

3.3 Princípio da autonomia privada

No Estado Liberal, o princípio da autonomia da vontade, conforme Fiuza (2008), era fundado na von-tade livre das partes de contratar. Era condicionado por fatores internos, fruto da vontade das partes. “A cada indivíduo era possível a realização de seus interesses e inclinações individuais sem a intervenção do estado”. (PONTES, SÁ, 2009, p. 43).

Perlingieri, ao abordar o tema autonomia privada, concebeu-a como um conceito de difícil elucidação. Analisando-a no liberalismo, apresenta o entendimento daquela época, como se vê:

a liberdade de regular por si as próprias ações ou, mais precisamente, de permitir a todos os indivíduos envolvidos em um comportamento comum determinar as regras daquele comportamento através de um entendimento comum. (2002, p. 17).

Essa compreensão de autonomia privada configurou-se como a marca do valor da liberdade individual.

Posteriormente, uma nova reformulação do conceito de autonomia foi sendo redesenhado para atender aos interesses sociais e coletivos. A forma de Estado é o social, paternalista. “Limites foram estabeleci-dos à livre atuação dos indivíduos e da sociedade, como um todo, por meio da idéia de função social”. (PONTES, SÁ, 2009, p. 44).

Nota-se, que, mais uma vez, a concepção adotada de autonomia foi extremista. Agora com uma feição intervencionista.

Segundo Perlingieri (2002, p.19), os atos de autonomia têm fundamentos diversificados, todavia, há um ponto fundamental em comum, qual seja: serem dirigidos à realização de interesses e de funções que merecem tutela e que são socialmente úteis. Sendo que somente ocorre a utilidade social se ela estiver em conformidade com a segurança, a liberdade e a dignidade humana.

Amaral (2003, p. 80) informa que o princípio da autonomia privada tem sido objeto de revisão crítica, na medida em que seu campo de atuação sofreu grande redução a partir da intervenção do Estado.

Por sua vez, Naves (2003) compreende a autonomia privada como:

a superação do caráter individualista e liberal da autonomia da vontade, sendo elevada a categoria de norma jurídica de Teoria Geral do Direito Privado, e, aplicável a situações subjetivas existenciais e patrimoniais. E ainda: poder de auto-regulação, outorgado pelo Estado a particulares, e como meio de autoconstrução da personalidade, pois não existem limites externos à autonomia que se conforma na intersubjetividade do ser, que compreende a si e ao outro. (NAVES, 2003, p. 48).

15 PArt. 3°. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I- construir uma sociedade livre, justa e solidária;19 BOBBIO, 1990, p. 51.

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Exceto a concepção adotada por Naves, as demais refletem uma forma tradicional de conceituação de autonomia privada. A compreensão de autonomia privada que se adéqua ao Estado Democrático de Direito será adiante estudada.

4. Autonomia privada e autonomia pública na Teoria Discursiva do Direito

A partir da teoria discursiva de Habermas trabalha-se a idéia de co-originariedade, co-dependência entre autonomia pública e privada. Não mais uma superposição de uma sobre a outra.

A adoção de uma concepção de autonomia integradora dos espaços público e privado é a única que, diante de uma pluralidade, propicia a preservação da variável individual dentro de uma realidade inter-subjetivamente compartilhada, na qual cada um possa se preservar, mas ao mesmo tempo reconhecer o outro e participar da construção desse universo sem que, para tal, excluam-se as diferenças. (PONTES; SÁ, 2009, p. 45).

Segundo Habermas (2002):

não há direito algum sem autonomia privada de pessoas de direito. Portanto, sem os direitos funda-mentais que asseguram a autonomia privada dos cidadãos, não haveria tampouco um médium para a institucionalização jurídica das condições de vida sob as quais eles mesmos podem fazer uso da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos do Estado. Dessa forma, a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem o que os direitos humanos possam reivindicar um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele. [...] os cidadãos só podem fazer uso adequado de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia privada que esteja equanimente assegurada; mas também no fato de que só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar o consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia política enquanto cidadãos do Estado. (HABERMAS, 2002, p. 293-294).

Habermas, ao expor sua teoria, não deixou de impor críticas ao liberalismo e ao republicanismo. No seu entender, os dois paradigmas estão equivocados na medida em que se encontram comprometidos com a imagem produtivista de uma sociedade capitalista e industrial, cujo funcionamento deve ser tal que a expectativa de justiça social possa ser satisfeita pelo esforço particular. O Liberalismo entende garantir a autonomia privada mediante direitos de liberdade, que o mercado regule tudo, sem a ingerência do Estado, e que os cidadãos tenham do Estado à garantia de que suas liberdades de ação serão tuteladas. O Republicanismo, por seu turno, adota posição diferenciada, pressupondo uma consciência ética e cívica já existente entre os membros da comunidade, sendo que somente se confere autonomia privada mediante a outorga de reivindicações de benefícios sociais. Por esse raciocínio, perde-se de vista a coesão interna entre autonomia privada e autonomia pública. (HABERMAS, 2002, p. 295).

Assim, a autonomia privada não pode ser condicionada por um padrão coletivista em face do pluralismo existente na sociedade pós-moderna. Dessa forma, argumentos que limitem a autonomia privada em prol de interesses coletivos ou funcionais somente poderão ser considerados legítimos se, ex ante, houver um processo argumentativo que problematize a questão, no processo de justificação da norma. Por outro lado, deve-se observar que a construção dessa autonomia é intersubjetiva, o que pressupõe o si e o outro, e a consideração de uma autonomia pública e privada co-originárias.

Ainda sobre o tema informa CHAMON JUNIOR (2007):

somente quando reconhecemos iguais direitos subjetivos, é que podemos pretender que todos que se encontram sob o império do Direito possam tomá-lo como aceitável: aqui reside, pois, o paradoxo de que a legitimidade do Direito seja capaz de ser produzida a partir de uma legalidade que reconheça iguais direitos ao exercício da autonomia pública. (CHAMON JUNIOR, 2007, p. 78).

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Na perspectiva dialógica da autonomia privada e pública, Habermas considera que a liberdade de cada um deve poder conviver com a igual liberdade de todos, segundo uma lei geral. E mais: somente a nor-matização politicamente autônoma permite aos destinatários do direito uma compreensão correta da ordem jurídica em geral. (HABERMAS, 2003a, p. 157).

Diante da teoria habermasiana, não é mais possível reduzir a complexidade da interpretação jurídica à reconstrução de um paradigma jurídico concreto, fixando-se, aprioristicamente, valores comuns superiores, pois isso só retiraria do Juiz a tarefa de relacionar traços relevantes de uma situação concreta, apreendidos de forma mais completa possível com um conjunto de normas em princípio aplicáveis, numa disputa não apenas teórico-jurídica, mas política, acerca de qual dentre eles é o adequado à compreensão do Direito, de acordo com o contexto histórico. (OLIVEIRA, 2009, p. 632-633).

Segundo Habermas (2003), a interpretação que pode ser desenvolvida pela Teoria do Discurso frente o direito e a política é dar contornos a um terceiro paradigma que incorpore os outros dois, em uma compreensão procedimental do Direito.

Assim, em um paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, a argumentação liberal e de bem-estar devem ser consideradas de maneira reflexiva e crítica, numa perspectiva jurídico-processual, que considere as argumentações concorrentes, diante da situação concreta. (HABEMAS, 2003b, p. 180-183).

Esclarece Habermas:

O paradigma procedimentalista do direito procura proteger, antes de tudo as condições do procedi-mento democrático. [...] os lugares abandonados pelo participante autônomo e privado do mercado e pelo cliente de burocracias do Estado Social passam a ser ocupados por cidadãos que participam de discursos políticos, articulando e fazendo valer interesses feridos, e colaboram na formação dos cri-térios para tratamento igualitário de casos iguais e para o tratamento diferenciado de casos diferente. (HABEMAS, 2003b, p. 183).

A compreensão procedimentalista do Direito pretende reinterpretar a autonomia pública e a atuonomia privada, como equiprimordiais ou co-originárias16 na justificação do Estado Democrático de Direito. Para Habermas:

a conexão interna entre democracia e Estado de Direito consiste em que, por um lado, os cidadãos só podem fazer um adequado uso de sua autonomia pública se graças a autonomia privada simetricamente assegurada são suficientemente independentes e, por outro, em que só podem alcançar um equilibrado desfrute de sua autonomia privada se, como cidadãos, fazem um adequado uso de sua autonomia política. Por isso, os direitos fundamentais de liberdade e os direitos políticos são indivisíveis. A imagem de um núcleo conduz a erro, como se existisse um núcleo de liberdades fundamentais que pretendessem ter prioridade frente aos direitos de comunicação e participação [...] os direitos privados e os direitos de cidadania são de origem igualmente essenciais. (HABERMAS, 2003b, p. 152-153).

5. Função social da propriedade

A Constituição de Weimar, em 1919, foi a primeira a elevar a idéia de função social à categoria de prin-cípio jurídico. E é também com a Constituição de Weimar que há progressivo reconhecimento de uma

16 Para Álvaro Ricardo de Souza Cruz, a idéia de equiprimordialidade entre autonomia privada e autonomia pública pode ser confi rmada “por uma razão muito simples: a defesa de um direito individual vai muito além da tutela de interesses das partes envolvidas, pois, quando o direito de qualquer um de nós é violado, toda a sociedade é aviltada com isso.” (SOUZA CRUZ, 2007, p. 339).

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ordem “econômica e social com implicações para a questão da propriedade, de forma a construir uma nova etapa frente ao já superado laisser faire, laisser passer”. (FACHIN, 1988, p. 17).

Na legislação brasileira, o princípio da função social da propriedade está disciplinado nos seguintes termos:

Art. 5°, inciso XXIII, da Constituição Federal, está disposto: “a propriedade atenderá a sua função social”. (BRASIL, 2009, p. 25).

Por sua vez, o art. 1228 do Código Civil assim dispõe: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la de quem quer que a injustamente a possua ou detenha”. (BRASIL, 2009, p. 190).

Em seguida o parágrafo primeiro dispõe:

o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e so-ciais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (BRASIL, 2009, p. 190).

Assevera Fachin (1988) que “a função social relaciona-se com o uso da propriedade, alterando, por conse-guinte, alguns aspectos pertinentes a essa relação externa que é o seu exercício”. (FACHIN, 1988, p. 17).

E mais:

a função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção anti-individualista. (FACHIN, 1988, p. 20).

Aduz Fiuza (2003) que a “função social da propriedade seria elemento externo ao conceito, fundamento dos deveres do titular e dos direitos da coletividade, ou seja, restrições à propriedade”. (FIUZA, 2003, p. 28).

Lima (2003) aborda o princípio da função social da propriedade segundo duas correntes doutrinárias. A primeira como limites impostos ao direito de propriedade, tendente a comprimir os direitos do pro-prietário.

A segunda como um papel promocional no sentido de que a “disciplina das formas de propriedade deveria ser atuada para garantir e promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento”. (PERLINGIERI, 1999, p. 226).

Ainda, acerca do princípio da função social da propriedade, Rodrigues (2003) esclarece que o legislador constitucional determinou que o uso da propriedade fosse condicionado ao bem-estar social.

Gomes (2005) também trabalha as limitações ao direito de propriedade. Informa ser crescente a predo-minância do interesse público. “O Estado adota medidas restritivas ao direito de propriedade, a exemplo a função social da propriedade”. (GOMES, 2005, 142).

Souza (2009) indaga: o que seria função social? E a resposta não tarda a vir. O autor, com clareza, expõe o conteúdo da função social em concordância com o art. 1228 e parágrafos, do código civil de 2002.

E mais uma vez limitações e restrições são impostas ao direito de propriedade por parte do Estado, sem, a observância a iguais liberdades fundamentais.

Quanto às restrições legais, Fiuza (2008) elucida serem elas uma forma de proteger os direitos dos ‘outros', uma vez que o exercício dos direitos de propriedade não pode solapar direitos de terceiros. E continua:

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“não é só esse o intuito do legislador, que busca promover a função social da propriedade, em prol do interesse público”. (FIUZA, 2008, p. 762, grifo nosso).

Faria (2005), ao trabalhar a função social da propriedade, informa que a propriedade vincula-se a um direito de uso, gozo e disposição que deve ser exercido de modo a atender sua destinação socioeconômica, ou seja, sua função.

A função social possui um conteúdo existencial, pois entrelaça-se com o princípio da dignidade humana, uma vez que o legislador constitucional a inseriu no Título I, da Constituição Federal. (FARIA, 2005, p. 218).

No mesmo sentido é o posicionamento de Martins:

a função social nascida do texto da constitucional de 1988 traz para o instituto do direito de proprie-dade inovações sem precedentes, funcionalizando-o com valores sociais e existenciais. (MARTINS, 2007, p. 74).

Duguit apud Tepedino (2000) foi o responsável pela difusão do termo função social. Em seus estudos sobre o tema, concebeu a função social como antítese do direito subjetivo à propriedade. Mas o enten-dimento evoluiu. A doutrina italiana com Pugliatti levantou contra essa compreensão e estabeleceu a função social não como categoria oposta ao direito subjetivo, mas como elemento capaz de alterar-lhe a estrutura. (TEPEDINO, 2000, p. 47).

Esclarece Tepedino (2000) que a função social surge na busca de uma legitimidade da propriedade privada, não sendo excessivo afirmar que diante da sua ausência, no caso concreto, deve ser retirada a tutela dominical para privilegiar a utilização do bem, que mesmo desprovido do título de propriedade condiciona-se e atende ao interesse social. (TEPEDINO, 2000, p. 49, grifo nosso).

Por outro lado, o referido autor define a função social da propriedade, após analisar acórdão em que empresa perde a tutela dominical para 600 famílias do MST (movimento dos sem terra), como “situ-ação jurídica complexa e dinâmica, funcionalizada ao atendimento de necessidades não patrimoniais”. (TEPEDINO, 2000, p. 51).

Outra importante distinção a ser mencionada se refere à diferenciação entre atendimento à função social e produtividade econômica. A produtividade é apenas um dos requisitos para que a propriedade alcance a função social, desde que associada, entretanto, à promoção dos valores existenciais, consagrados pela Constituição nos princípios e objetivos fundamentais. (TEPEDINO, 2000, p. 53).

E mais: [...] “somente no conflito concreto de interesses poderá o Judiciário valorar a utilização da propriedade quanto aos deveres impostos por sua função social”. (TEPEDINO, 2000, p. 53, grifo nosso).

Por fim, aduz Tepedino:

a determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extra-proprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade. (TEPEDINO, 2004, p. 317).

Dessa feita, a propriedade privada tem na função social o seu conteúdo, o que significa dizer que a legi-timidade da mesma está condicionada ao atendimento da função social

Ainda sobre o tema esclarece Perlingieri (2002) que a função social predeterminada para a propriedade privada não diz respeito unicamente às limitações de cunho negativo, onde o proprietário apenas teria comprimido alguns dos seus poderes, os quais, sem ditos limites, ficariam livres e íntegros, o que apro-ximaria esse modelo de propriedade privada ao modelo tradicional.

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A função social vai além, pois se insere num contexto inspirado na “solidariedade política, econômica, social e ao pleno desenvolvimento da pessoa”. (PERLINGIERI, 2002, p. 226).

A partir dessas considerações, traduz o conteúdo da função social da propriedade nos seguintes termos:

O conteúdo da função social assume um papel do tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como intervenção ‘em ódio’ à propriedade privada, mas torna-se ‘a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito’, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular. (PERLINGIERI, 2002, p. 226).

A função social da propriedade, segundo o entendimento de Perlingieri e Tepedino traduz uma idéia de que ela é o conteúdo da propriedade privada. Não concebem a função social como um limite objetivo ao direito de propriedade, conforme entende Fiuza.

Zanardi (2002) ao estudar as duas correntes acima, entendeu ser a segunda a mais coerente com a siste-mática civilística brasileira e com a própria Constituição Federal, na medida em que, se o proprietário não cumprir a função social poderá ser desapropriado, mediante justa indenização, e não expropriado, como seria o caso se se tratasse de propriedade privada cujo conteúdo e estrutura é a função social da propriedade.

Da análise da função social da propriedade em cotejo com a teoria discursiva do direito de Habermas, tem-se, que, não coaduna com o atual paradigma do Estado Democrático de Direito a interpretação da função social da propriedade de forma axiológica, voltada para valores de eticidade, utilidade e interesses públicos ou sociais. Interesse é valor. E os valores devem ser observados no juízo de justificação das normas, quando de sua elaboração, onde os debates e a efetiva participação do interessados deve estar presente, em busca do consenso, e não no juízo de adequação das normas, ou seja, de sua aplicação

Isso porque o direito deverá partir de tensões normativas de forma procedimental, considerando argu-mentações concorrentes para dar a resposta adequada ao caso concreto e não partir de visões axiológicas que fixem uma valorização a priori do interesse público sobre o interesse privado. A propriedade é privada e a função é social, mas não há antinomia entre elas. O princípio da função social veio dar outra mode-lagem ao direito de propriedade O proprietário possui deveres fundamentais que devem ser observados. Existem parâmetros mínimos que deve obedecer na realização da propriedade. Mas, não podemos fixar aprioristicamente o conteúdo da função social para dizer se o proprietário está ou não cumprindo a mesma.

Com tal fixação apriorística, correr-se-ia o risco de “desterrar o indivíduo em prol de uma pretensa cole-tividade, que nada mais é do que a posição de um pequeno grupo” (NAVES, 2009, p.305).

Assim, a função social da propriedade, na perspectiva do Estado Democrático de Direito, foi explicada por NAVES (2009) quando aborda o tema sob a perspectiva dos contratos:

a função social do contrato e a socialização do mesmo não podem significar a subordinação de pretensas utilidades sociais ou interesses públicos. O contrato realiza-se, mesmo, para a satisfação pessoal, o que não significa dar guarida ao abuso de direito. É claro que os contratantes se relacionam por motivações subjetivas e querem a satisfação de seus valores pessoais, mas essas satisfações não podem aviltar a liber-dade fundamental da outra parte, nem a de outras pessoas. Funcionalizar não seria colocar o contrato “a serviço da coletividade”, mas instrumentalizá-lo na garantia de convivência de garantia de iguais liberdades fundamentais. Não há como, na tensão entre diferentes liberdades, se escolher, de antemão, qual se sobreporá, pois a decisão correta será construída no processo discursivo, diante da singularidade da relação contratual. (NAVES, 2009, 314-315).

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Essa a visão de função social da propriedade adequada aos imperativos do Estado Democrático de Direi-to, que é plural, e que pressupõe a garantia de convivência de iguais liberdades fundamentais. Em vista de todo o exposto, a nosso entender, o princípio da função social da propriedade se insere na órbita do Estado Democrático de Direito. Mas, é importante fixar que entendemos que a noção de paradigma parece muito taxativa, sendo mais pertinente falarmos em matriz conceitual, pois as formas de Estado se entrelaçam no estudo do princípio da função social da propriedade.

6. Considerações Finais

É certo que a propriedade privada não é mais o direito absoluto e sacralizado do Estado Liberal e do código oitocentista de 1916, nem tampouco do paternalismo, e da burocracia do Estado Social.

Assim, a interpretação da propriedade privada e do princípio da função social da propriedade deve ser condizente com os postulados do Estado Democrático de Direito. Na introdução desse trabalho foram trazidas à reflexão questões sociais graves que assolam o Brasil. No entanto, não cabe ao Direito fazer interpretações axiológicas dos princípios constitucionais a fim de minimizar os problemas sociais. Nesse sentido, a função social da propriedade não pode ser mais concebida de forma mistificadora e axiológica, como o princípio que irá sanar os problemas sociais, a falta de moradia e as desigualdades de riquezas, mas, que, sua aplicabilidade seja o mais coerente possível com o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil!

Dando seqüência à proposta do presente trabalho, compete-nos, nesse momento, a tarefa de responder a uma das indagações formuladas no início deste trabalho. Se a função social é elemento limitador ou estruturador da propriedade privada? Das lições apreendidas e apresentadas, tendo como pano de fundo a teoria discursiva do direito, entendemos que a função social da propriedade é elemento que veio dar outra roupagem ao direito de propriedade, especialmente a partir da Constituição de 1988, onde o caráter solidarista é um valor fundamental. Transformou-a, essencialmente, sem, no entanto, fazer com que ela perdesse a sua conotação de propriedade privada. Ademais, limites legais não se confunde com função, exercício, utilização da propriedade privada. Entendemos fazer parte do conteúdo da propriedade pri-vada, a função social. É uma dos elementos estruturantes da propriedade privada, precipuamente, para considerá-la um direito fundamental, nos termos do texto constitucional. Contudo, o fato de ser um dos elementos estruturantes não possibilita uma hermenêutica fechada em si mesma, com fim único e conteúdo homogeinizante, distante da sociedade plural em que se insere, ao teor da teoria discursiva do direito de Habermas. No caso concreto, há de ser observado se princípio da função social foi atendido ou não. A priori inexiste tal possibilidade.

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A dignidade da pessoa humanae a propriedade

Hugo Rios Bretas

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1. Introdução

A propriedade privada apresenta vital relevância em relação à sociedade, historicamente. Trata--se de um bem cujo impacto social é avassalador. Razões pelas quais, inelutável é a constatação de que a propriedade sempre abalizou o ordenamento jurídico.

Todavia, pertinente é identificar que não obstante a propriedade privada perdure como um dos bens jurídicos centrais, inequívoco é que seu impacto foi parcialmente sucumbido, ante o latente processo de humanização do direito.

Preteritamente ao processo de humanização do direito civil, certamente o bem jurídico propriedade figu-rava como mais relevante do que a própria vida. Sabido é que no Direito Romano, quando se operava o inadimplemento restava, em dado momento histórico, em primeiro plano executar o sujeito passivo da relação material contratual, o devedor. Vale preponderar, existia uma proteção jurídica que se instaurava na propriedade, uma blindagem que se justificava em decorrência da conotação sagrada concernente à propriedade, notadamente a morada.

Nesse plano, para se chegar ao mérito deste trabalho, necessário é precisar que o contexto anteriormente proferido, de anuência estatal no tocante à possibilidade de incidência corpórea nas hipóteses de inadim-plementos civis, não mais prospera.

A propriedade privada passou por evoluções na forma como a comunidade jurídica a concebe. Esta que já apresentou uma conotação quiritária, sobre a qual não há intervenções até propriamente uma concepção relativizada.

A propriedade privada em suas múltiplas facetas deve ser interpretada de forma compatível à dignidade da pessoa humana. Entretanto, historicamente nem sempre se apresentou a respeitabilidade da dignidade da pessoa humana, conforme já se depurou em certa época romana. Por esse motivo, ponderar sobre a interface entre propriedade privada e dignidade da pessoa humana é identificar variabilidades segundo o período que se enfoque.

Propriedade privada não é sinônimo de moradia, de maneira alguma. Pensar desse modo é cometer um nefasto equívoco, que se pretende repelir ao longo do estudo que será desenvolvido neste capítulo.

No decorrer do trabalho serão refletidas as distintas vaiáveis que se apresentam quando se pretende exigir o respeito à dignidade da pessoa humana, quando se discursa sobre a propriedade privada.

17 Mestrando em Direito Privado, Pós-graduado em Direito Civil e graduado em Direito pela PUC-Minas. Professor de Direito Empresarial II, III e IV da mesma Instituição. Professor do curso preparatório da Serjus. Coordenador e professor do Projeto OAB da PUC-Minas.

A dignidade da pessoa Humana e a propriedade

Hugo Rios Bretas17

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2. Propriedade privada

Conforme já se anunciou propedeuticamente, a propriedade privada é variável conforme o período analítico que se enfoque.

A propriedade privada já trouxe consigo uma concepção de inviolabilidade, de blindagens externas e internas. Nesse contexto, o proprietário poderia dar qualquer destinação à sua propriedade, a depender unilateralmente de seu alvedrio. E a par dessa destinação, nenhum indivíduo ou mesmo o Estado po-deriam intervir, não poderiam modificar a decisão acerca da destinação da propriedade.

Nesse período, o que se tem é uma autêntica similitude de múnus entre o direito penal e direito civil. Uma vez que ambos, tinham um caráter punitivo, caso se operasse a violação normativa. O fim existencial dos ramos, não é a justiça punitiva e sim a justiça racional. Ora, diante de um inadimplemento é reparador, é racional, é relativamente proporcional a execução do corpo do devedor? Induvidosamente não é esse Direito Civil que se espera. Não é para isso que o Direito Civil se presta.

Para essa primeira concepção que trazia consigo inclusive a conotação sagrada, é acertado atribuir a no-menclatura quiritária, nas palavras de José Isaac Pilati.

A nomenclatura atribuída por Pilati não tem coerência no atual paradigma do Estado Democrático de Direito, em verdade o que se tem é uma propriedade privada relativizada. Caráter quiritário que é defi-nido pelo professor César Fiúza (2006):

Tradicionalmente sempre se falou em apenas um vínculo, de caráter pessoal e coercitivo. Pessoal, porque se traduzia no poder do credor sobre uma pessoa, o devedor, sendo seu objeto um comportamento do devedor, que deve realizar uma prestação em favor do credor. Coercitivo, porque jurídico, não apenas moral ou social. Esta é a teoria monista tradicional. No Direito Romano primitivo, a obrigação era vínculo estritamente pessoal, respondendo a pessoa do devedor, com seu corpo, sua vida e sua liber-dade. O direito do credor recaía sobre a pessoa do devedor, assumindo caráter de direito real, análogo aos direitos de propriedade. Posteriormente,foi-se abrandando, com a própria evolução do Direito Romano, essa força pessoal do vínculo, que se tornava patrimonial. A submissão pessoal foi substituída pelo bonarum venditio e pela bonorum distractio(...).(FIÚZA, 2006, p.287)

A propriedade privada sofre intervenções estatais sim, sobretudo com a vigência do Código Civil e da Constituição da República, ao transmitir a cogência de cumprimento da função social. Nessa seara, o proprietário exerce a sua propriedade em estrita respeitabilidade à coletividade, sob pena de incidência de sanções.

O que se tem é uma propriedade relativizada, privada-pública, espantosamente para alguns.

Um exemplo típico de incidência de sanções, que demonstra a intervenção pública na propriedade pri-vada, é o IPTU progressivo. Segundo o qual, se houver o descumprimento da função social por parte do proprietário ou aquele sujeito passivo da relação tributária de imóvel urbano, perfaz-se a incidência majorada da alíquota inerente ao referido imposto municipal.

O IPTU progressivo tem previsão no denominado “Estatuto das Cidades”, a Lei 10.257 do ano de 2001. Esse fenômeno mais especificamente está tratado no artigo 7º, que tem essa redação:

Art. 7o Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5o desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5o do art. 5o desta Lei, o Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anosconsecutivos.

§ 1o O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se refere o caput do art. 5o desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento;

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§ 2o Caso a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não esteja atendida em cinco anos, o Município manterá a cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação, garantida a prer-rogativa prevista no art. 8o.

§ 3o É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva de que trata este artigo. (BRASIL, 2001)

Nesta passagem o que se percebe é o surgimento da basilar função social, responsável por modificar a conceituação e a destinação da propriedade privada.

Percebe-se mais com a função social. Tal função é apontada como a condição fundamental de humani-zação da ciência do direito civil, sem a qual inexiste humanização da ciência do Direito Civil.

Neste ponto, o que se nota é que não se pode exercer egocentricamente a propriedade. Cada uma das propriedades deve ser exercida de forma a contribuir direta ou indiretamente com a coletividade. Pensa-mento esse, que se coaduna com a respeitabilidade à dignidade da pessoa humana.

Esse fenômeno de abrandamento do caráter quiritário é esclarecido pelo professor por SOUZA como o “ direito de propriedade ao devedor de propriedade.” Vale proferir, o proprietário não pode arbitrariamente dar qualquer destinação à sua propriedade, há que se exercê-la de coletivamente.

Emerge pois, indagar: Aquele que descumpre a função social está vilipendiando a dignidade da pessoa humana?

Ademais, outra questão paira: A dignidade da pessoa humana é contributiva para a concretização do conceito de propriedade privada?

Hipotetiza-se que sim. A propriedade é fonte de riquezas. Riquezas que podem ser destinadas aos in-divíduos, em distintas conotações de direitos reais, como moradia, superfície, e outras tantas maneiras, menos se prestar ao caráter quiritário.

Outra questão central ao trabalho: Existe dignidade da pessoa humana, desprovida ou desligada da propriedade?

É pertinente adequar o leitor que esta última indagação apresenta substancial amplitude, que merece ser minorada. De fato quando se questiona acerca da propriedade, não há como negar que a propriedade pode incidir sobre uma séria de elementos que, conforme a teoria geral do direito, fazem parte ou não do comércio, e que pode ser de direito público ou de direito privado.

Propriedade que pode incidir sobre bens móveis por força de lei, por natureza, sobre bens imóveis, por força de lei, por acessão física ou intelectual, por natureza, entre outras modalidades. Nesse âmbito, não a ausência plena de propriedade, em relação à todos as espécies, permite a inferência de que se inclina à inexistência de dignidade.

Entretanto, a especificidade deste trabalho, exige a perquirição no sentido de constatar se a ausência de propriedade imóvel redunda na fulminação da dignidade.

Propedeuticamente não. A delicadeza ou sutileza da dignidade permite estabelecer parcelas mínimas de dignidade? Isto é, se o indivíduo tiver o mínimo este já terá a dignidade? Ou é necessário que o indivíduo tenha uma parcela maior de propriedades para ser digno. Qual é o mínimo de propriedades necessárias para a existência de dignidade? Existem parcelas de dignidade?

Não se pretende neste trabalho identificar o mínimo de propriedades, mas, apenas o que será no tocante a propriedade relevante para a geração de dignidade.

Preceitua a Constituição da República Federativa, em seu artigo 5º, dado o seu teor analítico, que será garantida a inviolabilidade da propriedade privada.

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39Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

Esses são os termos empregados pela Constituição Federal, na cabeça do artigo 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à se-gurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL, 2008)

A exegese desta proposição transmite que a propriedade privada, uma vez existente, gerará à coletividade o dever de abstenção, típico dos sujeitos passivos dos direitos reais. Em outras palavras, se houver proprie-dade resguardada está a inviolabilidade. Lado outro, se esta inexistir, a mesma inviolabilidade inexistirá.

A par ainda desta expressão constitucional, salienta-se que se existir propriedade, haverá o mister por parte do Estado, por parte das pessoas jurídicas e por parte dos cidadãos de proteger, de salvaguardar a inviolabilidade.

Inviolabilidade, reputa-se que pode ser interpretada em consonância à posse. Haja vista que, a posse é fundamental para a construção do entendimento acerca da propriedade. Diante disso, segundo o Código de Processo Civil brasileiro, em seu artigo 920, não poderão se perpetrar turbações, ameaças ou esbu-lhos possessórios sob pena de legitimação ao violado de manejar um interdito possessório, notadamente interdito proibitório, manutenção ou reintegração de posse. E a instrumentos de defesa ao proprietário, como a ação reivindicatória. Reivindicatório que só poderá ser manejada, caso exista propriedade.

Aliás, perceba-se como legislador foi coerente em relação aos interditos possessórios e o artigo 5º. Ora, o Estado garantirá os citados instrumentos de defesa à posse e a propriedade casos essas existam. Por isso, pergunta-se: Se uma pessoa que não tem propriedade ajuizar uma ação reivindicatória, o Estado-Juiz julgará procedente a ação? Certamente o provimento jurisdicional não será satisfatório. Nessa seara, o Estado-Juiz tão somente aplicou o “caput” do artigo 5º, repita-se, por ser garantida a inviolabilidade caso ela exista.

E mais, no mesmo artigo 5º, identifica-se que também será garantida a inviolabilidade do direito à vida. Em relação a esse bem jurídico, pergunta-se: Se não existir vida, o Estado protegerá? Indubitavelmente o Estado só protegerá se houver vida.

Propedeuticamente, apesar de saber que não é esse o objeto do trabalho, acredita-se na pertinência temática do que será abordado nesta passagem. Pensa-se que ao se criar a Lei de biossegurança (Lei 11.105/05), o legislador foi fiel ao artigo 5º, “caput”. O que o Estado fez foi simplesmente definir que aqueles embriões tutelados no artigo 5º dessa lei, poderão ser violados por intermédio das pesquisas células-tronco. Desse modo, assim como a propriedade, enfatize-se, o que o Estado defende é inviolabilidade, caso exista. Nessa seara, não considerou que exista vida no embrião que cumpra as condições do artigo 5º da invocada lei. Caso considerasse a existência de vida, certamente não haveria permissão para a citada violação, ante o permissivo legal do artigo 5º da Constituição.

O artigo 5º da Lei de 11.105 de 2005 tem a subseqüente redação:

Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I - sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos co-mitês de ética em pesquisa. § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. (BRASIL, 2005)

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Empregou-se o raciocínio supra, tão apenas para explicitar que a razão legislativa positivada no artigo 5º “caput” é coerente. Uma vez que a reflexão propagada em relação à vida é similar ao pensamento empregado no tocante à propriedade.

Nesse ponto, nada mais justo do que enxergar a inviolabilidade como o óbice legislativo e moral positi-vado para a não criação de ameaças, perdas, turbações, ou embaraços de qualquer natureza ao exercício de reivindicação ou disposição do possuidor ou proprietário.

Diante disso, esses atributos só serão manifestados se houver propriedade, se não houver esses atributos perdem o seu sentido.

Nesse patamar, semanticamente, é legítimo identificar que a dicção constitucional, a par da propriedade privada, foi de garantir a inviolabilidade da propriedade, caso ela exista, e não de garantir a propriedade privada.

Entretanto, sistematicamente talvez a compreensão pretérita não seja a mais recomendada. Em verdade, percebe-se que o artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, traz consigo uma inerente cogência, trata-se de um artigo materialmente constitucional, com conotação pétrea, motivo pelo qual a sua exibilidade poderia ser encarada como latente.

Por outro lado, outra matéria importante se apresenta. Se a propriedade privada for encarada como exigível, esbarrados estarão os atores sociais na reserva do possível. Isto é, existirão recursos suficientes para prover propriedade a todo e qualquer cidadão? Razão pela qual a aludida exigibilidade sofre cautelas materiais, e posicionam essa possível interpretação como uma autêntica norma programática. Vale dizer, sem lapso temporal executório determinado, o que constrói um quadro de incerteza quanto ao artigo 5º da Constituição Federal, no que tange a propriedade privada.

Ter propriedade, em um Estado capitalista é requisito para a dignidade da pessoa humana. Ora, um indi-víduo que tem uma camisa e uma calça, ele tem condições de se vestir, não ficar despido, e não cometer o crime de ato obsceno. Perceba-se a sutileza desta argumentação, o Estado se não oferecer condições para a obtenção de uma propriedade mínima, ele mesmo criminaliza o indivíduo. Tal manifestação se dá nitidamente em relação ao exemplo da camisa.

Esses são elementos adjacentes a propriedade privada e que estabelecem distinta exegese daquela con-cernente à moradia.

A moradia é um direito social tratado no artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil. Trata-se de um direito materialmente constitucional, a exemplo da propriedade, de conotação pétrea. Ou seja, o suporte fático em tela não pode ser retirado do texto constitucional, sob pena de gerar a ne-cessidade de ser promulgada nova Constituição.

Este direito, diferentemente da propriedade, não é salvaguardado apenas a sua inviolabilidade, caso exista. Há a exigibilidade do direito de moradia.

A moradia, portanto, é tratada no artigo 6º e a propriedade no artigo 5º. Variações dogmáticas essas, que indiciam que a moradia é distinta da propriedade. Cuidadosamente a moradia pode ser destinada de formas distintas à concessão de moradia. Ora, é possível a moradia em uma casa sendo comodatário, locatário, usufrutuário, via habitação, por intermédio de um direito real social, entre outras modalidades.

Os direitos reais sociais, conforme já propagado, transmitem uma cogência. Nesse ponto, todos os cida-dãos fazem jus ao direito de moradia, é o que se observa semanticamente, com nova redação da emenda constitucional de número 64:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segu-rança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”(BRASIL, 2010)

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As formas supra ventiladas, demonstram que é possível ser morador com a obtenção apenas da posse. O que sacraliza uma vez mais o dualismo, o desligamento entre propriedade e moradia.

Essa característica está acompanhando o direito civil. E é uma característica inevitável, pois inexistem recursos para que todos os indivíduos sejam proprietários imobiliários, e o vetor mais recente que indica essa tendência, são os direitos reais sociais, previstos no artigo 1.225 do Código Civil, desse modo:

1.225. São direitos reais:

I - a propriedade;II - a superfície;III - as servidões;IV - o usufruto;V - o uso;VI - a habitação;VII - o direito do promitente comprador do imóvel;VIII - o penhor;IX - a hipoteca;X - a anticrese. XI - a con-cessão de uso especial para fins de moradia;        XII - a concessão de direito real de uso. (BRASIL, 2008)

3. Dignidade da pessoa humana

Indubitável a conotação subjetiva desta expressão. Indubitável a má utilização desta mesma expressão perante a sociedade. Inquestionável a transcendência e a centralidade deste elemento no ordenamento jurídico brasileiro.

Conceito jurídico indeterminado, que se constrói sucessivamente, e eternamente.

Preceitua a Constituição da República Federativa do Brasil sobre a proteção ao direito de imagem, bem como positiva a proteção da dignidade da pessoa humana, posicionando o mesmo bem jurídico com “status” de fundamento constitucional, no artigo 1º.

Vale preponderar, a Constituição Federal tem como razão existencial a dignidade da pessoa humana. Enfatize-se, se algum suporte se perfizer de forma a comprometer esse bem, certamente tal suporte não terá a mais exígua validade. Ademais, em consonância ao artigo 60, parágrafo 4º do mesmo diploma, verifica-se uma proteção de tamanha magnitude que se houver a revogação deste preceito, fadada estará a Constituição ao seu fim.

A dignidade da pessoa humana, portanto, está presente no artigo 1º da Constituição Federal, em seu inciso III, conforme a subseqüente dicção transmitida pelo legislador:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania; II - a cidadania;III - a di gnidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político .

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL, 2008)

A relevância e centralidade da dignidade da pessoa humana, é vista nas palavras de Nelson Nery Júnior, segundo o qual “é o fundamento axiológico do Direito; é a razão de ser da proteção fundamental do valor da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da responsabilidade que cada homem tem pelo outro.”

Na construção conceitual é acertado observar as implicações decorrentes desta expressão. A dignidade da pessoa humana tem contiguidades ou afeições à personalidade, todavia, antes de ingressar nesta argu-mentação, com brevidade se aponta que a dignidade tem afeições à imagem.

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A Constituição transmite que a imagem é inviolável e sua violação acarretará na vindicação, por parte daquele que sofreu, de danos morais. Ante o desejo de amenizar os danos à imagem sofridos, notada-mente pecuniariamente. Essa proteção tem previsão no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal e tem essa redação:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;(BRASIL,2008)

A dignidade tem repercussões concernentes à integridade física e a integridade intelectual. O que significa que a justificativa de proteção a imagem decorre da proteção à dignidade.

Em razão da conotação à integridade física e à integridade intelectual da dignidade da pessoa humana, inequívoca é a pertinência temática entre a dignidade e a personalidade.

Aliás, a dignidade é o conteúdo é o centro capaz de preencher o conteúdo da personalidade.

A personalidade tem duas concepções. A primeira diz respeito à integridade física e a segunda diz respeito à integridade intelectual.

Para a localização da personalidade na regência civil brasileira é necessário identificar se o Brasil adotou a concepção monista ou pluralista.

A distinção marcante entre o tratamento pluralista e monista dos direitos da personalidade diz respeito ao número de direitos concernentes aos direitos da personalidade. Em verdade, se houver uma determi-nada gama de direitos como pertencentes aos direitos da personalidade se estará diante do tratamento pluralista. Contudo, se não houver esta gama se estará diante do tratamento monista, na medida em que os direitos da personalidades seriam encarados como unitários.

Nas palavras de Gustavo Tepedino, tem-se a teoria pluralista, segundo Adriano De Cupis:

A favor da pluralidade de direitos, sustenta-se: admitido que a individuação dos bens ocorra com base na individuação das necessidades, e admitido que a exigência da existência seja distinta em relação àquela da liberdade; que a necessidade de viver de maneira honrada não se confunda com a necessidade de se distinguir dos outros sujeitos, etc(...) daí decorre por consequência que distintos são também os bens correspondentes assim como os direitos sobre estes.(TEPEDINO apud DE CUPIS, 1999)

Por outro lado a teoria monista:

Em defesa da tese oposta, argumenta-se que a pessoa humana é um valor unitário e que os seus interesses relativos ao ser, mesmo se dotados de características conceituais próprias, apresentam-se substancialmente interligadas. Disso resultaria que as diversas normas atinentes à tutela da personalidade, disseminadas pelo Código Civil, Código Penal e leis especiais, mas do que constituírem direitos autônomos, repre-sentaria a disciplina específicas de alguns aspectos particulares de sua tutela, da qual seriam o concreto desenvolvimento. (TEPEDINO apud DE CUPIS, 1999).

De modo que, se o legislador for exaustivo ou por demais analítico textualmente ao tecer sua deontolo-gia acerca da personalidade se estará diante do caráter pluralista da personalidade. Por outro lado, se o legislador não for exaustivo e não se preocupar em tecer uma multiplicidade de direitos e conceituações acerca da personalidade se estará diante do caráter pluralista.

A personalidade está positivada no artigo 11 do vigente Código Civil. Segundo esse artigo:

“Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” (BRASIL, 2008)

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É notório que o legislador estabeleceu alguns atributos acerca da personalidade, e não teceu uma multi-plicidade de direitos decorrentes da personalidade, nem tampouco se preocupou em estabelecer concei-tuações no bojo do artigo 11 e subseqüentes. Motivo pelo qual, o conteúdo da personalidade nos mais distintos ramos do direito, está na dignidade da pessoa humana. O que transmite o caráter monista da personalidade no direito brasileiro.

No artigo 12, há a ratificação do caráter monista, pois o legislador tão apenas se preocupou em cons-truir sua deontologia no sentido de codificar as conseqüências perpetradas na hipótese de violação da personalidade. Perceba-se:

“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.” (BRASIL, 2008)

E em seu parágrafo único com o mesmo condão, todavia, mencionando sobre o morto:

“Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.” (BRASIL, 2008)

4. Pós-modernidade como elemento justificador da interface entre a dignidade da pessoa humana nos horizontes do Direito Civil

O Direito Civil ao longo de sua história, conforme já se anunciou, passou por distintos momentos. Mo-mentos patrimonialistas, nos quais se verificava a predileção ao bem jurídico patrimônio em detrimento da dignidade da pessoa humana.

Hoje o Direito Civil vive um momento, reputa-se, mais nobre. Posto que no centro dos bens jurídicos desta vez está a personalidade, preenchida em seu conteúdo pela dignidade.

A pós-modernidade transmite uma sociedade distinta. Uma sociedade mais globalizada, industrializada, urbanizada, descontrolada em seus comportamentos, mitigada no tocante às fronteiras entre os povos, egocêntrica, informatizada, com recursos escassos. Nesta sociedade que se insere a contextualização ju-rídica de humanização, capaz de romper o dualismo entre direito público e direito privado, o primado da lei. De um lado se tem uma sociedade menos nobre, do outro se tem um direito aparentemente mais nobre. Nesse ínterim paradoxal se explanará sobre a pós-modernidade.

O direito civil caminha em consonância à Constituição. Vale afirmar, é aceitável disseminar que o Direito Civil não pode contrariar ou negar vigência a quaisquer dispositivos constitucionais. A grosso modo, o Direito Civil no paradigma pós-moderno, aceita a sua fragilidade ante o texto constitucional, aceita em um diálogo de ramos, que para melhor construir sua ciência necessita de outra âmbitos.

Todavia, nem sempre o Direito Civil se portou do modo dito no último parágrafo. Em certo momento histórico, interpretava-se que no centro do direito privado estava o Direito Civil, e no centro do Direito Público estava o Direito Constitucional, e ambos não sofriam interfaces.

Outrora se vivia entre a dicotomia entre Direito Público e Direito, segundo Francisco Amaral. Vale afir-mar, ambos os âmbitos do Direito não se interligavam. Elemento esse, que é prejudicial sim a ciência do Direito, que por sua vez restou superado. O que redundou no fenômeno do rompimento da dicotomia entre direito público.

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Ademais, vivia-se o primado da lei. Vale afirmar, em meio as múltiplas fontes do direito, a que merecia primazia e privilegiada repercussão seria a lei, a frente inclusive dos costumes, teoria do direito, analogia, princípios gerais do direito, etc.

Na contextualização do direito pós-moderna do direito civil. Necessário seria a flexibilização do princípio da legalidade, que traduz a necessidade de observância dos parâmetros normativos para aplicação de uma sanção. A legalidade merece sim uma minoração de seu impacto no direito, mister se faz dar guarida a teoria do direito, a jurisprudência, aos princípios, esses que sistematicamente constroem a melhor ciência do direito.

Some-se que a humanização, debatida neste trabalho, seria o fenômeno mais importante para a cons-trução do paradigma da pós-modernidade, posicionando a dignidade da pessoa humana como o bem mais relevante.

O contexto pós-moderno é sopesado da subseqüente forma, segundo Francisco Amaral:

A incapacidade do Direito moderno de responder as questões fundamentais como, por exemplo, a justiça social, o bem comum, e as pertinentes ao início e ao fim da personalidade e dos seus efeitos, assim como também a “inadequação metodológica relativamente ao problema concreto específico da realização do direito; Um certo retorno ao irracionalismo, no sentido de oposição à razão totalizadora do pensamento jurídico da modernidade; A passagem do individualismo ao solidarismo, ou solidariedade social, expressa na nova concepção de pessoa, não mais o sujeito abstrato e formal da modernidade, mas a pessoa engajada no seu meio social; O pluralismo das fontes de direito e a importância crescente dos princípios jurídicos na gênese da norma jurídica aplicável ao caso concreto; A possibilidade e o reconhe-cimento da individualização e concretude das normas jurídicas que levam em consideração os aspectos particulares dos casos concretos; A perda da certeza jurídica, a insegurança e a incerteza no direito com a conseqüente imprevisibilidade do que resulta a afirmação de que vivemos em uma sociedade de risco; A superação do formalismo jurídico, que levava ao “isolamento e alheamento dogmático das exigências e dos problemas histórico- sociais reais e actuais” em prol de uma tendência à “materialização” do direito, isto é, uma tendência ao particularismo jurídico na criação do direito e a utilização de razões materiais pelos órgãos aplicadores do direito. Conseqüentemente, o direito não se apresenta mais como um sistema completo e coerente, capa de dar resposta a todas as questões jurídicas; A constitucionalização dos princípios fundamentais do direito privado, no sentido da sua recepção pelo texto constitucional, que passa a ser o estatuto central da sociedade civil e política, e, conseqüentemente, a perda da cen-tralidade sistêmica do Código Civil , própria do direito moderno; Relativização da dicotomia Estado X Sociedade Civil, ou público privado, surgindo um terceiro setor, o dos interesses públicos, porém não estatais, ora a cargo de entidades ou associações não-governamentais; Superação do princípio da divisão dos poderes na criação do direito, reconhecendo-se que aplicar é também criar direito; Crise e até superação da idéia do direito como sistema de normas hierárquicas e axiomáticas. O direito deixa de ser visto como um sistema de normas e passa a ser visto como sistema de procedimentos, superando-se o pensamento sistemático em prol do pensamento problemático; Personalização do direito civil, no sentido da crescente importância da vida e da dignidade da pessoa humana, elevados a categoria de direitos fundamentais ou humanos, que “constituem o núcleo das Constituições dos sistemas jurídicos contemporâneos. (AMARAL, 2003, p. 74-76)

Tão somente com esses rompimentos e com estas proposições se faz possível atingir o paradigma da pós-modernidade.

E tão apenas neste paradigma que se tem o cristalino encaixe da respeitabilidade à dignidade da pessoa humana.

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5. Conclusão

O direito civil brasileiro precisa determinar a sua identidade, patrimonializada ou humanizada. Nesse viés, predileciona-se o caráter humanizado, não obstante a interfaces entre as duas conotações exista.

Diante disso, o caráter humanizador adequadamente transmite que as manifestações em relação ao direito civil, devem ser feitas no sentido de prestigiar precipuamente a dignidade, até mesmo em relação ao patrimônio.

O especial privilégio da dignidade da pessoa humana cria uma responsabilidade substancial aos atores jurídicos. E via de conseqüência à apontada especialidade, inelutável é exteriorizar que a dignidade da pessoa humana deve perpassar por todos os institutos do direito, sem qualquer exceção, sob pena de se desprestigiar o sentido legislativo constitucional.

Pelo exposto, a propriedade privada deve apresentar limites em seu exercício, entre os quais a função social da propriedade e as restrições ambientais.

Em consonância ao raciocínio empregado no último parágrafo, tem-se que uma das formas de se garantir a dignidade da pessoa humana em relação à propriedade privada é através da função social da propriedade. Posto que esta é capaz de sucumbir aqueles que desrespeitam a aludida função social.

Portanto, raciocina-se que a melhor hermenêutica deve ser mesmo no sentido de que a propriedade é condição sine quan non para a existência de dignidade. Entretanto, no que tangencia a propriedade imobiliária, a maneira de se salvaguardar a dignidade é através da moradia, esse sim um direito social do cidadão, e não por meio da propriedade privada, que garantida foi tão somente a sua inviolabilidade, caso exista.

Referências

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BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.Disponível em<www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/LEIS_2001/L10257.htm > Acesso em 18 de dezembro de 2010.

FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo/SP: Revista dos Tribunais, 2006.

SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Do Direito de Propriedade ao Dever da Propriedade. In: XVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte. XVI Congresso Nacional - Belo Horizonte - Anais CONPEDI. Florianópolis : Editora da Fundação Boiteux, 2007.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001

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A busca pelo direito à moradianas diversas modalidades

de usucapiãoNáglia Naiara Sales

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1. Introdução

Não resta dúvida de que a falta de moradia digna para grande parte da população é oriunda da má distribuição de renda e consequente exclusão social, representando, nos dias de hoje, a origem de muitos dos problemas enfrentados pelos brasileiros.

Disso decorre ainda a ocupação desordenada e irregular no Brasil, fato que redunda, em último grau, na majoração do preço do solo e o aumento dos custos para a construção de habitações. Como toda reação em cadeia, tudo isso só agrava a condição de miserabilidade de grande parte da população.

Nesse contexto, a busca pela moradia passa a ser uma questão de suma importância para a população brasileira, que conta com políticas públicas insipientes e pouco preocupadas com a ordenação urbanística.

É neste diapasão, que o instituto jurídico da usucapião adquire maior importância, revelando-se como uma das formas escolhidas pelo legislador para dar concretude à função social da propriedade e promover a efetivação do direito à moradia, inserido no texto constitucional de maneira expressa apenas com a edição da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000.

Todavia, mesmo que o instituto da usucapião esteja juridicamente consolidado, existem entraves que ainda impedem sua aplicação de maneira otimizada, o que possibilitaria inclusive contornar distorções provenientes não só da forma de ocupação de áreas rurais ou urbanas, como também da formação cultural influenciada de forma acentuada pelos ideais liberais.

É cediço a importância da propriedade nos dias de hoje, mas até que ponto ela deve prevalecer sobre a dignidade da pessoa humana, pedra de toque da Constituição da República de 1988? Esta questão é a que busca ser respondida pelo presente trabalho, considerando a usucapião em suas diversas modalidades. Para tanto, o entendimento de abalizados teóricos fez-se indispensável para a melhor orientação acerca da usucapião e em que medida esse instituto é capaz de contribuir para tornar efetivo o direito à moradia.

19 Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pelo IES CEAJUFE. Aluna da disciplina isolada “Evolução do Direito das Coisas do Código Civil de 1916 ao Código Civil de 2002” do Mestrado em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor: Adriano Stanley Rocha Souza. E-mail: [email protected]

A busca pelo direito à moradia nas diversas modalidadesde usucapião

Náglia Naiara Sales19

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51Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

2. Direito à moradia

2.1 Breve Evolução Histórica do Direito à moradia

Em termos de ordem internacional, pode-se afirmar que as primeiras Constituições a reconhecerem expressamente o direito à moradia foram as Constituições do México e da Alemanha, respectivamente, de 1917 e 1919.

O direito à moradia foi reconhecido pelo sistema de proteção aos direitos humanos e inserido na De-claração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948. Com efeito, nos termos do art. XXV da Declaração:

Artigo XXV

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispen-sáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (ONU, 1948).

Desde então, a partir do referido dispositivo, no cenário internacional o direito à moradia teve seu reconhe-cimento mantido em diversos tratados e documentos internacionais, destacando-se o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, que foi devidamente ratificado e incorporado ao direito interno brasileiro pelo Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, vejamos:

Artigo 11

1.  Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento. (BRASIL, 1992).

Ainda no plano internacional, conforme elenca Patrícia Gabai Venâncio (2009), cumpre citar a Conven-ção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965; Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976; Declaração sobre Raça e Preconceito Racial de 1978; Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979; Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; Convenção sobre os Trabalhadores Migrantes de 1990; Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992; Carta Social Européia, revisão de 1996.

No Brasil, o direito à moradia foi inserido na Constituição na condição de direito fundamental social expresso somente com a edição da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que alterou o art. 6º da Constituição da República de 1988 (BRASIL, 1988).

Cumpre salientar, que a jurisprudência pátria, já registrava decisões anteriores a Emenda nº. 26 de 200020, reconhecendo um direito à moradia como elemento necessário da própria dignidade da pessoa humana. À título de ilustração:

ADMINISTRATIVO. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. MUTUÁRIO COM DOIS FI-NANCIAMENTOS. IMÓVEIS SITUADOS EM LOCALIDADES DIVERSAS. CONTRIBUIÇÕES REGULARES PARA O FCVS - FUNDO DE CORREÇÃO DE VARIAÇÕES SALARIAIS. POS-SIBILIDADE DE COBERTURA. ART. 9º, § 1º, DA LEI 4.380/64.

20 Nesse sentido observe-se os julgados do STJ: REsp. 101.061 /PB, (BRASIL, 1996a), REsp. 85.521/PR (BRASIL, 1996b) e REsp. 75.500 /SP (BRASIL, 1997).

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1 - O art. 9º, § 1º, da Lei 4.380/64, expressamente rezava que "as pessoas que já foram proprietárias, promitentes compradoras ou cessionárias de imóvel residencial na mesma localidade... (vetado)... não poderão adquirir imóveis objeto de aplicação pelo sistema financeiro da habitação". 2 - Merece ser mantida a interpretação do aresto de segundo grau no sentido de que o dispositivo supratranscrito, quando vigente, permitia a aquisição de mais de um imóvel pelo SFH, desde que não localizados no mesmo Município.

3 - A questão habitacional é um problema que possui âmbito nacional, e suas causas devem ser buscadas e analisadas sob essa extensão, devendo ser assumida pelos vários segmentos da sociedade, em mútua colaboração na busca de soluções, eis que a habitação é elemento necessário da própria dignidade da pessoa humana, encontrando-se erigida em princípio fundamental de nossa República (art. 1º, III, da CF/88).

4 - Recursos especiais improvidos. (BRASIL, STJ, REsp 213422 /BA, Rel. Min. José Delgado, 1999).

Constata-se também que mesmo antes da promulgação da referida emenda, no texto da própria Cons-tituição da República de 1988, já havia menção expressa à moradia em outros dispositivos. É o que se pode observar da redação do artigo 23, inciso IX:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

[...]

IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;

Assim também, o art. 7º, IV, da Constituição de 1988, estabelece sob a ótica dos direitos sociais:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Por outro lado, Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que:

[...] por força do art. 5º, § 2º, da nossa Constituição, tendo em vista ser o Brasil signatário dos principais tratados internacionais em matéria de direitos humanos, notadamente (e isto por si só já bastaria) do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, já formalmente incorporado ao direito interno, e partindo-se da premissa largamente difundida pela melhor doutrina (embora ainda não incontroversa e, de resto, repudiada pelo nosso Supremo Tribunal Federal) da hierarquia constitucional destes tratados, poder-se-á sustentar que o direito à moradia já era até mesmo expres-samente consagrado na nossa ordem interna, pelo menos na condição de materialmente fundamental. (SARLET, 2003, p.429).

Diante dos citados dispositivos, vislumbra-se que o direito à moradia é um direito social de todos, protegido pela Constituição desde sua promulgação em 1988, tendo alcançado maior relevância com a Emenda Constitucional nº 26 de 2000.

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2.2 Moradia x propriedade

A fim de melhor elucidar o objeto do presente estudo, ao contrário do que possa aparentar é importante mencionar que o conceito de moradia não pode ser confundido com o conceito de propriedade. E isso decorre da própria origem destas palavras.

Moradia, variação de morada, morfologicamente composta pelo verbo morar (habitar, viver, ter esta-belecido residência), unida ao sufixo ada (cuja origem latina traz a idéia de conjunto, medida, acção), pode ser conceituada como:

[...] o lugar íntimo de sobrevivência do ser humano, é o local privilegiado que o homem normalmente escolhe para alimentar-se, descansar e perpetuar a espécie. Constitui o abrigo e a proteção para si e os seus; daí nasce o direito à sua inviolabilidade e à constitucionalidade de sua proteção. (NOLASCO, 2008, p. 88).

Por sua vez, propriedade, segundo ensinamentos de César Fiúza (2010), caracteriza-se:

[...] como a situação jurídica consistente em uma relação dinâmica e complexa entre uma pessoa, o dono, e a coletividade, em virtude da qual são assegurados àquele os direitos exclusivos de usar, fruir, dispor e reivindicar um bem, respeitados os direitos da coletividade. (FIUZA, 2010, p.766-767).

Diante disso, vale observar que para Sarlet, (2003), embora a propriedade sirva também de moradia, e, apesar da moradia em determinadas circunstancias por determinação constitucional, assumir a condi-ção de pressuposto para aquisição de propriedade (ex: usucapião especial constitucional), sendo ainda, elemento indicador da aplicação da função social da propriedade, o direito a moradia, vale ressaltar, é direito fundamental autônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios.

Logo, é bem de ver que o direito à moradia por estar vinculado ao direito de uma existência digna, em diferentes situações, assume uma posição privilegiada em relação ao direito de propriedade, justificando inúmeras limitações a este direito.

Nesse sentido deve-se destacar que:

[...] mesmo sem a propriedade sobre um bem imóvel a pessoa, por si só, não estará necessariamente privada de uma vida digna, o que, por outro lado, inevitavelmente ocorrerá em não dispondo de uma moradia com padrões compatíveis com uma vida saudável. (SARLET, 2003, p.434).

No entanto, a despeito da relevância ínsita ao direito de moradia, cumpre salientar que na Constituição de 1988 não há nenhuma definição a seu respeito, por isso, devemos aplicar sempre que necessário, a normatização internacional.

Para tanto, a Comissão da ONU para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais enumerou uma série de elementos mínimos que devem ser respeitados em termos de um direito à moradia, vejamos:

a) segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e origem;

b) disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde, segurança, conforto e nutrição dos titulares de direto (acesso a água potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento básico e etc.)

c) as despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a satisfação de outras neces-sidades básicas;

d) a moradia deve oferecer condições efetivas de habitabilidade, notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes;

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e) acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os portadores de deficiência;

f ) localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde, educação e outros serviços sociais essenciais;

g) a moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a identidade e diversidade cultural da população. (SACHAR apud SARLET, 2002, p.17-18).

Com efeito, bastante elucidativa a idéia de que:

O direito à moradia não pode ser visto apenas como o direito a um abrigo, representado tão somente pela edificação. A concepção moderna da moradia deve abranger a observância dos padrões construti-vos, evitando riscos à vida humana, a regularidade da posse ou da propriedade sobre a qual ascende e ao acesso aos serviços e equipamentos urbanos essenciais, especialmente os de saneamento básico, energia elétrica e coleta de lixo. Isto é, a moradia é o local onde o indivíduo tenha condições de viver dignamente, em condições de salubridade física e mental, e que lhe forneça as condições mínimas necessárias para o desenvolvimento de suas potencialidades e manutenção de seu bem-estar e de seus familiares. (SOUZA, 2006, p.139).

O direito à moradia, em suma, não pode ser considerado apenas um teto para se viver ou um lugar para se morar, pois assim só poderia ser visualizado como mera propriedade, desprovida dos valores capazes de promover os indivíduos à condição de pessoas, à condição de cidadãos, violando as garantias mínimas que a própria Constituição de 1988 assegura. Ao contrário, vendo-o como valor desvinculado de um espaço físico, podem ser observados os critérios mínimos que de fato são capazes de qualificá-lo como um direito à moradia digna.

3. A usucapião

3.1 Breve histórico da usucapião no Brasil

Segundo ensinamentos de César Fiúza (2010), a palavra usucapião etimologicamente quer dizer aquisição pelo uso. Tem como fundamento a posse prolongada, que transmuta situação de fato em situação de direito.

De forma elucidativa, Silvio de Salvo Venosa explica que:

A possibilidade de posse continuada gerar a propriedade justifica-se pelo sentido social e axiológico das coisas. Premia-se aquele que se utiliza utilmente do bem, em detrimento daquele que deixa escoar o tempo, sem dele utilizar-se ou não se insurgindo que outro o faça, como se dono fosse. (VENOSA, 2003, p.192).

Trazendo a devida contextualização histórica, pressuposto para a melhor compreensão de qualquer insti-tuto jurídico, Adriano Stanley Rocha Souza (2009) bem assinala que a usucapião chegou ao ordenamento civil brasileiro por meio das Ordenações do Reino, porém, naquela época existia somente a usucapião ordinária e extraordinária.

No período Brasil Colônia, com a chegada dos primeiro emigrantes colonizadores, a ocupação territorial de deu de forma aleatória, desprovida de quaisquer formalidades, considerando a ausência de estrutura jurídica que fundamentasse formalmente a aquisição da posse e da propriedade.

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Em um segundo momento, a fim de legitimar essa situação:

[...] os ocupantes dessas terras foram convocados a regularizarem suas posses, utilizaram-se, justamente, do instrumento da usucapião ordinária, tendo em vista que era a modalidade mais comum de ocorrer naquele tempo. Essa modalidade, nesse tempo, consistia na posse ad usucapionem, mansa, pacífica e ininterrupta por certo lapso temporal, e não exigia nem justo título e nem boa-fé.

Excepcionalmente [...] alguém adquiriria terras que já cabiam à outra pessoa. Nesse caso, a regularização dessa posse exigia a demonstração de um justo título que justificasse tal atitude, bem como a demonstração da ocorrência de boa-fé. [...] pelas peculiaridades da época, tal fato era mais raro de ocorrer, era, portanto, extraordinária a sua ocorrência, e a regularização dessa posse se dava, portanto, pela usucapião extraordinária. (SOUZA, 2009, p.87).

Nesse sentido, Souza (2009) explica que a paulatina redução das terras sem nenhuma ocupação anterior, foi um dos fatores que ocasionou a inversão dos nomes de institutos jurídicos já antes consagrados no período das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Assim, surgiria o Código Civil de 1916, tra-zendo em seu texto como usucapião ordinária modalidade que antes era extraordinária e vice-versa.

Portanto, o Código Civil de 1916, em seu artigo 550 previa apenas a usucapião extraordinária, que in-dependia de justo título e boa-fé, contando como requisito apenas a posse mansa pacífica e ininterrupta por vinte anos, ao passo que no artigo 551, era delineada a usucapião ordinária, para qual se exigiam requisitos mais rigorosos, quais sejam, além do justo título e boa-fé, o atendimento ao requisito temporal de quinze ou dez anos, respectivamente entre ausentes e presentes, da posse igualmente mansa, pacífica e ininterrupta.

Mais adiante, surgiria uma nova modalidade de usucapião, a que se denominaria usucapião constitucional rural, como conseqüência de uma nova ordem constitucional inaugurada com o advento da Constituição de 1934:

Art 125. Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua morada, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.

Por fim, a promulgação de Constituição da República de 1988, sedimentando as conquistas oriundas da evolução da legislação brasileira, incorporou a usucapião constitucional com algumas alterações, to-davia mantendo os seus contornos iniciais. Além disso, avançando, passou a prever em seu artigo 183 a chamada usucapião constitucional urbana:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Com o surgimento do Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10 de julho de 2001), cujos principais objetivos foram o de propiciar a reorganização urbanística e regularização fundiária, trouxe a usucapião coletivo. Diante desse quadro é que acertadamente observa Francisco Loureiro (2002), que a Lei 10.257 é um importante instrumento que permite a urbanização de áreas ocupadas por comunidades de baixa renda, modificando ainda os traços das ocupações irregulares e melhorando a condição de vida da população através da ordenação do espaço urbano.

Finalmente, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, as quatro modalidades já citadas de usu-capião foram reunidas, implementando-se, contudo, algumas modificações no que tange aos prazos que, de modo geral, foram encurtados. Ademais, o Código Civil de 2002 criou subespécies das modalidades

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ordinária e extraordinária, buscando efetivar o direito à moradia como forma de promoção da função social da propriedade.

Como conseqüência, cumpre observar que “se por um lado o usucapiente adquire o domínio, aquele que eventualmente o perde sofre punição por sua desídia e negligência em não cuidar do que é seu.” (VENOSA, 2003, p. 195).

Assim, feita a devida contextualização, segue-se para a necessária análise das modalidades de usucapião, a fim de se constatar em que medida cada uma delas contribui para a promoção do direito de moradia.

3.2 As modalidades de usucapião no Código Civil

Como acima mencionado, o Código Civil de 2002 trouxe uma nova roupagem ao instituto da usucapião, na medida em que conferiu à propriedade um sentido social, em atendimento inclusive ao comando constitucional. Deve-se ressaltar que:

Como o usucapião é o instrumento originário mais eficaz para atribuir moradia ou dinamizar a uti-lização da terra, há um novo enfoque no instituto. [...] Desse modo, a idéia básica no novo diploma é no sentido de que as modalidades de usucapião situam-se no tempo do período aquisitivo, mais ou menos longo. (VENOSA, 2003, p.199).

Com efeito, o artigo 1.238, do Código Civil, em seu caput, traz a usucapião extraordinária.

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Anteriormente prevista no Código Civil de 1916, para a aquisição da propriedade sob esta modalidade exigia-se o prazo de vinte anos. Agora, a redação do artigo 1.238 reduziu este prazo para quinze anos; clara manifestação de maior rigor no tratamento da propriedade privada que desatende à sua função social.

Vale lembrar que para esta modalidade, o possuidor não se submete a nenhuma obrigação para adquirir o imóvel usucapiendo. Portanto, de acordo com Souza (2009), a posse pode ter como finalidade o es-tabelecimento de moradia habitual ou não, independentemente do possuidor ser proprietário de outro imóvel e tirar dali o seu sustento, pouco importando ainda o tamanho da área usucapienda.

Já no parágrafo único do mesmo dispositivo, está prevista a usucapião extraordinária para fins de moradia. Nesta hipótese, o prazo para o exercício da posse mansa e pacífica, independente de justo título e boa-fé, é reduzido para dez anos. Contudo, exige-se um novo requisito, qual seja, a posse deve ser exercida com a precípua finalidade de proporcionar ao usucapiente moradia habitual ou, senão, deve-se ter realizado na coisa obras ou serviços de caráter produtivo.

Como se pode observar, na modalidade do parágrafo único do artigo 1.238, a moradia é colocada em um patamar especial pelo legislador ordinário, que apesar de conferir ao dispositivo certo grau de sub-jetividade, não impede que no caso concreto seja aferida a verdadeira intenção do possuidor, com base no comportamento por ele exteriorizado em relação à coisa.

A propósito, o que almeja o legislador é considerar a propriedade como um meio de possibilitar ao in-divíduo melhores condições de vida.

Por sua vez, no artigo 1.242, há previsão para a aquisição da propriedade pela chamada usucapião ordinária:

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

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Para tanto, cumpre observar, de acordo com a redação legislativa, há necessidade de observância do prazo de dez anos de posse mansa e pacífica. Pode-se observar que se trata do mesmo prazo estabelecido pelo parágrafo único do artigo 1.238, contudo, agora exige-se o justo título e a boa-fé. Conforme ensina-mentos de Fiuza:

“Justo título é toda causa que seria, em tese, hábil para transferir a propriedade, mas não faz por defeito, que pode ser: a) não ser o transmitente dono; b) não ter poderes para alienar a coisa; c) outro vício que o torne passível de anulação. (FIUZA, 2010, p.801).

O justo título, por assim dizer, é matéria de prova cuja valoração deve ser conferida caso a caso.

Semelhante à técnica utilizada no artigo 1.238, o parágrafo único do artigo 1.242 prevê a usucapião or-dinária para fins de moradia. Neste caso, o prazo sofre a drástica redução para cinco anos, sob a seguinte redação:

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. (BRASIL, 2002).

Aqui também o conceito de moradia é novamente posto em voga. Não basta aos possuidores a aquisição onerosa do imóvel levado a registro, mas submetido a posterior cancelamento. Ao usucapiente incumbe demonstrar que sobre o bem havia estabelecido moradia, ou seja, que residia no local com o intuito de ali viver e subsistir; ou então, de outro modo, que realizou investimentos de interesse social e econômico sobre o bem.

3.3 As modalidades de usucapião na Constituição de 1988

Na Constituição de 1988, existem duas outras modalidades de usucapião, a saber, a usucapião constitu-cional rural e a usucapião constitucional urbana.

A usucapião constitucional rural, ou usucapião pro labore, está prevista no artigo 191 da Constituição de 1988, reproduzida no artigo 1.239 do Código Civil de 2002.

Tem como requisitos o exercício da posse de terra situada em zona rural pelo lapso de cinco anos ininter-ruptos, sem oposição e dispensando justo título e boa-fé. Para esta modalidade, a aquisição está limitada a porções de terras não superiores a cinqüenta hectares, não podendo o possuidor ser proprietário de qualquer outro imóvel urbano ou rural.

A área usucapienda deve ser utilizada para moradia, tornando-a ainda produtiva através do seu trabalho ou de sua família.

Como já mencionado, essa modalidade foi criada pela Constituição de 1934 com o intuito de fixar o homem no campo, “garantindo-lhe a aquisição da propriedade sobre as terras em que nela residisse e dela tirasse o seu sustento [...]”. (SOUZA, 2009, p.95).

Prevista no artigo 183 da Constituição de 1988, a usucapião constitucional urbana, também conhecida como usucapião especial pro misero, toma conotação especialmente social.

Por meio dela, o possuidor de área urbana, restrita a duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptos, de forma mansa e pacífica, adquirir-lhe-á a propriedade, desde que a utilize para sua moradia ou de sua família. Novamente, é dada ênfase ao direito de moradia que, mais uma vez, assume posição importante nas modalidades de usucapião.

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Para a aquisição da propriedade pela usucapião constitucional urbana, o texto constitucional dispensa o justo título e a boa-fé, no entanto impõe como restrição a impossibilidade de ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

A esse respeito:

Note-se, portanto, que nessa modalidade, como na modalidade constitucional rural, o público que o constituinte visou a alcançar era um público muito específico: o público de baixa renda, que utilizasse imóvel alheio desocupado, fazendo-o para suprir as suas necessidades básicas, moradia e sustento. (SOUZA, 2009, p.95).

Assim, é importante perceber que esta modalidade buscou incentivar o uso das áreas urbanas por seus respectivos proprietários, orientando-os no sentido de dar cumprimento à função social na promoção do pleno desenvolvimento urbanístico.

Deve-se também realçar que a usucapião pro misero está prevista na legislação infraconstitucional, espe-cificamente no artigo 1.240 do Código Civil de 2002, apresentando exatamente a mesma redação do artigo 183 da Constituição.

Mas isso não é tudo. Esta modalidade foi também regulamentada no artigo 9º, da Lei 10.257 de 2001, que traz a seguinte redação:

Art. 9o. Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

[...] (BRASIL, 2001, grifo nosso).

O Estatuto da Cidade inovou ao inserir a expressão “edificação”, ampliando o alcance do instituto, antes restrito apenas às áreas urbanas. Por conseguinte:

Constata-se, pois, que não consiste em mera reprodução do artigo 183 da Constituição Federal, uma vez que, apesar de ser diploma que veio a pormenorizar e regular as regras constitucionais sobre a política urbana, refere-se ao usucapião não só da áreas, não só do solo urbano, mas também da edificação, o que não consta do texto constitucional. (PEREIRA, 2009, p.278).

Deste modo, pode-se chegar à conclusão de que tanto as áreas edificadas quanto as não edificadas são passíveis de serem usucapidas, obviamente, desde que atendidos todos os demais requisitos.

3.4 Da usucapião coletiva

Com previsão nos artigos 10 a 14 do Estatuto da Cidade, a usucapião coletivo permite aquisição da propriedade de terrenos urbanos de mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, mediante a posse ininterrupta por cinco anos, exercida por população de baixa renda. Semelhante à usucapião constitucional urbana, os usucapientes não podem ser proprietários de qualquer imóvel urbano ou rural.

Na usucapião coletivo, outro requisito a ser realçado é a impossibilidade de identificação dos terrenos ocupados, ou seja, deve ter ocorrido uma ocupação desordenada, como ocorre nos aglomerados urbanos, tão comuns nas grandes cidades.

É modalidade que assume como objetivos:

[...] a melhoria das condições de vida da população por meio da ordenação do espaço urbano e de uma legislação específica, de forma a preservar as tipicidades das ocupações espontâneas e integrá-las à estru-tura urbana da cidade formal; a garantia da permanência da população nas áreas ocupadas, priorizando o direito à moradia sobre o direito à propriedade; a instalação de um processo de apoio à organização

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comunitária por meio da participação da população beneficiária em todas as etapas da regularização, desde o seu planejamento inicial até o resultado final; e a minimização da segregação urbana e exclusão social existentes nas cidades brasileiras. (PEREIRA, 2009, p.281).

Segundo José Guilherme Perroni Schiavone (2009) trata-se, portanto, de inovação que torna possível reconhecer o direito de moradia às famílias que vivem em condições precárias de habitação e segurança jurídica, tal como ocorre em favelas, loteamentos clandestinos e irregulares, conjuntos habitacionais abandonados, cortiços entre outros.

No entanto, como a aquisição da propriedade nestes casos enseja a formação de um condomínio especial, onde não é possível delimitar a área de cada possuidor, pode-se vislumbrar alguns entraves à aplicação deste dispositivo. Isso porque a maioria das ocupações irregulares se dá em áreas públicas, que não são passíveis de serem usucapidas por expressa vedação constitucional.

Vale lembrar que o direito de moradia também é reconhecido para as pessoas que estão na posse de áreas públicas. Para tanto, é necessário o atendimento dos requisitos do artigo 183 da Constituição de 1988, que confere concessão de uso para fins de moradia, mas não a transferência do domínio sobre o bem.

Ademais, lembra José Guilherme Perroni Schiavone (2009) que mesmo que as favelas estivessem localizadas em áreas privadas, o fato de ter moradores que exercem atividades comerciais, dificultaria a aplicação do instrumento, pois, a lei determina que o imóvel deve ser utilizado para moradia própria e de sua família.

4. Conclusão

A realidade é capaz de demonstrar que a desídia por parte do Estado em buscar a efetivação do direito à moradia, regulamentando a ocupação apenas das áreas legalizadas, acarreta o abandono das áreas pobres que possuem pouco valor imobiliário. Entretanto, deve-se salientar que são nestas áreas renegadas pelo Poder Público que grande parte da população se estabelece, vez não possuir recursos capazes de arcar com os altos custos exigidos pelo mercado formal.

De qualquer modo, o crescimento significativo das favelas e das ocupações irregulares, torna-se cada vez mais preocupante nos dias de hoje. Todavia, não se pode considerar que qualquer espaço físico para se viver garanta o direito à moradia digna, enquanto garantia constitucionalmente expressa.

No Brasil, com a promulgação da Constituição de 1988, ocorreu a facilitação da aquisição da propriedade pela usucapião, que mediante a comprovação (dentre outros requisitos) da utilização do imóvel para fins de moradia própria ou de sua família, causa o abrandamento significativo do lapso temporal exigido. Com isso, pode-se afirmar que a moradia é um relevante pressuposto para a aquisição da propriedade.

É forçoso reconhecer, ainda, a segurança jurídica que o título da propriedade oferece às pessoas. Esse viés traz consigo significativas repercussões urbanísticas, tanto para os moradores como para o Poder Público, já que atrai e viabiliza investimentos que melhoram os padrões urbanísticos da área.

Portanto, é mister concluir, que a usucapião traz consigo importantes benefícios, principalmente para a população de baixa renda. Além disso, é meio necessário à busca da efetivação do direito à moradia, já que a regularização da posse implica em consequências importantes para o cidadão, pois, confere status e distinção, proporcionando-lhe condições dignas de subsistência.

À vista disso, pode-se dizer que a usucapião, nas modalidades previstas no Código Civil, artigos 1.238 e 1.242, em seus respectivos parágrafos únicos; bem como artigos 183 e 191, da Constituição de 1988, são meios perfeitamente aptos a elevar os indivíduos à condição de cidadãos, tornando-lhes palpável uma vida digna por meio da aquisição não apenas de um bem, mas também de uma morada com todas as implicações positivas daí decorrentes.

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Quanto à usucapião coletivo, deve-se apenas ponderar acerca da viabilidade de sua aplicação, consideran-do a complexidade das relações humanas em situações que o ordenamento jurídico pode não conseguir acompanhar. Neste ponto, cabe observar que uma melhor técnica legislativa na redação do artigo 14 da Lei 10.257/2001 poderia adequar sua aplicação a fim de melhor disciplinar as demandas sociais da população que vive nos aglomerados urbanos.

Logo, é de rigor constatar, por fim, que o instituto da usucapião, embora vetusto, está em franca expan-são, acompanhando a evolução daquilo que se pode entender por direito de propriedade no contexto da ordem constitucional vigente.

Referências

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O Direito Real de Superfície, Regularização Fundiária e o

Princípio da Dignidade HumanaWânia Triginelli

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1. O Direito Real de Superfície

1.1 Desenvolvimento histórico

Da mesma forma como grande parte dos institutos do Direito Civil brasileiro, o Direito de Superfície teve sua origem no Direito Romano – helênico.

Segundo Adriano Stanley:

...Quanto à origem do Direito Real de Superfície (tal qual enfiteuse), suspeita-se que ela tenha chegado ao império romano pela conquista das províncias helênicas, quando tomada da Grécia pelos romanos.21

Em Roma, aquele que detinha o domínio, ou seja, era o dono do solo, detinha em presunção “iure et iuris” a propriedade de tudo que se incorpora ao solo, como construções e ou plantações. Assim, tudo que se acrescia ao solo era propriedade do dono da terra.

Diana Coelho Barbosa,22 assim trata da origem do Direito de Superfície:

Alguns autores alemães dentre os quais DANS, DITTMAR e PUCHTA, mencionados por Bulfoni, entendem a partir de uma interpretação de um fragmento de Giustino, que a LEX ICÍLIA de Aventino, publicada no ano de 298 de Roma, teria concedido aos plebeus a faculdade de edificar suas próprias habitações sobre a coluna de Aventino, a título de superfície.

Continua a jurista argumentando que para o jurista italiano este fato atesta tão somente a existência, àquela época, de condomínio “pró-indivíduo”.

Segundo ainda a autora, também sobre “agri publici”, um fragmento de Dionísio (X, 32) e a “Lex Thoria Agrária” de 643. Aquele primeiro, porém, não continha menção ao direito de superfície; quanto a esta última, embora concedesse ao beneficiário a faculdade de construir sobre o “ager occapatorius”, mediante o pagamento de um “salarium” ao Estado, tal direito não podia, contudo, ser entendido como de superfície, pois tinha como objeto apenas o terreno, excluída a construção”.23

21 SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito das coisas. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.159. (Coleção Direito Civil).

22 BARBOSA, Diana Coelho. Direito de superfície à luz do Estatuto da Cidade. Curitiba: Juruá, 2001, p. 21.

23 BARBOSA, Diana Coelho. Direito de superfície à luz do Estatuto da Cidade. Curitiba: Juruá, 2001, p. 21-23.

O Direito Real de Superfície, Regularização Fundiária e o Princípio da Dignidade Humana

Wânia Triginelli

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65Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

“Já Appiano, a seu turno, faz referência a uma obrigação imposta por ‘Lei de Caio Gracco’, a qual previa a evacuação do ‘Ager Publicus’, concedendo, no entanto, aos ocupantes do terreno o valor correspondente às construções ou plantações nele erguidas.”24

Segundo Arnaldo Rizzano,25 “no curso do Século II d.C já se admitia aos particulares o uso do solo alheio, construindo moradias na superfície ou fazendo plantações. Tal forma de utilização mereceu a proteção do pretor, que concedia ao superficiário, quando ofendido em sua posse, um interdito de afastamento da perturbação. Bem mais tarde ainda, no período pós-clássico, tornou-se um preceito o direito de superfície”.

Torna-se de fácil verificação que o que alavancou a necessidade de se construir doutrinária e legislativa-mente o direito de superfície foi a urbanização.

A crescente concentração, por diversos motivos, da população em grandes centros propiciou a busca de medidas para uma melhor utilização dos espaços pouco aproveitados. Segundo Élcio Nacur,26 “o Direito Público foi o precursor do direito de superfície, na medida em que a administração pública permitia que particulares construíssem em suas terras mediante retribuição como meio de fomentar a urbanização, a geração de riquezas ou simplesmente como forma de garantir a ocupação de terras conquistadas”.

Vale ressaltar a importância do direito de superfície, constatável sua necessidade com a crescente urba-nização, a concentração da população nas cidades. Fato que, entre outros, só vem justificar a utilização de tal direito real, como melhor utilização dos espaços urbanos, contribuindo para a funcionalização da propriedade, noção contemporânea de tal direito.

1.2 Natureza jurídica

O direito de superfície é direito real, oponível a terceiros quando cumprido o requisito da publicidade registral imobiliária.

O superficiário é proprietário da construção ou plantação e essa propriedade é autônoma, independente da propriedade do dono.

Por esse intuito jurídico cria-se um direito real em coisa alheia, suspendendo ou interrompendo o prin-cípio da acessão, pelo prazo de duração da concessão. Segundo José de Oliveira Ascenção, o direito de superfície representa “a outra face da acessão”.27

A constituição do direito da superfície está disposta na Lei n. 10.406/2002 (CC, art. 1.369).

Já em relação aos imóveis urbanos, a concessão é definida no art. 21 e seus parágrafos da Lei n. 10.257/2001 – Estatuto da Cidade.

Fazendo-se um cotejamento sobre o direito de superfície no Código Civil e no Estatuto da Cidade, verificam-se que as diferenças não são substanciais.

No entanto, parte da doutrina trata da eventual revogação do Estatuto da Cidade pelo Código Civil, e outra parte – a grande maioria – a coexistência de ambas as normas.

24 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 861-862.

25 REZENDE, Élcio Nacur. Direito de superfície. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 7-8.

26 REZENDE, Élcio Nacur. Direito de superfície. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

27 ASCENÇÃO, José de Oliveira. Direito civil – Reais. 5. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p.528.31 GIDDENS, 2003, p. 39-40.

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Não se entende pela prevalência de uma norma em detrimento de outra e, sim, pela aplicabilidade si-multânea conforme a situação fática.

Segundo César Fiuza:

Como o Código Civil é posterior ao Estatuto da Cidade, pergunta-se se não o teria sido revogado. Na verdade, trata-se de dois diplomas distintos; um de caráter geral, o Código Civil, o outro de caráter especial, o Estatuto da Cidade. Assim, o posterior não revogaria o anterior. Poder-se-ia dizer que a su-perfície urbana seria regulada pelo Estatuto da Cidade, sempre que for instrumento de política urbana.28

Vale ressaltar que no Estatuto da Cidade, o Direito de Superfície como “instrumento de política urbana”, o concedente será sempre pessoa de direito público, enquanto que no Código Civil a superfície poderá ser constituída entre os particulares.

Como instrumento de política urbana, a propriedade superficiária tem como escopo alcançar as metas ligadas ao planejamento urbanístico de uma cidade, proporcionando aos munícipes uma qualidade de vida digna, maximizando a utilização dos espaços públicos ou proporcionando o exercício da função social da propriedade privada.

Apesar de não existir profundas divergências entre os dois diplomas legais – Código Civil e Estatuto da Cidade – há algumas particularidades que se diferenciam na aplicabilidade dos dois diplomas. Como por exemplo, cite-se o prazo determinado para aplicabilidade do Código Civil (art. 1.369), em áreas urbanas e rurais, e a permissão na Lei n. 10.257/01, de ser constituído o direito de superfície por prazo determinado ou indeterminado, sempre em áreas urbanas (art. 21).

O Código Civil, em regra, não autoriza obra no subsolo em seu art. 1.369, parágrafo único. Já o Estatuto da Cidade permite a utilização do subsolo, desde que atendida a Legislação Urbanística (art. 21, § 1º).

A Lei n. 10.406/02 determina, em seu art. 1.371, que o superficiário, sujeito passivo das obrigações tri-butárias, responderá pelos encargos e tributos que incidem sobre o imóvel. Enquanto a Lei n. 10.257/01, em seu art. 21, § 3º, dispõe que as obrigações tributárias serão distribuídas nos termos do documento que deu origem à superfície, estipulando previamente que o superficiário deve arcar com os encargos e tributos na proporção de sua ocupação efetiva.

O Código Civil é omisso em relação a ter por objeto o espaço aéreo. O Estatuto da Cidade permite ter por objeto o espaço aéreo desde que atendida a Legislação Urbanística – art. 21, § 1º.

Quanto à cobrança de valor pela transferência da superfície, o Código Civil proíbe expressamente em seu art. 1.372, parágrafo único, e o Estatuto da Cidade não traz nenhuma disposição a respeito de tal assunto.

O Código Civil não impõe expressamente a necessidade de averbação da extinção da superfície, ao pas-so que o Estatuto determina que seja feita a averbação da extinção no Cartório de Registro de Imóveis competente, em seu art. 24, § 2º.

Apenas a título de confirmação da coexistência dos dois diplomas legais supracitados tem-se o Enunciado 93 da I Jornada de Direito Civil, realizada pelo Centro de Estudos do Conselho de Justiça Federal:

As normas previstas no Código Civil sobre o direito de superfície não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) por ser instrumento de política de desenvolvimento urbano.

28 FIUZA, César. Direito civil - Curso completo. 11. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 902.

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1.3 Forma e modo de constituição da superfície

O direito de superfície é negócio jurídico que se formaliza por escritura pública de concessão, sendo concedente o titular do terreno e o concessionário ou superficiário aquele a quem é concedido o direito de construir ou plantar.

Apesar da formalização do negócio jurídico se dar por Escritura Pública, o direito real com validade e eficácia perante terceiros só passa a existir quando do registro da Escritura de Concessão no Registro de Imóveis competente.

1.4 Autonomia e separação patrimonial

Como já dito, a constituição de direito de superfície excepciona o princípio geral, pelo que a acessão se agrega à coisa principal e a ela se incorpora.

O direito de superfície, diferentemente, atribui identidade própria à construção e a separa juridicamente do solo, conferindo autonomia ao direito de propriedade do solo e ao da construção.

Tendo autonomia e sendo suscetíveis de alteração separada, cada um desses direitos de propriedade pode, também, ser objeto de direito real de gozo ou de garantia.

Cumpre ressaltar que, na hipótese de alienação do terreno ou da edificação, concedente e concessionário têm direito de preferência em igualdade de condições em face de terceiros.

A retribuição a que faz jus o concedente é convencionada na escritura. Em contrapartida, o concedente é obrigado a respeitar o direito real do concessionário por todo o prazo de duração da concessão, respon-dendo por eventuais perdas e danos que eventualmente causou por violação da propriedade e da posse do concessionário.

O direito real de superfície, por força de sua autonomia, pode ser objeto de hipoteca e da garantia fi-duciária ou ainda de outros direitos reais sobre coisa alheia ou fruição. O que vale também dizer que os direitos reais de gozo ou de garantia podem incidir, com exclusividade, sobre o solo e não somente sobre a construção.

O superficiário pode então desdobrar a sua posse direta, constituindo sobre a construção ou plantação um usufruto, uso ou habitação. Tais direitos se subordinam a um terreno que é datado da extinção da superfície.

Nesse sentido, o Enunciado 249 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Se essa autonomia não conferisse ao titular de cada um desses direitos separados, sobretudo o concessionário, o poder de, sem contaminar os direitos do titular da outra propriedade, constituir garantias reais sobre a sua propriedade. Caso tal possibilidade não configurasse como possível, estar-se-ia diante de uma limitação para o exercício da função social da propriedade”.

1.5 Alguns aspectos de sua aplicação prática

Por suas características, o direito de superfície poderá constituir importante instrumento que possibi-lite a realização da função social da propriedade e, consequentemente, propiciar a dignidade da pessoa humana. Tal se dá na medida em que institui a utilização mais ampla, mais flexível e mais racional dos bens imóveis, mediante desdobramento do direito de propriedade.

Constitui uma eficaz alternativa para a consecução de políticas de ocupação do solo, do subsolo e do espaço aéreo relativo ao terreno.

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Uma forma é a utilização do subsolo para construção de garagem.

Do ponto de vista do proprietário do terreno, que não queira ou não disponha de recursos para tal, a concessão gera receita e, ainda, o exonera dos encargos relativos aos impostos, manutenção, vigilância, etc. Além da incorporação da construção ou da implantação do seu patrimônio, quando expirado o prazo da concessão.

Um dos principais efeitos patrimoniais da concessão do direito de superfície em relação ao dono do terreno é a inexistência de efeito negativo em seu patrimônio.

A concessão, quando onerosa, acrescenta desde logo uma nova receita ao fluxo financeiro do concedente, receita essa que não existiria se o concedente mantivesse a situação de proprietário do terreno não ade-quadamente explorado economicamente.

Como exemplo de adequação da concessão do direito de superfície tem-se com determinados empreen-dimentos de grande vulto em relação a terrenos, cujo valor para compra e venda é extremamente elevado. Essa concessão viabiliza empreendimentos desse porte do ponto de vista jurídico e econômico.

Assim, nesse caso, concede-se a propriedade superficiária a um empreendedor por prazo suficiente para que ele obtenha o retorno do investimento e tenha resultado financeiro compatível com a aplicação. Por outro lado, o proprietário do terreno, o concedente, recebe uma renda, periódica ou não, e, expirada a concessão apropria-se da construção ou da plantação. O empreendedor concessionário, investido do direito de propriedade sobre a construção, estará legitimado a tomar financiamento e construir sobre esse bem qualquer garantia real, independente da anuência do proprietário do terreno, ressalvado que a garantia perderá tempo de concessão.

É importante ressaltar as vantagens econômicas, sociais e funcionais conjugadas nesse negócio. A exis-tência de um direito real de propriedade sobre o terreno alheio, conquanto temporário, e a autonomia desse direito, limitada ao prazo da concessão.

2. Da Regularização Fundiária

2.1 Do fracionamento do solo no Brasil

O fracionamento do solo iniciou-se no tempo do Império, período em que a instabilidade nas relações jurídicas preponderava. Não havia um direito de propriedade instituído e a terra era fracionada com a tomada de posse dos indivíduos.

O Registro Geral foi criado por meio da Lei n. 1.237 de 1864, e regulamentado pelo Decreto n. 3.453, de 1865. Tal iniciativa possibilitou um maior controle no fracionamento das terras, posto que a “transcrição” das aquisições imobiliárias passou a ser obrigatória, substituindo a forma de transmissão pela tradição.

Já em 1917, com a entrada em vigor do Código Civil, substituiu-se o “Registro Geral” pelo “Registro de Imóveis”. Dessa forma, o controle da segregação imobiliária da transcrição do título hábil, no Registro Imobiliário, da situação do imóvel para a aquisição da propriedade imóvel (art. 53, I e 861 CC/1916).

Ao regulamentar inúmeras formas de transação imobiliária e impor o seu registro para transferência do domínio, o Código Civil foi um dos marcos iniciais geradores do Fracionamento do Solo.

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69Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

A partir de então, surgiram inúmeros regulamentos sobre parcelamento do solo. O Decreto-Lei n. 58, de 10 de dezembro de 1937, regulamentado pelo Decreto n. 3.079, de 15 de setembro de 1938, disciplinou os loteamentos urbanos e rurais.

Posteriormente, veio a Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964 – Estatuto da Terra, regulamentada pelo Decreto n. 59.428, de 1966, contendo dispositivos sobre loteamento rural.

Em 1964, entra em vigor a Lei n. 4.591, que dispôs sobre o condomínio em edificações e as incorpora-ções imobiliárias.

Em fevereiro de 1967, entra em vigor o Decreto-Lei n. 271, e somente em 19 de dezembro de 1979 passa a vigorar a Lei n. 6.766, que rege atualmente o parcelamento do solo urbano no país.

Entre as formas mais comuns de fracionamento podemos citar a alienação, o condomínio, o loteamento, a divisão geodésica, a partilha “causa mortis”, o desmembramento etc.

Cumpre ressaltar que as diversas formas de fracionamento têm uma repercussão mais imediata e relevante nos direitos possessórios, posto que a indivisibilidade da propriedade resulta da convenção entre as partes, ou da lei, sendo que é de se considerar como sendo uma realidade o fracionamento do solo.

2.2 A cidade ilegal – como resolver

Mesmo diante de vários dados estatísticos, basta uma rápida observação nas metrópoles brasileiras e verifica-se que a grande maioria da população é urbana. A imagem das cidades, especialmente nas me-trópoles, contrasta com aquela do século XX: violência, enchentes, poluição do ar, poluição das águas, favelas, desmoronamentos entre outras situações calamitosas resultantes da falta de planejamento urbano.

A aplicação da função social da propriedade encontra diversos obstáculos de várias gêneses como, por exemplo, segundo Maricato (2002)29 o Judiciário, correlação de forças locais, precariedade dos cadastros ou dos registros de propriedade.

Com o crescimento demográfico, consequentemente urbano – devido à ocupação desordenada de áreas urbanas ociosas –, estabelece-se uma relação de conflito entre a violência e o “habitat”, onde se vê regiões inteiras ocupadas ilegalmente. Segundo Maricato, “A ilegalidade urbanística convive com a ilegalidade na resolução de conflitos: não há lei, não há julgamentos formais, não há Estado.”30 Consequentemente, as dificuldades de acesso aos serviços de infraestrutura, aliadas ao transporte precário, saneamento deficiente, difícil acesso aos serviços de saúde, educação, maior exposição à ocorrência de enchentes e desabamentos levam a uma exclusão total no âmbito social, econômico, ambiental, jurídico e cultural.

O que propicia, naturalmente, que a população carente se instale nas áreas desprezadas pelo mercado imobiliário, nas áreas mais frágeis ambientalmente, cuja ocupação é vetada pela legislação, além das áreas públicas de encostas dos morros etc.

A invasão de terras é uma regra na cidade e não uma exceção, o que acontece majoritariamente pela falta de alternativas.

“Em termos de Legislação Urbanística (parcelamento do solo, zoneamento, meio ambiente, para citar as principais) e Legislação Edilícia (Código de Obras), estamos diante de uma situação na qual a regra se torna mais exceção de que regra e a exceção mais regra do que exceção.”31

29 REVISTA de Direito Imobiliário, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 52, ano 25, jan./jun. 2002.

30 MARICATO, Ermínia. O que fazer com a cidade ilegal. Boletim do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, p. 20.

31 MARICATO, Ermínia. Op. cit., p. 21.

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O loteamento ilegal e a favela são as alternativas mais comuns de moradia da maior parte da população urbana de baixa renda. Na favela, verifica-se uma ilegalidade da relação do morador com a terra, posto que as áreas são invadidas. Já nos loteamentos ilegais ou clandestinos, o contrato de venda e compra garante algum direito ao morador. Considera-se que muitas são as variantes que o loteamento ilegal pode assumir, no entanto, não se pretende discuti-las nessas reflexões.

Simplesmente afirmar que é necessário produzir moradias para a população privada de opções, que não sejam as formas ilegais, não traz solução eficaz para a habitação popular. Um raciocínio simplista, superficial e teórico seria remover os moradores de favelas e áreas ambientalmente frágeis para novas localizações.

Após relutar em compreender a realidade, o Estado abandonou o discurso da remoção na maioria das situações. Um dos motivos para tal mudança foi a análise do comportamento dos moradores desses assentamentos informais. Esses moradores têm preferência em permanecer na área ocupada por vários motivos, entre eles: oferta de trabalho, rede de amigos e familiares, oferta de equipamentos, etc. Além do que, em número considerável de favelas, há moradores que já investiram muito na construção de suas casas. O que leva a pensar que o problema não é a unidade habitacional, mais do que isso, é o ambiente urbanizado. A maioria das moradias é construída por meio de mutirões, apresentando, em curto espaço de tempo, um cenário em que a infraestrutura dos serviços públicos, que só pode ser realizada pelo Estado, não se efetiva de fato. Como consequência da desarticulação do poder público em prover os mínimos necessários às famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica, a comunidade se mobiliza para garantir a sua sobrevivência, buscando alternativas diversas como arranjos clandestinos e ilegais.

É de se considerar também que, “após as obras de urbanização é comum os moradores passarem a investir na melhoria de suas casas, especialmente fachadas e acabamentos. O sentimento de segurança, a elevação da autoestima e a satisfação são notáveis” (Bueno 2000).32

A regularização de assentamentos ilegais, considerando efetivamente as necessidades dos moradores com o objetivo de trazer-lhes uma vida digna, torna-se muito mais complexa. Exige um entendimento entre os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Além de um entendimento sobre a operacionalização destas regularizações.

A regularização fundiária, portanto, necessita da participação dos três poderes, além dos Serviços Registrais Imobiliários. E, ainda assim, trata-se de um feixe de medidas extremamente complexo e que demanda cuidado, sem, no entanto, pelas dificuldades, quedar-se à inércia.

Toma-se como exemplo a questão das demandas judiciais que tratam de questões relativas à proprieda-de de terras ocupadas sob a forma de assentamentos informais. Nesse tipo de regularização, a simples alteração formal de titularidade dominial teria o condão de ensejar a regularização fundiária efetiva? Regularização de forma determinada pelo Estatuto da Cidade – Lei n. 10.257/2001 – proporcionando assim o cumprimento da função social da propriedade, realizando plenamente o direito à moradia. Não deveria o poder público municipal participar também desse processo?

Atingindo o patamar da aquisição do domínio estaria finda a regularização fundiária? Concomitantemen-te ao registro do título translativo de domínio, faz-se necessária a análise de questões de planejamento urbano, além do ambiental. Sem falar na impossibilidade do fracionamento da gleba, por tratar-se de condomínio indiviso, fonte de inúmeros e graves litígios. Além do que, a inviabilização do bem adqui-rido ser utilizado como fomento de circulação econômica, por meio da obtenção de créditos junto a instituições bancárias, pela característica de indivisibilidade jurídica de vários desses bens regularizados.

32 BUENO, L. M de M. Projeto de Favela: metodologia para projetos de urbanização. Tese de doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2000.

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Vale ressaltar que a função social da propriedade imobiliária urbana é determinada pelo plano diretor, por força da Constituição da República. Portanto, a transferência da titularidade da propriedade da gle-ba para os respectivos moradores bastaria para conferir-lhes o direito de permanência na área ocupada, independentemente da política urbana ambiental?

Reconhecendo a dimensão, a gravidade e também as conseqüências dos processos de desenvolvimento urbano informal, é mister criar com urgência uma frente ampla e integrada de ação entre os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, como já mencionado, bem como parcerias com a sociedade civil, que culminarão numa discussão e ação visando a eficácia de uma regularização fundiária sustentável, por meio de uma política nacional de apoio.

A política nacional de apoio, a regularização fundiária sustentável do direito à moradia e a segurança da posse como direitos fundamentais, de acordo com a Constituição brasileira e nos termos da campanha global da ONU pela segurança da posse. O acesso à terra urbana com efeito jurídico constitucional da função social e ambiental da propriedade.33 E além disso, como objetivos gerais deve-se promover o reconhecimento de maneira integrada dos direitos sociais e constitucionais de moradia e preservação ambiental, primando pela preservação dos recursos naturais, promovendo a qualidade de vida humana . Entre seus objetivos específicos devem estar a busca da remoção dos obstáculos da legislação federal fundiária, registral urbanística e ambiental.

A regularização fundiária sustentável deve ser objeto de reflexão e ação por parte do Estado, bem como de toda a população brasileira, numa mobilização intergovernamental e social, buscando soluções efeti-vas, levando à população segregada a possibilidade do exercício de seus direitos fundamentais mínimos.

2.3 Regularização fundiária na visão do economista Hernando de Soto e a críticado do jurista Edésio Fernandes

De Soto é seguramente um dos ideólogos mais influentes. Seus livros “O outro Caminho” e o “Mistério do Capital” já viraram best-seller em muitos países.

O autor dá uma dimensão econômica fundamental à ilegalidade. Ele propõe que, negócios, atividades e assentamentos ilegais, sejam vistos como “capital morto” e que, se devidamente reanimado e transformado em capital líquido, pode reativar sobremaneira a economia urbana e combater a crescente pobreza social.

Hernando sugere que, para terem acesso a crédito e investimento nos seus negócios, os moradores de assentamentos ilegais têm de se sentir seguros de sua posse, o que só se poderia dar pela legalização de suas formas precárias de ocupação. O economista propõe legalizar o ilegal. E que seja feito pela outorga de títulos de propriedade individual plena.

Em vez de questionar a natureza da ordem jurídica que gera a ilegalidade urbana, proclama a legalização plena (e sem maiores qualificações) de negócios informais e o reconhecimento de títulos individuais de propriedade para os moradores em assentamentos urbanos informais, proporcionando a condição para obtenção de crédito e financiamento.

Edésio Fernandes lista uma série de críticas às ideias de De Soto:

• insignificante o número de pobres que efetivamente tiveram acesso a crédito oficial sistemático, depois da sua participação em algum programa de regularização fundiária.

33FERNANDES, Edésio. Por uma política e um programa nacional de apoio à regularização fundiária sustentável: uma proposta inicial para consulta e ampla discussão. Boletim do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, n. 311, p.129 a 132, jul./ago.2003.

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• Estudos questionam a sustentabilidade urbanística e socioambiental dos assentamentos no Peru, El Salvador, que já foram legalizados como resultado de programas inspirados nas ideias de De Soto. Tais programas têm focado exclusiva e artificialmente a legalização formal dos assentamentos de urbani-zação e programas socioeconômicos, deixando assim de promover qualquer integração socioespacial.

Segundo Edésio, a ilegalidade urbana é provada não só pela combinação entre a dinâmica dos mercados de terras e o sistema político, mas também pela ordem jurídica elitista e excludente ainda em vigor nos países em desenvolvimento; sobretudo no que diz respeito aos direitos da propriedade imobiliária. Legalizar o ilegal requer a introdução de estratégias jurídico-políticas inovadoras, que conciliem o reconhecimento do direito de moradia.

O que se deve ter como norte é a necessidade de cada Estado buscar a sua forma de regularização fundiária. Tal medida permite que se considere as necessidades de se regularizar por meio de título de propriedade, além do implemento de políticas públicas que visem a integração social e econômica da população assen-tada, efetivando a dignidade humana para as populações em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

Referências

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BARBOSA, Diana Coelho. Direito de superfície à luz do Estatuto da Cidade. Curitiba: Juruá, 2001.

BUENO, L. M de M. Projeto de Favela: metodologia para projetos de urbanização. Tese de doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2000.

FERNANDES, Edésio. Por uma política e um programa nacional de apoio à regularização fundiária sustentável: uma proposta inicial para consulta e ampla discussão. Boletim do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, n. 311, p.129 a 132, jul./ago.2003.

FIUZA, César. Direito civil - Curso completo. 11. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

MARICATO, Ermínia. O que fazer com a cidade ilegal. Boletim do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, p. 20 - 21.

REVISTA de Direito Imobiliário, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 52, ano 25, jan./jun. 2002.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

REZENDE, Élcio Nacur. Direito de superfície. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito das coisas. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. (Coleção Direito Civil).

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As incongruências da Lei 11.481/07– um estudo acerca da concessão

especial para fi ns de moradiacomo um direito real que pode

ser dado em garantiaDouglas Eduardo Figueiredo

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1. Introdução

O ordenamento jurídico brasileiro vem passando por grandes transformações desde a promulgação da Constituição de 1988, tendo em vista a adoção do Estado Democrático de Direito como paradigma dominante da sociedade atual. Neste contexto, o Estado elege a dignidade da pessoa humana como fun-damento da República Federativa do Brasil, institui como um de seus objetivos a erradicação da pobreza e a marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais.

Sabendo-se que tais objetivos não são alcançados de imediato, bem como por excelência, que a sociedade complexa da atualidade possui um pluralismo de interesses que não podem ser reduzidos de imediato a texto de lei, e nem este é o objetivo; e ainda que todas as experiências humanas ainda não foram vivi-das, inúmeras leis são promulgadas para adequar, ou buscar efetivar as garantias inerentes ao paradigma constituído desde 1988.

Observando que as relações privadas estavam completamente desproporcionais ao paradigma atual, em 10 de janeiro de 2002 foi promulgada a lei 10.406, que instituiu o Código Civil brasileiro, revogando o Código privatista de 1916 e buscando implementar novas definições aos institutos jurídicos, adequando-os à nova realidade do Estado Brasileiro. Pode-se destacar que o direito de propriedade sofreu uma grande transformação desde sua instituição em 1916 até os dias atuais. Antes, tido como um direito absoluto, o direito de propriedade passou a ser um direito relativo, onde o proprietário ainda possui a exclusividade de seu bem, desde que cumprida sua função social.

Merece destaque ainda o instituto da posse, que atualmente se confunde com a função social da proprie-dade, uma vez que, se não existe posse, não há que se falar em função social. A posse a partir de então é um instituto que vem alcançando cada vez mais proteção jurídica, não só para as terras particulares, destacando o direito a usucapião, cumpridos os requisitos estabelecidos por lei, e outras proteções ine-rentes à posse, bem como às terras públicas.

Outro direito que vem ganhando espaço, sendo recentemente reconhecido como direito fundamental pelo ordenamento jurídico brasileiro, é o Direito à moradia, que somente foi elevado ao patamar de direito constitucional com a Emenda Constitucional nº. 26, de 14 de fevereiro de 2000, a qual alterou a redação art. 6º da Constituição Federal, incluindo os direitos sociais à educação, à saúde, ao trabalho, v

34 Aluno da Disciplina Isolada do Curso de Mestrado em Direito Privado da PUC-MINAS, denominada “Evolução dos Direitos das Coisas do Código de 1916 ao de 2002”. Onde também já cursou a matéria denominada “Responsabilidade Civil por danos aos direitos de personalidade”. Pós-Graduado em Direito Processual pelo IEC PUC-MINAS e bacharel em Direito pela PUC-MINAS campus Serro. Contato:fi [email protected] – Avenida Augusto de Lima, nº263 apto 1404, Centro. Belo Horizonte/MG – Cep:30190-000.

As incongruências da lei 11.481/07 - um estudo acerca da concessão especial para fi ns de moradia como um direito real que pode ser dado em garantia

Douglas Eduardo Figueiredo34

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moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, e à assistência aos desamparados.

Observa-se que o direito à moradia já estava previsto há muito tempo em outras legislações, como a Constituição Mexicana de 1917, bem como em tratados internacionais os quais o Brasil é signatário, destacando-se dentre esses a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, em seu art. 25, o Pacto In-ternacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, Art. 11, e a Convenção Internacional. Diante disso, claro está que o direito à moradia é um Direito Fundamental, cabendo ao Estado protegê-lo e implementá-lo através de leis e políticas públicas.

Neste sentido, antes mesmo da publicação do Código Civil de 2002, o Estado procurou formas de garantir e cumprir este direito, promulgando a lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabeleceu o Estatuto da Cidade, que em sua seção VI, arts. 15 a 20, estabeleciam a Concessão Especial para Fins de Moradia (CEFM); contudo, estes artigos foram vetados pelo então Presidente da República, tendo somente sua regularização estabelecida pela Medida Provisória 2.220 de 04 de setembro de 2001. (Destacando que a CEFM é um dos objetos centrais deste artigo, seus requisitos serão tratados separadamente em tópico oportuno.)

Continuando com o desenvolvimento, ou melhor, pretenso desenvolvimento das normas jurídicas em busca da efetivação dos preceitos constitucionais, o legislador, através da Lei nº 11.481 de 2007, elevou a CEFM ao patamar de direito real, passando esta a usufruir, a partir de então, de todas as garantias inerentes a estes. Isto porque não é simplesmente o direito à moradia que é resguardado, mas sim, um direito a uma moradia digna, com todas as prerrogativas previstas para a manutenção da ordem urbanís-tica, o que garante ao morador o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, acesso a água potável, luz, meios de transporte, rede de esgoto, lazer, entre tantos outros.

Ora, já que se deve resguardar uma moradia digna, nada mais aparentemente digno do que uma pessoa de baixa renda possuir crédito no mercado capitalista da atualidade, podendo oferecer seu único bem, ou melhor, já que não é dono do bem, mas sim possuidor, oferece ao credor o direito real da CEFM a fim de obter crédito e fazer circular bem e serviço, no objetivo de melhorar sua situação, alcançando uma vida digna.

E a partir de então, surge o ponto central do presente artigo, o instituto da CEFM é compatível com as características dos direitos reais, principalmente no que tange a conceder o bem em garantia, podendo ser gravado de ônus real? Ou os requisitos da CEFM impedem que este direito possa ser dado em garantia? Para buscar respostas a estes questionamentos, necessário se faz um estudo detido sobre os requisitos da CEFM, bem como das características dos direitos reais. Assim, passa-se a analisar o instituto da concessão especial para fins de moradia.

2. Concessão especial para fins de moradia

Conforme já demonstrando anteriormente, o instituto da CEFM foi regulamentado pela Medida Provi-sória 2.220/01, apesar de ter sido objeto de estudo do Estatuto da Cidade. Assim dispõe o art. 1º da MP:

Art. 1º. Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por 5 (cinco) anos, ininterruptamente e sem oposição, até 250m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados) de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. (BRASIL, 2001)

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Da leitura do dispositivo, depreende-se que o legislador procurou efetivar o direito à moradia, já que este tem como objetivo a segurança jurídica da posse, ou seja, não necessita da transferência plena de domínio, portanto, não se confunde com propriedade. A segurança da posse consiste na ausência de ameaças de desalojamento forçado. Vários são os meios aptos a garantir essa segurança, como por exemplo, o contrato de aluguel. Em se tratando de área pública, a CEFM é um instrumento que garante a segurança jurídica da posse, contudo, sem transferir a propriedade.

Neste sentido, respeita-se o disposto no art. 183 da CR/88, que prevê:

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.(BRASIL, 1988)

Observa-se que a norma constitucional diferencia o domínio (titularidade) do uso (posse). Nos termos do art. 183, §1º, CR/88, os efeitos da posse são distintos de acordo com a titularidade do solo. A posse exercida em propriedade privada, se cumpridos os requisitos do caput, leva à aquisição do domínio. Já se o titular é o poder público, ocorre o direito à CEFM, pois não há transferência da titularidade, mas é resguardado o direito da posse. Neste sentido, a CEFM não transfere o domínio, que continuará sendo público, mesmo estando o particular exercendo a posse.

Essa é a posição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, ao discorrer sobre o tema, leciona que “embora o caput [do art. 183, CR/88] se refira à aquisição do domínio, o § 1º fala em título de domínio e em concessão de uso. Esta não constitui forma de transferência de domínio.” (DI PIETRO, 2002, p. 156).

Neste mesmo sentido se posiciona Nelson Saule Junior, que dispõe: “com a adoção da concessão de uso, a propriedade urbana fica mantida sob o domínio do Poder Público, como meio de assegurar a manutenção da área para a finalidade social de moradia.” (SAULE JUNIOR, 2004, p. 400)

Da leitura do art. 1º da MP 2.220/01 ou do art. 183 da CR/88 se extrai os requisitos básicos para que alguém possa pleitear a CEFM, quais sejam: imóvel público de até 250 m², em se tratando de CEFM individual, uma vez que o art. 2º da MP 2.220/01 prevê a possibilidade da CEFM coletiva para imóvel superior a 250 m² - desde que ocupado por população de baixa renda; posse ininterrupta e sem oposição por mais de 5 anos; não ser proprietário ou concessionário de outro imóvel rural ou urbano; localizado dentro da área urbana e para fins de moradia, tendo a possibilidade de ter a CEFM para fins comercias conforme o art. 9º da MP supra citada.

O pedido para reconhecimento do direito à CEFM pode ser feito individualmente pelo possuidor ou por uma associação que os represente. Contudo, o Poder Público não precisa ser provocado para conceder aos possuidores este direito, é totalmente possível que se adiante e conceda a CEFM, mesmo antes da postulação daqueles que preenchem os requisitos mínimos.

2.1 Dos requisitos da concessão especial para fins de moradia

Como o reconhecimento da CEFM depende do preenchimento dos requisitos previstos em lei, é im-portante analisar cada um deles para poder compreender a sua compatibilidade ou não, com o instituto do direito real e todas as características inerentes a este, a fim de evitar uma situação jurídica sui generis,

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que pode acarretar numa insegurança jurídica, o que veementemente vai contra os objetivos destes dois institutos jurídicos.

2.1.1 Imóvel público de até 250 m²

Para o reconhecimento da CEFM, é necessário que o bem imóvel seja público, caso contrário, tratando-se de propriedade privada, o instituto adequado para regularização e a usucapião.

Quanto à extensão do imóvel para o reconhecimento da CEFM, o limite máximo para concessão indi-vidual é 250 m². Em imóveis maiores somente será possível a concessão na forma coletiva, desde que preenchidos os requisitos da CEFM na modalidade coletiva, dispostos no art. 2º da MP 2.220/01, que além daqueles previstos para a forma individual, estabelece ainda que as pessoas que o ocupam sejam de baixa renda e não sendo possível identificar os terrenos ocupados por cada um de seus possuidores.

A distinção entre CEFM feita de forma individual para a feita coletivamente decorre da possibilidade de individualizar cada um dos terrenos possuídos. Contudo, esta impossibilidade de identificar os terrenos ocupados individualmente deve ser interpretada na maneira mais ampla possível, tendo em vista que, com a tecnologia que se dispõe atualmente, existem técnicas de levantamento cadastral geográfico aptos a precisar o tamanho do imóvel ocupado por cada um dos possuidores.

Assim, observa-se que esta possibilidade tem como objetivo facilitar a regularização das terras públicas, concedendo segurança jurídica àqueles que a possuam, promovendo a função social da propriedade pú-blica. Destaca-se ainda que a modalidade coletiva vem resguardar aqueles que detêm a posse de imóvel inferior ao mínimo do parcelamento do solo, conforme disposto nas diretrizes do parcelamento do solo de cada município.

Muito se questionava sobre a possibilidade de haver a CEFM nos terrenos de marinha, tendo em vista o disposto no art. 49, §3º da ADCT, que previa que ainda se aplicaria o instituto da enfiteuse nas terras de marinha.

Entretanto, com a edição da lei 11.481/07, que incluiu o art. 22-A na Lei 9636, de 15 de maio de 1988, foi pacificada esta questão, tendo em vista sua redação que assim preconizar:

Art. 22-A. A concessão de uso especial para fins de moradia aplica-se às áreas de propriedade da União, inclusive aos terrenos de marinha e acrescidos, e será conferida aos possuidores ou ocupantes que preencham os requisitos legais estabelecidos na Medida Provisória n

o 2.220, de 4 de setembro de 2001.

§1o O direito de que trata o caput deste artigo não se aplica a imóveis funcionais.

§ 2o Os imóveis sob administração do Ministério da Defesa ou dos Comandos da Marinha, do Exército

e da Aeronáutica são considerados de interesse da defesa nacional para efeito do disposto no inciso III do caput do art. 5

o da Medida Provisória n

o 2.220, de 4 de setembro de 2001, sem prejuízo do

estabelecido no § 1o deste artigo.

2.1.2 Posse ininterrupta e sem oposição por mais de 5 anos

O lapso temporal para a aquisição do direito à CEFM previsto na MP 2.220/01 é o mesmo disposto no art. 183 da CR/88, observando-se que o art. 1º da MP supra é uma transcrição da norma prevista na Constituição. Assim, o legislador garante àqueles que teriam condições de adquirir o imóvel, caso fosse de propriedade privada, através do instituto da usucapião, o direito de manterem-se na posse do bem, mesmo sendo ele público, respeitando uma das características destes bens, qual seja, a imprescritibilidade.

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No caso da CEFM na modalidade coletiva, a lei permite a soma das posses (art. 2º, §1º da MP 2.220/01), podendo assim dispensar a comprovação individual, sendo suficiente que se demonstre a existência do assentamento, com os mesmos limites atuais, desde junho de 1996. No caso da concessão especial para fins de moradia na modalidade individual, cada possuidor deve comprovar o lapso temporal mínimo, lembrando que os herdeiros continuam na posse de seu antecessor (art. 1º, §3º, MP 2.220/01).

Outro ponto que merece destaque é o limite temporal máximo para preenchimento dos requisitos para a requisição da CEFM, que é ter comprovado o lapso temporal até o dia 30 de junho de 2001, ou seja, o possuidor deve demonstrar que já estava na posse do bem antes de 29 de julho de 1996.

Até hoje não se encontrou um argumento lógico-jurídico apto a conferir a este limite temporal uma validade ou plausibilidade normativa. Contudo, o que se sabe foi que o então presidente da República estabeleceu uma data aleatória limite para que se evitasse novas invasões nas terras públicas da União.

Cumpre ressaltar que a MP 2.220/01 regula a CEFM nas terras pertencentes à União. Sabendo que se trata de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a promoção da melhoria das condições habitacionais e de programas de construção de moradias (art. 23, IX, CR/88), os outros entes federativos podem instituir datas diferentes, ou até mesmo excluir o requisito de uma data predeterminada. Em não exercendo suas competências, segue-se a norma estabelecida pela União.

2.1.3 Não ser proprietário de bens imóveis rurais ou urbanos

Este requisito é simples e não dispende de muita discussão, já que o possuidor deve demonstrar que não possui nenhum bem imóvel em seu nome. Ele pode fazer isso através de certidão negativa de imóvel requerida no cartório de imóveis da localidade onde possui domicílio e pretende adquirir a CEFM, bem como através de declaração apresentada no momento do requerimento, já que o ordenamento jurídico admite como prova da moradia a declaração de próprio punho (art. 1º Lei 7115/83).

2.1.4 Localizado dentro da área urbana e para fins de moradia

Outro ponto que não exige discussão mais aprofundada, é quanto à localização do bem objeto da CEFM, já que este deve estar localizado dentro da área urbana, bastando que o poder público municipal forne-ça uma certidão de que o imóvel público se encontra nos limites urbanos daquele município, no qual conste sua utilização com fins de moradia, exigência do art. 6º, §2º da MP 2.220/2001, para que este requisito seja preenchido.

Observa-se que em determinados casos é facultado ao Poder Público que conceda a CEFM destinada a fins comerciais, nos termos do art. 9º da MP supra mencionada, desde que preenchido todos os requisitos para a concessão deste instituto.

Analisados os requisitos da CEFM, cumpre ressaltar também que, além de ser um instrumento de regu-larização de áreas públicas ocupadas, nos termos do art. 3º da MP 2.220/01, também pode ser utilizada como instrumento de cessão de direitos nos casos em que a ocupação seja regular. Neste sentido, Betânia Alfonsin afirma:

[...] aqui se garantiu a possibilidade de utilizar o instrumento da concessão de uso especial para fins de moradia naqueles casos em que a forma de ocupação dos imóveis públicos não se deu de forma ir-regular, pelo contrário, deu-se regularmente, através de inscrição nos órgãos habitacionais competentes. (ALFONSIN, 2002, p. 421).

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Assim, este instituto pode vir a substituir o direto precário da concessão de uso por um direito real oponível erga omnes, já que desde a publicação da lei 11.487/07, foi elevado ao patamar de direito real, sendo incluindo no rol taxativo dos direitos reais.

2.2 Da extinção da concessão especial para fins de moradia

Compreendida a forma de concessão da CEFM, necessário se faz entender também a sua forma de ex-tinção, conforme dispões o art. 8º da MP 2.220/01:

Art. 8º. O direito à concessão de uso especial para fins de moradia extingue-se no caso de:

I - o concessionário dar ao imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família; ou

II - o concessionário adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural.

Parágrafo único. A extinção de que trata este artigo será averbada no cartório de registro de imóveis, por meio de declaração do Poder Público concedente.(BRASIL, 2001)

Da leitura do artigo supra, percebe-se que existem duas possibilidades para a extinção da CEFM, quais sejam: dar destinação diversa da moradia, exceto nos casos em que a concessão foi para fins comerciais (nos termos do art. 9º do mesmo diploma legal), ou o concessionário adquirir a propriedade de outro bem, quer seja urbano ou rural.

Patente é que o objetivo da CEFM é garantir à população carente o mínimo para resguardar uma vida digna, cumprindo os ditames constitucionais. Assim, caso o concessionário possa adquirir seu próprio bem, tendo dele posse e propriedade, ou destinar-lhe finalidade diferente que não sua moradia, o instituto jurídico da CEFM perde seu objeto, devendo ser revogada, e a propriedade desembaraçada, retornando a posse ao seu legítimo proprietário, o Poder Público.

3. Direitos reais

Compreendido o instituto da Concessão Especial para Fins de Moradia, seus requisitos para aquisição e modalidades de extinção, passa-se ao segundo ponto deste trabalho, uma análise das características dos direitos reais e das garantias inerentes a este instituto, para que posteriormente se possa analisá-los conjuntamente, compreendendo sua compatibilidade ou não.

Sobre os direitos reais, cumpre ressaltar que é um tema vasto e de complexa conceituação, não sendo objetivo deste artigo aprofundar ou esgotar tão vasto tema. Portanto, atem-se a alguns aspectos relevantes para o desenvolvimento deste trabalho, limitando-se aos pontos relevantes para a conclusão do tema.

Cesár Fiusa salienta que para compreender melhor este direto, deve-se estabelecer uma diferença entre os direitos reais e os direitos obrigacionais. Neste sentido expõe:

“Nas relações jurídicas obrigacionais há de um lado, devedor e, do outro, credor. Entre eles, prestação devida pelo devedor ao credor. Ao dever de realizar a prestação corresponde o direito de exigi-las. Esse direito denomina-se direito obrigacional, pessoal ou creditício.

Nas relações jurídicas reais, o quadro é totalmente diferente. Em primeiro lugar, há uma pessoa e um bem. A pessoa é titular do bem. Porém para que uma pessoa possa considerar-se titular de um bem, é necessário que existam outras pessoas, que não detenham qualquer direito sobre o bem. Se morasse numa ilha deserta, não seria dono de nada. Se digo que uma coisa é minha, é porque não é dos outros.

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Se não houvesse outros, não faria qualquer sentido dizer que a coisa é minha. Assim, conclui-se que as relações jurídicas reais estabelecem-se entre o titular de direito sobre um bem e os não-titulares. Só há titular, por haver não-titulares. Só se pode falar, por exemplo, em dono, em confronto com “não-donos”.(FIUZA, 2004, p.709).

Destaca-se duas teorias mais extremistas, que tentam explicar os direitos reais: a teoria clássica ou realista e a teoria moderna ou personalista.

Em síntese, para a teoria clássica ou realista, os direitos reais devem ser vistos como um poder direto e imediato sobre a coisa, enquanto os direitos pessoais traduzem uma relação entre pessoas, tendo por objeto uma prestação. Ainda que essa prestação seja mediatamente dirigida a um bem, como ocorre nas obrigações de dar, o objeto em si dos direitos pessoais é sempre o comportamento do devedor, diferen-temente do que se tem nos direitos reais, pois estes incidem imediatamente sobre a coisa.

Nessa visão, os direitos reais se caracterizam pela existência de apenas dois elementos: o titular e a coisa. Para que aquele possa desfrutar desta não há necessidade de qualquer intervenção ou intermediação por parte de terceiros, ao contrário do que ocorre nos direitos pessoais, em que, ademais, existem três elementos: o sujeito ativo, o sujeito passivo e a prestação. (CARVALHINHO, 2005 p.1)

Já os autores que defendem a teoria moderna ou personalista:

“[...] sustentam, basicamente, que o direito real não reflete relação entre uma pessoa e uma coisa, mas, sim, relação entre uma pessoa e todas as demais.

O direito real envolve, para essa corrente de pensamento, uma relação jurídica entre seu titular, do lado ativo, e todos os demais membros da sociedade, do lado passivo, adstritos a um dever geral de abstenção, ou seja, à obrigação de não perturbar ou prejudicar o titular do direito real.

Caracterizam-se os direitos reais, destarte, pela existência de uma obrigação passiva universal, imposta a todos os membros da sociedade indistintamente, no sentido de que devem respeitar seu exercício por parte de seu titular ativo. Já nos direitos pessoais, a obrigação só existe para o sujeito passivo a ela vinculado, pessoa certa e determinada, sobre a qual recai não simplesmente o dever de respeitar o direito de crédito, mas sim a obrigação a uma prestação.” (CARVALHINHO, 2005 p.1)

Trabalhada a apertada síntese sobre o conceito de direitos reais, aborda-se, a partir de então, as caracte-rísticas e a função que mais se destaca para a conclusão deste trabalho:

3.1 Características: taxatividade e oponibilidade a terceiros

A proposta da medida provisória 335, de 23 de dezembro de 2004, convertida na lei nº 11.481/07 tem em sua exposição de motivos os seguintes termos: “20. Assegura-se a aceitação, como garantia real, pelos agentes financeiros no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, dos contratos de concessão de uso especial para fins de moradia, de concessão de direito real de uso e de direito de superfície.”

Em cumprimento a este tópico, a Lei 11.48l/07, em seu art.10, alterou o art. 1.22535 do Código Civil, incluindo no rol dos direitos reais dois novos institutos, denominados direitos reais sociais, conforme se demonstra da leitura do art. abaixo:

Art. 10. Os arts. 1.225 e 1.473 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, passam a vigorar com a seguinte redação:

35 Art. 1.225 do CC antes da alteração da Lei 11.481/07: Art. 1.225. São direitos reais: I - a propriedade; II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V - o uso; VI - a habitação; VII - o direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a anticrese.

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“Art. 1.225

(...)

XI - a concessão de uso especial para fins de moradia;

XII - a concessão de direito real de uso.” (NR)

Contudo, deve-se analisar este contexto de forma mais abrangente, pois os direitos reais possuem muitas garantias e características que devem ser analisadas para compreender sua compatibilidade. Entretanto, não se pretende neste trabalho fazer um estudo minucioso acerca dos direitos reais, mas sim de uma de suas características que foi mencionada no tópico 20 da exposição de motivos da MP 335, qual seja, direito real de garantia.

Explicitando de forma mais simples sobre o estudo do direito real, destaca-se algumas de suas caracterís-ticas principais: a taxatividade e sua oponibilidade a terceiros de eficácia erga omnes.

Segundo Adriano Stanley Rocha Souza:

O princípio do numerus clausus, que no início do século XX fora utilizado por nosso ordenamento jurídico como instrumento hábil a garantir a integralidade do valor da propriedade, como meio de conservação do ideal de um Estado liberal vigente à época, é mantido em nosso novo ordenamento civil, entretanto, com a condição de que seja interpretado sob novo prisma, sob o prisma de nossa Con-stituição, numa interpretação conjunta com os princípios constitucionais atuais (dignidade humana, autonomia privada, solidariedade social; capacidade contributiva e igualdade substancial).

Dessa forma, os velhos instrumentos registrais, que tanto prestaram aos fins patrimoniais de outrora, são mantidos, agora, entretanto, com o objetivo claro de servirem como instrumentos apaziguadores da desigualdade social que nos assola. (SOUZA, 2007. p.225-226).

Portanto, tento em vista a exigência da taxatividade ou numerus clausus, necessário foi a inclusão da CEFM no rol dos direitos reais, conforme disposto no art. 1.225 do CC, e ainda determinado pela lei 11.481/07.

Já a oponibilidade a terceiros – eficácia erga omnes -, segundo Luciano de Camargo Penteado “significa que o conteúdo das faculdades tem eficácia diante de qualquer terceiro. O titular do direito real não necessita provar nada além da titularidade e da violação a ela”. (PENTEADO, 2008 p.100)

Continua o autor a lecionar sobre o tema:

[...] basta a evidência do argumento jurídico de que res mea est, a coisa é minha, para que tal direito seja eficaz diante de qualquer outro sujeito que pretensamente tenha causado uma violação injustificada (invasão, furto). Não necessita provar vínculo jurídico com o terceiro, justamente porque seu direito é oponível, isto é, pode ser apresentado como argumento de preponderância da situação jurídica, erga omnes, isto é, contra todos independentemente de quem seja o integrante deste genérico conceito de todos. (PENTEADO, 2008, p.100-101)

Apresentadas as duas principais características dos direitos reais, as quais acredita-se ser o ponto relevante para que a CEFM seja incluída em seu rol, passa-se a discorrer sobre os direitos reais dados com função de garantia, conforme a disposição 20 dos motivos que levaram à publicação da Lei 11.481/07.

3.2 Direitos reais em garantia

Segundo Luciano de Camargo Penteado, “há direitos reais típicos, que em vista de determinadas operações econômicas, apesar de terem outra função (atípica (sic)), podem assumir outros papéis” (PENTEADO, 2008, p.127).

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Assim, percebe-se que os direitos reais podem ser dados em garantia, para que, em sua função atípica, possam servir de garantia para o cumprimento de uma obrigação. Trata-se nessa hipótese “não de um direito real de garantia, mas sim de um direito real já conhecido, empregado na função de garantia”. (PENTEADO, 2008, p.127-128) Usando-se desta forma, dos já conhecidos direitos reais de garantia – anticrese, hipo-teca e penhora – que muitas vezes são exigidos como garantia de empréstimos concedidos por empresas.

Este foi, conforme demonstrado anteriormente, um dos elementos principais, (exposição de motivos nº 20 da MP 335/04) para a inclusão da CEFM como um direito real.

Destacados os pontos relevantes para o desenvolvimento do presente estudo, passa-se a abordar seu tema central: a compatibilidade entre o instituto da CEFM e os direitos reais.

3.3 Da concessão especial para fins de moradia como um direito real dado em garantia

Com a edição da lei 11.481/07, a CEFM entrou no rol dos direitos reais e agora possui todas as suas características e proteções. Vale ressalvar que anteriormente as terras públicas eram cedidas unicamente através da cessão de uso - direito precário - e em alguns casos por enfiteuse, depois, com o advento da MP 2.220/01, foi possível a concessão especial para fins de moradia.

Toda essa proteção e utilização da moradia e da função social das terras públicas vem buscando efetivar os princípios constitucionais instituídos pelo novo paradigma do Estado brasileiro. Sabendo-se que não é qualquer tipo de vida, moradia, meio ambiente que deve ser propiciado ao cidadão, mas sim todos esses com uma condição digna de sua sobrevivência, o Estado vem buscando mecanismos para o cumprimento dos fundamentos e objetivos do modelo democrático de direito vigente.

Buscando facilitar o crédito àqueles que não possuíam condições mínimas para solicitar financiamentos e créditos junto aos bancos e estabelecimentos comerciais, e no intuito de inserir a população carente no mercado capitalista, viabilizando o melhoramento de sua condição humana, garantindo-lhe uma possível vida digna, o legislador instituiu os direitos reais sociais. Esses direitos visam permitir aos seus detentores a efetiva utilização, mesmo que a titularidade formal seja de outra pessoa, neste caso o Estado, para garantia do crédito.

Merece aplauso a iniciativa do legislador em promover a função social da propriedade, tão em voga a partir da Constituição de 1988 e do Código Civil de 2002. Contudo, não se pode fechar os olhos aos institutos jurídicos que acabam de se acoplar; de um lado, tem-se todas as garantias e características dos direitos reais, e do outro, toda a questão social que levou ao surgimento da CEFM.

Ao se observar detidamente a CEFM e o direito real dado em garantia, pode-se perceber que se trata de uma incompatibilidade jurídica, pois segundo o art. 8º da MP 2.220/01, já citado, quando o titular deste direito der destinação diversa à de moradia ao imóvel, ou adquirir outro, este perderá a CEFM, retornando sua titularidade ao ente Público.

Ora, se o titular da CEFM deu em garantia seu direito real, para cumprimento de um direito obrigacional, ficando este inadimplente, cabe ao detentor da garantia executá-la a fim de que a obrigação seja cumprida.

Observa-se que na grande maioria dos casos são os bancos os maiores financiadores. Tendo o banco aceito a CEFM como garantia, caso o devedor não cumpra sua obrigação, poderá ser executado, retirando de sua titularidade a CEFM.

Sendo uma instituição financeira, por exemplo, titular do direito real disposto no art. 1225, inc. XI do CC/02, este perderia completamente seu objeto, já que o banco não o exercerá para fins de moradia, e tampouco será o único bem imóvel em nome deste. Assim, em respeito à norma prevista do art. 8º da

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MP 2.220/01 a instituição financeira deverá perder a CEFM retornando o bem à propriedade exclusiva do Estado.

Entretanto, uma instituição financeira não irá transferir sua agência para o local onde conseguiu a CEFM, e mesmo que assim o fizesse, estaria dando uma finalidade diversa de moradia, dependendo da conveniência e oportunidade do Poder Público, já que lhe é facultado dar a CEFM para fins comerciais. Não bastasse a insegurança para avaliar o mérito administrativo quando à concessão ou não para fins comerciais, patente é que uma instituição financeira possui mais de um imóvel, já que são dotados de inúmeras agências por todo o país.

Não obstante esta possibilidade de uma instituição financeira adquirir a CEFM, se, por outro lado, op-tar por vender o bem, e observando os critérios para que a CEFM não seja extinta, o novo proprietário deverá preencher os requisitos para a concessão desta, exceto o lapso temporal, já que será considerado transmissão da posse. Volta-se então ao ponto central, uma vez que o adquirente deverá preencher os requisitos para a CEFM e possuir crédito ou condições financeiras de adquirir este bem junto a uma instituição, questionando-se ainda a validade desta transação.

Assim, a insegurança jurídica está criada, pois o banco será ressarcido pelo Estado ou levará o prejuízo? Caso não tenha nenhum respaldo quanto à validade da garantia, qual será a instituição que aceitará a CEFM, mesmo elevada ao patamar de direito real?

O tema apresentado demanda uma maior profundidade de estudo, mas claramente apresenta uma dúvida que mereça ser sanada para que no futuro próximo não ocorram problemas desta natureza.

4. Conclusão

O legislador brasileiro vem, desde 1988, buscando efetivar os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros de acordo com o que orienta a nova ordem constitucional. Este movimento vem na tentativa de elevar a dignidade da pessoa humana para além do texto constitucional, levando à modificação de inúmeras leis e à inserção de novos institutos jurídicos.

Como demonstrando, um desses institutos criados foi a Concessão Especial para Fins de Moradia, que conforme o próprio nome já indica, é destinada a garantir a moradia àqueles que preencham determina-dos requisitos, quais sejam: Imóvel público de até 250 m²; posse ininterrupta e sem oposição por mais de 5 (cinco) anos, localizado dentro da área urbana e para fins de moradia; não ser proprietário de bens imóveis rurais ou urbanos, todos já comentados anteriormente.

Apesar de alguns critérios inexplicáveis (a limitação dos 5 (cinco) anos até 31 de julho de 2001), a iniciativa do legislador em buscar a efetivação da função social da propriedade nas terras públicas é de suma importância, pois além de demonstrar que o Estado também está sujeito às normas constitucionais, compromete-se com a sociedade brasileira na busca de mecanismos eficazes para a garantia de uma vida cada vez mais digna.

Na tentativa de ampliar os efeitos da CEFM e possibilitar que as pessoas de baixa renda possam se inserir na sociedade capitalista, com oportunidades teoricamente iguais, o legislador elevou este instituto ao patamar de direito real. Contudo, conforme já demonstrado, esta questão deve ser avaliada não somente quanto à possibilidade de ampliação do crédito aos possuidores da CEFM, mas em todo seu contexto, principalmente quando a lei prevê sua forma de extinção.

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Por toda essa insegurança jurídica levantada, e pelos estudos até então desenvolvidos, posiciona-se aqui no sentido da incompatibilidade entre a concessão especial para fins de moradia e os Direitos Reais, já que o credor que dispõe a emprestar determinada quantia, necessariamente possui uma condição de vida superior ao possuidor da CEFM, que caso venha a descumprir a obrigação com o credor, deverá lhe pa-gar como garantia a CEFM. Contudo, conforme dispõe a MP 2.220/01, caso o titular da CEFM tenha outro imóvel rural ou urbano, ou ainda utilize de forma diversa à de moradia, este instituto é extinto e o imóvel volta à propriedade exclusiva do Estado, sem nenhum ônus real nele gravado.

Assim, o credor arcará com o prejuízo causado pelo possuidor da CEFM ou, senão o Estado, o que demandaria tempo e muitos embates judiciais. Por todo o exposto e o que foi estudado pelo tema até então, posiciona-se favoravelmente à incompatibilidade dos dois institutos. Até o presente momento ainda não foram encontradas jurisprudências sobre o tema, uma vez que se trata de algo aparentemente novo, observando-se que esta modificação ocorreu em 2007, dificultando ainda os estudos acerca deste tema.

Referências

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CARVALHINHO, Diana Gomes: Direitos reais: Noções Gerais. Elaborado em 06/2005. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/6995/direitos-reais/1> Acessado em 12/11/2010.

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FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 8ª ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

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A função social dos condomíniosedilícios e a função social da

propriedade nos condomínios edilícios

Ana Alvarenga Moreira Magalhães

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1. Introdução

A noção de condomínio passa, necessariamente, pela noção de propriedade que pertence a mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Trata-se de situação excepcional, que contradiz a característica clássica de exclusividade da propriedade. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, a exclusividade, “como expressão da senhoria sobre a coisa, é excludente de outra senhoria sobre a mesma coisa: plures eamdem rem in solidum possidere non possunt”. (PEREIRA, 2005, p. 93).

Assim, dá-se um condomínio quando “a mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma de suas partes” (PEREIRA, 2005, p.175).

Nos condomínios edilícios, essa pluralidade de proprietários se mostra presente nas chamadas áreas comuns das edificações. Isso porque segundo o art. 1331 do Código Civil, caracteriza essa espécie de condomínio a presença, em edifícios, de “partes que são de propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum aos condôminos”. Ou seja: “a propriedade condominial se caracteriza pela duplicidade de domínio: um particular e outro comum. E um não pode existir sem o outro.” (NADER, 2009, p. 226).

Por essa sua característica de copropriedade indissolúvel, e pelo impacto que uma edificação utilizada e frequentada por dezenas, centenas – e às vezes, milhares – de pessoas diariamente gera no meio em que se localiza (normalmente o urbano), torna-se relevante o estudo da função social dessa modalidade específica de propriedade condominial.

Pretende-se desenvolver, a partir da perspectiva da função social da propriedade, a função social do con-domínio edilício perante o meio externo a ele – ou seja, a cidade –, e sob o prisma das relações jurídicas que lhe são interiores, isto é, entre os próprios condôminos.

36 Trabalho apresentado como requisito parcial de aprovação na disciplina “Evolução Do Direito Das Coisas Do Código Civil De 1916 Ao Código Civil De 2002”, no Programa de Pós-Graduação em Direito Privado da PUC Minas, em setembro de 2010.

37 Doutoranda e Mestre em Direito Privado pela PUC MINAS. Procuradora do Município de Belo Horizonte. Professora de Direito Civil. Contato eletrônico: [email protected]

A função social dos condomínios edilícios e a função social da propriedade nos condomínios edilícios36

Ana Alvarenga Moreira Magalhães37

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89Os Direitos Reais como Instrumento de Efetivação do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

2. Os condomínios edilícios – entre o Código Civil e a Lei Federalnº 4.591/1964

“Condomínio edilício” foi a nomenclatura dada pelo Código Civil de 2002 aos condomínios especiais em edifícios, também conhecidos por condomínios em planos horizontais, ou simplesmente “condomínios horizontais”. Esse último, nome tradicionalmente utilizado pela doutrina, advém da distinção do condo-mínio geral ou ordinário, o qual se dividiria por linhas verticais: entre a propriedade de um condômino e outro, nos edifícios, existe uma repartição física horizontal (entre andares), enquanto no condomínio geral, a divisão da propriedade se dá verticalmente, isto é, “a co-propriedade se estende na altura usque ad coelum e em profundidade usque ad inferos” (NADER, 2009, P. 225).

Muito embora o adjetivo edilício seja considerado por muitos um neologismo no sentido empregado, a explicação de Miguel Reale na exposição de motivos do Código Civil relata que o vocábulo deriva diretamente do latim, como “resultado do ato de edificação” (REALE, 2005)38.

Qualquer condomínio edilício possui, como naturais, um elemento subjetivo e um elemento objetivo. O primeiro é vinculado à pluralidade de proprietários: ainda que se tenha um prédio composto de vá-rias unidades, se pertencentes a um só dono não há que se falar em condomínio, “seja por inutilidade econômica, seja por desnecessidade jurídica” (PEREIRA, 1999, p. 112). O elemento natural objetivo, por sua vez, configura-se na existência de um edifício39, na maioria das vezes urbano, mas nem sempre (há condomínios em edifícios situados em locais turísticos, recantos paisagísticos ou pitorescos, praias não inseridas na zona urbana etc).

Desta distinção surge a diferença entre a instituição e a constituição de um condomínio: esta voltada às relações decorrentes do elemento subjetivo; aquela, ao elemento objetivo do condomínio.

A instituição de um condomínio edilício pode se dar a partir de uma incorporação imobiliária, quando se tratar de um prédio a ser construído, ou em uma edificação já erigida, a partir de ato de vontade do proprietário – em vida ou por testamento.

Entende-se por instituição do condomínio o ato de vontade que determina a divisão de um prédio por andares e a sua subdivisão em apartamentos (ou salas, escritórios, vagas de garagem etc.), bem como o ato de incorporação de um edifício voltado à implementação de um condomínio.

Trata-se de ato essencial à sua criação, eis que essa modalidade especial de propriedade não tem formação espontânea, como o condomínio tradicional, que pode se originar de um ato imprevisto, como a sucessão causa mortis, ou da pura incidência legal, como o condomínio legal. Ao contrário: o condomínio edilício é sempre fruto de um ato de vontade, de um negócio jurídico especificamente formado para a conjugação da propriedade particular com a propriedade comum.

38 “Fundamentais foram também as alterações introduzidas no instituto que no Projeto recebeu o nome de “condomínio edilício”. Este termo mereceu reparos, apodado que foi de “barbarismo inútil”, quando, na realidade, vem de puríssima fonte latina, e é o que melhor corresponde à natureza do insti-tuto, mal caracterizado pelas expressões “condomínio horizontal”, “condomínio especial”, ou “condomínio em edifício”. Na realidade, é um condomínio que se constitui, objetivamente, como resultado do ato de edifi cação, sendo, por tais motivos, denominado “edilício”. Esta palavra vem de “aedilici(um)”, que não se refere apenas ao edil, consoante foi alegado, mas, como ensina o Mestre F. R. SANTOS SARAIVA, também às suas atribuições, dentre as quais sobrelevava a de fi scalizar as construções públicas e particulares.(...) Para expressar essa nova realidade institucional é que se emprega o termo “condomínio edilício”, designação que se tornou de uso corrente na linguagem jurídica italiana, que, consoante lição de RUI BARBOSA, é a que mais guarda relação com a nossa. Esta, como outras questões de linguagem, devem ser resolvidas em função das necessidades técnicas da Ciência Jurídica, e não apenas à luz de critérios puramente gramaticais” (REALE, 2005, p. 51 e 52)

39 No mesmo sentido, Miguel Reale: “A doutrina tem salientado que a disciplina dessa espécie de condomínio surgiu, de início, vinculada à pessoa dos condôminos (concepção subjetiva) dando-se ênfase ao que há de comum no edifício, para, depois, evoluir no sentido de uma concepção objetiva, na qual prevalece o valor da unidade autônoma, em virtude da qual o condomínio se instaura, numa relação de meio a fi m.” (REALE, 2005)

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Segundo explicação de Caio Mário,

Propriedade horizontal haverá no momento em que, por destinação do proprietário ou por convenção entre coproprietários, se institua, com subordinação às exigências da lei especial, mediante um ato de vontade ou através de uma declaração de vontade, e cumpre se revista da necessária autenticidade e publicidade o ato institucional, uma vez que, se o novo regime dominial afeta fundamentalmente o interesse e as relações entre as partes, repercute com frequência na órbita patrimonial alheia e deve ser conhecido do público ou presumido tal. (PEREIRA, 1999, p. 118; itálicos no original)

A lei especial à qual se refere o texto era a Lei 4.591/1964, principal fonte legislativa a tratar da matéria até o advento do Código de 2002.40

Após a entrada em vigor do Código, a instituição de condomínios edilícios passou a ter tratamento dúplice: para o edifícios já construídos, a instituição do condomínio passou a ser regulada pelas normas codificadas, enquanto a instituição do condomínio a partir da incorporação imobiliária (isto é, por meio da construção do edifício) continuou a ser tratada pela legislação especial (especificamente pela já mencionada Lei 4.591/1964).

Entende-se por incorporação “a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações, ou conjunto de edificações, compostas de unidades autônomas” (art. 28, Parágrafo Único, da Lei Federal n. 4591/1964).

O incorporador, ao mesmo tempo em que se responsabiliza perante os adquirentes das unidades autônomas pela consecução do futuro condomínio, é também o responsável perante as autoridades administrativas quanto ao projeto da construção e a obediência aos parâmetros legais.

Distinta da instituição é a constituição do condomínio. Esse ponto cinge-se ao ato constitutivo do novo condomínio e da categoria jurídica do estatuto disciplinar das relações internas aos condôminos.

O ato constitutivo recebe o nome de convenção de condomínio, e tem seus parâmetros mínimos fixados pelo Código Civil: a convenção deverá ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, 2/3 (dois terços) das frações ideais, e nela devem constar, além das cláusulas determinadas no art. 1332 e de outras normas que se entenderem necessárias, a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos, a forma de administração do condomínio, seu regimento interno e as sanções a que estão sujeitos os condôminos ou possuidores.

A convenção se baseia na necessidade de regulamentação das atividades intra condominiais, como forma de conciliação da liberdade individual e a necessária regulação dos padrões mínimos de comportamento para o bem viver na microssociedade criada pela superposição de propriedades. É na convenção que se traduzem as diretrizes normativas das relações internas ao condomínio.

O mesmo código estabelece determinados parâmetros mínimos a serem observados pela convenção con-dominial, como os direitos e deveres dos condôminos (art.1336 a 1340), a forma de sua administração (art. 1347 a 1356) e as possibilidades de sua extinção (art. 1357 e 1358).

40 No Brasil, a primeira norma a tratar do condomínio edilício foi o Decreto n. 5481, de 15 de junho de 192. Em seu regulamento, permitia a alienação de unidades com o mínimo de três peças e em prédios de mais de cinco pavimentos, construídos com matéria-prima incombustível. Esse estatuto foi modifi cado em 1943, via Decreto-Lei n. 5.234, sendo ele revogado pela Lei n. 285, de 5 de junho de 1948. A Lei de Condomínios e Incorporações (Lei n. 4591/1964), cujo anteprojeto foi redigido por Caio Mário da Silva Pereira, subtituiu a Lei n.285, e continua parcialmente em vigor, como dito. (breve histórico narrado por NADER, 2009, p.225)

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3. A função social dos condomínios edilícios e o Direito Urbanístico

Não data da modernidade a construção em pavimentos. De Roma, já se tem notícia das construções superpostas, muito embora não se reconhecesse a propriedade em planos horizontais: se a propriedade do solo se projetava até o céu (ad astra), e se aprofunda chão adentro até o inferno (ad inferos), “faltava jus-tificativa ali para a separação e autonomização dos direitos de quem acaso vivesse acima do proprietário do solo” (PEREIRA, 1999, p. 61).41

Na idade contemporânea, chegou-se a afirmar que os condomínios em edifícios seriam “nocivos à socie-dade”, porque fonte de problemas. Tanto é que, na redação original dada por Vélez Sársfield ao Código Civil Argentino, constava norma proibitiva da instituição do condomínio horizontal42, somente mais tarde revogada. Atualmente, a matéria é regulada pela Lei 13.512, promulgada em 13 de outubro de 1948 (NADER, 2009, p. 224).

No Brasil, como também no mundo, a construção em planos horizontais apareceu de forma mais palpável por razão do crescimento das cidades, do êxodo rural e do encarecimento da construção civil.

A solução de construção de moradias em planos horizontais, bem como de lojas, salas, escritórios, e até mesmo vagas de garagens (os chamados ‘edifícios-garagem’), mostrou-se então como a mais adequada e viável para resolver os problemas do déficit urbano.

No entanto, a verticalização das cidades não pode ser vista apenas sob esse ponto de vista. Muito embora resolva o problema da “falta de espaço” nas áreas urbanas, já que inviável que todas as pessoas ocupem propriedades exclusivas, a aglomeração dessas mesmas pessoas causa problemas na ordem social, pois cria impacto direto no ordenamento urbano e na qualidade de vida das cidades.

Merecem transcrição as palavras de Clementina de Ambrosis, ainda em 1978, citada por Yara Darcy Police Monteiro e Egle Monteiro da Silveira:

A problemática do espaço urbano reside, em grande parte, na proporção equilibrada entre espaços públicos e privados. Uma proporção equilibrada entre áreas úteis às atividades privadas e as áreas de circulação e de equipamentos públicos (escolas, praças, centros de saúde etc.) de uso comum. Essa proporção diminui na medida em que a cidade cresce verticalmente, pois em cima dos lotes planejados para uma residência se constroem prédios que comportam várias delas; no entanto, as vias e praças não aumentam. (MONTEIRO, SILVEIRA, 2003, p. 281; itálicos no original)

Tal problema é diretamente relacionado à função social da propriedade urbana, eis que a atribuição de função social à propriedade se mostra exatamente como meio de equacionamento de valores tão distintos quanto a individualidade e a solidariedade.

Explica-se.

Segundo lições de Pietro Perlingieri e Francesco Ruscello, a noção de propriedade passa de uma fase “está-tica”, na qual era vista simplesmente como fonte de renda e gozo ao proprietário (visão individualista), se adequa, ainda que timidamente, a uma dimensão dinâmica, voltada para a produção econômica e para o desenvolvimento de interesses não patrimoniais. Nesses termos, devem ser compatibilizados os interesses dos proprietários e também os interesses dos não proprietários, que são, “diretamente ou indiretamente,

41Conta-nos o mesmo autor que em Rennes, em 1720, quando um grande incêndio destruiu parte da cidade, os habitantes foram compelidos a construírem casas de mais categoria, submetidas à planifi cação preordenada, e adotaram com espontaneidade a elevação de edifícios de três e quatro andares, usados com autonomia. Ou seja: “não faltaram, pois, antes da idade hodierna do direito, nem do ponto de vista prático nem do jurídico, oportunidade e exemplo da subdivisão imobiliária em planos horizontais, que a necessidade social e a conveniência econômica têm mostrado acon-selhável” (PEREIRA, 1999, p. 62).

42 Era a seguinte a redação do art. 2.617 do Código Civil Argentino: “El proprietário de edifícios no puede dividirlos horizontalmente entre varios dueños, ni por contrato, ni por actos de última voluntad”.

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efetivamente ou potencialmente, envolvidos no processo de utilização do bem” (PERLINGIERI, RUS-CELLO, 2000, p. 171)43.

Apesar de redigidos os termos quanto à Constituição Italiana de 1948, o mesmo raciocínio se aplica ao ordenamento brasileiro. Isso porque a Constituição da República de 1988 trata da propriedade e de sua função social tanto como direito fundamental (art. 5º, XXII e XXIIII), quanto como norma essencial de política urbana, no título relativo à Ordem Econômica e Financeira (art. 182,§2º).

Diogo Moureira problematiza a questão de maneira assaz interessante. Ao analisar a suposta indiscuti-bilidade da superposição do interesse público sobre o interesse privado, para muitos uma característica inderrogável do Estado Social aplicável ao Estado Democrático de Direito, o estudioso determina que a função social da propriedade somente é demonstrada pela possibilidade de exercício de direitos pelo proprietário e pelos não proprietários, em igual medida, por via da interlocução. São suas palavras:

A dimensão público x privado não diz respeito a interesses jurídicos, mas de realidades em complexos argumentativos diferenciados. A fronteira publico x privado deve ser vista como uma tensão que permite a coexistência de ambos, mas que não implica contradição, nem sobreposição, nem tampouco anulação. Tanto o privado depende do público quanto o público depende do privado. Não há público sem afirma-ção do privado, uma vez que aquele é construído pelo processo de relações construídas e reconstruídas em espaços privados. É este processo social de relações que conduz à formação do espaço público.

(...)

Conclui-se, pois, que a função social desempenhada pela propriedade privada é funcional e apenas pode ser evidenciada na medida em que se possibilita que os indivíduos que integram a rede social de interlocução possam exercer liberdades e não liberdades de forma igualitária (intersubjetivamente). A efetivação desta possibilidade cabe ao direito. (MOUREIRA, 2010, p. 478)

Nestes termos, a propriedade em condomínios edilícios deve ser coerente com o meio no qual este se insere, dando a esse edifício efetiva função social, ao mesmo tempo em que garante aos condôminos meios de desenvolvimento de suas personalidades.

A coerência com o meio externo, o meio urbano, é dada por meio das diretrizes do plano diretor (art. 182, §2º, da Constituição da República), norma esta de planejamento, revista no máximo a cada dez anos, que visa ao atendimento “das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas” (art. 39 da Lei Federal n. 10257 - Estatuto das Cidades).

Certo é que o Plano Diretor não alcança, por si só, as metas e objetivos nele traçados. São normas com-plementares e realizadoras dos planos urbanísticos, essenciais ao desenvolvimento adequado e racional das cidades, as leis municipais de zoneamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, a regulação do sistema viário, os regulamentos de construções, dentre outras que compõe o chamado regime urbanístico do solo. Tal regime é “constituído por um conjunto de normas, instituições e institutos que disciplinam sua utilização no exercício das funções de habitar, trabalhar, circular e recrear. Trata-se da formulação jurídica da política do solo, que constitui requisito essencial e parte integrante do moderno urbanismo” (SILVA, 2008, p. 169).

O atendimento da função social pelos condomínios em edifícios passa, então, necessariamente, pela compatibilidade do empreendimento com as normas estabelecidas pelo regime municipal de ordenação

13 No original: “la funzione di contemperare gli interessi proprietari con gli interessi degli altri soggetti, direttamente o indirettamente, attualmente o potenzialmente, coinvolti nel processo di utilizzazione del bene”.

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do solo. Alguns são requisitos básicos, como o atendimento do zoneamento44. Outros, não obstante sejam bastante perceptíveis, muitas vezes são descurados pelo incorporador, e às vezes pela própria Administração Pública no momento do fazimento das normas urbanísticas.

Dá-se como exemplo a necessidade do projeto de construção do edifício ser harmônico com a capacidade da via urbana em que se irá instalar. Por via urbana, entenda-se “toda via de circulação compreendida dentro do perímetro urbano ou dentro de zona urbanizada” (SILVA, 2008, p. 201). O descaso relativo a esse item é um dos pontos geradores de transtornos nos grandes centros: o excessivo trânsito em vias estreitas faz com que aumentem o volume dos congestionamentos, além de, muitas vezes, causar até mesmo a avaria do sistema viário por aumento da circulação e peso excessivo para a via.

No Município de Belo Horizonte, por exemplo, há regra específica que condiciona a aprovação de condomínios com área entre 50.000m2 e 100.000m2 à elaboração de estudos de impactos urbanos e/ou ambientais, avaliados pelo órgão municipal competente, além da vedação de que a continuidade do sistema viário público, existente ou projetado, seja obstaculizado, independentemente da área do con-domínio (Lei n. 7166/1996, art. 32, I e II).

Outro ponto bastante importante para o perfeito delineamento da função social dos condomínios é a observância ao coeficiente máximo de aproveitamento e às taxas de permeabilidade do solo previstas para a área.

Entende-se por coeficiente de aproveitamento “a proporcionalidade entre a área construída e a área do terreno, com vistas a manter o equilíbrio entre a densidade demográfica e a infraestrutura de serviços e de solos públicos” (MONTEIRO, SILVEIRA, 2003, p. 282).

Por sua vez, as taxas de permeabilidade do solo demonstra a relação entre a parte permeável, que per-mite a infiltração de água no solo, livre de qualquer edificação, e a área do lote. Sua função é permitir a existência de vegetação que contribua para o equilíbrio climático e propicie alívio para o sistema público de drenagem urbana.

Ao mesmo tempo em que tais instrumentos visam à preservação do meio ambiente urbano e a melho-res condições de vida nas cidades, tem função importante também para os próprios condôminos, pois demonstram a preocupação com a evitação de enchentes e alagamentos ruas e nas dependências do condomínio, com a melhoria da ventilação e, consequentemente, das condições de salubridade em que conviverão os condôminos.

Ambos os instrumentos – a fixação de taxa de permeabilidade e de coeficiente máximo de aproveitamento – são de aplicabilidade sobremaneira importante, eis que é por meio deles que se delineia, por exemplo, o número máximo de pavimentos que um edifício pode possuir a partir da área de solo disponível, ou a área máxima de impermeabilização do solo.

Fato é que um dos requisitos impostos legalmente para o início das negociações e alienação das unidades autônomas, nos casos de incorporação imobiliária, é o arquivamento, no cartório Registro de Imóveis, de vários documentos tidos por “constituidores” da incorporação, como a comprovação da titularidade do terreno (ou de legítimo direito sobre ele); certidões fiscais negativas; e discriminação das frações ideais de terreno, com unidades autônomas que a elas corresponderão.

44 Zoneamento do uso do solo pode ser entendido como “um procedimento urbanístico destinado a fi xar os usos adequados para as diversas áreas do solo municipal. Ou: destinado a fi xar as diversas áreas para o exercício das funções urbanas elementares.” Tem por objetivo, então, “regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas, no interesse do bem estar da população. (...) Como manifestação concreta do planejamento urbanístico, o zoneamento consiste num conjunto de normas legais que confi guram o direito de propriedade e o direito de construir, conformando-os ao princípio da função social.” (SILVA, 2008, p. 241 e 242).

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Dentre eles, em razão da importância para o objeto deste trabalho, encontra-se o “projeto de construção devidamente aprovado pelas autoridades competentes” (art. 32, d, da Lei n. 4591/1964).

Anteriormente ao regime instalado pela Lei 4.591/1964, era facultado ao incorporador a alienação das unidades em futuro condomínio em “edifício que não tinha projeto, a ser construído em terreno sobre que não tinha direito, e com material que não tinha dinheiro para adquirir” (PEREIRA, 1999, p. 264).

Desta feita, a necessidade de projeto de construção aprovado pelas autoridades administrativas vem so-correr tanto o adquirente de unidades em incorporação imobiliária, por garantir-lhe que o incorporador tem o que oferecer, e ao mesmo tempo assegura que o condomínio obedecerá a sua função social.

Ou seja: para que uma incorporação imobiliária possa atender à função social da propriedade – e con-sequentemente, para que o condomínio a ser instalado atenda à função social que lhe é inerente – é necessário que os projetos de construção sejam condizentes com as normas administrativas e urbanísticas vigentes e que essas mesmas normas tenham sido obedecidas na construção do edifício.

Mas outra questão se impõe analisar: e nos edifícios já construídos, de propriedade exclusiva ou em condomínio tradicional, nos quais se planeje a instituição de um condomínio edilício, seriam lícitas as exigências de adequação do prédio às normas urbanísticas?

A essa pergunta entendemos que a resposta mais adequada é sim: é possível a exigência de adaptações do prédio para que atenda às normas urbanísticas caso alterada a sua destinação / conformação, de modo que se tenha observada, consequentemente, a função social dessa nova modalidade de propriedade que se criará.

Isso porque a função social da propriedade não é um conteúdo estático. Ao contrário, é dinâmico, e suas feições variam conforme o uso que se faz dessa mesma propriedade.

Nas palavras de Caio Mário, é o exercício do direito de propriedade que se subordina ao inte-resse público, e a função social é integrante menos da definição do direito do que ligada ao seu exercício (PEREIRA, 1999, p. 33).

No mesmo sentido, Fachin salienta que a função social relaciona-se com

“o uso da propriedade, alterando, por conseguinte, alguns aspectos pertinentes a essa relação externa que é o seu exercício. E por uso da propriedade, é possível apreender o modo com que são exercitados as faculdades ou os poderes inerentes ao direito da propriedade. (FACHIN, 1988, p. 17)”.

Em sentido parecido, Guido Alpa, citado por Eroulths Cortiano Júnior (2002, p. 159) afirma que a função social da propriedade é a relação que existe entre os poderes de destinação do proprietário, a conformação do bem e o plano de utilização da propriedade.

E autor brasileiro complementa:

“Para cada bem um regime particular, conforme suas qualidades naturais e econômicas (conformação do bem); o regime definirá a forma de exercício dos poderes proprietários (poderes de destinação do proprietário); o proprietário deverá obedecer também aos usos indicados pela legislação (plano de uti-lização da propriedade, determinada mediante intervenção estatal na atividade privada). Como coloca Filipo Vassali, ‘I poteri attribuiti al proprietário, e in general ela disciplina giuridica della proprietà, sono diversi a seconda dei beni che formano oggeto del diritto.’” (CORTIANO JÚNIOR, 2002, p. 159 e 160)

Isso significa que a função social da propriedade se faz sentir, e suas variações ocorrem, conforme as pe-culiaridades específicas do bem, inclusive a partir do uso que dela se faz. Não é por acaso que o regime urbanístico da propriedade é delineado pelos planos diretivos de urbanização (principalmente do Plano

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Diretor) e a partir de normas de zoneamento da cidade, e para cada espécie de zona traçada se têm exi-gências distintas a serem cumpridas.

Não é de se espantar então que para a transformação de um prédio, até então pertencente a um único proprietário, e utilizado só por ele, em um condomínio edilício, por meio do fracionamento, por exem-plo, de suas salas/quartos em salas comerciais, haja a necessidade de se atender às exigências urbanísticas decorrentes do uso coletivo do imóvel. Como exemplo dessas exigências, a necessidade de projeto de combate a incêndio e pânico aprovado por quem de direito; a compatibilidade com o uso permitido pelo zoneamento local; a existência de número de vagas de estacionamento compatível com a legislação local, dentre outros.

4. Função social da propriedade nos condomínios edilícios – relação interna

Como já dito alhures, o Código Civil regulamenta a propriedade em condomínio edilício no seu art. 1331. Traz, nos parágrafos desse mesmo artigo, as definições e incidências da propriedade exclusiva (§1º), das partes comuns (§2º) e a vinculação permanente entre a propriedade exclusiva e a comum (§3º).

Trata o Código, como também já falado, dos contornos mínimos a serem observados pela convenção de condomínio, documento este que constitui a copropriedade especial em edifícios.

Certo é que no momento em que se fala de propriedade no contexto do Estado Democrático de Direito está-se a falar de uma propriedade funcionalizada, voltada não mais para o individualismo que regeu a construção normativa a partir do século XVIII, mas sim para o desenvolvimento da pessoa, em toda a sua complexidade – uma “propriedade função”, no termo cunhado por Adriano Stanley (SOUZA, 2010). 45

Neste sentido é que se diz que, a partir da instituição da nova ordem jurídica no Brasil, por meio da Con-stituição da República de 1988, e notadamente após a vigência do Código Civil, em 2003, houve uma mudança de eixo na configuração do pensamento jurídico civilista: o foco deixou de ser o “indivíduo”, insular, abstrato, desconectado de toda e qualquer referência, para iluminar a “pessoa”, ente dotado de personalidade e características próprias, que somente pode ser percebido a partir do contexto pessoal e social em que se posiciona.

Assim, na mesma medida em é a natureza do bem e o exercício da propriedade que ditam o conteúdo da função social, é a contextualização do sujeito que determina os poderes proprietários. Trata-se da rela-tivização do sujeito proprietário, a exemplo do que se disse há pouco quanto ao objeto da propriedade: a abstração do “sujeito de direito” e do “objeto do direito”, típica da formulação jurídica oitocentista, cede espaço para a personalização e funcionalização dos direitos, ou seja, a substituição dos arquétipos jurídicos clássicos a um novo modelo jurídico, no qual a interpretação e a perspectivas efetivamente pes-soais ocupam o espaço do modelo abstrato de então.

Nesta mesma direção, a doutrina pátria:

A pessoa humana, portanto – e não mais o sujeito de direito neutro, anônimo e titular de patrimônio – qualificada na concreta relação jurídica em que se insere, de acordo com o valor social de sua atividade, e protegida pelo ordenamento segundo o grau de vulnerabilidade que apresenta, torna-se a categoria central do direito privado. (TEPEDINO, 2006, p. 342).

45 “O novo ordenamento civil, em compasso com o texto constitucional e muito mais sintonizado com a realidade social, estabelece limites a esta propriedade privada. Hoje temos, portanto, o que poderíamos chamar de “propriedade função”, haja vista que, a propriedade somente sera respeitada se esta estiver cumprindo sua função social.” (SOUZA, 2010)

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E mais:

O sujeito de direito deixa de ser abstração e se transforma no artífice do sistema, porque real portador dos interesses em jogo. Assim, importa saber, para a verificação da função social da propriedade, a concreta posição do sujeito nas suas relações, no que toca ao seu direito de propriedade. Se é empreendedor, consumidor ou fornecedor, trabalhador ou patrão; se, naquele caso concreto, é alguém com moradia ou sem moradia; se é sua única propriedade ou se tem outras; se está em condomínio ou se é proprietário isolado. (CORTIANO JÚNIOR, 2002, p. 152/163)

Desta feita, a análise da função social da propriedade em condomínios edilícios deve ser feita a partir da contextualização dos condôminos como tal, e não a partir da noção abstrata de “proprietário”. Destarte, a relação entre coproprietários é o tônus da função social nos condomínio, e como os coproprietários são, também, vizinhos, a função social da propriedade num condomínio edilício é ligada, necessariamente, aos direitos de vizinhança.

Cumpre ressaltar, ainda, que o Código Civil estabelece que o regimento interno do condomínio é parte integrante da convenção (art. 1334, V, do diploma civil). Esse regimento visa a detalhar a convenção, tendo em vista a necessidade de minudenciar o modus vivendi ante questões referidas na convenção do-minial (SOARES, 2010, p. 494).

Desta feita, a convenção de condomínio e o seu regimento interno são elementos garantidores da convi-vência, ao lado das normas gerais traçadas pelo Código Civil e das regras atinentes ao direito de vizinhança. Isso porque o condomínio representa uma “microssociedade”, um espectro das relações interpessoais que compõe a sociedade como um todo.

Muito embora não tenha natureza legal, a convenção e o regimento interno certamente têm natureza vinculativa entre os condôminos, seus sucessores a qualquer título e, até mesmo, frequentadores do condomínio46. Neste sentido, explicita Élcio Nacur Rezende:

Concluo, portanto, que a natureza jurídica da Convenção de Condomínio mais se assemelha a um ato-regra. Afinal, não posso considerá-la um simples contrato, pois seus efeitos não se restringem a seus signatários, mas sim a todos os condôminos e seus sucessores. Da mesma forma, não é lei, pois sua fonte não é o Estado e sim um acordo de vontades (tal qual no contrato), porém seus efeitos são mais restritos, afinal, ao contrário da lei, não é norma geral com efeitos erga omnes, pois se restringem àqueles que frequentam o condomínio edilício. (REZENDE, 2005, p. 51-52)

No entanto, a convenção e o regimento interno, por muitas vezes, ao regular as relações internas ao condomínio, interferem, inclusive, no conteúdo da propriedade exclusiva dos condôminos, em casos que por vezes confrontam até mesmo a legislação vigente.

São casos como os de condomínios que estabelecem, em suas convenções, normas tais como a proibição de locação do imóvel para terceiros, vedação de animais no prédio, proibição de visitas utilizarem as dependências comuns e a expulsão de condôminos por comportamento antissocial.

Diante dessas normas, surge a dúvida: ainda que sob o signo da função social da propriedade, qual o limite à interferência do interesse geral (dos condôminos) no direito do proprietário à sua parte exclusiva, dentro da microssociedade composta pelo condomínio?

46 Não obstante legalmente se exija o registro da convenção para a sua efi cácia erga omnes, os condôminos não se isentam de sua observância acaso não cumprido o ônus do registro. Isso porque o art. 1333 do Código Civil, inspirado na Súmula 260 do STJ (2002), prevêem que o registro somente é obrigatório para que a convenção seja oponível contra terceiros não condôminos (Súmula 260, STJ: “A convenção de condomínio aprovada, ainda que sem registro, é efi caz para regular as relações entre condôminos”)

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Passa-se então a analisar “até que ponto a convenção, lei maior interna ao condomínio, pode ou não limitar o direito de propriedade, estabelecendo regras quanto ao seu uso e restringindo determinadas condutas” (BEIL, 2006).

A princípio, é essencial que se observe, na aplicação das normas convencionais, a compatibilidade desses preceitos com os princípios expressos na Constituição Federal, notadamente aqueles refletores dos direitos fundamentais, como o direito à propriedade privada e sua função social, ao pleno desenvolvimento da personalidade (dignidade humana, aí se incluindo a privacidade e a intimidade) e à autonomia privada.

Há que se constatar que os direitos fundamentais, como princípios constitucionais que são, e por força do princípio da unidade do ordenamento jurídico, são aplicáveis a toda a ordem jurídica, inclusive à ordem privada.

Neste sentido, a breve explicação de Daniel Sarmento,

“a extensão dos direitos fundamentais às relações privadas é indispensável no contexto de uma sociedade desigual, na qual a opressão pode provir não apenas do Estado, mas de uma multiplicidade de atores privados, presentes em esferas como o mercado, a família, a sociedade civil e a empresa”. (SARMENTO, 2010, 185).

E continua:

“O reconhecimento de que o Estado tem o dever de proteger os particulares de lesões e ameaças aos seus direitos fundamentais perpetradas por terceiros não apresenta nenhuma incompatibilidade ou contradição com a ideia da incidência direta dos mesmos direitos na esfera privada. Muito pelo con-trário, ambas as concepções reforçam-se mutuamente, e podem ser reconduzidas a um denominador comum, que é a visão realista de que, no mundo contemporâneo, os atores privados, sobretudo quando investidos em maior poder social, representam um perigo tão grande ou até maior que o próprio Estado para o gozo dos direitos fundamentais dos mais fracos” (SARMENTO, 2010, 244)

Necessário se considerar também que tais princípios têm caráter fluido, e necessitam de verificação da aplicabilidade caso a caso, conforme as especificidades da situação concreta, de acordo com o paradigma pós-moderno. Mas é certo, também, que a aplicabilidade desses princípios se estende às relações priva-das, no que se convencionou nomear, no âmbito do direito constitucional, de “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”.

Segundo a doutrina, no Brasil, a proteção dos direitos fundamentais nas relações entre particulares pode se dar por meio de três formas. A primeira, intervenções legislativas (a exemplo da ampla legislação tra-balhista e de proteção ao consumidor, assegurando a livre formação da vontade dos hipossuficientes, e prevenindo a discriminação, no âmbito das relações civis). Dá-se também por meio da interpretação e aplicação de cláusulas gerais de direito privado, a exemplo da jurisprudência formada sobre os contratos de adesão, em que se considerou abusiva a eleição de foro inserida nesses contratos. E, por fim, dá-se através de suscitação direta do direito fundamental para a solução de conflitos entre particulares (VAS-CONCELLOS, 2009).

Nesse sentido, de forma bastante simplificada, a nomeada “eficácia horizontal” significa a aplicação, nas relações privadas, dos direitos expressos como fundamentais na Constituição, de modo direto e imediato, sem que se exija a mediação legislativa.

Assim, as normas constitucionais, acompanhadas ou não da legislação ordinária, são as balizas para a verificação da legalidade e constitucionalidade das normas expressas na convenção de condomínio (aí se incluindo também as normas do regimento interno).

Tome-se como exemplo a situação de uma convenção de condomínio que proíba, de forma absoluta, o uso do imóvel por terceiros. Em nosso entendimento, a disposição fere o art. 1º, IV, o art. 5º, XXXIII,

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e o art. 170, III, todos da Constituição Federal, além do art. 1228, caput e §1º, e art. 1335, I, esses últimos do Código Civil.

Isto porque, além de a livre iniciativa ser fundamento da República Federativa do Brasil, a restrição do uso do bem por seu proprietário, exclusivamente, limita de forma extrema o direito de propriedade, já que impede o direito de fruição (pois excluída a possibilidade de obtenção de frutos civis - aluguel), além de vedar que o proprietário dê ao bem uma utilização consentânea com sua função social. A demais, gera ao proprietário um ônus exagerado, pois obriga-o a arcar com a integralidade das despesas do imóvel, ônus esse que normalmente é atribuído por contrato ao possuidor (locatário / usufrutuário / comodatário).

Nos termos do assinalado por Beil,

(...) a propriedade deve garantir à sociedade – e não só ao indivíduo proprietário, o máximo de retorno. No exemplo em comento – limitação do direito de locação – tal função não resta cumprida (a função social da propriedade). Neste caso, o direito da pequena coletividade condominial resta superado pelo direito da sociedade em geral em ver cumprida a plena utilização do bem, socializando-se o acesso de forma irrestrita ao uso pacífico e sadio de propriedades em condomínios edilícios não só aqueles que tem condições de adquirir tal bem, mas também àqueles cujos limites financeiros permitem apenas sua locação.

(...)

Ou seja, no atual cenário político-econômico, a propriedade deve ser sinônimo de rentabilidade e não de ônus. Contrariar isso é contrariar a Constituição. Não havendo prejuízo de grande ordem, imediato e plenamente constatável, com a locação aos demais condôminos, tal direito não pode ser negado, devendo portanto o condomínio lançar mão de outros instrumentos legais para coibir os eventos que a regra pretendia evitar. (BEIL, 2006)

Por outro lado, acaso a vedação de cessão de uso seja relativa, isto é, atinja tão somente a determinadas classes de locatário (como, por exemplo, a proibição de que o imóvel sirva para abrigar repúblicas de estudantes, atividades perigosas e insalubres, ou atrativas de roubos), a jurisprudência vem entendendo ser lícita a disposição da convenção. Isto porque não haveria diminuição dos poderes do proprietário, e nem o desprestígio aos seus direitos, mas simplesmente a vinculação dos proprietários aos limites expressos, voluntariamente, na convenção de condomínio.47

Em outro caso exemplificativo, o de proibição de animais no interior da unidade, também se mitiga a vedação expressa nas convenções de condomínio quando se tratar de animais que não interferem no sossego, na segurança e no conforto do condomínio. Isso porque, entende os doutrinadores e a juris-prudência, muito distinta é a situação da permanência de uma tartaruga, ou um cachorro de pequeno

47“APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO COMINATÓRIA - INFRAÇÃO À CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO - PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL. É na convenção de condomínio que se delineia a vida interna do condomínio, com a regulamentação do complexo de direitos e deveres de todos os que estiverem nos seus limites. Ela impõe limitações a liberdade de cada condômino em proveito da melhor harmonia do todo. Hipótese na qual a prática de pensionato ou república é expressamente vedada pela convenção de condomínio, que deve ser prestigiada. (Des. Domingos Coelho) CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO - VIOLAÇÃO - ESTABELECIMENTO DE REPÚBLICA EM UNIDADE. O desvio de destinação caracteriza violação ao dever do condômino estabelecido no artigo 1.336, inciso IV, do Código Civil. (Des. Nilo Lacerda)” (TJMG, Ap. Cív. N. 1.0024.08.153250-9/001(1), Rel. Des. Domingos Coelho, vencido o Revisor, publicado em 16/09/2010)

“AÇÃO ORDINÁRIA - CONDOMÍNIO - LOCAÇÃO DE LOJA PARA CONSULTÓRIO ODONTOLÓGICO - PROIBIÇÃO PREVISTA NO REGU-LAMENTO CONDOMINIAL - NOCIVIDADE À PROPRIEDADE DEMONSTRADA - PROCEDÊNCIA DA DEMANDA - Se o regulamento do condomínio veda expressamente a locação para gabinetes dentários nas unidades comerciais que o compõem, tem-se que, embora se reconheça tratar-se de norma restritiva da liberdade individual, de natureza cogente a todos os que penetram no círculo social restrito, o seu alcance é absoluto, mormente se confi gurado o mau uso da propriedade, com prova da existência de danos ao sossego dos demais moradores, devendo sempre prevalecer, com rigi-dez, as disposições pactuadas entre os condôminos.” (TJMG, Ap. Civ. 2.0000.00.438778-2/000(1), Rel. Des. Otávio Portes, publicado em 10/06/2004)

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porte no imóvel, daquela em que se criam cães da raça pitbull48. Trata-se de aplicação do princípio con-stitucional da razoabilidade, de modo que o benefício a ser atingido pelos condôminos pela interdição seja proporcional à desvantagem suportada pelo proprietário individual.

5. Conclusão

A noção de função social da propriedade em condomínios edilícios apresenta duas facetas bastante pe-culiares.

Isso porque, ao mesmo tempo em que se deve analisar a propriedade edilícia como um todo, ou seja, o edifício ou conjunto de edifícios que compõe o condomínio diante da realidade urbana no qual ele se insere (âmbito externo ao condomínio), a função social também deve se manifestar nas relações internas ao próprio condomínio, na dimensão da convivência entre a propriedade individual e a propriedade comum.

Diante disso, a função social dos condomínios em edifícios é dada, sob a perspectiva externa, pela obser-vância dos parâmetros urbanísticos definidores da fun ção social da propriedade urbana, notadamente pela obediência às normas e regulamentos atinentes à organização das cidades, como as leis de zoneamento, leis de uso e posturas e regulamentos de construções.

Por outro lado, no âmbito interno ao condomínio, a observância da função social das unidades condo-miniais é verificada por meio da convenção do condomínio, em conjunto com as normas de direito civil e constitucional.

Neste ponto, importante salientar que as convenções de condomínio não estabelecem normas absolutas. Ainda que o documento tenha a função e a pretensão de delinear o correto e adequado exercício da propriedade nos condomínios edilícios, eles não estão isentos da obediência às normas constitucionais, mormente aquelas definidoras de direitos fundamentais, em função da eficácia horizontal desses direitos.

48 DIREITO PROCESSUAL CIVIL - DECLARATÓRIA - INVALIDADE - CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO - PROIBIÇÃO DE ANIMAIS NO INTERIOR DAS UNIDADES - ILEGALIDADE - NÃO COMPROVAÇÃO - ÔNUS DA PROVA DO AUTOR. A convenção de condomínio faz lei entre os condôminos, sendo obrigatória inclusive para aqueles que não participaram de sua elaboração, salvo se comprovada a existência de ilegalidade na referida convenção. Tendo sido estabelecido entre os condôminos, através da respectiva convenção, a proibição de criação de animais no interior das unidades, não há como ser acolhido o pleito autoral que visa a declaração de invalidade da aludida convenção, diante da ausência de demonstração da ilegalidade apontada. Incumbe ao autor a produção de prova hábil a demonstrar o fato constitutivo de seu direito, conforme preceitua o artigo 333, I do CPC. Vv O direito de propriedade do autor de manter animal doméstico de pequeno porte em sua unidade não pode ser tolhido em razão de norma prevista em convenção de condomínio, quando o exercício de tal direito não causa qualquer perturbação, desconforto ou risco aos condôminos. (TJMG, Ap. civ. n. 1.0024.07.542679-1/001(1), Rel. Des. Fernando Caldeira Brant, publ. 28/06/2010)

APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0145.05.215440-1/001 - 23.2.2006 JUIZ DE FORA AÇÃO COMINATÓRIA - CONDOMÍNIO EDILÍCIO - PRESENÇA DE CÃES - RAÇA RECONHECIDAMENTE AGRESSIVA - CONVENÇÃO CONDOMINIAL - VEDAÇÃO À PERMANÊNCIA DE ANIMAIS NO EDIFÍCIO - APLICAÇÃO - AMEAÇA À SEGURANÇA CONFIGURADA. - A teor do art. 10 da Lei nº 4591/64 é vedado o uso da propriedade de forma nociva ou perigosa ao sossego, à salubridade e à segurança dos demais condôminos, motivo pelo qual resta mitigada a regra segundo a qual o proprietário tem liberdade irrestrita de uso e gozo de sua propriedade; - As normas constantes da Convenção de Condomínio representam a vontade geral dos condôminos, pelo que deve ser aplicada quando as particularidades do caso demonstrarem a existência de risco à segurança dos demais moradores. - Restando comprovada a existência de cães da raça pitbull no interior do apartamento do apelado, bem como a livre circulação destes pelas áreas comuns, sem o uso de coleira ou focinheira, outra não é a solução senão aplicar a regra do Regimento Interno do Condomínio segundo a qual é proibida a presença de animais nas dependências do edifício. (TJMG, Ap. Civ. n. 1.0145.05.215440-1/001, Rel. Des. Elpídio Donizetti, pub. 08/04/2006).

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Referências

BEIL, Eduardo. “A limitação ao direito de propriedade nos condomínios edilícios e sua função social.” Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 1, n. 1, 3º quadrimestre de 2006. Disponível em http://www.univali.br/direitoepolitica Acesso em 17 de agosto de 2010.

BELO HORIZONTE, Lei Municipal n. 7166, de 27 de agosto de 1996. Estabelece normas e condições para parcela-mento, ocupação e uso do solo urbano no município. Diário Oficial do Município de Belo Horizonte, 28 de agosto de 1996, com alterações dadas pela Lei n. 9.959, de 20/7/2010. Disponível em http://www.cmbh.mg.gov.br/index.php?option=com_wrapper&Itemid=580. Acesso em 10 de janeiro de 2011.

BRASIL, Código Civil (2002). Código Civil, Código de Processo Civil, Código Comercial, legislação civil e em-presarial, Constituição Federal / organização Yussef Said Cahali. 11. ed. rev. amp. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

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Uma análise acerca do Institutoprevisto no art. 1.228 do

Código Civil Brasileiro de 2002

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1. Introdução

O Direito Civil sofreu consideráveis transformações ao longo do conturbado século XX que, seguramente, refletiram sobre um dos pilares do ordenamento jurídico, ou seja, o direito de propriedade. Segundo Adriano Stanley (2009), o direito de propriedade foi o instituto do direito privado que sofreu as maiores transformações em seu conceito e estrutura, e, em função disto, tais transformações, que se mostram amplas e profundas, exigem uma reconstrução dogmática urgente, para que não incorramos em incoerências, sobretudo na aplicação de regras já ultrapassadas e que não mais se coadunam com a nova ordem constitucional.

A Constituição da República de 1988 promoveu uma nova ordem jurídica que intenta proteger o ser humano, tanto no que se refere a seu caráter existencial como também patrimonial, dando ênfase a uma perspectiva funcionalizada, buscando a promoção do bem estar coletivo. O texto constitucional chamou para si a responsabilidade de promover os institutos jurídicos a princípios constitucionais. Com isso, a Dignidade da Pessoa Humana foi elevada a princípio constitucional fundamental, norteador e basilar das demais normas infraconstitucionais, exigindo adequações e mudanças para que a nova ótica consti-tucional seja respeitada.

Alguns valores individuais, como, por exemplo, a igualdade meramente formal, tão caros ao ideário burguês, não podem mais ser mantidos, pelo menos dentro da mesma perspectiva liberal. Até porque, a liberdade de alguns não pode jamais ser preponderante, causando a opressão de uma turba de pessoas, privadas do acesso aos bens mínimos e marginalizadas até mesmo em sua própria dignidade.

Com este novo paradigma, a Constituição de 1988 elevou a função social da propriedade como Princípio Constitucional, coroando a socialização deste instituto e contribuindo com a quebra da visão egoísta e paternalista vigente à época do Código Civil de 1916.

É nesta perspectiva que o presente trabalho tem como objetivo analisar as controvérsias trazidas pelo ins-tituto previsto no art. 1228, do Código Civil de 2002, sua constitucionalidade, bem como sua natureza jurídica, uma vez que o direito de propriedade foi profundamente alterado, em adequação às mudanças impostas pelo texto constitucional de 1988.

49 Professora da Universidade Presidente Antônio Carlos de Teófi lo Otoni/MG – UNIPAC TO, Especialista em Ciências Jurídicas pela Universidade Cândido Mendes, UCAM, Brasil, aluna do Programa de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC/MG, na disciplina isolada Evolução do Direito das Coisas de 1916 ao Código de 2002, Professor Adriano Stanley Rocha Souza. [email protected]

Uma análise acerca do Instituto previsto no art. 1.228 do Código Civil Brasileiro de 2002

Caroline Amorim Costa49

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Para tanto, imperioso se faz, tecer breves considerações acerca de marcos históricos relevantes dentro da evolução do direito de propriedade, afim de chegarmos ao cerne da questão proposta, onde o art. 1228 figura com plenitude, conceituando a função social da propriedade e determinando seus desmembra-mentos por demais questionáveis.

2. Breves considerações acerca da evolução histórica do Direito de Propriedade

O direito de propriedade tem seu reflexo estampado em cada povo e em cada momento da história.

Na Roma antiga, a propriedade tinha um cunho religioso, paternalista e extremamente patrimonialista, onde, verdadeiramente livres, eram aqueles detentores de propriedades. O proprietário era quem gozava do mais alto status em Roma, e qualquer que fosse o tipo de propriedade, trazia consigo o poder, dando ao proprietário um exercício absoluto do seu direito sobre a coisa – inclusive o poder familiar era atrelado à propriedade. O cunho religioso se perfazia pelo fato dos romanos enterrarem em suas propriedades os seus antepassados, e ali, prestarem culto a eles, o que dava a cada uma destas, um significado e valores ímpares. Era da propriedade que emanavam os direitos daqueles que deliberavam pelo futuro de Roma.

Neste contexto, ainda não se falava em nenhuma espécie de função social. Tal preocupação somente surgiu por influência do cristianismo, muitos séculos depois, de modo que não apenas direitos passaram a ser reconhecidos aos proprietários, mas também alguns deveres. Por sua vez, em decorrência do declínio do Império Romano, a propriedade também acaba perdendo seu caráter religioso que lhe banhara até então.

Com o Feudalismo, a propriedade teve sua valorização político-econômica como marco importante. O senhor feudal, detentor das propriedades, comandava soberanamente, cobrando impostos e determinando normas de conduta. Assim, a propriedade passa a ser não apenas fonte de riqueza, mas também de poder, pois tudo o que era valorado economicamente vinha da terra e da propriedade imobiliária. A exploração destas terras se dava da maneira que mais aprouvesse ao seu detentor e seus familiares, pois importância alguma se dava à qualidade de vida dos demais que lá moravam. Assim como em Roma, no feudalismo, a propriedade também era critério determinante na escolha de seus governantes.

O declínio do feudalismo teve início quando o senhor feudal começou a dividir suas terras com seus vassalos por serviços prestados, aguçando o desejo destes em acumular tal fonte de poder e riqueza. As-sim, ao perceberem que com a propriedade e os poderes a ela atrelados conquistavam certa autonomia, os vassalos se organizaram em Corporações de Ofício e começaram a questionar quem seria o senhor feudal sem sua força de trabalho. Perceberam, também, que quanto mais terras adquirissem, mais poder e riqueza viriam juntos – vale lembrar que qualquer coisa era válida para tanto, desde que aumentassem as extensões de suas terras, como os casamentos arranjados, por exemplo. Sendo assim, começou a se romper a estrutura da propriedade da época. Surge então a burguesia, trazendo para este contexto uma conotação econômica da propriedade.

Com o surgimento dos grandes Estados, a disputa pela propriedade ficou ainda mais acirrada, uma vez que o poder estatal se consolidava com a quantidade de terras que possuíam. Quanto maior a extensão territorial, maior o poder que apresentavam.

Como é sabido, em decorrência das grandes navegações, inicia-se a História da propriedade no Brasil. Vale ressaltar que, na verdade, não houve evolução da propriedade no Brasil, uma vez que tudo foi im-posto por Portugal.

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O Brasil era terra de ninguém até a chegada de Dom João VI, em 1800. Com isto, passa a seguir as regras de Portugal. Neste contexto, surge a usucapião extraordinária, que era a comum naquela época. A propriedade no Brasil fez-se pela posse, pois não havia serviço registral, mas, sim, uma conotação política. A intervenção estatal era inexistente e a propriedade foi se construindo como um direito absoluto, onde o dono da coisa usava, gozava, fruía e dispunha dela da maneira que entendesse melhor.

Com o passar do tempo, os não proprietários, o meio ambiente e o patrimônio da humanidade estavam sendo desrespeitados e degradados. Tudo isto, em função do comportamento dos proprietários que ti-veram por base, no início do século XX, o Código Civil de 1916, com um texto egoístico e privatístico, permitindo que a conduta dos mesmos assim se fizesse.

Surge, então, a necessidade de se estabelecer uma função social para a propriedade, visando a delimitar o modo pelo qual o proprietário deveria se comportar no exercício do seu direito.

As primeiras constituições brasileiras deram um enfoque individualista e absoluto ao direito de propriedade. Já a Constituição de 1934, mesmo mantendo o enfoque mencionado, inovou no que se refere à função social da propriedade, reconhecendo que o interesse público deveria sobrepor-se ao individual. Mas, foi com a Constituição de 1988 que o instituto da função social foi elevado a Princípio Constitucional e fundamento da República, trazendo limites ao exercício do direito de propriedade, o que passamos a discorrer a seguir.

3. Dos limites ao Direito Real de Propriedade – dissecando o art. 1.228, do CCB/02

Segundo César Fiuza (2008), o direito de propriedade sempre sofreu restrições. Na Roma Antiga, época denominada Período da Realeza, a propriedade do solo sofria duas das mais sérias restrições, a inaliena-bilidade e indivisibilidade. As razões, conforme anteriormente observado, eram de cunho religioso, uma vez que os proprietários prestavam cultos aos seus antepassados ali enterrados.

Atualmente, é possível distinguir duas ordens de restrições: as legais (como, por exemplo, o direito de vizinhança; a usucapião; o direito agrário; as servidões legais; a proteção especial pelo poder público a documentos, obras e locais de valor histórico, artístico e cultural, monumentos e paisagens naturais notáveis; tombamento e desapropriações) e as voluntárias (inalienabilidade, impenhorabilidade e inco-municabilidade).

Neste sentido, o Código Civil de 1916 e o atual código, demonstram mudanças de suma importância.

O revogado art. 524, estabelecia que: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.” (BRASIL, 2003, p. 314)

Tal dispositivo estabelecia uma conduta sem qualquer restrição formal em sua redação, apresentando--se amplo, quase absoluto, posto que suas limitações poderiam apresentar-se somente no decorrer dos demais artigos, de maneira esparsa.

Noutro giro, o Código de 2002, no dispositivo equivalente ao acima mencionado (o art. 1.228), acres-centou ao caput cinco parágrafos, bastante extensos, aliás, determinando conceitos e ensejando limitações ao direito de propriedade.

In verbis:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

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§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

§ 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. (BRASIL, 2003, p. 314)

Segundo Adriano Stanley (2009), o conceito de função social foi magnificamente exposto nos três primeiros parágrafos do artigo acima, afirmando que os limites podem ser compreendidos em: limites ou função de cunho econômico, social, ambiental e cultural à propriedade privada; limite à prática de atos meramente emulativos e, por fim, limites (ou função) da propriedade por necessidade ou utilidade públicas ou por seu interesse social.

Vejamos cada um deles:

a) Limites ou função de cunho econômico, social, ambiental e cultural à propriedade privada:

O § 1º, do art. 1.228, dispõe:

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Para o referido autor, esta talvez seja a norma mais abrangente no que diz respeito aos limites à propriedade privada, uma vez que o legislador estabelece o respeito e observância às ordens econômicas e sociais da nação, bem como o respeito e a preservação das belezas naturais, devendo o seu titular buscar preservar o equilíbrio ecológico, o patrimônio histórico e artístico, evitando a poluição do ar e das águas no exercício do seu direito de propriedade. Assim, delimitadas foram as funções do direito de propriedade de cunho econômico, social, ambiental e cultural.

b) Limite à prática de atos meramente emulativos:

O §2º, do art. 1.228, dispõe:

§ 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

A esse respeito, entende o citado autor ser desnecessária a inserção deste dispositivo, pois pela regra ati-nente à responsabilidade civil, todo aquele que provocar dano a outrem é obrigado a indenizar. Aponta, ainda, que esta norma apenas se justifica pelo fato de ressaltar o caráter social que agora reveste o direito de propriedade. Além disso, afirma que a referida norma é bem vinda, uma vez que intenta modificar

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a mentalidade do proprietário, acostumado com um direito de propriedade sem limitações nem inter-venção estatal.

Como exemplos de atos meramente emulativos, aponta o proprietário que ateia fogo em sua propriedade com intenção de alcançar o terreno do vizinho. Ainda neste sentido, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2010) apresentam como exemplo o proprietário que constrói uma chaminé direcionada ao terreno do vizinho para lhe causar incômodos com a fumaça, e, também, o proprietário que constrói um muro alto e desnecessário, apenas para quebrar a corrente de ar do terreno ao lado.

c) Limites (ou função) da propriedade por necessidade ou utilidade públicas ou por seu interesse social:

O §3º, do art. 1.228, dispõe:

§ 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

O terceiro limite pode ocorrer em virtude da necessidade ou utilidade pública, assim como do interesse social ou perigo público iminente, podendo ser exemplificados pelos casos de desapropriação para a construção de avenidas, prédios públicos, e outros mais.

3.1 As Controvérsias dos §§4º e 5º – “O Samba do Crioulo Doido”

No que se refere aos §§ 4º e 5º do artigo em pauta, Adriano Stanley (2009) demonstra verdadeira aver-são a tais dispositivos. Chega a denominá-los “O Samba do Crioulo Doido”, um verdadeiro imbróglio jurídico, e aponta suas razões.

Com base nos parágrafos mencionados, propõe uma análise dos mesmos em face do art. 10, da Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade. Senão vejamos:

§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. (grifo nosso)

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por popula-ção de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. (grifo nosso) (SOUZA, 2009, p. 74)

Inicia suas observações com a seguinte indagação: qual dos dois dispositivos trata de usucapião urbano? Os dois se assemelham em tudo.

E aponta o §5º, in verbis:

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

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Se o §5º complementa o §4º, que, como visto, trata de usucapião, como pode haver referência à ideia de indenização? Ora, como se sabe, tal palavra remete à ideia de desapropriação e não de usucapião. E vale ressaltar que uma desapropriação privada é definitivamente inconstitucional.

Ainda nesse sentido, enfatiza Adriano Stanley:

A expressão “imóvel reivindicado” estaria indicando que tais dispositivos só poderiam ser utilizados em defesa, pelos possuidores de uma área extensa que fosse objeto de uma ação reivindicatória. Portanto, tais normas jamais poderiam constituir em fundamento jurídico para que os possuidores delas se servissem como autores de um pedido de aquisição da propriedade da coisa. (SOUZA, 2009, p. 75)

Outrossim, o art. 13, também do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), permite a alegação de usuca-pião em defesa, atendendo melhor aos usucapientes, uma vez que, nesse caso, não haverá a necessidade de desprenderem qualquer valor para aquisição da propriedade usucapida.

Nesse sentido, cumpre também indagar: o que significam as expressões, “extensa área” e “considerável número de pessoas”? Segundo Stanley (2009), estas são expressões vazias, não fornecendo nenhum tipo de informação que possibilite aplicabilidade e eficácia.

E “boa fé”? O que vem a ser a boa fé de pessoas que invadem uma área? E como determinar a boa-fé de várias pessoas em conjunto? Se um desses possuidores não estiver de boa-fé, os demais perdem o seu direito?

Ademais, a última expressão “considerada pelo juiz de interesse social e econômico relevante”, parece fla-grantemente inconstitucional, uma vez que esse julgamento é de caráter plenamente subjetivo, e a pessoa imbuída dessa análise não tem competência funcional para tanto. Mesmo porque, quem determina as competências funcionais dos poderes da República é Constituição, e claramente o poder judiciário não tem competência para desapropriar propriedades particulares. Tal poder é inerente ao executivo, e me-diante Lei.

Ainda segundo Stanley:

O Decreto Lei 3.365, de 21 de junho de 1941, que regulamenta desapropriação por utilidade pública e serve como regulamento para todas as outras leis de desapropriação criadas posteriormente a esse, define que somente o Poder Executivo pode declarar a utilidade pública para fins de desapropriação de uma área particular, in verbis: “Art. 6º. A declaração de utilidade pública far-se-á por decreto do Presidente da República, Governador, interventor ou prefeito.” (grifo nosso) (SOUZA, 2009 p.76)

Ao poder judiciário, portanto, é expressamente vedada a análise deste conteúdo, não lhe cabendo aferir se há ou não utilidade pública em relação a determinado imóvel. É, aliás, o que preceitua o art. 9º da referida Lei: “Art. 9º. Ao poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública.” Desse modo, dizer o que é ou o que não é de interesse social e econô-mico é dever do chefe do Executivo local, e jamais do judiciário.

E mais, o que vem a ser “justa indenização”? Pois, se uma área foi invadida, esta invasão acabou por desvalorizá-la, então, como falar em justa indenização? Se fosse pra valorizar a área no estado em que se encontra, o proprietário seria apenado duas vezes, pois, além de perder sua terra, não seria devidamente indenizado.

Por tudo o que foi acima exposto, Adriano Stanley (2009) entende que estes dispositivos são inviáveis, inúteis e inconstitucionais. Mas, ainda apresenta duas questões pertinentes. Quem pagará o preço de-terminado no final do §5º, uma vez que estamos tratando de pessoas de baixa renda? E mesmo que os usucapientes tivessem dinheiro, porque se valeriam deste instituto se há outras modalidades de usucapião gratuitas?

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A esse respeito, poder-se-ia dizer que quem pagaria tal preço seria o Estado. Mas, não há Estado pagante, uma vez que quem paga os impostos para gestão da coisa pública somos nós. Assim, quem pagaria serí-amos nós mesmos. E não há alguém tão altruísta a esse ponto, de pagar com seu dinheiro, “ou dinheiro de todos nós”, a compra de uma propriedade privada.

Finalizando, “pago o preço, valerá a sentença como título para registro do imóvel em nome dos possuidores.” E se algum dos possuidores não pagar?

Com todos os questionamentos, dúvidas e inconstitucionalidades presentes nos §§4º e 5º, do art. 1.228, Adriano Stanley (2009) arremata sua revolta com tais dispositivos, classificando-os como “dois monstros jurídicos, uma vez que não apresentam respostas, mas, frases vagas, incompetência funcional, e confusões con-ceituais.” Trata-se, segundo ele, de construção “franksteniana”, uma “aberração jurídica estéril”. (SOUZA, 2009, pág. 78)

Outro questionamento que permeia o artigo em questão está relacionado com a natureza jurídica do instituto nele inserido. O que seria tal previsão? Uma desapropriação judicial? Uma espécie de usucapião especial? Coletivo? É o que se passa a discorrer no tópico seguinte.

3.2 Um nova forma de perda da propriedade?

Segundo Camilo de Lelis Colani Barbosa (2004), os dispositivos dos §§4º e 5º, do artigo em comento, tratam de uma nova forma de perda da propriedade, não antes conhecida no direito brasileiro, em função de certas peculiaridades, constituindo uma situação intermediária entre a usucapião e a desapropriação.

Muitas têm sido as discussões doutrinárias acerca da questão, e o referido jurista nos traz posicionamentos como os de Washington de Barros Monteiro (em versão atualizada por Carlos Alberto Dabus Maluf ), Maria Helena Diniz, Fredie Didier Júnior, Nélson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery.

a) Usucapião Coletivo

Washington de Barros Monteiro, em sua obra atualizada por Carlos Alberto Dabus Maluf, critica seria-mente o dispositivo e define o instituto como uma nova forma de usucapião.

Assim sustenta o autor:

As regras contidas nos §§4o e 5º abalam o direito de propriedade, incentivando a invasão de glebas urbanas e rurais, criando uma forma nova de perda do direito de propriedade, mediante o arbitramento judicial de uma indenização, nem sempre justa e resolvida a tempo, impondo dano ao proprietário que pagou os impostos que incidiram sobre a gleba. (MONTEIRO, 2003, p. 86)

Conclui o mencionado autor, após argumentação relacionada ao Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01:

Tal forma de usucapião aniquila o direito de propriedade previsto da Lei Maior, configurando-se um verdadeiro confisco, pois, como já dissemos, incentiva a invasão de terras urbanas, subtrai a propriedade de seu titular. (MONTEIRO,2003, p. 86)

Embora não reste dúvidas acerca da credibilidade do autor supracitado, algumas críticas lhe podem ser dirigidas.

Primeiramente, a usucapião é forma de aquisição de propriedade de maneira gratuita, sem acarretar ônus a seu adquirente ou a qualquer outra pessoa. Além disso, a estrutura ensejadora da usucapião é direcio-nada a um indivíduo determinado, situação que dá à referida estrutura um caráter de pessoalidade. E,

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de modo geral, na usucapião, o que conta como requisito precípuo para a aquisição da propriedade é o decurso do tempo e não a realização de obras e serviços.

Assim, não há que se falar em uma nova modalidade de usucapião, em detrimento aos obstáculos con-ceituais oriundos do pagamento de uma “justa indenização” fixada pelo juiz, o que é completamente incompatível com esta primeira teoria.

b) Posse-trabalho

Sustentando a utilização da expressão posse-trabalho, Maria Helena Diniz afirma que:

Trata-se, como nos ensina Miguel Reale, de uma inovação substancial do Código Civil, fundada na função social da propriedade, que dá proteção especial à posse-trabalho, isto é, à posse traduzida em trabalho criador, quer se concretiza na construção de uma morada, quer se manifeste em investimen-tos de caráter produtivo ou cultural. Essa posse qualificada é enriquecida pelo valor laborativo, pela realização de obras ou serviços produtivos e pela construção de uma residência. (DINIZ, 2004, p. 178)

Vale a pena ressaltar que a opinião de Maria Helena Diniz é inteiramente oposta à expressada na teoria anterior, especificamente no que diz respeito à finalidade social da norma.

Complementa a autora:

Deveras, o que se poderia fazer nas reivindicatórias dos proprietários contra os que de boa fé possuíam áreas extensas loteando-as, nelas instalando sua residência ou empresa ou nelas investindo economica-mente? Poder-se-ia destruir suas vidas e uma economia familiar? O proprietário, vencedor da demanda, não receberá de volta o bem de raiz, mas, sim o justo preço do imóvel, sem nele computar o valor das benfeitorias, por serem produto do trabalho alheio. Justifica-se dada a relevância dos interesses sociais em jogo, que a restituição da coisa seja convertida pelo órgão judicante em justa indenização. De modo que a o proprietário reivindicante, em vez de reaver a coisa, diante do interesse social, receberá, em dinheiro, o seu justo valor. Pago o preço, a sentença valerá como título para a transcrição do imóvel, hipótese em que se dá ao Poder Judiciário o exercício do poder expropriatório em casos concretos. (DINIZ, 2004, p. 178)

A expressão posse-trabalho, porém, dá margens a determinadas críticas. Assim, por exemplo, não se pode condensar apenas nessas duas palavras uma estrutura inteira imaginada pelo legislador. Principalmente quando se constata que a condição precípua de validade para que aconteça a aquisição da propriedade não é a da posse, nem mesmo do trabalho. O que concretiza a transferência da propriedade, na verdade, é o registro, e este só acontece com o pagamento do preço que, por sua vez, valida a Sentença.

c) Contra Direito Processual

Esta teoria é extremamente interessante, sendo defendida também, ainda que implicitamente, pelo Ministro Teori Albino Zavascki.

Ela sustenta que, ao contrário do que se conjectura, não seria uma forma originária de perda da proprie-dade, por via judicial, mas o exercício de um contra-direito pela via processual, com intuito de produzir efeitos na relação jurídica material.

É, aliás, o que se pode depreender da seguinte passagem:

Todavia, comparações à parte, o que o novo instituto faculta ao juiz não é desapropriar o bem, mas, sim converter a prestação devida pelos réus, que de específica (de restituir a coisa vindicada) passa a ser

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alternativa (de indenizá-la em dinheiro). Nosso sistema processual prevê várias hipóteses dessa natureza, notadamente em se tratando de obrigações de fazer e de obrigações de entrega de coisa.

É de se mencionar, pela similitude com a situação em exame, o caso em que há apossamento de bem particular pelo poder público, sem o devido processo legal de desapropriação (desapropriação nula). Também, nesse caso, nega-se ao proprietário a faculdade de reivindicá-lo – seja por ação reivindicatória, seja por interditos possessórios – convertendo-se a prestação em perdas e danos. É o que estabelece a Lei das Desapropriações (Decreto-lei 3.365, de 21.06.1941) art. 35: ‘Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.’No mesmo sentido: Estatuto ta Terra (Lei 4.504, de 30/11/1964, art. 23 e a Lei Complementar 76, de 06.07.1993, art. 21, tratando da desapropriação para fins de reforma agrária. No caso da denominada ‘desapropriação judicial’, ora em comento, a situação fática valorizada no projeto é também a incorpo-ração do imóvel a uma função social, representada pelas obras e serviços relevantes nele implantados. Solução em tudo semelhante, atribuindo ao juiz a possibilidade de converter prestação específica em alternativa – e cuja constitucionalidade não é posta em questão – é dada pelo novo Código no parágrafo único do art. 1.225, nos casos em que alguém edifica ou planta em terreno alheio. Nesses casos, diz o dispositivo, ‘se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé plantou ou edificou adquirirá a propriedade do solo, mediante indenização fixada judicial-mente, se não houver acordo.’ Como se vê, é situação assemelhada à do referido §4º, lá como aqui, converte-se a prestação específica de restituir a coisa em prestação alternativa de repô-la em dinheiro. (DIDIER apud BARBOSA; PAMPLONA, 2004)

Nesta linha de raciocínio, observa-se que a indenização mencionada no §5º, seria fixada pelo magistrado, porém adimplida pelos possuidores, para a aquisição da propriedade do imóvel reivindicado.

Com isso, conclui-se que não se teria nem uma desapropriação, nem uma usucapião, mas sim uma alie-nação compulsória do imóvel, transferindo-se a propriedade aos ocupantes.

A ideia de que este instituto seria um “contra-direito” está justamente no fato de que tal aquisição se daria compulsoriamente, sem direito à recusa, o que é uma característica de um direito potestativo, mas, somente seria exercitável no caso da ação reivindicatória, ou seja, justamente quando o proprietário se vale também de um direito subjetivo, em face dos possuidores diretos do bem.

Assim, embora bastante lógica a presente teoria, afirma Camilo de Lelis Colani Barbosa que a:

idéia soa inovadora demais e pouco factível, uma vez que é pouco provável que fosse a intenção do legislador que os possuidores, já tendo “realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo Juiz de interesse social e econômico relevante”, por mais de cinco anos, como se proprietários fossem, ainda tenham que desembolsar valores para a aquisição de tal propriedade. (BAR-BOSA; PAMPLONA, 2004)

d) Desapropriação Judicial

Nelson Nery Jr e Rosa Maria de Andrade Nery discorrem sobre a natureza jurídica do instituto como uma “desapropriação judicial”.

Citando Miguel Reale, afirmam que:

A norma cria a desapropriação judicial, considerada uma inovação ‘do mais alto alcance, inspirada no sentido social do direito de propriedade, implicando não só novo conceito desta, mas, também novo conceito de posse, que se poderia qualificar como sendo de posse-trabalho’.(NERY JÚNIOR, 2006, p. 734)

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Vale a pena ressaltar que a norma prevista nos §§ 4º e 5º, do art. 1.228, realmente se aproxima do ins-tituto da desapropriação, que, diga-se de passagem, não deixa de ser uma forma de perda compulsória da propriedade, com fulcro em razões de ordem social. Outro ponto semelhante é o pagamento da justa e prévia indenização, conforme preceitua o inciso XXIV, do art. 5º da Constituição Federal. In verbis:

XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; (BRASIL, 2009, p. 8)

Pode-se, no entanto, falar-se em “desapropriação judicial”?

Por óbvio que não, até mesmo por tudo o que foi sustentado na crítica feita por Adriano Stanley (2009) acerca deste instituto. Nesse sentido, vale lembrar que não cabe ao poder judiciário determinar tal de-sapropriação, uma vez que referida competência é exclusiva do Poder Executivo. Restaria ao Judiciário, então, como de fato sempre lhe restou, julgar os pedidos de desapropriação, avaliando as indenizações, seus respectivos pagamentos e os demais requisitos legais inerentes à questão.

e) Desapropriação Especial

Ante o exposto, conclui-se que:

Mesmo correndo o risco de acabar adotando uma teoria mista, não temos a menor dúvida de que a perda da propriedade prevista nos §§4º e 5º, do Código Civil de 2002, nada mais é do que uma “de-sapropriação especial”.

Não é usucapião, nem posse-trabalho, tampouco contra-direito processual ou desapropriação judicial, pelas razoes acima expostas.

É modalidade desapropriatória, com peculiaridades processuais, cujos procedimentos judiciais terão inicio, de fato, em uma provocação do titular, original do direito de propriedade, mas, que imprescinde de verificação da legitimação dos possuidores, assim também da cientificação do Poder Público com-petente, o qual atuará no feito como parte legítima e necessária. (BARBOSA; PAMPLONA, 2004)

4. Considerações Finais

Dúvida alguma nos resta, de que o direito de propriedade sofreu, e continua sofrendo transformações consideráveis. Aquele direito pleno, absoluto e ilimitado de outrora deu lugar a um direito socializador, estruturador e muitas vezes limitador da propriedade. O proprietário deixou de ser o “senhor que tudo pode”, passando a ser o “senhor que tudo deve”, para que exerça o seu direito em consonância com o or-denamento jurídico pátrio atual.

Pode-se dizer que Código Civil de 2002 trouxe para este novo ordenamento a “propriedade função”, estabelecida nos moldes do art. 1.228 e seus parágrafos. Porém, muitas são as polêmicas que envolvem tal instituto, bem como os questionamentos acerca de sua aplicabilidade, efetividade e até mesmo sua constitucionalidade.

Pelas peculiaridades de tudo o que foi exposto neste trabalho, só nos resta acreditar que muito há que ser estudado para que se consiga resolver com mais clareza e fundamento tais questionamentos e incertezas. Como visto, até mesmo a natureza jurídica do instituto aqui abordado não é pacífica.

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Sendo assim, diante de tudo o que aqui foi tratado, pode-se chegar à conclusão de que a norma prevista nos §§4º e 5º, do art. 1.228, do Código Civil de 2002, assemelha-se ao instituto da desapropriação, em função de se caracterizar como uma nova forma de perda compulsória da propriedade, sendo esta determinada por razões sociais, mediante pagamento de indenização. Contudo, tal semelhança não é o suficiente para que a natureza jurídica do instituto seja então rotulada como tal, até mesmo pelas inúmeras críticas diante da literalidade do dispositivo, que, como mencionado, atribui ao Poder Judiciário a compe-tência de praticar tal desapropriação. Neste ponto, compactuamos com a idéia de inconstitucionalidade, defendida pela grande maioria da doutrina, uma vez que as normas determinantes das competências são de responsabilidade da Constituição Federal. Nesta linda de raciocínio, cairia por terra toda a discussão acerca da natureza jurídica, no que se refere ao âmbito fático, pois, uma vez considerada inconstitucional, aplicabilidade nenhuma caberia à norma em comento.

Entretanto, a discussão deve permanecer no âmbito acadêmico, pois, muito tem-se falado em desapro-priação especial ou sui generis, mas, a única certeza que nos resta é que desapropriação judicial não é.

Aguarda-se que, por meio da doutrina, advenham explicações para que então se consiga um entendimento mais apurado. Vale ressaltar que, a ninguém cabe uma “palavra final”, até mesmo porque o processo interpretativo é contínuo, ainda mais numa ciência dinâmica como o Direito. A tendência do ordena-mento é de transferir aos operadores do Direito uma liberdade exegética nunca antes conhecida, fazendo um apelo para que eles mantenham os olhos abertos para o ordenamento jurídico, mas que também preconizem a situação social e humana de todos os envolvidos, em cada caso concreto.

Referências

BARBOSA, Camilo de Lelis Colani; PAMPLONA, Rodolfo Filho. Compreendendo os novos limites à proprieda-de: uma análise do art. 1228 do Código Civil Brasileiro. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/6725/compreendendo-os-novos-limites-a-propriedade. Acesso em: 12 out. 2010.

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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 4. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

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NERY JÚNIOR, Nélson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados. São Paulo: RT, 2006.

SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direto das Coisas. Coleção Direito Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

VENOSA, Silvio de Salvo. Novo Código Civil: texto comparado: código civil de 2002, código civil de 1916. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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Belo Horizonte,abril de 2012

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