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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Pedro Secches Max Weber: entre a Sociologia e a Psicologia Doutorado em Filosofia São Paulo 2020

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Page 1: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Pedro

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Pedro Secches

Max Weber: entre a Sociologia e a Psicologia

Doutorado em Filosofia

São Paulo

2020

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Pedro Secches

Max Weber: entre a Sociologia e a Psicologia

Doutorado em Filosofia

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica, como exigência parcial para obtenção de título de Doutor em Filosofia, sob a orientação do Professor Doutor Antonio José Romera Valverde

São Paulo

2020

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Banca examinadora:

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AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Bolsista: Pedro Secches – RA 00103732

Page 5: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Pedro

AGRADECIMENTOS

À minha família, minha esposa Beatriz e meus filhos Gustavo e Ricardo, pelo estímulo e

inspiração sem os quais esta tese não teria sido possível, e pela motivação de buscar uma

maior compreensão do mundo em que vivemos.

Ao Professor Doutor Antonio José Romera Valverde, pela orientação, paciência e

conselhos, sem os quais esta tese não teria sido possível.

Aos membros da banca do exame de qualificação, Marcelo Perine, Mario Ariel Gonzalez

Porta e Ricardo Musse, cujas críticas e sugestões enriqueceram de maneira considerável

o texto desta dissertação.

Ao amigo Professor Doutor Paulo Afonso Caruso Ronca, pelo apoio e pelo incentivo à

mais uma conquista no âmbito da Filosofia.

Page 6: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Pedro

Se tudo acontecesse racionalmente no mundo,

nada aconteceria.

(Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov)

Page 7: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Pedro

Resumo

Ao final do século XIX, o papel da Psicologia na análise da realidade social do

indivíduo, apesar de todo seu avanço no campo experimental, era algo profundamente

questionado pela nascente comunidade sociológica. A aparente rejeição de Max Weber

de uma possível contribuição psicológica para a compreensão da complexa relação entre

homem e sociedade, em um primeiro momento, parece condizente com o contexto de sua

época e de seu meio. No entanto, a leitura aprofundada da obra de Weber, especialmente

seus textos metodológicos, mostra que tal percepção não se verifica, pois, apesar do seu

tom crítico, Weber, de fato, incorporou em sua análise típico-ideal elementos

psicológicos. Ainda que não seja amplamente estudada, a influência da Psicologia na

Sociologia de Weber, bem como sua posição acerca da relação entre ambas as ciências,

se mostra imperativo para compreender a importância do pensamento e da metodologia

do sociólogo alemão no estabelecimento de uma ciência psicossocial. É possível afirmar,

portanto, que Weber foi um dos pioneiros a romper a barreira imposta entre a Sociologia

e a Psicologia ao final do século XIX e começo do século XX.

Com o intuito de aprofundar o estudo desse aspecto da Sociologia weberiana, esta

tese explora o modo como se desenvolveram as ciências da Sociologia e da Psicologia,

buscando em suas origens históricas e filosóficas a raiz da criação de uma barreira à

integração das duas ciências e ao desenvolvimento do conhecimento psicossocial.

Adicionalmente, constitui um objetivo, explorar, através da leitura dos textos de Weber,

o motivo da crítica de Weber à prática científica da Psicologia e aos psicólogos de seu

tempo. Com isso, pretende-se estabelecer a real relação do pensamento weberiano com a

Psicologia, além de indicar uma possível relação de complementaridade entre a

Sociologia Compreensiva weberiana e a teoria psicanalítica de outro importante pensador

a romper a barreira que separava o estudo da sociedade versus o estudo do indivíduo:

Sigmund Freud.

Palavras-chave: Max Weber; Sociologia; Psicologia; conhecimento psicossocial.

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Abstract

At the end of the 19th century, the role of Psychology in the analysis of the social

reality of the individual, despite all its advance in the experimental field, was something

deeply questioned by the nascent sociological community. Max Weber's apparent

rejection of a possible psychological contribution to the understanding of the complex

relationship between man and society, at first, seems consistent with the context of his

time and his environment. However, thorough the reading of Weber's work, especially

his methodological texts, it becomes clear that this perception does not hold true, given

that, despite his critical tone, Weber, in fact, incorporated psychological elements into his

ideal-typical analysis. Although not widely studied, the influence of psychology on

Weber's sociology, as well as his position on the relationship between both sciences, is

imperative to understand the importance of the German sociologist's thought and

methodology in the establishment of a psychosocial science. It is possible to say,

therefore, that Weber was one of the pioneers to break the barrier imposed between

Sociology and Psychology by the late 19th and early 20th centuries.

In order to deepen the study of this aspect of Weberian Sociology, this thesis

explore the way in which the sciences of Sociology and Psychology developed, seeking

in their historical and philosophical origins, the root for the creation of a barrier between

the two sciences and to the development of psychosocial knowledge. Additionally, the

objective of this thesis is to explore, through reading Weber's texts, the reason for Weber's

criticism of the scientific practice of Psychology and the psychologists of his time. With

this, it is intended to establish the real relationship of Weberian thought with Psychology,

in addition to indicating a possible relationship of complementarity between Weberian

Comprehensive Sociology and the psychoanalytic theory of another important thinker

that broke through the barrier that separated the study of society versus study of the

individual: Sigmund Freud.

Keywords: Max Weber; Sociology; Psychology; psychosocial knowledge.

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Sumário

Introdução ......................................................................................................... 1

I. O pensamento social e o nascimento da Sociologia ...................................... 5

II. A Psicologia e a exploração da mente humana ....................................... 55

III. Sociologia vs. Psicologia: a origem da barreira psicossocial ................. 102

IV. Weber e a possibilidade do conhecimento psicossocial ........................ 138

A crítica weberiana à Psicologia ......................................................... 138

A presença da Psicologia no pensamento de Weber ............................ 170

Freud como complemento a Weber .................................................... 184

Considerações Finais ..................................................................................... 195

Referências Bibliográficas ............................................................................. 202

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1

Introdução

Quando, em 1913, Max Weber afirmou “a sociologia compreensiva não é parte

de uma ‘psicologia’” (WEBER, 2016d, p. 496), o sociólogo alemão distanciou

inequivocamente sua concepção de sociologia da psicologia. Não que houvesse dúvida

quanto à posição de Weber. Desde 1898, Weber escrevia sobre os riscos da incorporação

de conceitos psicológicos à objetividade das Ciências Sociais, dando a entender que o

conhecimento das motivações psicológicas dos indivíduos não seria determinante para a

análise sociológica da ação. Como o próprio Weber celebremente afirmara, “não é preciso

ser César para compreender César” (WEBER, 2016d, p. 493), portanto, partindo do

pressuposto que apenas César pode externar suas motivações psicológicas, a

compreensão da ação social pode prescindir das motivações psicológicas.

Embora tal concepção de sociologia pareça estranha ao pensamento de Weber,

haja vista que ele mesmo definira que “a sociologia compreensiva (no nosso sentido) trata

o indivíduo isolado e a sua ação como unidade última, como seu ‘átomo’” (WEBER,

2016d, p. 504), quando analisada no contexto de sua época constata-se que era uma visão

relativamente comum. Além de Weber e outros sociólogos, Durkheim também rejeitava

uma maior integração entre Psicologia e Sociologia, chegando a afirmar que “todas as

vezes que um fenômeno social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico, pode-

se ter certeza que a explicação é falsa” (DURKHEIM, 2012, p. 114).

O motivo para tal reação por parte de Weber, Durkheim e outros sociólogos refere-

se à tendência de vários pensadores no final do século XIX e começo do século XX de

incorrerem em psicologismos, ou seja, de reduzirem toda ciência humana à psicologia.

Tal tendência, o psicologismo, nas Ciências Humanas (inicialmente na História e na

Economia Política) impulsionados pelos avanços da Psicologia Experimental de Wilhelm

Wundt. A partir dos experimentos de Wundt, muitos acreditavam que seria possível

estabelecer regras universais do comportamento humano, que, por sua vez, serviriam

como base para a compreensão de todos os aspectos da existência humana.

Weber faz duras críticas a essa abordagem positivista principalmente aos campos

da História e da Economia Política em seus textos metodológicos iniciais, mas sua

restrição se estendia para todas as Ciências Humanas. Para Weber, “o chamado

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2

‘psicologismo’, entendido como a pretensão da psicologia de criar uma visão do mundo,

não tem sentido”, e essa maneira de ver as coisas seria “até ‘perigosa’ para a ingenuidade

da ciência empírica” (WEBER, 2016c, p. 124).

No entanto, uma leitura mais aprofundada da obra de Weber indica que, mesmo

sob o risco de incorrer em psicologismos, Weber faz uso da Psicologia nas suas análises.

Em A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, a premissa básica para se

estabelecer uma relação entre a conduta cotidiana do puritano e o estabelecimento das

condições culturais para o desenvolvimento do capitalismo consiste, em linhas gerais, em

uma reação psicológica ao dogma calvinista da predestinação. De modo geral, a ansiedade

causada pela incerteza da salvação da alma, argumenta Weber, levou o puritano a uma

conduta ascética intramundana que, em última instância, semeou não-intencionalmente o

gérmen da cultura capitalista.

Tal constatação levanta uma série de perguntas sobre a relação que Weber

estabelece realmente no seu pensamento entre a Psicologia e a Sociologia, mas a pergunta

fundamental é: afinal, Weber rejeita a utilização de conceitos psicológicos na Sociologia

ou não? Dentre os comentadores da obra de Weber há aqueles como o sociólogo

americano e tradutor de Weber, Talcott Parsons, e a tradutora Edith Graber, que afirmam

que Weber rejeitava o uso da Psicologia nas suas análises sociológicas. Outros, porém, a

partir da década de 1970, defendem uma dependência da sociologia weberiana de

conceitos psicológicos (CAVALLETTO, 2007; COLLIOT-THÉLÈNE, 2016;

HUMMEL, 1974; MCINTOSH, 1970; MOSCOVICI, 2011; STRONG, 1985).

Dos pensadores que defendem uma relação positiva entre a sociologia weberiana

e a psicologia, George Cavalletto, em Crossing the Psycho-Social Divide: Freud, Weber,

Adorno and Elias, defende que não somente há uma psicologia presente no pensamento

de Weber, mas que Weber, ao incorporar elementos psicológicos na sua sociologia,

rompeu uma barreira que separava as duas ciências, possibilitando a concepção de um

conhecimento psicossocial.

Antes mesmo de explorar o pensamento de Weber com relação à Psicologia, a

afirmação de Cavalletto traz consigo uma série de novas questões: 1) Qual é a origem

dessa barreira que impedia a troca de conhecimento entre as duas ciências? 2) Tal barreira

sempre existiu ou houve épocas em que o saber psicológico e o saber sociológico

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compunham um só tipo de conhecimento? 3) Caso tal barreira nem sempre tenha existido,

então por que ela surgiu ao final do século XIX?

Com respeito a Weber, além de esclarecer a conflituosa relação do sociólogo com

a Psicologia, esta tese tem como objetivo mostrar no que consistiu esse rompimento que

Weber perpetrou e, em última análise, quais foram as suas consequências para o

desenvolvimento de um conhecimento psicossocial.

Para tentar responder a essa série de perguntas, a abordagem adotada foi dividir a

tese em duas partes. Na Primeira Parte, correspondendo aos três primeiros capítulos,

propõe-se mostrar as origens e o desenvolvimento da Sociologia e da Psicologia, bem

como a relação entre as duas ciências ao longo dos séculos. O Primeiro Capítulo, “O

pensamento social e o nascimento da Sociologia”, destaca a longa história das

ponderações do homem com respeito à vida em sociedade. Porém detém o seu foco no

período entre o momento em que efetivamente podia-se falar de uma ciência aos moldes

modernos (ou seja, a partir de Galileu Galilei, Francis Bacon e René Descartes) até o

momento em que o pensamento de Weber passa a compor a ciência da Sociologia. Com

isso, pretende-se analisar o desenvolvimento histórico do pensamento social e encontrar

as raízes da separação acadêmica entre sujeito e sociedade.

De maneira similar, o Segundo Capítulo “A Psicologia e a exploração da mente

humana” explora o igualmente longo caminho percorrido pela Psicologia até consolidar-

se como ciência plenamente reconhecida. Embora suas raízes, tal qual a Sociologia,

podem ser traçadas desde a Grécia Antiga, a análise do desenvolvimento da Psicologia

ocorre no mesmo período em que o desenvolvimento da Sociologia é analisado, qual seja,

de Descartes a Weber, explorando, no caminho, como esse desenvolvimento pode ter

afastado as duas ciências.

Por fim, encerrando a primeira parte desta tese, o Terceiro Capítulo, “Sociologia

vs. Psicologia: a origem da barreira psicossocial”, reúne os achados dos dois capítulos

anteriores, buscando definir a relação histórica entre a Psicologia e a Sociologia, assim

como indicar o possível motivo pelo qual, ao final do século XIX, uma integração entre

as duas ciências era vista como impossível. Com essa Primeira Parte completa, pretende-

se obter o cenário histórico-intelectual da oposição entre Sociologia e Psicologia herdado

por Max Weber, introduzindo, deste modo, a dimensão histórica da mudança iniciada por

Weber nas Ciências Sociais.

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4

Na Segunda Parte da tese, composta por Capítulo único intitulado “Weber e a

possibilidade do conhecimento psicossocial”, pretende-se, uma vez estabelecido o

panorama histórico-intelectual em que Weber se insere, analisar e definir a sua

participação no debate acerca da relação entre sujeito e sociedade, esclarecendo a sua

postura crítica ao uso da Psicologia a seu tempo, bem como sua posição quanto ao papel

da Psicologia nas Ciências Sociais. Para tanto, adotou-se como abordagem dividir o

Capítulo em três itens. O primeiro item, “A crítica weberiana à Psicologia”, tem como

objetivo explorar o conteúdo das críticas de Weber à Psicologia em seus textos. O

segundo item, “A presença da Psicologia no pensamento de Weber”, pretende mostrar

que apesar das críticas, existe um componente psicológico no método de pesquisa da

Sociologia Compreensiva de Weber e que tal presença, aliada ao método de pesquisa

proposto por Weber permite conceber a produção objetiva de conhecimento psicossocial.

Finalmente, no terceiro item do Quarto Capítulo, “Freud como complemento a

Weber”, a Sociologia Compreensiva de Weber justapõe-se à teoria psicanalítica de Freud.

O intuito é mostrar que o método de pesquisa proposto por Weber para a sua sociologia

permite uma integração com a psicanálise freudiana sem demérito na questão da

objetividade do conhecimento produzido, mas com aumento do poder explicativo. Nesse

sentido, a questão da dominação carismática, presente em A Ética Protestante e o

“Espírito” do Capitalismo, foi escolhida como exemplo de aplicabilidade do poder

explicativo da psicanálise para as motivações psicológicas da ação social analisadas

segundo o modelo típico-ideal de Weber. Embora Freud não tenha se dedicado ao

carisma, diretamente, em seus estudos, a questão da dominação do homem pelo homem

está presente nas obras de ambos os pensadores, constituindo o exemplo perfeito para

mostrar a complementaridade ao pensamento de ambos, mas também para indicar o

caminho para futuras pesquisas.

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I. O pensamento social e o nascimento da Sociologia

Com menos de 200 anos desde a primeira vez que o termo “sociologia” foi

utilizado para designar uma ciência dedicada ao estudo das relações sociais que fazem

parte da vida em sociedade, não seria incorreto afirmar que a Sociologia é uma ciência

nova, ainda na sua infância se comparada às ciências ditas naturais como a Física ou a

Biologia. Mesmo em 1831, quando Auguste Comte cunhou o termo, tal ciência nem

poderia ser considerada como tal, dado que não passava de um projeto, um ramo do

pensamento filosófico. De fato, o reconhecimento acadêmico da Sociologia como ciência

formalmente constituída se deu apenas ao final do século XIX, com a formalização do

objeto de estudo, com o desenvolvimento de metodologias de estudo e, principalmente,

com o surgimento de cátedras e revistas especializadas1.

No entanto, uma revisão histórica do desenvolvimento do pensamento social

indica que a preocupação com a esfera social da vida humana data de muitos séculos

antes. Foi a partir do momento em que o homem começou a ponderar sobre o modo como

os seres humanos se comportam e ao comparar tal conduta com um comportamento ideal,

portanto, quando a filosofia assumiu uma dimensão ética, que o pensamento social

começou a tomar forma. Tal momento histórico, tomou forma pela primeira vez na Grécia

Antiga, especificamente a Grécia do século V a. C..

Em Atenas, com o surgimento da democracia e a maior participação da população

nas decisões que governam a polis, inicia-se um período de intensa discussão a respeito

de como deve ser organizada e regida uma cidade. Neste cenário fecundo de novas ideias,

1 De fato, foi somente a partir de 1880 que a Sociologia se torna uma referência científica, com a fundação de sociedades dedicadas ao tema da sociologia – como, por exemplo, a American Sociological Society (1895) nos Estados Unidos, a Sociedade Belga de Sociologia em Bruxelas (1900), a Sociological Society em Londres (1903), a Deutsche Gesllschaft für Soziologie na Alemanha (1909) -, com a criação das primeiras cátedras dedicadas ao estudo da sociedade - Durkheim inicia em Bordeaux em 1887 um curso de ciências sociais, Albion W. Smith funda em 1893 a primeira seção de sociologia na Universidade de Chicago e na Alemanha, em 1914, Georg Simmel é nomeado para um posto de filosofia e sociologia na Universidade de Estrasburgo – assim como a criação de inúmeros periódicos científicos especializados em sociologia - o Vierteljahrsschrift für wissenschaftliche Philosophie und Soziologie (Leipzig, 1877), a Revue Internationale de Sociologie (Paris, 1893), os Annales de l'Institut des Sciences Sociales (Bruxelas, 1895), o American Journal of Sociology (1895), a Rivista Italiana di Sociologia (1897), (1898), os Annales de sociologie (da Sociedade Belga de Sociologia, 1900), os Sociological Papers (Sociological Society, 1904), o Archiv für Sozialwissenschaft und Sozial Politik (Alemanha, 1904), a Sociological Review (Londres, 1908).

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mas também rico na explicitação das práticas sociais, os filósofos Platão(428/427-

348/347 a.C.) e Aristóteles (385-323 a.C.) foram os principais responsáveis por dar início

a um processo de reflexão crítica sobre a organização dos seres humanos em sociedade

que perdura até os dias de hoje.

Platão concebeu o Mundo das Ideias, um mundo perfeito cujo reflexo imperfeito

seria o mundo dos homens. Para ele, o objetivo de todo o governante, mas também de

todo cidadão, deveria ser levar a sociedade humana o mais próximo possível da sociedade

ideal, dado que é no Mundo das Ideias que se encontra o princípio máximo que os seres

humanos devem tomar por base na construção de uma cidade ideal, bem como para

garantir a salvação da alma: a justiça.

Aristóteles, por sua vez, rejeita oposição entre mundo sensível e Mundo das Ideias

contida no idealismo platônico, propondo uma visão realista do mundo em que a essência

das coisas é compreensível graças à pesquisa, não de princípios abstratos, mas da sua

finalidade. O Estado ideal, portanto, deixa de pertencer ao mundo das ideias e passa a se

basear no mundo real, segundo o modelo da natureza.

Apesar de Aristóteles retirar do mundo real, em específico da natureza, seu

modelo de Estado ideal, enquanto Platão retira do mundo das ideias um modelo de Estado

inspirado na alma humana, ambos concordam que o Estado nasce porque o homem não

se basta (ou seja, nasce em função das necessidades, materiais ou não, dos seres

humanos). Além disso, ambos estipulam o Estado ideal deve ser fundado a partir do

conceito de justiça, segundo o qual, um Estado justo é composto por indivíduos justos,

havendo, necessariamente, uma identificação entre o bem do indivíduo e o bem do

Estado.

Após Aristóteles, no entanto, no Ocidente, por séculos nenhuma reflexão social

original foi produzida. Apesar dos avanços no Direito durante o Império Romano, a

contribuição de legisladores e historiadores para o desenvolvimento do pensamento social

nesse período foi bem menos expressiva do que suas contribuições em outros campos da

ciência. De fato, apenas após a queda de Roma, em 410 d.C., com Agostinho (354-430

d.C.), é que o tema da vida em sociedade é retomado significativamente.

Com a queda de Roma, Agostinho, bispo de Hipona, se incumbiu da tarefa de

defender o cristianismo. Para tanto, durante 16 anos (de 416 a 427) escreveu De Civitate

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Dei, A Cidade de Deus, onde defende que somente a fé, e não as obras, pode salvar a

alma, e, portanto, se opõe vigorosamente a qualquer intromissão religiosa na vida política

e social. De influência neoplatônica, a visão de mundo de Agostinho divide a experiência

humana no seu aspecto social em duas esferas: uma ideal, a cidade de Deus e outra real,

a cidade dos homens. A primeira representa, tanto em Platão quanto em Agostinho, a

perfeição a ser almejada pela segunda para se alcançar a felicidade e a salvação da alma

humana. Perfeição esta que deve ser alcançada através de uma conduta rígida que nega

os prazeres terrenos em nome da virtude.

A diferença do “neoplatonismo” agostiniano é que ele vincula a virtude humana

necessariamente à fé em Deus, rejeitando a virtude que se basta (como é o caso da justiça

no pensamento de Platão). Deste modo, em busca da paz tanto terrena quanto celestial,

Agostinho divide igualmente a gestão da vida humana em duas esferas: uma secular e

outra religiosa. Tal divisão influenciou a distribuição dos poderes de mando na sociedade

medieval entre a Igreja e a Monarquia no que ficou conhecida como a teoria das duas

espadas.

Contudo, se a resposta do idealismo de Platão foi o realismo de Aristóteles,

analogamente, a resposta do “neoplatonismo” agostiniano foi a filosofia de inspiração

aristotélica de Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.). Em sua Suma Teológica, Tomás de

Aquino não rejeita o mundo natural, mas reconhece que uma vez que a natureza em si foi

criada por Deus, toda análise do mundo real deve ser feita com referência a uma teologia.

Consequentemente, na visão de Tomás de Aquino, também a forma de regime político e

o modo como a sociedade é organizada se encontram inseridos nessa teologia. O

instrumento de tal inserção, segundo Aquino, é a lei, que, através da razão – elemento

mediador presente toda legislação que, juntamente com Deus, valida toda lei - ordena a

sociedade para o bem comum, sujeitando cada uma das partes (ou seja, cada homem) ao

todo ao qual pertence (a comunidade perfeita).

Após Tomás de Aquino, do século XIII até o século XVI, o pensamento ocidental,

à imagem da doutrina tomista, permaneceu submetido à teologia cristã. Foi somente a

partir do Renascimento e da Reforma Protestante que se observou uma descentralização

do poder da Igreja assim como um maior afastamento entre a esfera política e a esfera

religiosa. A partir dessa dupla contestação bem-sucedida do poder da Igreja, iniciou-se

um processo em que, gradativamente, os seres humanos deixaram de definir a ordem da

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sociedade com referência a um princípio divino transcendente e voltaram a conceber a

constituição da sociedade como apenas um produto da ação humana2.

O Renascimento trouxe de volta para o homem o papel central da vida em

sociedade e o exercício da política deixou, aos poucos, de ser norteado por Deus, mas

concentrou-se na realidade fática da vida cotidiana. A partir desse princípio, no século

XVII, a valorização do indivíduo e da razão encontrou um fértil terreno nos pensamentos

de Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650), que figuram entre os

primeiros a dar vida a duas novas formas de representar o mundo: o racionalismo e o

individualismo.

Com Bacon, nasceu a concepção moderna de conhecimento e a exigência de

articulação entre a razão e a experiência, entre teoria e prática, para a produção de tal

conhecimento. E com Descartes, admitiu-se que somente o homem é o autor da verdade

e que o conhecimento tem por fundamento o natural, o racional e o matematizável.

Consequentemente, a partir desse momento, o conhecimento sobre a realidade social

também passa a ser concebido racionalmente como fruto da ação humana. Pensadores

como Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704) incarnam o espírito desse

período e suas filosofias políticas foram inovadoras ao fundamentá-las não somente na

razão, mas também na experiência.

A abordagem empirista de Hobbes, no que tange a realidade política do ser

humano, afirma que da condição de igualdade em que nascem os homens com respeito às

suas faculdades do corpo e do espírito3 “resulta a igualdade de esperança quanto ao nosso

fim” (HOBBES 2014, p. 107) que, segundo o filósofo inglês, “é a causa pela qual os

homens, quando desejam a mesma coisa e não podem desfrutá-la por igual, tornam-se

inimigos e, no caminho que conduz ao fim (que é, principalmente, sua sobrevivência e,

em algumas vezes, apenas seu prazer), tratam de eliminar ou subjugar uns aos outros”

(HOBBES, 2014, p. 107).

2 É possível argumentar que, anteriormente ao Renascimento, apenas durante a Antiguidade, no pensamento de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles e, até mesmo, antes deles, dos filósofos sofistas, é que o modo como os homens organizam-se em sociedade foi concebido como produto da ação humana. 3 Segundo Hobbes, “A Natureza criou os homens tão iguais nas faculdades do corpo e do espírito que, se um homem, às vezes, é visivelmente mais forte de corpo ou mais sagaz do que outro, quando considerados em conjunto a diferença entre um homem e outro não é tão relevante que possa fazer um deles reclamar para si um benefício qualquer a que o outro não possa aspirar tanto quanto ele” (HOBBES, 2014, p. 106)

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Segundo Hobbes, no estado da natureza, cada indivíduo vive sob a lei natural, uma

“norma ou regra geral estabelecida pela razão que proíbe o ser humano de agir de forma

a destruir sua vida ou privar-se dos meios necessários à sua preservação” (HOBBES,

2014, p. 111). Portanto, nesse contexto, é direito natural do indivíduo “a liberdade que

cada homem tem de utilizar seu poder como bem lhe aprouver, para preservar sua própria

natureza, isto é, sua vida; consequentemente, é a liberdade de fazer tudo aquilo que,

segundo seu julgamento e razão, é adequado para atingir esse fim” (HOBBES, 2014, p.

110).

Naturalmente, Hobbes conclui que, sob tais condições, conflitos sempre irão

surgir nas relações humanas4, pois “quando não existe um poder comum capaz de manter

os homens numa atitude de respeito, temos a condição do que denominamos guerra; uma

guerra de todos contra todos” (HOBBES, 2014, p. 108). Em Leviatã, Hobbes alerta para

a condição do homem que vive nesse estado de constante disputa:

Há uma consequência dessa guerra entre os homens: nada pode ser injusto. As noções de bem e mal, de justiça e injustiça, não encontram lugar nesse procedimento; não há lei onde não há poder comum e, onde não há lei, não há injustiça. As duas principais virtudes na guerra são a força e a fraude. Justiça e injustiça não pertencem às faculdades do corpo e do espírito; se assim fosse, existiriam num homem sozinho no mundo, da mesma forma que suas sensações e paixões. Justiça e injustiça só existem entre os homens em sociedade, nunca no isolamento. É natural, também, que não exista propriedade ou domínio, nem distinção entre o que é seu e o que é meu. Apenas pertence a cada homem o que ele é capaz de obter e conservar. O homem, por obra da Natureza, encontra-se, pois, nessa miserável condição, embora tenha a possibilidade de superar esse estado contando com suas paixões e sua razão. (HOBBES, 2014, p. 110)

Nesse sentido, destaca que é de todo interesse do ser humano superar o estado da

natureza, deixar de viver em isolamento e buscar a paz ao invés de alimentar os conflitos

entre os homens. Para tanto, na sua análise, Hobbes sugere que as “paixões que inclinam

o homem a querer a paz são o medo da morte, o desejo das coisas que lhe dão conforto e

a esperança de obtê-las por meio de seu trabalho” (HOBBES, 2014, p. 110). Deste modo,

alimentando-se tais paixões, seria lógico, na concepção de Hobbes, que a paz entre os

homens poderia ser alcançada através de normas racionais estabelecidas via acordo

mútuo. No entanto, Hobbes adverte que “Sem a espada, os pactos não passam de palavras

4 Em Leviatã, Hobbes define que “existem na natureza humana três causas principais de disputa: competição, desconfiança e glória” e que “A competição impulsiona os homens a se atacarem para lograr algum benefício, a desconfiança garante-lhes a segurança e a glória, a reputação” (HOBBES, 2014, p. 108).

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sem força, que não dão a mínima segurança a ninguém” (HOBBES, 2014, p. 138), pois,

na concepção hobbesiana

... as leis naturais (tais como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, enfim, o que determina que façamos aos outros o que queremos que nos façam) são contrárias a nossas paixões naturais, que nos inclinam para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes, se não houver o temor de algum poder que nos obrigue a respeitá-las. (HOBBES, 2014, p. 138)

Portanto, dado que o acordo mútuo de obediência as leis naturais entre os homens

não ocorrem naturalmente, Hobbes determina que tal acordo deve ser estabelecido

artificialmente através de um pacto social em favor de uma terceira parte: o Estado. Muito

mais do que um simples consentimento, o pacto social proposto por Hobbes significa

“uma unidade real de todos, numa só e mesma pessoa, por meio de um pacto de cada

homem com todos os homens, de modo que seria como se cada homem dissesse ao outro:

desisto do direito de governar a mim mesmo e cedo-o a este homem, ou a esta assembleia

de homens, dando-lhe autoridade para isso, com a condição de que desistas também de

teu direito, autorizando, da mesma forma, todas as suas ações” (HOBBES, 2014, p. 141).

A multidão unida em uma só pessoa é o que Hobbes define como Estado, uma

instituição que, em virtude da autorização para o uso da força que cada indivíduo lhe dá,

“pelo temor que inspira, é capaz de conformar todas as vontades, a fim de garantir a paz

em seu país, e promover a ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros” (HOBBES, 2014,

p. 142).

Embora admita que um Estado pode ser governado por uma assembleia, Hobbes

era um ferrenho defensor da monarquia como a melhor regime político para pacificar uma

sociedade em constante estado de guerra. John Locke, filósofo empirista tal qual Hobbes

e profundamente influenciado por este, por sua vez, não compartilhava a visão

hobbesiana. Para Locke, o homem, no estado da natureza não era um selvagem em

constante conflito, tal qual descrito por Hobbes, mas alguém que vive em relativa paz e

harmonia, em “um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas

posses e pessoas do modo corno julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza,

sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro, homem” (LOCKE, 1998,

Tratado II §4, p. 382). No entanto, ressalta que

... embora seja esse um estado de liberdade, não é um estado de licenciosidade; embora o homem nesse estado tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em sua posse, a menos que um uso mais nobre que a mera conservação desta o exija. O estado de natureza tem

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para governá-lo uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos. iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses. (LOCKE, 1998, Tratado II §6, p. 384)

Segundo Locke, o homem é uma criatura que vive “sob fortes obrigações de

necessidade, conveniência e inclinação para conduzi-lo para a sociedade” (LOCKE,

1998, Tratado II §77, p. 451), e, portanto, é do próprio interesse do homem, dadas as

dificuldades da vida solitária, unir-se e associar-se a outros indivíduos. Mas, no estado de

natureza, em que todos são igualmente livres e responsáveis pela execução da lei da

natureza, nenhum homem é superior a outro e ninguém possui maior autoridade que os

demais. Deste modo, conclui Locke, o conflito naturalmente tende a surgir entre os

homens. Como o próprio Locke admite,

A esta estranha doutrina, isto é, a de que no estado de natureza todos têm o poder executivo da lei da natureza, não duvido que se objetará que não é razoável que os homens sejam juízes em causa própria, que, o amor-próprio os fará agir com parcialidade em favor de si mesmos e de seus amigos. E, por outro lado, a natureza vil, a paixão e a vingança os levarão longe demais na punição dos demais, da qual nada resultará além de confusão e desordem (LOCKE, 1998, Tratado II §13, p. 391)

Da confusão e desordem decorrentes da irracionalidade dos indivíduos que violam

a lei natural, Locke adverte que os indivíduos podem sair do estado de natureza e entrar

no estado de guerra. Segundo Locke, quando um indivíduo tenta subjugar seus

semelhantes à sua vontade através do uso da força, esse indivíduo viola a lei natural que

garante a liberdade de todos os homens. Assim, o indivíduo que vê sua liberdade, seus

bens e sua própria vida ameaçados pela ação violenta de outro indivíduo, em defesa da

lei natural, pode defender-se também violentamente. Neste caso, ambos entram em estado

de guerra, pois

Quando homens vivem juntos segundo a razão e sem um superior comum sobre a Terra com autoridade para julgar entre eles, manifesta-se propriamente o estado de natureza. Mas a força, ou um propósito declarado de força sobre a pessoa de outrem, quando, não haja um superior comum sobre a Terra ao qual apelar cm busca de assistência, constitui o estado de guerra. E é a falta de tal apelo que dá ao homem o direito de guerra até contra um agressor, mesmo estando este em sociedade e seja igualmente súdito. (LOCKE, 1998, Tratado II §19, p. 397)

Para Locke, “a força sem direito sobre a pessoa de um homem causa o estado de

guerra” (LOCKE, 1998, Tratado II §19, p. 398) e “por falta de leis positivas e de juízes

com autoridade a quem apelar, uma vez deflagrado, o estado de guerra continua”

(LOCKE, 1998, Tratado II §20, p. 399). Deste modo, admite que é do interesse do homem

evitar o estado da guerra e, por isso, conclui que essa seria “a grande razão pela qual os

homens se unem em sociedade e abandonam o estado de natureza” (LOCKE, 1998,

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Tratado II §21, p. 400). Porque, de acordo com Locke, “onde existe autoridade, um poder

sobre a Terra, do qual se possa obter amparo por meio de apelo, a continuação do estado

de guerra se vê excluída e a controvérsia é decidida por esse poder” (LOCKE, 1998,

Tratado II §21, p. 400). Sua convicção fica clara nas palavras escritas em seu Dois

Tratados sobre o Governo:

Admito sem hesitar que o governo civil é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza, que certamente devem ser grandes quando aos homens é facultado serem juízes em suas próprias causas, pois é fácil imaginar que aquele que foi injusto a ponto de causar injúria a um irmão dificilmente será justo o bastante para condenar a si mesmo por tal. (LOCKE, 1998, Tratado II §13, p. 391)

Na sua visão, Locke defende que os direitos à integridade pessoal e à propriedade

de bens adquiridos pelo trabalho (direitos naturais derivados da liberdade concedida por

Deus) devem ser garantidos, na vida em sociedade, pelo Estado. Para Locke, a

necessidade de proteção dos direitos naturais dos homens ocorre em função das tensões

resultantes de aspectos da vida social como a acumulação privada de bens e as trocas em

moeda. Para aliviar tais tensões, prega o pacto de cada indivíduo com todos os outros

indivíduos da sociedade como forma de substituir o uso da força de cada indivíduo pela

força de todos e assim garantir os direitos individuais da população.

Portanto, “sempre que qualquer número de homens estiver unido numa sociedade

de modo que cada um renuncie ao poder executivo da lei da natureza e o coloque nas

mãos do público, então, e somente então, haverá urna sociedade política ou civil”

(LOCKE, 1998, Tratado II §89, p. 460). Deste modo,

... tendo sido excluído o juízo particular de cada membro individual, a comunidade passa a ser o árbitro mediante regras fixas estabelecidas, imparciais e idênticas para todas as partes, e, por meio dos homens que derivam sua autoridade da comunidade para a execução dessas regras, decide todas as diferenças que porventura ocorram entre quaisquer membros dessa sociedade acerca de qualquer questão de direito; e pune com penalidades impostas em lei os delitos que qualquer membro tenha cometido contra a sociedade. (LOCKE, 1998, Tratado II §87, p. 458)

Tendo definido que todos os homens são naturalmente livres, iguais e

independentes, Locke afirma que “ninguém pode ser privado dessa condição nem

colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio consentimento” (LOCKE,

1998, Tratado II §95, p. 468). Consequentemente, a única maneira pela qual o homem

pode abdicar da sua liberdade natural5 e unir-se a outros homens em sociedade, segundo

5 Por liberdade natural, Locke entende que “consiste em não estar sujeito a restrição alguma senão à da lei da natureza” (LOCKE, 1998, Tratado II §22, p. 403) e quando afirma que ao deixar o estado de natureza

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Locke, seria através de um pacto mútuo entre todos os membros de uma sociedade

segundo o qual, todos concordam e consentem em renunciar o “o poder não apenas de

preservar sua propriedade, isto é, sua vida, liberdade e bens contra as injúrias e intentos

de outros homens, como também de julgar e punir as violações dessa lei por outros,

conforme se convença merecer o delito” (LOCKE, 1998, Tratado II §87, p. 458) em favor

de um governo que represente e proteja o desejo da maioria. Esse pacto, segundo o

empirista inglês, seria, de fato, a origem da sociedade civil. Conforme suas próprias

palavras,

... o que inicia a e de fato constitui qualquer sociedade política não passa do consentimento de qualquer número de homens livres capazes de uma maioria no sentido de se unirem e incorporarem a uma tal sociedade. E é isso e apenas isso, que dá ou pode dar origem a qualquer governo legítimo no mundo. (LOCKE, 1998, Tratado II §99, p. 472)

Naturalmente, Locke jamais poderia considerar a monarquia absoluta como o

regime político ideal para governar uma sociedade. Segundo Locke, os monarcas

absolutos são apenas homens e, portanto, seria incompatível com a finalidade de uma

sociedade civil um tipo de governo “no qual um homem, no comando de urna multidão,

tem a liberdade de ser juiz em causa própria e pode fazer a todos os seus súditos o que

bem lhe aprouver, sem que qualquer um tenha a mínima liberdade de questionar ou

controlar aqueles que executam o seu prazer” (LOCKE, 1998, Tratado II §13, p. 391). Na

sua concepção,

... sendo o fim da sociedade civil evitar e remediar aquelas inconveniências do estado de natureza que necessariamente decorrem do fato de cada homem ser juiz em causa própria, estabelecendo uma autoridade notória à qual cada membro dessa sociedade possa apelar, a todo dano recebido ou a qualquer controvérsia surgida, e a que cada um deve obedecer; sempre que houver pessoas desprovidas de uma tal autoridade à qual apelar para a decisão de quaisquer diferenças entre elas, essas pessoas se encontrarão ainda no estado de natureza, do mesmo modo qualquer príncipe absoluto em relação àqueles que estiverem sob o seu domínio. (LOCKE, 1998, Tratado II §90, p. 461)

Se até esse momento histórico, todo pensamento político e social teve por

característica comum o fato de ser essencialmente normativo – ou seja, até então toda

filosofia política visava determinar normas de comportamento e modos de governar para

abdica de sua liberdade natural, quer dizer que o homem troca esse tipo de liberdade por um novo tipo de liberdade. Tal liberdade seria a liberdade dos homens sob um governo, que, segundo Locke, “consiste em viver segundo uma regra permanente, comum a todos nessa sociedade e elaborada pelo poder legislativo nela erigido: liberdade de seguir minha própria vontade em tudo quanto escapa à prescrição da regra e de não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem” (LOCKE, 1998, Tratado II §22, p. 403).

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garantir o convívio pacífico e justo em sociedade –, Charles de Montesquieu (1689-1755)

é o primeiro a romper com essa linha de pensamento ao afirmar que o conhecimento das

sociedades é tema de ciência, e não apenas uma crença, e, por isso, é possível considerá-

lo como sendo o precursor do ponto de vista sociológico.

Montesquieu acredita que a realidade social é ordenada segundo uma lógica e que

para compreender tal realidade propõe como abordagem a análise das causas que dão

forma à essa realidade (em detrimento a toda crença em um plano providencial) e uma

postura descritiva e não normativa dessa realidade – descrever o que é, e não o que deve

ser. No prefácio de Do espírito das leis Montesquieu descreve sua abordagem e o

resultado de sua investigação inicial:

Examinei primeiro os homens, e achei que nesta infinita diversidade de leis e de costumes eles não eram conduzidos somente por suas fantasias. Coloquei os princípios e vi os casos particulares dobrarem-se diante deles como que por si mesmos, as histórias de todas as nações não serem mais do que suas consequências, e cada lei particular estar ligada a outra lei ou depender de outra mais geral. (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1140-1144)

Ao investigar o caos aparente na diversidade de leis e costumes dos homens,

Montesquieu percebe que essas relações sociais, apesar da sua aparente aleatoriedade

(resultado das peculiaridades das mais diversas culturas), apresentam uma ordenação

lógica. A investigação das causas dessa ordenação social leva Montesquieu a se

aprofundar no estudo das leis, que, na definição do filósofo, são

as relações necessárias que derivam da natureza das coisas; e, neste sentido, todos os seres têm suas leis; a Divindade possui suas leis, o mundo material possui suas leis, as inteligências superiores ao homem possuem suas leis, os animais possuem suas leis, o homem possui suas leis. (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1188-1191)

Montesquieu conclui, consequentemente, que deve existir “uma razão primitiva”

e que “as leis são as relações que se encontram entre ela e os diferentes seres, e as relações

destes diferentes seres entre si” (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1193-1195).

Ainda que constate a presença de leis em todos os seres e todas as coisas, Montesquieu

faz uma ressalva: “falta muito para que o mundo inteligente seja tão bem governado

quanto o mundo físico” (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1217-1218). Para o

pensador, o caso do homem é diferente, pois

O homem, enquanto ser físico, é, assim como os outros corpos, governado por leis invariáveis. Como ser inteligente, viola incessantemente as leis que Deus estabeleceu e transforma aquelas que ele mesmo estabeleceu. Deve orientar a si mesmo e, no entanto, é um ser limitado; está sujeito à ignorância e ao erro, como todas as inteligências finitas; quanto aos parcos conhecimentos que possui, ainda está sujeito a perdê-los. Como

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criatura sensível, torna-se sujeito a mil paixões. (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1234-1237)

As leis, afirma Montesquieu, foram criadas com o propósito de orientar o homem

nas diversas esferas de sua vida; para evitar que esquecesse seu criador “Deus chamou-o

a si com as leis da religião”, para evitar que esquecesse de si mesmo “os filósofos

advertiram-no com as leis da moral” e para evitar que esquecesse dos outros que vivem

com ele em sociedade “os legisladores fizeram-no voltar a seus deveres com as leis

políticas e civis” (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1238-1241).

Tal qual Aristóteles, Montesquieu defende o homem é um ser social e que o desejo

de viver em sociedade seria uma das leis naturais que regem o comportamento humano.

Porém, adverte, a agressividade do homem para com o homem é fruto do convívio em

sociedade. Para ele, o homem no estado de natureza “pensaria na conservação de seu ser,

antes de buscar a origem deste ser” e “sentiria no início apenas sua fraqueza”

(MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1247-1248). Segundo Montesquieu,

Neste estado, todos se sentem inferiores; no limite, cada um se sente igual aos outros. Não se procuraria, então, atacar, e a paz seria a primeira lei natural. (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1250-1252)

Opondo-se diretamente a Hobbes6, Montesquieu defende que somente quando “os

homens estão em sociedade, perdem o sentimento de sua fraqueza; a igualdade que existia

entre eles finda, e o estado de guerra começa” (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle

1267-1269). Por isso afirma que “Uma sociedade não poderia subsistir sem um governo”

(MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1285-1286).

No entanto, ao definir “A lei, em geral, é a razão humana, enquanto governa todos

os povos da terra” (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1297), rejeita qualquer

universalidade no que tange o domínio das leis e admite que a diversidade faz parte da

realidade humana, pois considera que “as leis políticas e civis de cada nação devem ser

6 Nas palavras de Montesquieu: “O desejo que Hobbes atribui em primeiro lugar aos homens de subjugarem-se uns aos outros não é razoável. A ideia de império e de dominação é tão composta, e depende de tantas outras ideias, que não seria ela que o homem teria em primeiro lugar. Hobbes pergunta: "por que, se não se encontram naturalmente em estado de guerra, os homens andam sempre armados? E por que têm chaves para fechar suas casas?" Mas não percebe que está atribuindo aos homens, antes do, estabelecimento das sociedades, aquilo que só pode acontecer após este estabelecimento, que fará com que encontrem motivos para atacarem-se e defenderem-se” (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1252-1259)

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apenas casos particulares onde se aplica esta razão humana” (MONTESQUIEU, 2016,

Locais do Kindle 1297-1299).

A diversidade de condições com as quais uma sociedade se forma – sejam elas

geográficas, climáticas, culturais, religiosas ou econômicas – lhe permite a certeza de que

as leis políticas e civis “Devem ser tão próprias ao povo para o qual foram feitas que seria

um acaso muito grande se as leis de uma nação pudessem servir para outra”

(MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1299-1301).

O olhar o original de Montesquieu sobre a vida em sociedade produziu uma das

primeiras análises sociológicas, pois como ele próprio afirma em Do espírito das leis,

como não estou tratando das leis, mas do espírito das leis, e este espírito consiste nas diversas relações que as leis podem possuir com diversas coisas, tive de acompanhar menos a ordem natural das leis do que a ordem destas relações e destas coisas. (MONTESQUIEU, 2016, Locais do Kindle 1312-1315)

Outro pensador de destaque do século XVIII nesse início do pensamento

sociológico foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Tal qual Montesquieu, Rousseau

defende que a vida em sociedade é a fonte de conflito entre os homens. Além disso,

Rousseau, de maneira semelhante à Montesquieu, em Do contrato social, trata “mais do

direito do que do fato, embora o fato também seja levado em conta, já que ele se propõe

a considerar os homens ‘tais como são’” (CRANSTON, 2011, p. 25). Como o próprio

Rousseau explica:

Pretendo investigar se pode haver na ordem civil alguma regra de administração legítima e segura que considere os homens tais como são e as leis tais como podem ser. Procurarei, nesta investigação, aliar sempre o que o direito permite com o que o interesse prescreve, para que a justiça e a utilidade não sejam separadas. (ROUSSEAU, 2011, p. 53)

No entanto, talvez seja correto afirmar que, apesar de possuir alguma proximidade

com o pensamento político de Montesquieu, a filosofia política de Rousseau deve muito

mais a Hobbes e a Locke. À semelhança desses pensadores, Rousseau também acredita

que o Estado era fruto de um pacto entre os homens e que o seu objetivo era a proteção

daqueles a quem devia sua existência. Mas, diferentemente de Hobbes, que afirmava que

os homens devem escolher entre serem governados ou livres, Rousseau acreditava ser

possível os homens serem ao mesmo tempo livres e membros de uma sociedade política.

A resposta de Rousseau para o dilema de Hobbes é simples e elegante: Os homens podem

ser ao mesmo tempo governados e livres se governarem a si mesmos.

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Nesse ponto, Rousseau defende a vida em sociedade porque acreditava que

somente vivendo em uma sociedade civil os homens podem experimentar sua mais

completa liberdade. Tal postura parece contradizer a imagem do bom selvagem que

constantemente é associada ao pensamento de Rousseau. Contudo, essa concepção que

no estado de natureza, o ser humano é solitário, independente e bom, mas que se corrompe

quando se torna sociável corresponde à visão defendida por Rousseau em Discurso sobre

a origem da desigualdade entre os homens, em 1754.

Em 1762, no entanto, quando Rousseau escreve Do contrato social, sua análise

do homem se modifica. Nessa obra, o homem no estado da natureza é descrito não como

livre e inocente, mas como “um animal estúpido e obtuso” (ROUSSEAU, 2011, p. 70).

Muito embora ainda caracterize o homem no estado da natureza como sendo livre,

Rousseau destaca que esse tipo de liberdade é inferior, que não é mais que independência,

como bem explica em Cartas escritas da Montanha, escrito em 1764:

É inútil querer confundir a independência e a liberdade. Essas duas coisas são tão diferentes que até mesmo se excluem mutuamente. Quando cada um faz o que bem quer, faz-se frequentemente o que desagrada aos outros e isso não se chama um Estado livre. A liberdade consiste menos em fazer sua vontade do que em não ser submetido à vontade de outrem; ela consiste ainda em não submeter a vontade de outro à nossa. (ROUSSEAU, 2006, p. 371)

Tal liberdade, Rousseau argumenta, só pode ser experimentada completamente

quando o homem passa a viver em sociedade, e, nesse momento, a liberdade se torna

inseparável da virtude, porque, na sua concepção, os homens não podem ser virtuosos no

estado da natureza dado que a virtude é uma característica dos homens que são

conscientes da moralidade. Como a vida em sociedade, nos moldes estabelecidos pelo

pensamento de Rousseau, só é possível se um pacto for firmado por todos os membros de

uma população - segundo o qual “cada um, unindo-se a todos, só obedeça no entanto a si

mesmo, e permaneça tão livre quanto antes" (ROUSSEAU, 2011, p. 65) -, então um povo

só pode ser livre se estabelecer, ele mesmo, as regras ou leis a que escolhe e é obrigado a

obedecer.

A possibilidade da virtude se apresenta, não da obediência imposta pela força7,

mas justamente do fato de que a obediência às leis são auto impostas, ou seja, consiste

7 Segundo Rousseau: “A força é uma potência física, não vejo que moralidade pode resultar dos seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade; é no máximo um ato de prudência. Em que sentido poderá ser um dever?” (ROUSSEAU, 2011, p. 58). Para ele, “O mais forte nunca será forte o bastante para

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em um dever moral, cujo caráter compulsório é extraído da vontade moral existente em

cada homem. Isso se dá porque, segundo Rousseau,

Essa passagem do estado da natureza ao estado civil produz no homem uma mudança notável, ao substituir em sua conduta o instinto pela justiça e ao dar às suas ações a moralidade que antes lhes faltava. É somente então que, com a voz do dever sucedendo ao impulso físico, e o direito, ao apetite, o homem, que até então só havia considerado a si mesmo, se vê obrigado a agir com base em outros princípios e a consultar sua razão antes de ouvir suas propensões. (ROUSSEAU, 2011, p. 70)

O contrato social formador da sociedade civil, na argumentação de Rousseau,

implica “a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a

comunidade”, de modo que, “a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual

para todos, ninguém tem interesse em torna-la onerosa aos outros” (ROUSSEAU, 2011,

p. 66). Tal alienação implica uma troca: o homem cede sua “liberdade natural e um direito

ilimitado a tudo o que o tenta e que ele pode alcançar” e recebe sua “liberdade civil e a

propriedade de tudo o que possui” (ROUSSEAU, 2011, p. 70)8. Adicionalmente, ao

adentrar a sociedade civil, o homem conquista sua “a liberdade moral, a única coisa capaz

de tornar o homem verdadeiramente senhor de si, porque o impulso exclusivo do apetite

é escravidão, e a obediência à lei que o homem prescreveu a si mesmo é liberdade”

(ROUSSEAU, 2011, p. 71).

A troca proposta, na interpretação de Rousseau, é vantajosa, dado que o homem

abre mão apenas de direitos limitados pela sua própria força e carentes de uma base moral,

para receber direitos que, embora limitados pelos direitos dos outros, são direitos

legítimos, são direitos baseados na lei. Ao acordar com essa troca, o homem passa do

estado da natureza, “em que tudo é comum, não devo nada a quem nada prometi, só

reconheço como do outro o que não me é útil”, para o estado civil, “em que todos os

direitos são estabelecidos pela lei” (ROUSSEAU, 2011, p. 88). Nessa concepção, a lei é

expressa como a vontade comum da população, e, como tal, “é sempre reta e tende sempre

à utilidade pública” (ROUSSEAU, 2011, p. 80). Logo, Rousseau conclui que

não se deve mais perguntar a quem cabe fazer as leis já que elas são atos da vontade geral; nem se o príncipe está acima dessas leis, já que ele é membro do Estado; nem se a lei

ser sempre o amo se não transformar sua força em direito e a obediência em dever.” ROUSSEAU, 2011, p. 58). 8 Na argumentação de Rousseau, distingue-se “a liberdade natural, que tem como limites apenas as forças do indivíduo, da liberdade civil, que é limitada pela vontade geral, e a posse, que nada mais é que o efeito da força ou o direito do primeiro ocupante, da propriedade, que se baseia necessariamente num título positivo” (ROUSSEAU, 2011, p. 71).

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pode ser injusta, já que ninguém é injusto consigo mesmo; nem como um homem é livre e submetido às leis, já que elas não são mais que registros das nossas vontades. (ROUSSEAU, 2011, p. 89)

A conclusão inescapável da sua análise política é que, muito embora admita que

“a ordem social é um direito sagrado, que serve de base a todos os outros”, Rousseau

ressalta que “esse direito não vem da natureza, ele se fundamenta, portanto, em

convenções” (ROUSSEAU, 2011, p. 55). Não se trata mais da natureza ou do divino

ordenando a conduta social humana, mas de devolver ao homem, de maneira definitiva,

os fundamentos das leis e da vida em sociedade.

Mas se, idealmente, Rousseau concebe que “a oposição entre os interesses

particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades” e que “foi a

concordância desses mesmos interesses que o tornou possível” e que, portanto, “somente

a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua

instituição, que é o bem comum” (ROUSSEAU, 2011, p. 77), a realidade do mundo

humano não escapa ao seu olhar crítico.

Para Rousseau, o povo “sempre quer por si mesmo o bem, mas nem sempre por si

mesmo o vê” (ROUSSEAU, 2011, p. 90), pois “a vontade geral é sempre reta, mas o juízo

que a conduz nem sempre é esclarecido” (ROUSSEAU, 2011, p. 91). Assim, conclui que

de um jeito ou de outro a sociedade modifica necessariamente os homens, haja visto que

se não os aprimora, ela os piora, pois

... sem que o governo sequer se meta, a desigualdade de crédito e de autoridade se torna inevitável entre os particulares assim que reunidos numa mesma sociedade: eles são forçados a se comparar entre si e levar em conta diferenças que encontram no uso contínuo que têm a fazer uns dos outros. (ROUSSEAU, 2017, p. 99)

O século XVIII foi indubitavelmente um marco fundamental na história da

humanidade, mas também na história do pensamento social. Também chamado de

“século das luzes”, foi o período em que grandes mentes como Kant, Hume, Voltaire,

Diderot, Montesquieu, Rousseau e demais filósofos iluministas consolidaram o

pensamento racional e livre de preconceitos e ideologias tradicionais, impulsionando o

homem ao centro da história.

Adicionalmente, dando continuidade à revolução no conhecimento que teve seu

início no século anterior, a sociedade do século XVIII viu o nascimento da indústria e a

transição de uma sociedade feudal para uma sociedade industrial. O ponto de inflexão da

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história humana moderna e ápice desse período de massivo desenvolvimento econômico,

filosófico, político e social foi, inegavelmente, a Revolução Francesa.

Nos anos que precederam a revolução, a Europa e, em especial, a França mantinha

características políticas e econômicas de uma sociedade feudal: hierarquia social rígida,

desigualdade social e econômica, um sistema de exigências econômicas e trabalho não

remunerado obrigatório da corveia”9. No entanto, na década de 1780, a economia francesa

– que era essencialmente feudal, ou seja, uma economia predominantemente rural em que

a terra era usada exclusivamente para propósitos agrícolas e onde havia uma completa

ausência de cidades e vida urbana10 – começou a mostrar sinais de declínio.

No caso francês, a má administração da economia, o aumento dos preços,

colheitas fracas, além de taxas excessivas cobradas dos agricultores pelos proprietários

de terras aprofundaram a crise, fazendo crescer o antagonismo entre os camponeses e a

aristocracia e a demanda por reforma11.

Politicamente, a França de maior parte do século XVIII, mantinha uma estrutura

feudal, o rei centralizava o comando da nação e a aristocracia proprietária de terras

administrava seus feudos de maneira autônoma tanto do ponto de vista político quanto do

ponto de vista jurídico. Na estrutura de classes do regime francês do século XVIII, todo

o poder político era mantido pelo rei, pelos nobres e, em menor parte, pelo clero. Nesse

cenário, a classe média burguesa, que crescera e se fortalecera (economicamente e não

politicamente) no último século, enxergou a oportunidade para instaurar a revolução e,

em 1789, derrubou a monarquia e tomou o poder para si.

9 No regime europeu vigente no século XVIII, “para um trabalhador ou camponês, qualquer pessoa que possuísse uma propriedade era um ‘cavalheiro’ e membro da classe dominante, e, vice-versa, o status de nobre ou de gentil-homem (que dava privilégios políticos e sociais e era ainda de fato a única via para os mais altos postos do Estado) era inconcebível sem uma propriedade.” (HOBSBAWM, 2010, p. 40) 10 Na Europa do final do século XVIII, dificilmente uma sociedade poderia ser classificada de urbana, pois apenas “duas cidades europeias que por volta de 1789 podem ser chamadas de genuinamente grandes segundo os nossos padrões – Londres, com cerca de 1 milhão de habitantes, e Paris, com meio milhão – e umas 20 outras com população de 10 mil ou mais” (HOBSBAWM, 2010, p. 33). Ainda assim, existia uma “multidão de pequenas cidades de província, onde se encontrava realmente a maioria dos habitantes urbanos” (HOBSBAWM 2010, p. 33) e que “não eram menos urbanas por serem pequenas” (HOBSBAWM, 2010, p. 34), mas que ainda pertenciam “essencialmente à sociedade e à economia do campo” (HOBSBAWM, 2010, p. 35) 11 De fato, a obsolescência econômica de uma ainda politicamente influente classe econômica “fazia com que os rendimentos dos nobres e cavalheiros ficassem cada vez mais defasados em relação ao aumento dos preços e dos gastos, levava a aristocracia a explorar com intensidade cada vez maior seu único bem econômico inalienável, os privilégios de status e de nascimento” (HOBSBAWM, 2010, p. 41).

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Inspirados pelos ideais iluministas, a burguesia que emerge da revolução tem

como projeto político a reorganização racional do estado e da sociedade, de modo a

garantir ao indivíduo a preservação de seus interesses, sua liberdade e a possibilidade de

viver em uma sociedade na condição de igual aos seus compatriotas. Nesse contexto, uma

das principais ações da Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária foi

promulgar Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, “um manifesto contra a

sociedade hierárquica de privilégios nobres” (HOBSBAWM, 2010, p. 106).

Segundo o documento, todos os homens nascem livres e iguais em direitos

independentemente da sua classe social – muito embora assume que a diferenciação

exista, mas que deve ocorrer somente se fundamentada na utilidade comum. Além disso,

define como direitos naturais e imprescindíveis do homem a liberdade, a propriedade, a

segurança e a resistência à opressão e estabelece a lei, e não o monarca, como expressão

da vontade comum, sendo que a elaboração dessas leis é direito de todo cidadão,

diretamente ou através de representantes.

O impacto da Revolução Francesa na vida das pessoas, na sociedade e na história

foi algo sem precedentes. Com o reconhecimento dos amplos direitos e liberdades do

homem, este viu seu papel na sociedade e na história se alterar drasticamente: pela

primeira vez, o indivíduo comum adquiriu uma voz politicamente influente. Além disso,

as consequências políticas e econômicas da Revolução inviabilizaram as condições

necessárias para a existência da sociedade feudal – ao se eliminar constitucionalmente a

desigualdade entre as classes, naturalmente se elimina a possibilidade de uma sociedade

com uma hierarquia rígida e baseada na concessão de privilégios, tal como era na

sociedade feudal.

Por fim, o efeito da Revolução Francesa sobre a filosofia foi de romper com a

tendência da filosofia de olhar para dentro em favor de um encontro direto entre a

realidade e a história, modelando segundo conteúdo social e histórico conceitos

filosóficos que, até então, buscavam apenas a abstração. Nesse contexto, nenhuma linha

de pensamento filosófico foi mais influenciada pelos ideais e realizações da Revolução

Francesa do que o idealismo alemão. Segundo Herbert Marcuse, em Razão e Revolução,

o “idealismo alemão foi considerado a teoria da Revolução Francesa” (MARCUSE, 2004,

p. 15), mas não no sentido de que pensadores como

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Kant, Fichte, Schelling e Hegel tenham elaborado uma interpretação teórica da Revolução Francesa, mas que, em grande parte, escreveram suas filosofias em resposta ao desafio vindo da França à reorganização do estado e da sociedade em bases racionais, de modo que as instituições sociais e políticas se ajustassem à liberdade e aos interesses do indivíduo. (MARCUSE, 2004, p. 15)

Aos olhos desses pensadores, a Revolução francesa “ao emancipar o indivíduo

como senhor autoconfiante de sua vida, completara o que a Reforma Alemã havia

começado”, pois a “situação do homem no mundo, seu trabalho e lazer, deveriam,

doravante, depender de sua própria atividade racional livre e não de qualquer autoridade

externa” – livre das “esmagadoras forças naturais e sociais”, o homem “se tornara o

sujeito autônomo de seu próprio desenvolvimento” (MARCUSE, 2004, p. 15).

Contudo, na sociedade alemã, e mesmo no pensamento dos filósofos da

Aufklärung, os ideais revolucionários que transformaram a sociedade francesa não saíram

do plano das ideias: se “a Revolução Francesa começava por assegurar a realização da

liberdade, ao idealismo alemão cabia apenas se ocupar com a ideia da liberdade”

(MARCUSE, 2004, p. 16). Na Alemanha do fim do século XVIII e começo do século

XIX, o projeto de transformação da sociedade de feudal foram transpostos “para o plano

filosófico e transpareciam nos esforços para elaborar o conceito de razão” (MARCUSE,

2004, p. 16)12.

Nesse cenário desenvolveu-se a resposta de Georg Hegel aos desafios da

Revolução Francesa. Hegel observou que “a reviravolta decisiva dada pela História, com

a Revolução Francesa, foi que o homem veio a confiar no seu espírito e ousou submeter

a realidade dada aos critérios da razão” ao invés de “simplesmente se acomodar à ordem

existente e aos valores dominantes” (MARCUSE, 2004, p. 17).

Isso porque, para Hegel, “o pensamento filosófico nada pressupõe além da razão,

que a história trata da razão, e somente da razão, e que o estado é a realização da razão”

(MARCUSE, 2004, p. 16) e, nesse contexto, “a realidade ‘não racional’ deve ser

12 Segundo Marcuse, “A cultura alemã é inseparável de suas origens no Protestantismo. Este inaugurara um reino de beleza, liberdade e moralidade, que não podia ser abalado por realidades e conflitos exteriores; tal reino se apartava do miserável mundo social e se fundava na ‘alma’ do indivíduo. Este deslocamento é fonte de uma tendência muito evidente no idealismo alemão, qual seja, a disposição a acomodar-se com a realidade social” (MARCUSE, 2004, p. 24). De modo que a cultura se tornara, consequentemente, “essencialmente idealística, ocupada com a ideia das coisas, mais do que com as próprias coisas. A liberdade de pensamento era posta acima da liberdade de ação, a moral acima da justiça prática, a vida interior acima da vida social do homem” (MARCUSE, 2004, p. 25)

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modificada até se ajustar à razão” (MARCUSE, 2004, p. 18)13, ou seja, a razão deve

governar o real. Esse seria o ideal por trás das filosofias do Iluminismo Francês e de suas

sucessoras revolucionária, qual seja, que a razão seria “uma força histórica objetiva que,

uma vez libertada dos grilhões do despotismo, faria do mundo um lugar de progresso e

felicidade” e, portanto, “triunfaria sobre a irracionalidade social e destruiria os opressores

da humanidade” (MARCUSE, 2004, p. 18).

Hegel, entretanto, contesta essa visão ao afirmar que “a razão não pode governar

a realidade, a não ser que a realidade se tenha tornado racional em si mesma”

(MARCUSE, 2004, p. 19), ou seja, a não ser que “o homem possua conceitos e princípios

de pensamento que designem normas e condições universalmente válidas, seu

pensamento não poderá pretender governar a realidade” (MARCUSE, 2004, p. 18).

Avançando ainda mais, Hegel defende que a própria realidade enquanto “não estiver

modelada pela razão, não será ainda, no sentido forte da palavra, realidade” (MARCUSE,

2004, p. 21). Isso porque, segundo Marcuse, Hegel concebe o conceito de real como “o

que existe de modo condizente com os padrões da razão” (MARCUSE, 2004, p. 21); o

real é o racionalizável.

Deste modo, a unidade entre a razão e a realidade “só aparece depois de um longo

processo que se inicia no mais baixo nível da natureza e chega à mais alta forma de

existência, à existência de um sujeito livre e racional, vivendo e agindo na

autoconsciência de suas potencialidades” (MARCUSE, 2004, p. 21). Quando tal unidade

ocorrer, a existência do Estado se torna real na medida em que “corresponde às

potencialidades reais dos homens e permite o pleno desenvolvimento delas”

(MARCUSE, 2004, p. 21).

Hegel, portanto, reconhece a razão como uma força histórica presente “na luta

contínua do homem para compreender o existente, transformando-o conforme a verdade

compreendida” (MARCUSE, 2004, p. 20), cuja realização “constitui um processo no

mundo espácio-temporal e, em última análise, é a história total da humanidade”

(MARCUSE, 2004, p. 20). Segundo a concepção hegeliana, a história deixa de ser

compreendida como “uma cadeia de atos e acontecimentos” e sim como “uma luta

13 No caso específico da França pós-revolucionária, isso significa que “a ordem social existente deveria ser reorganizada, o absolutismo e os remanescentes do feudalismo abolidos, a livre competição estabelecida, todos os homens igualados diante da lei, etc.” (MARCUSE, 2004, p. 18)

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incessante para adaptar o mundo às crescentes potencialidades da humanidade”

(MARCUSE, 2004, p. 20); como

uma luta constante pela liberdade, que a individualidade do homem, para poder realizar-se, requer que este possua alguma propriedade, e que todos os homens tenham igual direito a desenvolver as faculdades que lhe são próprias. (MARCUSE, 2004, p. 17)

À luz das mudanças decorrentes da Revolução Francesa, reconhece-se que “na

história, tivessem prevalecido tão-somente os interesses individuais, enquanto que o

interesse comum só se tivesse podido afirmar ‘à revelia’ daqueles”, e, ao mesmo tempo,

que a “competição geral entre sujeitos economicamente livres não havia estabelecido uma

comunidade racional que pudesse salvaguardar e satisfazer às necessidades e aos

interesses de todos os homens” (MARCUSE, 2004, p. 26).

A partir dessas constatações, Hegel se distancia de pensadores como Leibniz, Kant

e Fichte, que “ajustaram o seu racionalismo filosófico à irracionalidade flagrante das

relações sociais vigentes, e introverteram a razão e a liberdade humanas” (MARCUSE,

2004, p. 223), tornando-as compatíveis com a realidade externa. A resposta de Hegel foi

de “a acabar com a tendência à introversão e a proclamar a realização da razão nas

instituições sociais e políticas, e através delas”, resultando na “dissolução do mundo

harmonioso dos objetos fixos, postulado pelo senso comum, e o reconhecimento de que

a verdade procurada pela filosofia era uma totalidade perpassada de contradições”

(MARCUSE, 2004, p. 223).

A análise do rápido declínio da sociedade francesa após a revolução levou Hegel

a observar que uma forma de existência política e social estava substituindo outra e que,

portanto, a própria sociedade é capaz de mudar de uma forma para outra, em oposição ao

que até então se dava como certo, que a existência política e social de uma sociedade era

fixa. Constatação essa que verifica o seu conceito de realização da razão como um

processo histórico e marcado por inúmeras contradições.

Na concepção de Hegel, o fim último da História é a realização da razão, quando

poderá ser verificada a união do universal com o individual, ou seja, quando “a estrutura

do raciocínio individual (a subjetividade) produzir leis e conceitos gerais que pudessem

constituir os padrões universais da racionalidade” para produzir “uma ordem racional

universal, fundada na autonomia do indivíduo” (MARCUSE, 2004, p. 27). Ao destacar a

ligação da liberdade humana e da sua auto realização com desenvolvimento social (na sua

definição, o estado seria “a união dos interesses comuns e individuais” (MARCUSE,

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25

2004, p. 27) e atrelar ambos à realização da razão como objetivo da história, Hegel aponta

o caráter social e histórico da filosofia – ficou claro que a filosofia só poderia

compreender a história adotando conceitos sociais e que a história, de fato, era social por

natureza. Segundo a análise de Herbert Marcuse,

O sistema de Hegel levou a termo o período da filosofia moderna que começara com Descartes e dera corpo às ideias básicas da sociedade moderna. Hegel foi o último a interpretar o mundo como razão, a sujeitar a natureza e a história aos critérios do pensamento e da liberdade. Ao mesmo tempo, ele identificou a ordem política e social efetuada pelos homens com a base sobre que se devia realizar a razão. Seu sistema trouxera a filosofia ao limiar da negação da filosofia, constituindo por isso o único elo entre as formas velha e nova da teoria crítica, entre a filosofia e a teoria social. (MARCUSE, 2004, p. 220)

Pelo fato de sua filosofia “negar” (ou repudiar) qualquer realidade irracional e

irracionalizável gerando “uma crítica de tudo o que fora tido até então como verdade

objetiva”, a dialética hegeliana “era vista como o protótipo de todas as negações

destrutivas do dado, porque, segundo esta dialética, toda forma imediatamente dada se

transforma no seu oposto e só assim atinge seu verdadeiro conteúdo” (MARCUSE, 2004,

p. 279).

Como resposta a essa tendência crítica e destrutiva dos racionalismos francês e

alemão14, contra a filosofia dita negativa, surge no pensamento europeu (na década

seguinte à morte de Hegel15) o positivismo ou a filosofia positiva. Buscando “superar a

metafísica apriorística com vistas num ‘sistema positivo’ que, finalmente, transformasse

a filosofia numa autêntica ‘ciência da experiência’”, o positivismo pretendia superar a

filosofia negativa na sua totalidade.

Muito influenciado pelo avanço tecnológico e científico e a crescente

industrialização da economia, os filósofos positivistas “associaram a realização da razão

à expansão da indústria” (MARCUSE, 2004, p. 16). Dentre esses pensadores, um dos

primeiros e mais influentes foi o aristocrata Claude-Henri de Rouvroy, o Conde de Saint-

Simon (1760-1825). Saint-Simon partilhava da crença de que a crescente produção

industrial seria capaz de satisfazer as necessidades materiais do homem e, assim,

14 Marcuse destaca em Razão e Revolução que a filosofia positiva “lutava contra a forma francesa da filosofia negativa, contra a herança de Descartes e do Iluminismo. Na Alemanha, a luta se travava contra o sistema de Hegel” (MARCUSE, 2004, p. 279) 15 Hegel morreu em 1831 e “O Cours de philosophie positive de Comte foi publicado entre 1830 e 1842, a filosofia positiva do estado, de Stahl, entre 1830 e 1837, e, em 1841, Schelling começou seus cursos, em Berlim, sobre a Positive Philosophie que ele estivera elaborando desde 1827” (MARCUSE, 2004, p. 277)

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“acabaria com os antagonismos crescentes e com os levantes revolucionários dentro do

sistema social” (MARCUSE, 2004, p. 283).

O avanço econômico impulsionado pela industrialização da sociedade era, na

visão de Saint-Simon “o único fator de integração da nova ordem social” (MARCUSE,

2004, p. 282) e, portanto, a indústria era “o único poder capaz de conduzir os homens a

uma sociedade livre e racional” (MARCUSE, 2004, p. 16). Essa nova ordem social, em

que imperava uma visão ainda otimista do processo de industrialização, era antes de

qualquer coisa uma ordem positiva.

Para Saint-Simon, a industrialização da produção era o caminho para uma

sociedade mais racional e, portanto, a filosofia deveria se transformar em teoria social,

que para ele representava se transformar em uma ciência da produção. Deste modo, em

oposição a Hegel, Saint-Simon defende que não é necessário pôr em questão os dados na

experiência, mas apenas “compreender e organizar os fatos”, pois a “verdade devia ser

derivada dos fatos, e só deles” (MARCUSE, 2004, p. 283). Sob a teoria positivista da

sociedade, “as leis da sociedade recebiam progressivamente a forma de leis objetivas

naturais” e o “interesse da liberdade fora separado da esfera da vontade racional do

indivíduo, e posto nas leis objetivas do processo social e econômico” (MARCUSE, 2004,

p. 284). Nas palavras de Saint-Simon,

Os homens são meros instrumentos diante das leis onipotentes do progresso, e são incapazes de mudar ou dirigir seu curso. (MARCUSE, 2004, p. 284)

Apesar de basear nas leis econômicas o fundamento do processo social, não

escapou a Saint-Simon a constatação de que, na sociedade industrial, “‘os capitalistas e

proprietários’ eram os únicos a planejar a distribuição social do trabalho” (MARCUSE,

2004, p. 286) e, portanto, eram também os responsáveis pelo aumento da pobreza da

classe trabalhadora. Mas se as reflexões de Saint-Simon sobre as condições da classe

trabalhadora podem representar, no plano teórico, um grande impulso à ideia socialista,

elas o fazem de uma maneira original, qual seja, acrescentando à ideia socialista uma

visão ‘industrialista’ da sociedade.

Na concepção de Saint-Simon, o fundamento histórico de todos os antagonismos

de classes está na oposição entre ociosos e produtores; entre a inutilidade para o

desenvolvimento da sociedade dos ociosos como militares, juristas, metafísicos e outros

burgueses que vivem de renda, em oposição ao progresso que acompanhava o

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crescimento da classe dos produtores aquela que compreende os patrões industriais,

comerciantes, agricultores, chefes de obras e operários.

Nesse contexto, a sociedade planejada pelo socialismo de Saint-Simon conclui

que o interesse geral da sociedade coincide com o dos produtores, que o fundamento da

sociedade moderna está na indústria, de tal modo que o desenvolvimento da indústria - o

ápice da razão aplicada ao sistema produtivo – resultaria em uma sociedade mais racional

e, portanto, menos injusta. A solução para o antagonismo de classes, prescreve Saint-

Simon, consistiria em substituir o governo dos homens pela administração das coisas, ou seja,

administrar a indústria, que seria o fundamento da sociedade, de modo científico e racional, sem

nenhum controle do Estado. Para tanto, Saint-Simon definia a economia política não mais como

“uma ciência ‘pura’ e especializada”, mas como “um instrumento intelectual para a exposição dos

antagonismos da moderna estrutura social, e para a orientação da ação no sentido de resolver tais

antagonismos” (MARCUSE, 2004, p. 287).

No entanto, a teoria social positivista e o socialismo industrial de Saint-Simon, embora

tenha inaugurado uma nova abordagem à crítica da sociedade moderna, não resistiu muito tempo

isenta de críticas. Como bem destaca Herbert Marcuse,

Apenas seis meses depois que Saint-Simon inaugurou o positivismo, a teoria social elaborava esta refutação radical da ordem social pela qual ele havia justificado sua nova filosofia. "O sistema industrial" passou a ser considerado como o sistema da exploração capitalista. A doutrina do equilíbrio harmonioso foi substituída pela doutrina da crise inerente. Deu-se um novo sentido à ideia do progresso: o progresso econômico não significava necessariamente o progresso humano, - sob o capitalismo, o progresso se fez às expensas da liberdade e da razão. (MARCUSE, 2004, p. 290)

Apesar das críticas, nem a filosofia positivista e a teoria social derivada dela e

tampouco o socialismo, como bem se sabe, se limitaram ao pensamento de Saint-Simon.

O aristocrata francês apenas iniciou um processo que, ao mesmo tempo, transformou e

polarizou o modo de compreender a sociedade moderna em duas correntes de pensamento

radicalmente divergentes, mas que deram o impulso inicial na ciência que viria a ser

conhecida como sociologia: a filosofia positivista de Auguste Comte e o socialismo de

Karl Marx.

Ainda assim, dos dois, apenas Comte pode ser considerado um herdeiro do

pensamento de Saint-Simon. No início de sua carreira, Auguste Comte (1798-1857) foi

secretário do Conde de Saint-Simon e, como seu patrão, adotou uma abordagem positiva

da filosofia em oposição à filosofia dita negativa herdeira dos pensadores da Revolução

e do idealismo alemão. A defesa de uma visão positivista do mundo foi tão forte na sua

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obra que comumente Comte é considerado o principal expoente do positivismo e o

verdadeiro pai do positivismo, em detrimento de seu mestre, Saint-Simon.

O pensamento positivista começou como uma resposta conservadora à Revolução

Francesa cuja abordagem abraçava o método científico como forma de aquisição de

conhecimento ao mesmo tempo em que rejeitava a intuição e a especulação presente na

filosofia da época. Para Comte, o positivismo era o estágio mais alto possível no

desenvolvimento do conhecimento16 que, quando alcançado, substituiria todas as

filosofias do conhecimento especulativas pelos métodos das ciências naturais. Deste

modo, ao mesmo tempo em que sua filosofia rejeitava o apriorismo das filosofias

negativas, o positivismo buscava também restaurar a autoridade da experiência.

Corroborado pelo sucesso das ciências naturais ao longo do século XIX – e, por

sucesso, entende-se o número sem paralelos das descobertas científicas na Física,

Química, Biologia e Matemática – o positivismo de Comte louvava a confiabilidade da

observação como base para uma teoria do conhecimento, colocando uma extraordinária

ênfase na busca por regularidades factuais que, segundo ele, levaria à formação de leis

gerais. Isso porque, segundo a concepção positivista de Comte, os únicos objetos

legítimos da investigação científica eram aqueles sujeitos a observação, dado que a

observação seria o critério central de verificação e, portanto, posto que a verificação é

parte vital para a formulação de leis gerais, as próprias leis estariam sujeitas ao teste dos

fatos.

Segundo Herbert Marcuse, esperava-se da filosofia positiva de Comte não apenas

que ela “abolisse qualquer sujeição da realidade à razão transcendental”, mas que também

“ensinasse os homens a considerar e a estudar os fenômenos do seu mundo como objetos

neutros, governados por leis universalmente válidas” (MARCUSE, 2004, p. 280). Tal

concepção, permitia ao positivismo aspirar à integração do conhecimento humano “pela

16 Comte defendia que “cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico, finalmente, o método positivo. Daí três sortes de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de transição” (COMTE, 1978, p. 4)

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aplicação universal do método científico, e pela exclusão de qualquer objetivo que não

pudesse, em última análise, ser verificado pela observação” (MARCUSE, 2004, p. 280).

Logicamente, o alcance do positivismo não se limitava à filosofia do

conhecimento, mas estendia-se a um campo fértil e bastante explorado ao seu tempo: as

transformações das sociedades europeias do século XIX. De fato, como já mencionado,

o positivismo tratou-se de uma resposta conservadora aos ideais da Revolução Francesa

e ao idealismo alemão. De acordo com a percepção de Comte, tanto a anarquia da

especulação filosófica que prevalecia desde o domínio do idealismo de Hegel no

pensamento europeu, quanto a anarquia social e política que fora causada pela revolução

na França representavam problemas a serem solucionados pelo positivismo. Segundo

Comte,

Só a filosofia positiva pode ser considerada a única base sólida da reorganização social, que deve terminar o estado de crise no qual se encontram, há tanto tempo, as nações mais civilizadas. (COMTE, 1978, p. 17)

Assim, o projeto positivista encabeçado por Comte não se restringia apenas à

esfera filosófica, mas principalmente à esfera social da vida humana; não se tratava de

unicamente levar ao fim da filosofia especulativa e sua visão mística da natureza,

sociedade e história, mas também de tornar a sociedade completa novamente ao examinar

os problemas da sociedade cientificamente. Tal qual Hobbes, Comte buscou elevar a

política ao nível de ciência com a intenção de inaugurar uma nova ordem social, com base

não em “crenças teológicas”, mas no avanço da filosofia positiva. Como bem resume

Herbert Marcuse,

Comte separou a teoria social da sua ligação com a filosofia negativa e colocou-a na órbita do positivismo. Ao mesmo tempo abandonou a economia política como raiz da teoria social, e fez da sociedade objeto de uma ciência independente, a sociologia. As duas fases estão correlacionadas: a sociologia se tomou uma ciência por renunciar ao ponto de vista transcendente da crítica filosófica. A sociedade passava agora a ser tomada como um complexo mais ou menos definido de fatos, governado por leis mais ou menos gerais - uma esfera a ser tratada como qualquer outro campo de investigação científica. (MARCUSE, 2004, p. 291)

Segundo a proposta positivista, a “sociedade era concebida como governada por

leis racionais que funcionavam com necessidade natural” e, portanto, “tendia a igualar o

estudo da sociedade ao estudo da natureza, de modo que a ciência natural, particularmente

a biologia, se tornava o arquétipo da teoria social” (MARCUSE, 2004, p. 293). Nesse

contexto, o “estudo social devia ser uma ciência à procura de leis sociais cuja validez

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devia ser análoga à das leis físicas” (MARCUSE, 2004, p. 293). Como o próprio Comte

enuncia,

Já agora que o espírito humano fundou a física celeste; a física terrestre, quer mecânica, quer química; a física orgânica, seja vegetal, seja animal, resta-lhe, para terminar o sistema das ciências de observação, fundar a física social. (COMTE, 1978, p. 09)

Para Comte, as leis que regem a sociedade são universais e são responsáveis por

trazer ordem ao caos da vida social, no entanto, são também positivas “no sentido de

afirmarem a ordem estabelecida como base para a negação da necessidade de construção

de uma nova ordem” (MARCUSE, 2004, p. 297). Isso não quer dizer que Comte rejeita

a necessidade de reforma e mudança, mas, para ele, “as leis do progresso são parte do

mecanismo da ordem estabelecida, de modo que esta progride suavemente para um estado

mais alto, sem ter de começar por ser destruída” (MARCUSE, 2004, p. 297).

Ao eliminar o aspecto negativo, ou seja, crítico de sua sociologia, Comte defende

que “a sociedade possui uma ordem natural imutável à qual o homem deve ser submisso”

(MARCUSE, 2004, p. 294) e que, portanto, qualquer forma de movimento social

revolucionário não faz sentido. Ao assumir o dado como fato na vida social, o positivismo

negou ao homem a possibilidade de “alterar e reorganizar suas instituições sociais de

acordo com sua vontade racional” (MARCUSE, 2004, 293), assim como se apresentou

como uma ferramenta para “a manutenção da autoridade dominante e para a proteção do

interesse estabelecido, contra toda e qualquer investida revolucionária” (MARCUSE,

2004, p. 295).

A sociologia positivista, como o próprio Comte admitia, estava “destinada

sobretudo, por sua própria natureza, não a destruir, mas a organizar”, “sem nunca

pronunciar alguma negação absoluta” (COMTE, 1978b, p. 62). Deste modo, assume uma

harmonia permanente na vida social resultante da ordem natural das instituições de uma

dada sociedade, ordem essa garantida por “leis eternas que ninguém pode transgredir sem

punição” (MARCUSE, 2004, p. 295). E, portanto, pode-se dizer que o conceito de ordem,

na sociologia positivista, confere a esta uma qualidade estática à sociedade, pois assume

que a ordem social não pode ser alterada senão conforme as leis imutáveis que regem tal

sociedade. Por outro lado, ao admitir a possibilidade de progresso em uma sociedade, a

sociologia positivista assume um caráter dinâmico, ainda que tal progresso seja também

regido por leis.

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A relação entre ordem e progresso na sociologia positivista de Comte estabelece

“a ordem constitui sem cessar a condição fundamental do progresso e, reciprocamente, o

progresso vem a ser a meta necessária da ordem” (COMTE, 1978b, p. 69). Portanto, “o

progresso é, em si, ordem - não é revolução, mas evolução” (MARCUSE, 2004, p. 300),

o que leva Comte à conclusão que todas as instituições “são provisórias no sentido de

que, quando avança a cultura intelectual, elas passam a outras formas e instituições que

corresponderão às capacidades intelectuais de tipo avançado” (MARCUSE, 2004, p.

302). E, por isso, a sociologia positivista tende a conceber “sempre o estado presente

como resultado necessário do conjunto da evolução anterior” (COMTE, 1978b, p. 69) e,

consequentemente, indispensável para a realização do estado posterior.

A concepção evolutiva e progressista do desenvolvimento social justifica, no

pensamento de Comte, o elogio à passividade e a o não questionamento da autoridade.

Para ele, a população deve aceitar a ordem vigente como necessária ao desenvolvimento

da sociedade. Segundo o próprio Comte,

Quão doce é obedecer quando podemos desfrutar da felicidade de estarmos desobrigados, por dirigentes sábios e ilustres, da responsabilidade premente da direção geral da nossa conduta.17

Comte tem plena ciência que esse estado idealizado de total submissão da

população à ordem vigente não corresponde à realidade do momento histórico em que

vivia18. Ainda assim, o fato de existir uma classe social como o proletariado do século

XIX representa uma ameaça à teoria positivista de ordem e progresso harmonioso da

sociedade. Contra a tese dialética de que quanto maior a acumulação de riqueza, maior a

intensificação da pobreza, a sociologia positivista se propõe a melhorar a situação do

proletariado sem ameaçar a instituição da propriedade.

A assimilação da classe proletária pelo Estado positivista, segundo Comte,

ocorreria em duas etapas: primeiramente, através da melhoria da educação para a

população (inclusive para o proletariado); e, num segundo momento, através da criação

de trabalho. O papel da educação seria o de alinhar os interesses da população e do estado

17 Citação de Cours de philosophie positive, de Auguste Comte, em (MARCUSE, 2004, p. 299). 18 Comte reconhece a existência de antagonismos sociais, mas atribui a existência desses ao fato de “as ideias de ordem e progresso ainda estão separadas” (MARCUSE 2004, p. 300) e que os conflitos entre classes nada mais seriam do que “vestígios de um regime obsoleto, vestígios que logo seriam removidos pelo positivismo, sem qualquer ameaça à ‘instituição fundamental da propriedade’” (MARCUSE, 2004, p. 304)

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com a filosofia positivista, de modo que a evitar toda crítica e questionamento a uma

abordagem científica de governo. A criação de empregos e trabalho que possibilitaria ao

proletariado usufruir do progresso harmonioso do Estado positivista seria o resultado

natural da evolução social imaginada por Comte. De fato, como destaca José Arthur

Giannotti,

O núcleo da filosofia de Comte radica na ideia de que a sociedade só pode ser convenientemente reorganizada através de uma completa reforma intelectual do homem. Com isso, distingue-se de outros filósofos de sua época, como Saint-Simon e Fourier, preocupados também com a reforma das instituições, mas que prescreviam modos mais diretos para efetivá-la. Enquanto esses pensadores pregavam a ação prática imediata. Comte achava que antes disso seria necessário fornecer aos homens novos hábitos de pensar de acordo com o estado das ciências de seu tempo. (GIANNOTTI, 1978, p. VIII)

Naturalmente, tal estado consistiria, necessariamente, de “um estado

hierarquizado totalizante, governado por uma elite cultural composta por todos os grupos

sociais, e perpassado por uma nova moral que unifica os interesses diversos em um todo

real” (MARCUSE, 2004, p. 305). A submissão resultante à estratificação social,

indispensável para manter a ordem, portanto, exige uma autoridade forte. Tal força, na

sociedade industrial, Comte encontra nas mãos daqueles que dão provas de real

competência (industriais, banqueiros) para dirigir os outros, aliado (ou equilibrado) pela

força daqueles que compreenderam o segredo da ordem social (sacerdotes, sábios,

sociólogos). Para Comte,

Nada mais resta, como indiquei, além de completar a filosofia positiva, introduzindo nela o estudo dos fenômenos sociais e, em seguida, resumi-la num único corpo de doutrina homogênea. Quando este duplo trabalho estiver suficientemente avançado, o triunfo definitivo da filosofia positiva ocorrerá espontaneamente e restabelecerá a ordem na sociedade. (COMTE, 1978, p. 18)

A visão positivista da sociedade difundida por Comte, embora popular e alinhada

com o espírito da sociedade industrial não era a única herdeira do pensamento do Conde

de Saint-Simon. Diametralmente oposta à sociologia positivista de Comte, encontrava-se

o socialismo de Karl Marx. Se por um lado o movimento positivista iniciado por Saint-

Simon nos levou diretamente até a sociologia de Comte, por outro, o socialismo industrial

de Saint-Simon (classificado de utópico por Engels) deu origem a um movimento crítico

da sociedade que resultou no socialismo de Karl Marx (classificado de científico também

por Engels19).

19 Ver Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, de Friedrich Engels

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33

No entanto, talvez seja impreciso classificar Marx como herdeiro do pensamento

de Saint-Simon, dada a radical diferença entre suas concepções de socialismo, além do

fato da natureza dialética de seu pensamento o colocar muito mais próximo de Hegel do

que de Saint-Simon. Na verdade, a originalidade do pensamento de Marx – além do fato

de ter tecido críticas tanto a Hegel quanto a Saint-Simon – o coloca à parte dos pensadores

que o precederam e em uma posição de destaque na história do pensamento social.

Com respeito a Saint-Simon, Marx critica o posicionamento tardio do pensador

francês em prol da classe operária. Em O Capital, Marx afirma que “só na última obra,

Nouveau Christianisme, Saint-Simon surge diretamente como porta-voz da classe

trabalhadora e declara que a emancipação dela é o objetivo final dos seus esforços”

(MARX, 2008, p. 800). Muito embora Friedrich Engels, como editor de O Capital, tenha

esclarecido em nota que Marx só tinha “palavras de admiração pelo gênio e pela mente

enciclopédica de Saint-Simon” (MARX, 2008, p. 801), ainda assim, Marx defende que

Todas suas obras anteriores na realidade glorificam a moderna sociedade burguesa contra a feudal, ou os industriais e banqueiros contra os marechais e juristas maquinadores de leis da era napoleônica. (MARX, 2008, p. 800).

Para Marx, a condição da classe operária está no centro dos problemas sociais que

a sociedade do século XIX deve enfrentar. Nesse sentido, vai contra a visão de um

primeiro Saint-Simon, mas que se mantém em muitos dos seus sucessores, de que “o

trabalhador (travailleur) não é o trabalhador mesmo, mas os capitalistas industriais e

comerciais” (MARX, 2008, p. 800).

Com Hegel, também a questão da classe operária será um ponto de ruptura entre

o pensamento do filósofo idealista e da sociologia de Marx. Isso porque o confronto da

filosofia hegeliana – cujo fim último é a realização da razão – com a existência de uma

classe operária “contradiz a suposta realização da razão, porque ela põe diante de nós uma

classe que nos dá a prova da negação mesma da razão” (MARCUSE, 2004, p. 227). A

classe operária e o trabalho por ela executado na sociedade civil do século XIX “expressa

uma negatividade total: ‘o sofrimento universal’ e ‘a injustiça universal’” (MARCUSE,

2004, p. 227).

Ao fazer da razão “o único padrão universal da sociedade” (MARCUSE, 2004, p.

227), Hegel não consegue justificar a existência de uma classe pertencente a uma

sociedade racional que sobreviva sob condições tão duras e cruéis quanto a classe

operária. A incapacidade de ignorar essa irracionalidade, esse “testemunho vivo de que a

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verdade não foi realizada” (MARCUSE, 2004, p. 228), levou Marx a classificar a filosofia

de Hegel como “a mais desenvolvida e compreensiva apresentação dos princípios

burgueses” (MARCUSE, 2004, p. 227). Isso porque, segundo a teoria proposta por Hegel,

na sociedade ideal,

as formas sociais e políticas se haviam ajustado aos princípios da razão, de modo que as potencialidades mais altas do homem seriam desenvolvidas pelo desenvolvimento das formas sociais existentes. Sua conclusão supunha uma mudança decisiva na relação entre a realidade e a teoria: a realidade, afirmava-se, coincidia com a teoria. (MARCUSE, 2004, p. 227)

As duras condições sob as quais subsistia a classe operária consistia para Marx,

prova irrefutável que, de fato, a realidade não coincidia com a teoria. A necessidade de

uma nova teoria que desse conta de explicar a sociedade industrial assim como as relações

sociais que nela se manifestavam despertou em Marx o pensamento crítico que, por sua

vez, impulsionou seus estudos acerca do tema que marcou a sua obra: o modo de produção

capitalista.

A essência do ser humano, na concepção marxiana, é o trabalho. Marx defende

que o trabalho humano, não é “uma mera atividade econômica”, mas sim “a ‘atividade

existencial’ do homem, sua ‘atividade livre, consciente’ - não um meio de conservação

da sua vida (Lebensmittel), mas um meio de desenvolvimento da sua ‘natureza universal’”

(MARCUSE, 2004, p. 238). Isso porque, segundo Marx, o trabalho constitui a “atividade

vital” que se apresenta, primeiramente como um “meio para a satisfação de uma carência,

a necessidade de manutenção da existência física”, mas que também lhe confere “o caráter

genérico do homem” (MARX, 2004, p. 84). Para Marx, "o homem faz da sua atividade

vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência” (MARX, 2004, p. 84), e

portanto, “a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz da

natureza inteira seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é um meio de vida

imediato, quanto na medida em que ela é o objeto/matéria de sua atividade vital” (MARX,

2004, p. 84).

Ainda assim, a essência humana não se restringe ao trabalho isolado, mas abarca

também as relações sociais que dele derivam e, portanto, o que distingue o homem dos

outros animais, afirma Marx, é a sua dimensão social. Nesse sentido, reitera que o

“indivíduo é o ser social” (MARX, 2004, p. 107). Nas palavras de Marx,

Não apenas o material da minha atividade - com a própria língua na qual o pensador é ativo – me é dado como produto social, a minha própria existência é atividade social; por

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isso, o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a consciência de mim como um ser social. (MARX, 2004, p. 107)

Com isso, Marx constata que o “mundo real não pode ser inferido do estudo do

mundo ideal; pelo contrário, é o mundo ideal que tem de ser interpretado como uma

resultante histórica do mundo real” (GIDDENS, 2011, p. 32). Contrariamente a Hegel –

que defendia que “apenas o espírito é a verdadeira essência do homem, e a verdadeira

forma do espírito é o espírito pensante, o espírito lógico, especulativo” (MARX, 2004, p.

122) – Marx defende que

que a consciência sensível não é nenhuma consciência abstratamente sensível, mas uma consciência humanamente sensível; de que a religião, a riqueza etc., são apenas a efetividade estranhada da objetivação humana, das forças essenciais humanas nascidas para a obra (Werk) e, por isso, apenas o caminho para a verdadeira efetividade humana (MARX, 2004, p. 122)

Marx alinha Hegel ao “ponto de vista dos modernos economistas nacionais”, no

sentido que ele “apreende o trabalho como a essência, como a essência do homem que se

confirma”, no entanto destaca que Hegel “vê somente o lado positivo do trabalho, não

seu [lado] negativo” (MARX, 2004, p. 124). Marx, por sua vez, presencia o lado negativo

do trabalho na sociedade moderna e seus efeitos na classe trabalhadora, que, segundo ele,

tem caráter universal devido ao seu sofrimento universal. Segundo Anthony Giddens, em

Capitalismo e Moderna Teoria Social, na concepção de Marx,

O proletariado enferma de todos os piores males da sociedade. Vive em condições de pobreza que não são as da pobreza natural, resultante da insuficiência dos recursos materiais, mas antes um efeito “artificial” da organização contemporânea da produção industrial. Uma vez que o proletariado conjuga em si todas as irracionalidades da sociedade, a sua emancipação equivalerá à emancipação da sociedade em geral (GIDDENS, 2011, p. 36)

Sob o modo de produção capitalista, a divisão social do trabalho “não tem

qualquer consideração pelas aptidões dos indivíduos ou pelo interesse do todo, sendo

posta em prática, ao contrário, inteiramente de acordo com as leis da produção capitalista

de mercadorias”, e, portanto, “o produto do trabalho, a mercadoria, parece determinar a

natureza e o fim da atividade humana” (MARCUSE, 2004, p. 237). Forçado a vender sua

força de trabalho e sem acesso aos meios de produção, o trabalhador é tratado como

mercadoria; uma “mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria” (MARX,

2004, p. 80). Na lógica da produção capitalista,

O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich), é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. Essa efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação (Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como

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perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung). (MARX, 2004, p. 80)

Derivada da disparidade entre o aumento do poder produtivo do trabalho e a

diminuição de controle por parte do trabalhador sobre os objetos que produz, a alienação

do trabalhador representa a exteriorização dele em seu próprio produto, ou seja, significa

que não somente “seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa (äussern), mas

bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele (ausser ihm),

independente dele e estranha a ele” (MARX 2004, p. 81). Herbert Marcuse destaca, em

Razão e Revolução, que “Marx apresenta a alienação do trabalho (...) primeiro, na relação

do trabalhador ao produto do seu trabalho e, segundo, na relação do trabalhador à sua

própria atividade” (MARCUSE 2004, p. 239), desmembrando na sequência as etapas em

que esse processo se apresenta:

O trabalhador na sociedade capitalista produz mercadorias. A produção de mercadorias em larga escala requer capital, grandes acumulações de riqueza empregadas exclusivamente para incrementar a produção de mercadorias. As mercadorias são produzidas por empresários privados independentes para fins de venda lucrativa. O operário trabalha para o capitalista a quem ele entrega, pelo contrato salarial, o produto do seu trabalho. O capital é o poder de dispor dos produtos do trabalho. Quanto mais o trabalhador produz maior se toma o poder do capital e mais limitados os meios do trabalhador se apropriar dos seus produtos. (MARCUSE, 2004, p. 239)

Na concepção marxiana, ao vender sua força de trabalho, o trabalhador abre mão

não só do produto do seu trabalho e da relação com a sua atividade produtiva, mas aliena-

se também de si mesmo e da raça humana. Isso porque o trabalho “é um meio para a

autorrealização autêntica do homem, para o pleno desenvolvimento das suas

potencialidades” (MARCUSE, 2004, p. 239), de modo que, ao vender sua força de

trabalho, o homem cede, de fato, a si mesmo como uma ferramenta; “ele não se afirma,

portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele” (MARX, 2004, p. 83). Na condição alienada,

o trabalhador “não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica

sua physis e arruína seu espírito”(MARX, 2004, p. 82), “só se sente, (...) junto a si

[quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho”(MARX, 2004, p. 83).

Consequentemente,

O homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. (MARX, 2004, p. 83)

A análise de Marx da influência do trabalho e do sistema de produção capitalista

na configuração da sociedade e das relações sociais que nela habitam, levaram-no a

enxergar um modo de estudar a esfera social da vida humana que definitivamente rompia

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com o idealismo de Hegel. Marx defendia que o “primeiro ato histórico é, pois, a

produção dos meios para a satisfação dessas necessidades” – comida, bebida, moradia,

vestimentas etc. -, é “a produção da própria vida material” (MARX, 2007, p. 33). Tal ato

seria, na concepção marxiana, “uma condição fundamental de toda a história” (MARX,

2007, p. 33).

O trabalho, que é apresentado por Marx como fonte não só de satisfação dessas

necessidades básicas do homem, mas também como fonte de definição das relações

sociais entre os homens, é a força que dá continuidade a esse primeiro ato histórico.

Assim, em Marx, a história humana pode ser caracterizada como um contínuo processo

de criação, satisfação e recriação das necessidades humanas, pois, segundo Marx,

A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente diferente as antigas condições, o que então pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a história posterior na finalidade da anterior (MARX, 2007, p. 40).

A sua concepção da história, tal qual o materialismo histórico de Marx, pressupõe

um ponto de vista realista, segundo o qual, as ideias são concebidas como produtos do

cérebro humano em resposta a estímulos sensoriais do mundo material e não como

derivadas de categorias iminentes independentemente da experiência. Diferenciando-se

de outras concepções de materialismo (como, por exemplo, o materialismo de Feurbach),

o materialismo histórico de Marx não é determinista na sua interpretação da evolução da

sociedade, mas assume que a “consciência humana é condicionada pela relação dialética

entre sujeito e objeto, na qual o homem dá forma ao mundo em que vive, sendo por outro

lado por ele formado também” (GIDDENS, 2011, p. 52).

Nesse contexto, a história universal corresponde à história da criação do homem

pelo trabalho humano e, portanto, “deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como o é a

história dos materialistas (que são pensadores abstratos), ou uma atividade inventada de

sujeitos inventados, como o é a história dos idealistas” (GIDDENS, 2011, p. 53). Sob o

materialismo histórico de Marx, “o trabalho, o intercâmbio criador entre os homens e o

seu ambiente natural, está na base da sociedade humana” e essa “relação entre o indivíduo

e o seu ambiente material estabelece-se por mediação das características particulares da

sociedade a que pertence” (GIDDENS, 2011, p. 53).

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Isso porque, segundo a análise e Marx, não há nenhum ser humano que não tenha

nascido numa sociedade, que determina depois a sua formação, o que lhe permite afirmar

que todo indivíduo recebe a cultura acumulada pelas gerações que o antecederam e,

portanto, pela interação com o mundo natural e social em que vive, contribui para

modificar ainda mais o mundo da experiência.

Posto isso, Marx direciona seu olhar crítico para a realidade em que vive, para a

sociedade industrial e o modo e produção capitalista. Na concepção marxiana, o

capitalismo é um sistema de produção historicamente específico, como muitos outros que

o precederam na história e que, como estes, não pode ser considerado como uma forma

final, mas como um sistema de produção transitório. Tal condição do capitalismo, dá

permissão à Marx de sugerir a possibilidade (mas não a necessidade) de superar o modo

de produção capitalista e junto com ele todas as mazelas que traz consigo – alienação,

desigualdade, pobreza, reificação, etc..

No centro de tudo, Marx identifica como elemento unificante a propriedade

privada, que, para ele, constitui a instituição na qual a “alienação tomou sua forma mais

universal” (MARCUSE, 2004, p. 245). Segundo Marx, a propriedade surge na história

humana no mesmo momento em que ocorre a divisão do trabalho20, quando os objetos,

as ferramentas necessárias para a produção deixam de ser propriedade da comunidade e

passam a ser dos indivíduos que efetivamente fazem uso dessas, ou seja, dos indivíduos

que, de acordo com a divisão social do trabalho, são responsáveis pela atividade que, para

ser realizada, necessita de tais ferramentas. A propriedade, nesse primeiro momento, fica

vinculada ao direito de uso dos meios de produção para atender uma necessidade da

comunidade.

Nesse contexto, o homem, que é, inicialmente, um ser integralmente comunitário,

se vê inserido em um processo de individualização progressiva, que nada mais é do que

um produto histórico, associado a uma divisão do trabalho cada vez mais complexa e

especializada que necessariamente implica na divisão da sociedade em duas classes: a dos

possuidores dos meios de produção e a dos trabalhadores. Porque, segundo Marx, as

classes se originam quando as relações de produção implicam uma divisão diferenciada

20 Conforme afirmação de Marx, “divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas – numa é dito com relação à própria atividade aquilo que, noutra, é dito com relação ao produto da atividade” (MARX, 2007, p. 37)

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do trabalho, permitindo a acumulação de excedentes da produção por uma minoria. Nessa

separação da população em classes, a relação entre possuidores dos meios de produção e

trabalhadores é necessariamente uma relação conflitual entre duas classes antagónicas:

uma classe dominante e a outra classe dominada. Conforme afirmado na sua obra

Manifesto Comunista, em 1848,

A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada (MARX, 2010, p. 40)

Tal processo implica no surgimento de uma separação nos interesses do homem

entre os interesses privados e os interesses comuns a todos os membros da sociedade. Os

interesses privados, idealmente, deveriam ficar de fora das decisões dos governantes e

somente os interesses comuns deveriam ser levados em conta na tomada de decisões. No

entanto, não é o que Marx verifica, mas sim o contrário: que regularmente os interesses

privados individuais ou da classe dominante influenciam o modo como o Estado

administra o bem público. De fato, segundo ele,

Toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal, é obrigada a dar às suas ideias a forma de universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. (MARX, 2007, p. 48)

A sociedade capitalista, nesse sentido, representa, para Marx, o ápice de um longo

processo histórico que tem como resultado a ampla difusão da propriedade privada e um

sistema de classe desenvolvido de capitalistas industriais, que são os possuidores dos

meios de produção, e trabalhadores assalariados, que são os produtores do trabalho físico.

A partir da expropriação da massa de trabalhadores que passam a ter de vender a sua força

de trabalho em troca dos seus meios de subsistência, as relações de mercado se tomam

parte integral da atividade produtiva humana. Nesse sentido, o diagnóstico de Marx é que

a revolução burguesa

Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais”, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”. Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal. (MARX, 2010, p. 42)

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A partir da instituição da propriedade privada, o olhar crítico de Marx conecta

todos os elementos característicos da sociedade capitalista, qual sejam, a divisão social

do trabalho, a divisão da sociedade em duas classes (uma dominada e outra dominante),

a monopolização dos meios de produção nas mãos da classe dominante, o surgimento do

trabalhador assalariado, a desigualdade de condições e direitos entre as duas classes (ou

seja, a exploração da classe dominada para o benefício da classe dominante), a alienação

do trabalho e a coisificação do trabalhador. Com a propriedade privada no centro de todo

o desenvolvimento da sociedade capitalista, o materialismo histórico de Marx identifica

a alienação do trabalho como seu efeito mais danoso, a seu ver, para a humanidade.

Segundo ele, a “negatividade da sociedade capitalista está na alienação do trabalho”

(MARCUSE, 2004, p. 245).

A condição alienada do trabalho, como já mencionado, isola o homem ao mesmo

tempo em que impede a realização das suas potencialidades individuais; nessa condição,

a essência do homem, o seu trabalho, não mais lhe pertence. Como bem disse Marx, “na

situação em progresso da sociedade, o declínio e o empobrecimento do trabalhador são o

produto de seu trabalho e da riqueza por ele produzida” e a miséria “resulta, portanto, da

essência do trabalho hodierno mesmo” (MARX, 2004, p. 30).

Nesse contexto, o Estado moderno surge não somente como um movimento

político da classe burguesa para a libertação da sociedade das suas instituições feudais,

mas também um movimento que respondia às demandas de uma economia capitalista.

Num sistema em que as relações de classe são o eixo principal da distribuição do poder

político, Marx enxerga no Estado moderno uma relação íntima entre o poder político e o

poder econômico. Segundo ele,

A essa propriedade privada moderna21 corresponde o Estado moderno, que, comprado progressivamente pelos proprietários privados por meio dos impostos, cai plenamente sob domínio destes pelo sistema de dívida pública, e cuja existência, tal como se manifesta na alta e na baixa dos papéis estatais na bolsa, tornou-se inteiramente dependente do crédito comercial que lhe é concedido pelos proprietários privados, os burgueses. (MARX, 2007, p. 75)

Marx rejeita o idealismo herdado de Hegel que concebe o Estado como uma

instituição universal que, na sociedade, detém o poder supremo para resolver e superar

21 Marx refere-se “à propriedade privada pura, que se despiu de toda aparência de comunidade e suprimiu toda influência do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade” (MARX, 2007, p. 75)

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todas as oposições e conciliar os conflitos originados do egoísmo individualista da

sociedade civil. Para Marx, essa concepção pressupõe a participação política da

população em geral tendo em vista o bem comum, porém, o que se verifica é que tal

participação corresponde ao ideal pressuposto em todos os Estados; na prática, o que

realmente se verifica é uma constante luta de interesses entre os diversos grupos de uma

sociedade. Alinhado com os princípios que regem a sociedade capitalista, o Estado

moderno, na visão de Marx, é realmente, mesmo em regimes democráticos, apenas um

fator de alienação.

A partir das condições histórico-sociais apresentadas por Marx, seu prognóstico é

que o modo de libertar a humanidade dos grilhões que se auto impôs seria pela superação

da alienação, que, para ele, só seria possível mediante à socialização dos meios de

produção. Com a destruição da propriedade privada, defende Marx, os elementos

dissonantes da sociedade capitalista, os elementos que não atendem ao bem comum, mas

a interesses privados, seriam conciliados em uma nova forma de sociedade – uma

sociedade socialista.

Na concepção de Marx, tal revolução seria promovida pela única classe possível

qual seja, o proletariado. A classe negligenciada por Hegel e, até certo ponto, por Saint-

Simon, configura a única capaz de acabar com a propriedade privada, a divisão de classes,

o modo de produção capitalista e a alienação do ser humano. Isso porque, na concepção

marxiana, o proletariado constitui a única classe que classificada como

uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, uma esfera que possua um caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano (MARX, 2010b, p. 156)

No entanto, Marx alerta que, muito embora a destruição da propriedade privada

constitui certamente condição necessária da transição para uma nova forma de sociedade,

essa destruição “só inaugura um sistema social essencialmente novo, se indivíduos livres,

e não a ‘sociedade’, se tornam senhores dos meios socializados de produção”

(MARCUSE, 2004, p. 245). Marx adverte que

Acima de tudo é preciso evitar fixar mais uma vez a “sociedade” como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida – mesmo que ela também não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outros – é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. (MARX, 2004, p. 107)

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Mas se no processo de formação dessa nova sociedade realiza-se a “suprassunção

(Aufhebung) positiva da propriedade privada, enquanto apropriação da vida humana”

tem-se, consequentemente a “suprassunção positiva de todo estranhamento

(Entfremdung)” e, portanto, tem-se também “o retorno do homem da religião, família,

Estado etc., à sua existência (Dasein) humana, isto é, social” (MARX, 2004, p. 106). Sob

um ponto de vista mais amplo, esse retorno do homem à sua existência social implica a

ruptura com as formas anteriores de sociedade em que “o interesse do todo se coloca em

instituições sociais e políticas separadas que representam, contra o direito do indivíduo,

o interesse da sociedade” (MARCUSE, 2004, p. 246).

Tal ruptura significa a abolição da sociedade privada, pois, com o fim da

propriedade privada, tem-se concomitantemente a abolição das classes sociais e a

efetivação do interesse do todo na existência de cada indivíduo. Isso porque na sociedade

socialista, “tão logo a dominação de classe deixa de ser a forma do ordenamento social”,

deixa de ser necessário para a existência da sociedade “apresentar um interesse particular

como geral ou ‘o geral’ como dominante” (MARX, 2007, p. 49).

Na concepção de Marx, a sociedade resultante desse processo de emancipação do

homem e superação do sistema capitalista deverá ser uma associação livre de homens

baseada na consciência da dependência recíproca que existe entre o indivíduo e a

comunidade social e não na satisfação egoísta dos próprios interesses. Marx prevê “uma

sociedade na qual o processo material de produção não mais determina a configuração

total da vida humana” (MARCUSE, 2004, p. 253), mas que permita o desenvolvimento

integral das potencialidades e capacidades de todos os homens. Tal sociedade seria

construída de modo que “o princípio da organização social não seja a universalidade do

trabalho, mas a satisfação universal de todas as potencialidades individuais que

constituem o princípio da organização social” (MARCUSE, 2004, p. 253). Mas, acima de

tudo, Marx idealiza uma sociedade “que dá a cada um, não segundo seu trabalho, mas

segundo suas necessidades” (MARCUSE, 2004, p. 253).

Ao distanciar-se da filosofia para dedicar-se à tarefa de compreender a sociedade

em que vivia sob um ponto de vista histórico-materialista, Marx não somente abandona

os sistemas abstratos da filosofia hegeliana para adotar uma metodologia calcada no

homem concreto e empiricamente perceptível como também proclama a necessidade de

uma ciência concreta da sociedade, baseada no estudo da interação dinâmica e criadora

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entre homem e natureza. Tal qual Comte, mas com uma abordagem radicalmente

diferente, Marx afirma a possibilidade de obter conhecimento científico do mundo social

e da sociedade. Essa também é a convicção de Émile Durkheim (1858-1917), pensador

fundamental para o desenvolvimento da sociologia enquanto ciência e que, juntamente

com Marx e Weber, irá compor o triunvirato da sociologia moderna.

Dentre os dois, Marx e Comte, Durkheim pode ser considerado o herdeiro direto

apenas de Comte. Durkheim, assim como Comte, busca estabelecer uma ciência

independente voltada ao estudo da sociedade e sua abordagem, no que diz respeito ao

estabelecimento da sociologia, demonstra ter absorvido o positivismo de Comte ao aceitar

a tese positivista que o estudo da sociedade deveria ser fundado no exame dos fatos e que,

portanto, o único método válido para o conhecimento objetivo da sociedade era o método

científico e a confiança na observação factual. Consequentemente, Durkheim também

subscrevia à convicção de que as ciências sociais só poderiam se tornar científicas quando

fossem despidas das suas abstrações metafísicas e da especulação filosófica.

Durkheim admite que, a seu tempo, a sociologia “ainda não ultrapassou a era das

construções e das sínteses filosóficas” (DURKHEIM, 2011, p. 1), “consistindo numa

miscelânea heterogénea de generalizações que abrangem os mais variados campos, e que

assentam mais em deduções lógicas feitas a partir de conceitos apriorísticos do que

propriamente num estudo empírico sistemático” (GIDDENS, 2011, p. 134). No entanto,

na sua visão, esse não seria o papel da sociologia e conclama que o sociólogo,

...em vez de se comprazer em meditações metafísicas a propósito das coisas sociais, tome como objetos de suas pesquisas grupos de fatos nitidamente circunscritos, que possam, de certo modo, ser apontados com o dedo, dos quais se possa dizer onde começam e onde terminam, e atenha-se firmemente a eles! (DURKHEIM, 2011, p. 3)

Para Durkheim, o principal problema que retardava e limitava o desenvolvimento

científico da sociologia era precisamente a indefinição do seu objeto temático, bem como

os limites do seu campo de observação. Mantendo-se essencialmente filosófica, a

sociologia, na avaliação de Durkheim, até então, ignorava que o universo dos fatos sociais

representava uma realidade externa ao indivíduo.

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Nesse sentido, Durkheim discorda de modelos sociais centrados no indivíduo,

como os influenciados por Hobbes22 e Rousseau23, bem como os modelos utilitaristas e

psicológicos. Mesmo tendo Hobbes e Rousseau como influências no seu pensamento, na

luta para diferenciar a sociologia das demais ciências humanas, Durkheim enfrentou

constantemente as correntes de pensamento social centradas no indivíduo, como teoria

social utilitarista e as teorias sociais fundamentadas na psicologia. Isso devido

principalmente ao fato de que no período em que Durkheim tentava consolidar o objeto

de sua sociologia, a França passava por um momento de intenso debate sobre a relação

indivíduo versus sociedade, bem como os limites recíprocos dos direitos individuais

frente às obrigações coletivas.

Um dos efeitos da Revolução de 1789 e da “Declaração dos Direitos do Homem”

- na sociedade francesa -, foi alçar o indivíduo à posição central na vida em sociedade.

No entanto, essa nova posição do indivíduo na organização social levantou muitas

questões. Uma teoria amplamente difundida era que a nova posição de destaque do

indivíduo separava-o da sociedade e que, portanto, o indivíduo se relacionava com a

sociedade apenas por necessidade econômica e pelos seus próprios interesses.

Tal teoria, que ficou conhecida por utilitarismo, teve entre seus principais

defensores e divulgadores a figura do filósofo John Stuart Mill. Para Mill, toda ação

humana era completamente autônoma e autodeterminada pela busca por satisfazer os

interesses privados de cada indivíduo. Segundo a teoria da motivação humana de Mill,

22 Segundo Ken Morrison, em Marx, Durkheim, Weber, Durkheim discorda de Hobbes quando este afirma que a sociedade “passa a existir apenas quando indivíduos firmam um contrato de saída da natureza e entrada na sociedade de modo a garantir paz e segurança”, pois Hobbes assume que “no estado da natureza indivíduos estariam sujeitos a violentos ataques de outros” uma vez que a ausência de leis e de alguém que as aplique “levaria a uma ininterrupta luta por domínio e poder” (MORRISON, 2006, p. 156). Segundo Durkheim, tal modelo pressupõe que “indivíduos são naturalmente resistentes à sociedade” e que esta possa existir, “o indivíduo tem que ser compelido a obedecer regras sociais pelo seu interesse na autopreservação” (MORRISON, 2006, p. 156). Durkheim defende que as restrições impostas pelas regras sociais são impostas externamente e que, portanto, independem do indivíduo. 23 Assim como Hobbes, Rousseau defende a formação da sociedade como fruto de um pacto entre homens em função da necessidade de sobrevivência. No entanto, diferentemente de Hobbes, Rousseau considera que a origem dos conflitos entre os homens está na criação da sociedade e não na sua ausência. Segundo Rousseau, “tão logo a sociedade começa a se desenvolver, ela tende a criar a propriedade privada e o interesse particular”, originando “disputas entre indivíduos dado que estes competem em um mundo em que o ciúmes e a inveja prevalecem” (MORRISON, 2006, p. 157). Porém, com a vida em sociedade, surge nos indivíduos, de acordo com Rousseau, um interesse comum que substitui o interesse particular. Na visão de Durkheim, Rousseau errou ao “derivar a sociedade do indivíduo” (MORRISON, 2006, p. 157) e com isso “falhou em dar o passo realista de tratar a sociedade como uma realidade independente existindo fora do indivíduo” (MORRISON, 2006, p. 158).

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todo comportamento tinha motivos comuns de utilidade privada que impelia indivíduos

a perseguir seus interesses privados24. No entanto, Mill argumentava, que a necessidade

de convívio social25 levava ao indivíduo a encarar o bem comum como um interesse

privado. Nas suas palavras,

as relações sociais entre os seres humanos, exceto a relação entre senhor e escravo, são manifestamente impossíveis caso não assentem no pressuposto de que os interesses de todos devem ser consultados. A sociedade de iguais só pode existir sob a noção de que os interesses de todos devem ser considerados da mesma maneira. Como em todos os estados da civilização qualquer pessoa, exceto um monarca absoluto, tem iguais, qualquer um está obrigado a viver nestes termos com outrem, e em todas as épocas avança-se um pouco para um estado em que será impossível viver permanentemente noutros termos seja com quem for. Desta maneira, as pessoas crescem sem conseguirem conceber a possibilidade de um estado de desconsideração total pelos interesses das outras pessoas. Estão sob a necessidade de se conceberem a si próprias como alguém que ao menos se abstém de todas as injúrias mais graves e (ainda que seja apenas para sua própria proteção) vive num estado de constante protesto contra elas. Também estão familiarizadas com o facto de cooperarem com os outros e de proporem a si próprias um interesse coletivo, e não individual, como objetivo (pelo menos passageiro) das suas ações. Enquanto cooperam, os seus fins identificam-se com os fins dos outros; têm pelo menos o sentimento temporário de que os interesses dos outros são os seus próprios interesses. (MILL, 2005, p. 72)

Ainda que afirme que o padrão ético utilitarista “não é a maior felicidade do

próprio agente, mas o maior total de felicidade em termos globais” (MILL, 2005, p. 52),

a concepção utilitarista das leis que regem a sociedade permanece centrada no

comportamento do indivíduo, pois assume que “as ocasiões em que qualquer pessoa

(exceto urna em mil) tem o poder de a multiplicar a uma escala abrangente (por outras

palavras, de ser um benfeitor público) são excepcionais, e apenas nessas ocasiões uma

pessoa é chamada a considerar a utilidade pública; em todos os outros casos. a utilidade

24 Em Utilitarismo, J.S. Mill afirma que “O credo que aceita a utilidade, ou o Princípio da Maior Felicidade, como fundamento da moralidade, defende que as ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas na medida em que tendem a produzir o reverso da felicidade. Por felicidade. entende-se o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a privação de prazer. [...] Mas essas explicações suplementares não afetam a teoria da vida em que esta teoria da moralidade se baseia - nomeadamente, a ideia de que o prazer e a isenção de dor são as únicas coisas desejáveis como fins, e de que todas as coisas desejáveis (que são tão numerosas no esquema utilitarista como em qualquer outro) são desejáveis ou pelo prazer inerente em si mesmas ou enquanto meios para a promoção do prazer e da prevenção da dor” (MILL, 2005, p. 48). 25 Segundo J.S. Mill, o fundamento de toda a sua ética utilitarista “consiste nos sentimentos sociais da humanidade, no desejo de estar unido aos semelhantes, que é já um princípio poderoso da natureza humana, sendo, felizmente, um dos que tendem a tornar-se mais fontes mesmo sem uma expressa inculcação influenciada pelos avanços da civilização. O estado social e ao mesmo tempo tão natural, tão necessário e tão habitual para o homem que, exceto em algumas circunstâncias invulgares ou por um esforço de abstração voluntária, ele se concebe sempre a si próprio enquanto membro de um corpo, e esta associação reforça-se cada vez mais a medida que a humanidade se afasta do estado da independência selvagem” (MILL, 2005, p. 72).

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privada, o interesse ou felicidade de apenas algumas pessoas, é tudo aquilo a que tem de

dar atenção” (MILL, 2005, p. 60).

Consequentemente, tal visão implica afirmar que as leis da sociedade nada mais

seriam do que ações e paixões dos indivíduos atuando no mundo com base nas suas

utilidades privadas, reduzindo a sociedade e a sua existência coletiva às ações, decisões

e atitudes espontâneas dos indivíduos. Contrariamente à teoria social utilitarista,

Durkheim argumenta que ao estabelecer a autonomia individual e a busca pelo interesse

particular como pontos centrais para uma teoria social, os pensadores utilitaristas

ignoraram o fato que a sociedade consiste em uma estrutura de regras e práticas

costumeiras capazes de se sobrepor à vontade particular e à discrição dos indivíduos,

agindo como restrições às ações dos indivíduos.

Para Durkheim, dado que os indivíduos nascem dentro de uma sociedade já

estabelecida, seria impossível analisar o indivíduo independentemente da sociedade, o

que, consequentemente implica na afirmação que a sociedade e o indivíduo constituem

um todo coletivo e social. Como afirma Durkheim,

Se essa importante verdade foi desprezada pelos utilitaristas, trata-se de um erro decorrente da maneira como eles concebem a gênese da sociedade. Supõem, na origem, indivíduos isolados e independentes, que, por conseguinte, só podem relacionar-se para cooperar, porque não tem outra razão para vencer o intervalo vazio que os separa e para se associarem. Mas essa teoria, tão difundida, postula uma verdadeira criação ex nihilo. De fato, ela consiste em deduzir a sociedade do indivíduo; ora, nada do que conhecemos nos autoriza a crer na possibilidade de semelhante geração espontânea. (DURKHEIM, 1999, p. 278)

Na visão de Durkheim, muito embora admita que a sociedade é composta por

indivíduos, seria impossível separar o indivíduo do contexto social em que nasceu e,

igualmente impossível, seria estudar o indivíduo independentemente da sociedade. Nesse

sentido, Durkheim defende que as motivações psicológicas do indivíduo são indiferentes

no estudo de uma realidade social que existe externamente ao indivíduo. Muito embora

destaque que cada “indivíduo bebe, dorme, come, raciocina, e a sociedade tem todo

interesse em que essas funções sejam exercidas regularmente”, “se esses fatos fossem

sociais, a sociologia não teria um objeto que lhe seria próprio, e seu domínio se

confundiria com os da biologia e da psicologia” (DURKHEIM, 2012, p. 31). Com relação

a essa realidade social, Durkheim afirma:

Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou de cidadão, quando observo meus compromissos contratuais, eu cumpro os deveres que são definidos, fora de mim e de meus atos, dentro do direito e da moral. Então, mesmo que eles estejam de acordo com

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meus sentimentos e que eu sinta sua realidade internamente, essa não deixa de ser objetiva, pois não fui eu que os fiz, mas os recebi por meio da educação. [...] Da mesma forma, o fiel, ao nascer, já encontra prontas as crenças e práticas de sua vida religiosa; se elas existiam antes dele, é porque existiam fora dele. (DURKHEIM, 2012, p. 31)

Durkheim conclui que o objeto da sociologia não pode ser outro senão o estudo

dos fatos sociais. Tais fatos, como define Durkheim, não são apenas exteriores ao homem

no sentido que se concretizam em uma sociedade anterior ao próprio homem, mas

também porque a sociedade em si constitui uma totalidade de relações da qual o indivíduo

é apenas um elemento. Como bem exemplifica Durkheim,

O sistema de signos do qual me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema monetário que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações comerciais, as práticas que sigo em minha profissão, funcionam independentemente do uso que faço deles. Se tomarmos, um após o outro, todos os elementos de uma sociedade, o que acabamos de dizer poderá ser repetido a respeito de cada um deles. (DURKHEIM, 2012, p. 32)

Além da exterioridade, o outro indício que comprova a existência dos fatos

sociais, na argumentação de Durkheim, é de ordem empírica e seria o constrangimento

moral atrelado às relações sociais. Ao citar a paternidade como um exemplo não somente

de um fato biológico, mas também social, Durkheim explica as obrigações de pai são

externas ao indivíduo (embora possa até concordar com elas), não foi ele que as criou,

porém, sente-se forçado a obedecê-las. Nesse sentido, “mesmo que, de fato, eu [o

indivíduo] possa me emancipar dessas regras e violá-las com sucesso, jamais será sem a

obrigação de ter de lutar contra elas” (DURKHEIM, 2012, p. 32).

A resistência observada nas regras de conduta em sociedade fornece, conclui

Durkheim, provas de que, de fato, existem fatos externos ao indivíduo que restringem e

conformam a sua vontade, influenciando a sua ação junto a outros indivíduos. O que levou

Durkheim a definir

É fato social toda maneira de fazer, fixa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou ainda, que é geral na extensão de uma dada sociedade que tem existência própria, independente de suas manifestações individuais. (DURKHEIM, 2012, p. 40)

Definido o objeto da sociologia, resta a Durkheim estabelecer o modo como tratá-

lo. Em As Regras do Método Sociológico, ele faz justamente isso ao afirmar que “a

primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas”

(DURKHEIM, 2012, p. 41). Com isso, Durkheim quer dizer que, partindo do pressuposto

que “na natureza só existem coisas” (DURKHEIM, 2012, p. 44) e que “é coisa, de fato,

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tudo aquilo que é dado, tudo aquilo que se oferece ou, ainda, se impõe à observação”

(DURKHEIM, 2012, p. 51), então

Tratar fenômenos como coisas significa tratá-los na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência. Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente este caráter. (DURKHEIM, 2012, p. 51)

Deste modo, a ciência da sociedade, conforme imaginada por Durkheim,

restringe-se ao mundo da realidade natural, pois os fatos sociais, na qualidade de coisas

e, portanto, na qualidade de objetos da natureza não podem ser intuídos, nem tampouco

modificados pela simples vontade humana. Segundo Durkheim,

De fato, reconhecemos principalmente uma coisa quando ela não pode ser modificada por um simples decreto da vontade. Não é que ela seja refratária a qualquer modificação. Mas, para produzir uma mudança nela, não basta querer, precisa-se ainda de um esforço mais ou menos trabalhoso, devido à resistência que ela nos opõe e que, também, não pode ser sempre vencida. Ora, já vimos que os fatos sociais têm esta propriedade. Muito longe de serem um produto de nossa vontade, eles a determinam desde fora; são como moldes nos quais somos obrigados a derramar nossas ações. Frequentemente, esta necessidade é tamanha que não podemos escapar dela. Mas mesmo que consigamos triunfar, a oposição que encontramos é suficiente para nos advertir que estamos diante de algo que não depende de nós. Portanto, considerando os fenômenos sociais como coisas, apenas nos conformaremos à sua natureza. (DURKHEIM, 2012, p. 52)

Ao afirmar, no processo de definição do objeto da sociologia, que a sociedade tem

o poder de coerção sobre indivíduos através de regras e obrigações sociais externas,

Durkheim mostrou que a ação individual, de fato, deriva da sociedade, inserindo,

portanto, o indivíduo em uma grande estrutura de regras e restrições sociais. No entanto,

Durkheim verifica que o individualismo crescente no período subsequente à Revolução

Francesa afasta o indivíduo da sociedade e que a autonomia individual cresce às custas

da unidade coletiva da sociedade. Tal afastamento será o foco central da investigação de

Durkheim.

Destacando-se da maioria das teorias sociais do fim do século XIX e começo do

século XX, Durkheim afirmou que a crise enfrentada pelas sociedades contemporâneas

não era de ordem econômica e, portanto, não poderia ser resolvida por medidas

econômicas. Tal afirmação o distancia não somente da teoria social utilitarista (como já

visto), mas também das teorias socialistas. Na sua concepção de Durkheim, segundo

Anthony Giddens, socialismo e comunismo se diferenciam pelo fato de que as ideias

comunistas “se manifestaram em muitos períodos da história”, enquanto o socialismo “é

um produto das alterações sociais que modificaram radicalmente as sociedades europeias

nos fins do século XVIII e no século XIX” (GIDDENS, 2011, p. 145).

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Além disso, argumenta que as teorias comunistas “assumem a forma típica de

utopias” baseadas na premissa que “a propriedade privada se encontra na origem de todos

os males sociais” (GIDDENS, 2011, p. 145). Já no socialismo, embora este também

busque o fim da propriedade privada, para Durkheim, a premissa básica estabelece “não

só que a produção tem de ser centralizada nas mãos do Estado, mas ainda que compete

ao Estado um papel puramente econômico - na sociedade socialista, a tarefa básica do

Estado consiste na gestão ou administração da economia” (GIDDENS, 2011, p. 145).

Assim, na sua visão, “o comunismo procura evitar o mais possível a riqueza e é,

portanto, geralmente de carácter ascético” (GIDDENS, 2011, p. 145), enquanto as teorias

socialistas advogam que “a produção industrial moderna permite que a abundância vá

beneficiar todos os membros da sociedade, pelo que se propõem como principal objetivo

atingir a abundância universal” (GIDDENS, 2011, p. 146). Sem adotar nenhum dos dois,

Durkheim, no entanto, argumenta a importância do socialismo na análise da sociedade

contemporânea, principalmente em função do seu caráter realista no lidar com os

problemas da sociedade a seu tempo. Segundo a análise de Anthony Giddens,

o socialismo é um movimento de importância fundamental no mundo moderno, na opinião de Durkheim, pois não só os socialistas - pelo menos os mais argutos, por exemplo Saint-Simon e Marx - têm plena consciência de que a sociedade contemporânea difere em absoluto dos tipos tradicionais de ordem social, como ainda formularam programas completos de reorganização social, preconizando-os como soluções para a crise de transição da antiga para a nova forma de sociedade. As soluções políticas sugeridas pelos socialistas não constituem, porém, remédio adequado para a situação que tão bem diagnosticaram. (GIDDENS, 2011, p. 148)

Na análise do sociólogo francês, as teorias socialistas se apresentam como

modelos de reorganização da sociedade cujo sucesso depende em larga escala de uma

reorganização econômica. No entanto, alerta que essa reorganização econômica por si só

não seria capaz de resolver a crise que assolava o mundo, pois avaliava que essa crise era

de ordem principalmente moral, e não econômica. Nesse sentido, afirma que o problema

que se apresenta à sociedade moderna consiste em “reconciliar as liberdades individuais,

fruto da dissolução da sociedade tradicional, com a manutenção do controle moral

indispensável à sobrevivência da sociedade como tal” (GIDDENS, 2011, p. 150).

A ambiguidade moral percebida na relação entre indivíduo e sociedade é

relacionada com a expansão do individualismo, um fenômeno relacionado ao aumento da

divisão do trabalho. Durkheim define a divisão do trabalho não como um fenômeno

moderno, mas como um processo iniciado tão logo indivíduos formaram grupos nos quais

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cooperavam coletivamente ao dividir o trabalho e ao coordenar as atividades econômicas

e domésticas com o propósito de sobreviver. Durkheim destaca, no entanto, que essa

divisão é resultado de um processo social que ocorre dentro da sociedade, ao invés de

resultar da escolha privada de indivíduos, o que o leva a diferenciar a divisão econômica

do trabalho da divisão social do trabalho.

A primeira consiste, basicamente, na divisão do trabalho apenas para aumentar o

volume e a eficiência da produção dos bens necessários. Já a divisão social do trabalho

refere-se ao princípio de coesão social que se desenvolve em sociedades cujos elos e

ligações sociais resultam do modo como indivíduos se relacionam entre si quando o seu

trabalho é dividido em tarefas econômicas e domésticas, ou seja, consiste no processo de

divisão do trabalho que garante a união necessária dos indivíduos de uma determinada

sociedade.

Tal divisão diz respeito não somente à atividade produtiva, mas também às demais

relações sociais e Durkheim cita como exemplo a relação de amizade. Ao unirmos a

outros indivíduos em relações de amizade procuramos individualmente “as qualidades

que nos faltam, porque unindo-nos a eles participamos de certa forma de sua natureza e

nos sentimos, então, menos incompletos” (DURKHEIM, 1999, p. 21). Deste modo que,

ao final, “cada um tem o seu papel conforme seu caráter” e tem-se “um verdadeiro

intercâmbio de serviços” – “Um protege, o outro consola; este aconselha, aquele executa”

(DURKHEIM, 1999, p. 21). Ampliando o espectro da sua análise para todas as relações

sociais, inclusive as econômicas, Durkheim conclui

Somos levados, assim a considerar a divisão do trabalho sob um novo aspecto. Nesse caso [da amizade], de fato, os serviços econômicos que ela pode prestar são pouca coisa em comparação ao efeito moral que ela produz e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento de solidariedade. (DURKHEIM, 1999, p. 21)

Segundo o sociólogo francês, é esse sentimento de solidariedade o responsável

pela união dos indivíduos em uma sociedade e não somente uma relação de interesse

material. Muito embora os interesses particulares de sobrevivência existam, reconhece

Durkheim, é através dos vínculos sociais criados pela divisão do trabalho que o

sentimento de solidariedade surge, unindo todos de forma coesa. Na sua análise, a divisão

do trabalho é um processo contínuo que exige do homem um grau cada vez maior de

especialização conforme o desenvolvimento da sociedade. Nesse processo, Durkheim

identifica dois tipos de solidariedade: a solidariedade mecânica e a solidariedade

orgânica.

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A solidariedade mecânica é encontrada em sociedades em que a coesão social é

baseada em raízes comuns de identidade e semelhança, ou seja, em casos de

predominância da solidariedade mecânica, “a sociedade é dominada pela existência de

um conjunto de crenças e sentimentos bem firmes e aceites por todos os membros da

comunidade” (GIDDENS, 2011, p. 122) de modo que a diferenciação entre os indivíduos

é desencorajada. Nessas sociedades, todos os aspectos da vida social são regidos por

regras coletivas e práticas sociais religiosas (em sua essência), de modo que, quanto maior

a unificação de crenças comuns, maior a semelhança entre indivíduos e os laços unindo

o indivíduo à sociedade formam um quase perfeito consenso social.

Para Durkheim, “o conjunto das crenças e sentimentos comuns à média dos

membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria”

(DURKHEIM, 1999, p. 50); tal sistema ele denomina de consciência coletiva26. Em

sociedades em que se verifica uma preponderância da consciência coletiva sobre a

consciência pessoal, as ações dos indivíduos privilegiam interesses coletivos sobre

interesses pessoais de maneira quase automática ou mecânica27. Em função disso, as

atividades econômicas e domésticas são realizadas coletivamente com o interesse coletivo

em mente e a divisão do trabalho, portanto, é realizada de maneira rudimentar.

No entanto, Durkheim identifica que, com o aumento da população e o

desenvolvimento a economia, a necessidade de especialização das funções econômicas

se torna indispensável à sobrevivência, haja visto que, sob tais condições, o indivíduo não

mais consegue produzir tudo o que necessita. Com isso, tem-se, dentro do processo da

divisão social do trabalho, um movimento de diferenciação dos indivíduos segundo sua

função econômica e do seu papel ocupacional. Consequentemente, os indivíduos passam

a se agrupar segundo a sua profissão e não mais segundo o seu papel social. A divisão do

26 Na concepção de Durkheim, “existe uma coesão social cuja causa está numa certa conformidade de todas as consciências particulares a um tipo comum que não é outro senão o tipo psíquico da sociedade” (DURKHEIM, 1999, p. 78) e que, portanto, existem no indivíduo duas consciências: uma pessoal e que “representa apenas nossa personalidade individual e a constitui”; e a outra coletiva e que “representa o tipo coletivo e, por conseguinte, a sociedade sem a qual ele não existiria” (DURKHEIM, 1999, p. 79). 27 Segundo Durkheim, ao descrever esse tipo de solidariedade com a palavra “mecânica”, “não significa que ela [a solidariedade] seja produzida por meios mecânicos e de modo artificial. Só a denominamos assim por analogia com a coesão que une entre si os elementos dos corpos brutos, em oposição à que faz a unidade dos corpos vivos. O que acaba de justificar essa denominação é que o vínculo que une assim o indivíduo à sociedade é de todo análogo ao que liga a coisa à pessoa. A consciência individual, considerada sob esse aspecto, é uma simples dependência do tipo coletivo e segue todos os seus movimentos, como o objeto possuído segue aqueles que seu proprietário lhe imprime.” (DURKHEIM, 1999, p. 107)

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trabalho passa a ser física e os indivíduos deixam de produzir através de cooperação

coletiva e passam a trabalhar separadamente.

A separação dos indivíduos, segundo Durkheim, leva ao surgimento da vida

privada e ao afastamento do indivíduo da família e da religião, tornando a economia a

instituição social dominante. Como resultado, as crenças comuns perdem força e os

vínculos sociais originados pela solidariedade mecânica dão um lugar a um novo tipo de

vínculo social. Na concepção de Durkheim, a especialização e divisão do trabalho tornam

os indivíduos mais dependentes uns dos outros e, portanto, a coesão social forma-se a

partir de uma solidariedade que, em função dessa interdependência entre indivíduos,

Durkheim denomina orgânica.

Em sociedades em que a solidariedade orgânica é dominante, esta não deriva

“simplesmente da aceitação de um conjunto de crenças e sentimentos comuns, mas sim

de uma interdependência funcional na divisão do trabalho” e tampouco pressupõe uma

consciência coletiva que “envolve completamente a consciência individual, tomando os

indivíduos idênticos”, mas, ao contrário, pressupõe “a diferença entre os indivíduos nas

suas crenças e ações” (GIDDENS, 2011, p. 123). Deste modo, a expansão da divisão do

trabalho e o elevado grau de especialização nessa divisão28 (resultado do avanço da

produção industrial moderna), além do desenvolvimento da solidariedade orgânica,

acentuam do individualismo. Segundo Durkheim,

A solidariedade que deriva das semelhanças se encontra em seu apogeu quando a consciência coletiva recobre exatamente nossa consciência total e coincide em todos os pontos com ela. Mas nesse momento, nossa individualidade é nula. Ela [a solidariedade orgânica] só pode nascer se a comunidade ocupar menos lugar em nós. (DURKHEIM, 1999, p. 107)

Já no caso da solidariedade orgânica, produzida pela divisão do trabalho,

Durkheim afirma que ela ...

... só é possível se cada um tiver uma esfera de ação própria, por conseguinte, uma personalidade. É necessário, pois, que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte

28 Segundo Durkheim, “Não há mais ilusão quanto às tendências de nossa indústria moderna; ela vai cada vez mais no sentido dos mecanismos poderosos, dos grandes agrupamentos de forças e capitais e, por conseguinte, da extrema divisão do trabalho” (DURKHEIM, 1999, p. 1). Porém, alerta que essa divisão “não é específica do mundo econômico: podemos observar sua influência crescente nas regiões mais diferentes da sociedade. As funções políticas, administrativas, judiciárias especializam-se cada vez mais. O mesmo ocorre com as funções artísticas e científicas. Estamos do tempo em que a filosofia era a ciência única; ela fragmentou-se numa multidão de disciplinas especiais, cada uma das quais tem seu objeto, seu método, seu espírito.” (DURKHEIM, 1999, p. 2)

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da consciência individual, para que nela se estabeleçam essas funções especiais que ela não pode regulamentar; e quanto mais essa região é extensa, mais forte é a coesão que resulta dessa solidariedade. (DURKHEIM, 1999, p. 108)

O crescimento do individualismo, aponta Durkheim, está intimamente conectado

à especialização decorrente da divisão do trabalho, pois o individualismo só pode crescer

na medida em que as crenças e os sentimentos coletivos enfraquecem. No entanto, apesar

de enxergar o crescimento do individualismo com ressalvas, Durkheim afirma que o

“funcionamento da solidariedade orgânica não pode, porém ser interpretado à maneira da

teoria utilitarista; a sociedade contemporânea continua a ser uma ordem moral”

(GIDDENS, 2011, p. 126). Isso, segundo ele, porque uma sociedade na qual todo e cada

indivíduo procurasse satisfazer apenas os seus próprios interesses não seria capaz de

sobreviver após um curto espaço de tempo, dado que, segundo afirma Durkheim,

o interesse é o que há de menos constante no mundo. Hoje, me é útil unir-me a você; amanhã, a mesma razão fará de mim seu inimigo. Portanto, uma tal causa só pode dar origem a aproximações passageiras e a associações de um dia. (DURKHEIM, 1999, p. 190)

Na sua conclusão, Durkheim afirma que por mais complexa que seja a divisão de

trabalho em uma dada sociedade, tal divisão não pode ser reduzida a um caos de alianças

contratuais a curto prazo. Para ele,

É erroneamente, pois, que se opõe a sociedade que deriva da comunidade das crenças à que tem por base a cooperação, concedendo à primeira apenas um caráter moral e não vendo na segunda mais que um agrupamento econômico. Na realidade, a cooperação também tem sua moralidade intrínseca. (DURKHEIM, 1999, p. 218)

Consequentemente, assume que “Toda sociedade é uma sociedade moral”

(DURKHEIM, 1999, p. 218), mas que “em nossas sociedades atuais, essa moralidade

ainda não tem todo o desenvolvimento que lhes seria necessário desde já” (DURKHEIM,

1999, p. 219). Em tal atraso, explica Durkheim, estaria a verdadeira causa do conflito

entre capital e trabalhador, ou seja, no fato de “a divisão das funções econômicas ter

ultrapassado temporariamente o processo de formação de regras morais apropriadas”

(GIDDENS, 2011, p. 12). Sob tais condições, a “formação das relações contratuais tende

a ser determinada, não pelas necessárias leis morais, mas antes pela imposição da força

coerciva” (GIDDENS, 2011, p. 127).

Na sua análise, os conflitos característicos da sociedade contemporânea entre

detentores do capital e a massa trabalhadora “só podem ser evitados, caso a divisão do

trabalho seja feita de acordo com a distribuição dos talentos e das capacidades, e caso as

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posições profissionais mais elevadas não sejam monopolizadas por uma classe

privilegiada” (GIDDENS, 2011, p. 127). Ou seja,

que a divisão do trabalho só produz a solidariedade se for espontânea e na medida em que for espontânea. Mas, por espontaneidade, deve-se entender a ausência, não apenas de qualquer violência expressa e formal, mas de tudo o que pode tolher, mesmo indiretamente, a livre expansão da força social que cada um traz em si. A espontaneidade supõe não apenas que os indivíduos não sejam relegados à força a funções determinadas, mas também que nenhum obstáculo, de qualquer natureza, os impeça de ocupar, no âmbito social, a posição proporcional a suas faculdades. Numa palavra, o trabalho só se divide espontaneamente se a sociedade for constituída de maneira que as desigualdades sociais exprimam exatamente a desigualdades naturais. (DURKHEIM, 1999, p. 395)

Nesse sentido, Durkheim afirma que a “tarefa das sociedades mais avançadas é,

portanto, podemos dizer, uma obra de justiça” (DURKHEIM, 1999, p. 406) e a missão

da sociologia, tal qual concebida por ele, seria o de constituir uma ciência da moral e,

assim como o objetivo enunciado em Da Divisão Social do Trabalho, “tratar os fatos da

vida moral a partir do método das ciências positivas” (DURKHEIM, 1999, p. XLIII).

O objetivo pretendido para este capítulo foi o de apresentar o desenvolvimento da

Sociologia enquanto ciência e sua diferenciação das demais ciências humanas (em

especial, da psicologia) até o momento em que surge a contribuição weberiana no

pensamento sociológico. Nesse sentido, a inclusão de Durkheim, se justifica não em

função de uma possível influência no pensamento weberiano, mas pelo fato do sociólogo

francês personificar uma das vozes mais presentes no estabelecimento da Sociologia, em

oposição direta à Psicologia, como a ciência responsável pelo estudo e compreensão da

condição do homem moderno em sua vida em sociedade.

Durkheim, no processo de estabelecer e consolidar a Sociologia, foi um dos

principais responsáveis por separar e isolar, no campo das ciências, o indivíduo da

sociedade, a esfera pessoal e psicológica da vida humana de sua esfera social. E com isso,

influenciou uma discussão no campo das ciências sociais que teve participação

fundamental tanto de Max Weber quanto de Sigmund Freud – muito embora não seja

possível afirmar que tal participação tenha se dado sob influência direta de Durkheim.

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II. A Psicologia e a exploração da mente humana

De modo semelhante ao da Sociologia, a Psicologia pode também ser considerada

uma ciência jovem se comparada aos demais ramos do conhecimento humano. O próprio

termo “psicologia”, que, muito embora tenha sido utilizado pela primeira vez cerca de

300 antes do termo “sociologia”29, somente foi associado a uma ciência dedicada ao

estudo da mente humana e do seu funcionamento, de fato, apenas no século XIX. Como

bem descreveu, em 1910, Hermann Ebbinghaus - um dos pioneiros dessa nascente ciência

– a psicologia é uma ciência com “um longo passado, mas uma curta história”

(HOTHERSALL, 2006, p. 1).

De fato, muito embora estudos e experimentos psicológicos e psicofísicos tenham

sido realizados no começo do século XIX, foi somente a partir de 1879, com a criação do

primeiro laboratório de psicologia por Wilhelm Wundt, que a psicologia começou a ser

aceita como uma ciência por si. Apesar de o tema da psicologia ter sido amplamente

explorado pela intelectualidade do século XIX, até então, tal exploração sempre fora feita

sob um ponto de vista médico ou filosófico30. Mas, a partir da iniciativa de Wundt, a

29 A paternidade do termo “psicologia” pode ser considerada motivo de disputa. Isso porque em diversas fontes as opiniões se dividem entre três autores do século XVI: Rudolf Göckel, Otto Casmann, e Filip Melanchton. Göckel (1547-1628), também conhecido como Goclenius, publicou um tratado em 1590 intitulado “ψυχολογια hoc est de hominis perfectione, anima, ortu” e é reconhecido por muitos como o primeiro a conter a palavra “psicologia” na sua forma grega e escrito no alfabeto grego (“ψυχολογια”). No entanto, seja por desconhecimento da obra de Göckel ou por descuido na comparação das datas de publicação, muitos pesquisadores conferem a Otto Casmann (1562-1607) e sua obra “Psychologia anthropologica”, publicada em 1594, a primazia do uso do termo. Filip Melanchton, por sua vez, é citado como tendo utilizado o termo “psicologia” antes ainda que Göckel e Casmann em suas palestras (estima-se, por volta de 1530), mas nenhuma prova escrita até o momento foi apresentada por quem defende essa tese. Recentemente, no entanto, uma nova prova sobre a paternidade do termo psicologia foi redescoberta. Ainda que conhecido há anos, uma lista das obras do poeta humanista Marko Marulic (1450-1524) apresenta o tratado em latim intitulado Psichiologia de ratione animae humanae como a obra que, embora ainda permaneça perdida, inaugurou o uso do termo “psicologia” para denotar o estudo da mente humana (dada a data da morte de Marulic, tal referência precede tanto o uso feito por Göckel, Casmann e Melanchton). De qualquer modo, é seguro afirmar que o primeiro uso do termo “psicologia” foi feito no século XVI. Ver http://psychclassics.yorku.ca/Krstic/marulic.htm 30 Tal foram os casos da criação da primeira cátedra de psicologia, criada em 1860 na Universidade de Bern, na Suíça; da primeira revista acadêmica especializada em psicologia, Les Annales Médico-Psychologiques, fundada na França em 1843 e da primeira revista filosófica voltada para a psicologia, Mind, fundada em 1876 na Inglaterra; ou mesmo das publicações Psychologia Empirica (1738), de Christian von Wolff, Psychologie als Wissenschaft: Neu Gegründet auf Erfahrung, Metaphysik, und Mathematik (1824), de F. Herbart, e La Psicologia come scienza positiva (1870), de Roberto Ardigo.

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ciência da psicologia deixou de ser um ramo da filosofia ou da medicina, mas uma ponte

entre as duas.

Se, na medicina, cabia à fisiologia a tarefa de descrever conformação física do

cérebro e do sistema nervoso, bem como explicar o funcionamento dos mesmos, na

psicologia, o foco estava no estudo dos processos mentais que ocorrem dentro do cérebro,

e em como tais processos afetam o pensamento, o discurso e o comportamento humano.

A psicologia de Wundt separava-se da filosofia ao propor um estudo experimental do

funcionamento da mente humana e, ao fazê-lo, rejeitava a fundação da psicologia em

preceitos metafísicos como alma ou Deus. Para Wundt, o papel da filosofia seria o de

unificar todo o conhecimento obtido das diversas ciências (inclusive a psicologia) em um

sistema consistente.

O movimento iniciado por Wundt atraiu mentes do mundo inteiro e os primeiros

discípulos foram, a partir de então, os responsáveis por espalhar a nova psicologia

rapidamente pelo resto do mundo. Na década seguinte à criação do laboratório de Leipzig,

diversos outros laboratórios31 foram criados em diversas partes do mundo, assim como

revistas32 e sociedades acadêmicas33. No entanto, o começo da curiosidade humana

acerca do funcionamento da mente data de muito antes.

É possível conjecturar que tão logo o homem reconheceu sua própria consciência

e se identificou como ser pensante, a pergunta que surgiu quase que de imediato

provavelmente teria sido: como isso é possível? Necessariamente, tão logo o homem

notou que o processo mental era algo próprio da sua espécie, o homem naturalmente se

31 Seguindo a criação do laboratório de psicologia experimental criado em 1879 na Universidade de Leipzig, em 1883, G. Stanley Hall fundou o primeiro laboratório de psicologia experimental norte-americano na Universidade Johns Hopkins; em 1885, na Rússia, fundou-se o primeiro laboratório de psicologia experimental, seguido pela Dinamarca (1886), França (1889), Canadá (1890), Bélgica (1892), Holanda (1892), Suíça (1892) e Áustria (1894). 32 Além do primeiro laboratório de psicologia experimental, Wundt também fundou a primeira revista acadêmica de psicologia experimental, o Philosophische Studien (1882) que, juntamente com as já citadas Les Annales Médico-Psychologiques (1843) e Mind (1876), constituem os primeiros periódicos acadêmicos a explorar a psicologia cientificamente. Nos anos seguintes, diversas outras publicações surgiram, entre elas, a American Society for Psychical Research (EUA, 1887) e a Problemas de Filosofia e Psicologia (Russia, 1889), 33 Dentre as primeiras sociedades acadêmicas voltada à psicologia, destacam-se a inglesa Society for Psychical Research fundada, em 1882, e a francesa La Société de Psychologie Physiologique, fundada em 1885, seguidas pela Sociedade Psicológica de Moscou (1886), pela American Psychological Association (1892), pela British Psychological Society (1901), pela Société Francaise de Psychologie (1901), pela Deutsche Gesellschaft fur Experimentelle Psychologie (1904) e pela Associação Psicanalítica Internacional (1910).

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questionou sobre a sua atividade mental. O que seriam as imagens que surgem em sua

mente? Por que elas permanecem com ele, mesmo enquanto dorme? E ainda, qual o

significado de tudo isso?

Entre as primeiras tentativas registradas de explorar o universo da mente humana,

particularmente entre os assírios, egípcios e gregos, a mente pertencia à esfera do divino.

Os produtos da mente humana, entre eles ideias e sonhos, eram em sua maioria associados

a deuses e divindades. As ideias eram colocadas na mente humana pelo desejo dos deuses,

e os sonhos eram comumente interpretados como mensagens dos deuses com tons

premonitórios.

Nesse período, os males da mente (e a medicina, de modo geral) eram associados

aos desígnios divinos e, por isso, seus segredos estavam “nas mãos dos sacerdotes que

residiam nos templos e que eram considerados detentores dos segredos de Asclépio ou

Esculápio, o deus grego da medicina” (HOTHERSALL, 2006, p. 14).

Foi por volta do ano 500 a.C., que Alcmaeon, um médico da cidade de Cróton,

iniciou o processo de substituição da medicina sacerdotal por uma medicina racional e

não-mística baseada na observação objetiva. Para ele, a percepção era a fonte de

conhecimento do homem, e não os deuses. Na sua concepção, os órgãos sensoriais

enviavam para o cérebro as percepções obtidas do mundo exterior, onde estas seriam

interpretadas e transformadas em ideias.

Com Alcmaeon, a mente humana deixou de ser uma questão relegada aos

sacerdotes e passou a ser objeto de estudo da medicina, pois se a o pensamento ocorre na

mente dos homens, então a saúde mental seria algo a ser cultivada e as doenças mentais

poderiam ser tratadas. Ainda que não fosse amplamente aceita, a resposta fisiológica para

as enfermidades mentais gradualmente agregava apoiadores; dentre os mais ilustres

estava o Pai da Medicina, Hipócrates (460-377 a.C.).

Hipócrates defendia que todas as doenças (inclusive as mentais) possuíam causas

naturais, que eram frutos de um desequilíbrio dos elementos do corpo. Na concepção de

Hipócrates (em parte emprestada de Empédocles), o universo era formado por quatro

elementos básicos: o ar, a terra, o fogo e a água. Tais elementos também seriam os

componentes dos quatro humores básicos do corpo humano: a bílis negra (terra), a bílis

amarela (ar), o sangue (fogo) e a fleuma (água). Tal teoria, muito embora comprovada

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incorreta pela medicina moderna, perdurou por dois mil anos com médicos atribuindo

doenças e moléstias a desequilíbrios nesses humores, e prescrevendo a retirada do excesso

de um determinado humor (como o sangue) ou a ingestão de remédios para complementar

um humor em falta.

Em um indivíduo saudável, os humores estariam em equilíbrio, mas se ocorresse

de um ou mais humores excedessem os demais, neste caso, seriam produzidas não só

doenças no indivíduo, mas também mudanças no temperamento e na personalidade. Isso

porque a saúde da mente, entendida como parte do corpo humano, seria, na visão de

Hipócrates, regida pelo equilíbrio ou desequilíbrio dos humores.

Muito embora esse esboço inicial de uma ciência objetiva da mente tenha surgido

atrelado à medicina, existia também, na Grécia Antiga, um esforço de compreender o

funcionamento da mente humana através de uma abordagem filosófica. Sócrates, um dos

mais importantes filósofos desse período a explorar esse tema, foi também o primeiro a

sugerir que a alma, ou psyché, do homem consistiria na sua consciência pensante e

operante, bem como, na sua personalidade intelectual e moral, separando,

definitivamente, a alma do corpo. Nesse sentido, a principal consequência da conclusão

de Sócrates, acerca da alma e do conhecimento, seria responsável por embasar o dualismo

tanto de Platão quanto do cristianismo: que o mundo deve ser dividido entre mente e

matéria, realidade e aparência, ideias e objetos, e razão e percepção sensorial.

Seguindo os passos de Sócrates, Platão (428/427-348/347 a.C.) funda sua

academia com o intuito de educar não através da apresentação de fatos, mas conduzindo

e encorajando seus alunos a ir além da superfície das coisas. Para tanto, a percepção

sensorial, afirmava Platão, se mostra pouco confiável, haja visto, que a própria

consciência pode ser colocada em dúvida. Conclui, portanto, em oposição direta à

Protágoras, que o homem não pode ser a medida de todas as coisas, sua percepção

sensorial não pode ser o critério para se chegar à verdade.

Na concepção platônica, o verdadeiro conhecimento consiste em conceitos e

abstrações obtidos pelo raciocínio e as imagens obtidas pelos sentidos, como a visão, não

passariam de sombras, de ilusões. Platão defende que os sentidos fornecem aos homens

apenas uma representação da realidade, e que a verdade sobre todas as coisas se encontra

no mundo das ideias e não no mundo sensível. Apenas através da filosofia, Platão

recomenda, pode a alma ser libertada, pois a liberação da alma se dá através da razão,

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dado que é através do raciocínio que o homem consegue atingir o mundo das ideias, e

com isso enxergar a essência de todas as coisas.

No pensamento de Platão, a sua Teoria das Ideias (ou Formas), estabelece que a

forma ideal (perfeita e única) de todas as coisas só pode ser concebida intelectualmente e

cada objeto material e sensível do mundo físico nada mais é do que uma cópia imperfeita.

Nesse sentido, as ideias ou formas são mais “reais” que os objetos que percebemos, pois

são eternos e imutáveis, enquanto os objetos não. Um objeto tido como belo pode deixar

de sê-lo ou então não ser considerado belo por todos, mas o conceito de beleza em si

sempre existirá sem nunca mudar. O conceito de beleza, como todas as demais formas,

no entanto, só pode ser conhecido através da razão, pois por mais que a visão permita

sentir o belo e o feio, ela não reconhece ambos como opostos. Tal julgamento, afirma

Platão, é feito na alma.

Deste modo, o conhecimento verdadeiro estaria disponível a todos e, portanto,

bastaria fazer uso da razão para contemplar a verdade eterna e imutável presente na alma,

em oposição às ilusões efêmeras produzidas pelos sentidos. Nesse sentido, Platão

apresenta a superioridade das ideias em oposição aos objetos materiais, expandindo a

dualidade de Sócrates entre mente e matéria. Para Platão a verdade reside na alma e a

mentira reside nos sentidos; ideias são reais e eternas, enquanto as coisas materiais e as

aparências são ilusórias e transientes; a alma é pura e incorruptível, o corpo corrompe e é

corrompido.

Com relação à continuidade dos avanços alcançados nos seus estudos da alma

humana, pode-se dizer que Platão encontrou seu herdeiro na figura de seu discípulo mais

famoso: Aristóteles. No entanto, a postura de Platão com relação à falta de confiabilidade

das percepções sensoriais para a produção de conhecimento consiste no principal ponto

de conflito entre as epistemologias dos dois pensadores. Sem abrir mão da lógica e do

pensamento dedutivo para a produção de conhecimento, Aristóteles valorizava também a

observação atenta e o raciocínio indutivo. Se para Platão as percepções se mostravam

ilusórias e pouco confiáveis, Aristóteles as considerava vitais.

Embora sem poder contar com o poder da observação para explicar sua teoria,

Aristóteles propôs a noção de que os seres humanos não percebem os objetos, mas sim

suas qualidades. As sensações percebidas são, então, transmitidas pelo sangue para a

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mente34, na qual as similaridades e diferenças dos objetos são reconhecidas e utilizadas

para a formação de um “universal”, isto é, um conceito que signifique não alguma coisa

específica, mas um princípio geral.

Através da observação atenta do mundo real e dos processos cognitivos dos

homens, Aristóteles concluiu que o mundo não funcionava de maneira tão perfeita como

a proposta pelo método dedutivo de Sócrates e Platão. O que o levou a questionar se tais

propostas seriam, de fato, inteiramente verdadeiras. Suas conclusões, no que diz respeito

ao funcionamento da mente, o levaram, consequentemente, a se contrapor às ideias de

seus antigos mestres.

Diferentemente de Platão, Aristóteles se opõe à teoria de que as ideias existem

eternamente separadas do mundo material e que objetos percebidos não passariam de

ilusões. Para ele, ideias abstratas surgem da experiência sensitiva e seriam apenas

atributos aferidos a objetos específicos. Portanto, o conhecimento não seria igual e

disponível para todos, mas condicionados à experiência do sujeito. Entretanto, por mais

que Aristóteles se oponha ao inatismo do mundo das ideias platônico e defenda uma

abordagem realista do conhecimento e do funcionamento da mente, reconhece a condição

imaterial das ideias, o que o leva a concluir que a origem dos pensamentos e das ideias

estaria na alma, entendida como o lugar onde ideias e pensamentos se formam, e não um

lugar onde elas existem antes da alma habitar o corpo.

A concepção aristotélica de alma ou psyché difere tanto da concepção platônica

como da pré-socrática, oferecendo, possivelmente, uma síntese mediadora entre ambas,

segundo a qual a alma não é nem um princípio físico, como defendiam os pré-socráticos,

e tampouco é, como afirma Platão, total e irremediavelmente separada do corpo - visto

como prisão e lugar de expiação da alma). Contra o dualismo da alma platônico,

Aristóteles defende a unidade da alma e do corpo, sendo que a alma constituiria o

princípio que dá vida aos seres animados - estes, sem ela, não poderiam existir.

Ainda assim, apesar de soar improvável, durante todo o intervalo de tempo

compreendendo o período helenístico, o Império Romano, o surgimento do feudalismo

34 Para Aristóteles, a mente estava localizada no coração e não no cérebro, dado que, a partir de observações, concluiu que, regularmente, um ferimento na cabeça não seria fatal, ao passo que ferimentos no coração eram inevitavelmente fatais. Para Aristóteles, a vida sem a mente não seria possível e, portanto, um ferimento na mente seria necessariamente fatal.

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das cinzas do poderio romano e o Renascimento, nenhum pensador tenha contribuído de

forma significativa para o desenvolvimento da psicologia, a fato permanece que todo

questionamento dos pensadores desse período se limitou a retrabalhar o que já havia sido

feito por seus antecessores gregos. Pouco foi proposto de inovativo e quase nenhuma

grande ideia foi explorada de modo a avançar significativamente a psicologia enquanto

ciência.

Durante o período em que o Império Romano alcançou seu apogeu até o início do

declínio de hegemonia romana (entre os séculos I e IV), o cristianismo surgiu e cresceu

de forma vertiginosa, tornando-se a religião dominante no Império. Como resultado, o

mundo ocidental testemunhou a substituição gradual dos filósofos pagãos como líderes

intelectuais por padres da religião cristã. No entanto, o que se observou não foi uma

substituição total das ideias pagãs, mas, em alguns casos, uma adaptação dessas ideias às

crenças cristãs. Deste modo, muito da filosofia grega respirava nas apologias patrísticas,

ou dos Pais da Igreja - os primeiros padres que, nos três primeiros séculos a era cristã,

defenderam o cristianismo a partir de uma base teológica-filosófica.

Nesse contexto, inicialmente a filosofia platônica foi a melhor aceita e adaptada

pela teologia cristã. De fato, muito embora o mundo das ideias de Platão e a concepção

de uma alma com conhecimento inato tenham sido vigorosamente rechaçados, a

característica transcendente da alma platônica bem como a sua superioridade em relação

ao mundo sensível e corpóreo foram elementos da filosofia platônica amplamente

adaptados e incorporados pela teologia cristã.

Dos Pais da Igreja que incorporaram em sua teologia elementos da filosofia pagã,

Agostinho de Hipona (354-430) foi provavelmente seu maior e mais bem-sucedido

representante. Referindo-se a Platão como “semideus”, Agostinho incorpora a teoria do

conhecimento platônica ao assumir todo conhecimento derivado dos sentidos como

incertos e pouco confiáveis. Segundo ele, não se pode afirmar com certeza que a

percepção humana represente fielmente a realidade; apenas experiência da

autoconsciência é certa acima de qualquer questão, pois o pensamento e a dúvida são

prova irrefutável da própria existência.

Tentando conciliar a razão com as doutrinas da fé cristã, em Confissões,

Agostinho defende que através da razão é possível ultrapassar os limites do mundo

sensorial e adquirir conceitos abstratos (como números, por exemplo), mas o mais alto

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nível de conhecimento só pode ser alcançado através da contemplação introspectiva de

Deus.

A mente do homem, define, é equivalente à sua alma e, por isso, é imaterial e

indestrutível e, portanto, deixa o corpo após a sua morte, tornando-se imortal. Segundo

ele, a estrutura de tal alma pode ser dividida em três funções (ainda que a substância da

alma seja única): memória, razão e vontade. Embora Agostinho discorra sobre todas, é na

vontade que ele encontra a solução para o problema teológico da criação do mal.

Partindo do pressuposto de que Deus é bom, onipotente, onipresente e onisciente,

Agostinho defende que Deus não poderia ter criado o mal intencionalmente ou

inadvertidamente e que, portanto, o mal surge na verdade da ausência da bondade nas

ações do homem. Pois, dotado de livre-arbítrio, o homem deve escolher fazer o bem para

ser bom. No entanto, a vontade humana pode falhar em desejar fazer o bem, ou mesmo

desejar não o fazer; nesses casos, surge o mal.

O desejo de Agostinho de compreender a alma humana e conciliar a fé religiosa,

que o guiava, com a razão, que tanto prezava, reviveu a centelha de um pensamento

psicológico há muito adormecido. Apesar de constrito pelos limites da ortodoxia cristã,

Agostinho trouxe de volta à vida as conjecturas perdidas dos filósofos gregos e seu

esforço marcou e ainda marca o modo como a alma e a mente humana são enxergadas

pelos homens.

A influência agostiniana no pensamento psicológico foi tamanha que, em boa

parte da Idade Média, a maioria do que foi dito remetia aos seus escritos. No entanto, tais

referências foram poucas e esparsas. O ponto de virada se deu, ironicamente, com as

cruzadas cristãs ao Oriente Médio.

A troca cultural entre os europeus invasores e os muçulmanos, que, ao contrário

do que ocorrera na Europa, não haviam deixado de lado a busca pelo conhecimento,

resultou no retorno de livros e ideias há muito perdidos no Ocidente. O enriquecimento,

tanto cultural quanto econômico (impulsionado pelas novas rotas de comércio)

impulsionou o crescimento das cidades e o surgimento das primeiras universidades

europeias em Bolonha e Paris. A filosofia grega havia sido redescoberta e, com isso, um

novo interesse na psicologia foi despertado. Mas, se ao tempo da filosofia patrística a

referência do pensamento grego foi o Platão dos textos de Agostinho, entre os

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escolásticos35 a clara referência se tornara Aristóteles. Dentre os pensadores aristotélicos

desse período, nenhum foi maior do que Tomás de Aquino (1225-1274). Sua filosofia,

que buscava conciliar o aristotelismo com a cristandade usando lógica e razão para provar

a verdade da doutrina cristã, se tornou a filosofia oficial da Igreja Católica e assim

permanece até os dias de hoje.

Seu pensamento psicológico, embora retomasse os questionamentos que há muito

haviam sido silenciados, baseava-se em grande parte na psicologia de Aristóteles e, em

menor parte, em Galeno e Agostinho. Seu grande mérito foi devolver o conhecimento

psicológico ao mundo sensível e real, de onde havia sido retirada pela filosofia patrística.

No entanto, seu método rígido e sua devoção paralisaram qualquer desenvolvimento que

pudesse ser feito para transformar a psicologia em uma ciência especulativa e

argumentativa, limitando-a a tratar primordialmente das questões chave da fé cristã, como

o dualismo da alma e do corpo.

Ao propor divisão do intelecto humano em uma parte possível e outra agente,

Tomás de Aquino foi bem-sucedido em amalgamar a psicologia naturalística de

Aristóteles (que não admitia a existência de uma vida após a morte) com a doutrina cristã.

Isso porque, ao admitir a mente humana como uma tábua vazia (e, consequentemente,

eliminar a influência platônica de uma epistemologia cristã), Tomás de Aquino assume o

intelecto (ou no caso, parte dele) como perecível e que só pode ser construído

passivamente pela experiência sensorial e pela razão. No entanto, tal epistemologia não

se mostra suficiente para lidar com os mistérios da cristandade, tornando-se necessária,

na sua visão, um outro tipo de intelecto, o intelecto agente, que obtém suas verdades

diretamente do intelecto divino, ou seja, através da fé.

Com isso, no entanto, apesar do esforço de Tomás de Aquino em naturalizar a

psicologia, o resultado obtido foi o de legitimar o elemento supernatural na psique

humana e, nos séculos que se seguiram, o desenvolvimento do conhecimento psicológico

foi pouco incentivado entre os clérigos. Naturalmente, uma série de eventos desastrosos

para a sociedade europeias, como guerras civis na França e Inglaterra, a Guerra dos Cem

35 Assim ficaram conhecidos os pensadores do século XIII que utilizavam a razão crítica e a lógica seguindo uma metodologia dialética para examinar à exaustão as principais questões da fé cristã e com isso ampliar seu conhecimento e resolver as contradições da religião cristã.

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Anos e a Peste Negra, por exemplo, levaram muitos pensadores para longe de estudos

científicos e de volta para o misticismo.

Foi somente séculos mais tarde, com o Renascimento, que a rigidez escolástica

com relação às ciências, inclusive a psicologia, seria questionada. Embora muitas das

sementes do Renascimento estivessem em desenvolvimento nos séculos XIII e XIV

(como por exemplo, o surgimento e desenvolvimento de diversas universidades), foi

somente nos séculos XV e XVI que o mundo presenciou um verdadeiro renascimento da

ciência, do ensino, da arte e da literatura. Entre os pontos chaves para o desabrochar dessa

nova visão de mundo humanista, como por exemplo a expansão da classe burguesa e do

mercantilismo, deve-se destacar o aperfeiçoamento da imprensa por Johannes Gutenberg,

a reconquista da península Ibérica e a queda do Império Bizantino.

Em meados do século XV36, Gutenberg introduziu na sociedade europeia, através

da impressão de livros em grande quantidade, a possibilidade de disseminar

conhecimento de maneira rápida e eficiente, mas, acima de tudo, de maneira independente

da igreja. Longe das universidades dominadas por clérigos, a redescoberta dos pensadores

antigos foi um passo fundamental para liberar o pensamento renascentista do seu

confinamento medieval.

Para que isso ocorresse, no entanto, foi providencial a queda do Império Bizantino

em 1453, quando diversos intelectuais emigraram para a península Itálica e outras partes

da Europa, carregando consigo um grande volume de obras filosóficas greco-romanas

tidas, até então, como perdidas, mas que haviam sido preservadas pelos bizantinos. Essa

redescoberta dos textos clássicos originais, assim como de novas traduções, estimularam

como nunca a releitura dos clássicos.

Também fundamental foi a reconquista da península Ibérica dos mouros pelos

reinos cristãos. Com isso, um grande acervo de textos de Aristóteles, Euclides, Ptolomeu

e Plotino, preservados em traduções árabes e desconhecidos na Europa, além de obras

muçulmanas de Avicena, Geber e Averróis, foram reapresentados (ou apresentados, no

36 A consagrada Bíblia de Gutenberg, o primeiro livro impresso no Ocidente pelo alemão, foi finalizada em 1455

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caso dos pensadores muçulmanos) aos humanistas renascentistas, impulsionando um

avanço sem igual na filosofia, na matemática e em diversas outra ciências.

O interesse pela psicologia também foi revivido nesse período, mas sem avanços

imediatos. Muito foi escrito, mas, em geral, a maioria consistia em comentários sobre os

escritos psicológicos de Aristóteles, Galeno, Plotino, Platão e outros pensadores. Muito

embora, indiretamente, Maquiavel tenha contribuído para gerar interesse pelo

funcionamento da mente humana através de comentários psicológicos profundos em seus

textos, o fato permanece que ele, e muito outros pensadores do Renascimento, não

conseguiram avançar a ciência da psicologia de sistemática. Pelo menos não tanto quanto,

por exemplo, nesse mesmo período, as explorações sobre a anatomia humana de

renascentistas como Leonardo da Vinci indiretamente contribuíram para o avanço da

medicina.

Isso, em grande parte, porque, apesar de todo o avanço científico-tecnológico e do

enfraquecimento da Igreja Católica após a Reforma Protestante, a sociedade renascentista

ainda era fortemente influenciada pela Igreja. Ainda que questionamentos com relação às

leis da natureza fossem tolerados, tal tolerância não se estendia a questionamentos acerca

da natureza do homem, da sua alma ou da sua relação com o divino. Qualquer tentativa

de desenvolver uma ciência que se propusesse a explorar a mente humana naquela época

e, consequentemente, indagar tais questões, deveria ser extremamente cuidadosa para não

compartilhar o destino da astronomia.

A astronomia renascentista, apesar dos grandes avanços de Copérnico (1473-

1543) e Galileu (1564-1642), ficou marcada, por um longo período inicial, pela

perseguição e punição de seus grandes pensadores em função das suas descobertas.

Copérnico foi o primeiro a contrariar o modelo geocêntrico dos movimentos celestes

defendido pela Igreja. Ainda assim, temendo a represália que poderia sofrer ao propor seu

modelo heliocêntrico, adiou a publicação de sua descoberta em 9 anos.

Galileu foi além e, após a invenção do telescópio por Hans Lippershey, em 1606,

construiu seu próprio telescópio para confirmar que Copérnico estava certo, que era a

Terra que girava em torno do sol, e não o contrário. Suas conclusões foram publicadas

em 1610 e a obra entrou para a temida lista de obras consideradas heréticas pela

Inquisição. Ainda assim, Galileu não fora julgado, pelo menos até a publicação de

Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo, em 1632, pelo qual foi julgado e

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condenado por heresia. Confrontado com a possibilidade de tortura, Galileu capitulou e

abjurou suas crenças, não sem antes murmurar, segundo a lenda, “Eppur si muove”

(contudo, se move) em referência ao movimento da Terra.

Apesar da súplica37 de Galileu por liberdade de investigação científica deixada na

margem da sua própria cópia de Diálogo, o fantasma do seu julgamento e condenação se

tornou um significativo empecilho no desenvolvimento do conhecimento cientifico,

sobretudo aqueles que se contrapunham ao que era defendido pela Igreja, como muitos

dos temas investigados pela psicologia.

O próprio René Descartes (1596-1650), apesar da sua enorme contribuição para o

desenvolvimento da psicologia moderna, foi vítima do seu tempo. Muito embora católico

praticante, as dúvidas presentes em seus escritos (inclusive da existência de Deus) foram

suficientes para colocar suas obras no Index Librorum Prohibitorum, o índice de livros

proibidos da Igreja. Acusado de heresia, porém nunca condenado, Descartes desenvolveu

seu pensamento ao longo dos anos que precederam e imediatamente seguiram ao

julgamento de Galileu, motivando-o a perseguir com extrema cautela os temas que

julgava sensíveis38. Dentre eles, os temas pertinentes a sua nascente psicologia.

Ainda assim, o século XVII apresentou condições únicas para o desenvolvimento

inicial da psicologia. Com Idade Moderna e o declínio do modo de vida feudal,

desenvolve-se na cultura ocidental um novo conceito de subjetividade que poderia ser

descrito como

... uma forma especial de cuidado de si, estabelecido pelo tema do conhecimento, que será crucial para as psicologias, desde o século XVIII. Se a experiência de constituição de uma interioridade na Antiguidade cristã visa distinguir a presença do bem e do mal em nós, a partir do século XVII o exame da interioridade tem como meta o acesso à verdade e a fuga das ilusões. (JACÓ-VILELA, 2006, p. 19)

Nesse período René Descartes, que pode ser creditado como o primeiro a criar

uma psicologia depois de Aristóteles, foi um dos pensadores-chave a desenvolver esse

novo conceito de subjetividade e a moldar a modernidade ocidental. Sua psicologia

depende em larga escala da filosofia criada por ele: a filosofia racionalista; um sistema

37 Ver HOTHERSALL, 2006, p. 41 38 Diz que O Mundo ou Tratado da Luz, obra escrita por Descartes em 1633, somente foi publicado após a sua morte porque quando estava prestes a entregar à editora, Descartes ficou sabendo da condenação de Galileu. Como na obra, também era defendida a teoria de que é a Terra que se move ao redor do Sol, Descartes optou por não publicá-la. Ver HUNT, 2007, p. 68.

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filosófico fundado no pensamento lógico e científico, segundo o qual, de acordo com o

filósofo e matemático francês, certezas filosóficas poderiam ser obtidas através do uso

rigoroso da razão, independentemente do que fora dito por demais pensadores até então.

Em seu Discurso do Método, Descartes descreve o caminho que deveria trilhar na sua

busca pela verdade:

… rejeitar como absolutamente falso tudo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se depois disso não restaria em minha crença alguma coisa que fosse inteiramente indubitável. (DESCARTES, 2009, p. 57)

Levando sua abordagem ao extremo, Descartes conclui que deve-se duvidar dos

sentidos, pois estes podem ser enganosos, deve-se duvidar de todos os raciocínios e ideias

anteriores assumidos como verdade, pois todo homem, por mais sábio que seja, está

sujeito a cometer erros e mesmo os próprios pensamentos devem ser colocados em

dúvida, pois de modo semelhante tais pensamentos também poderiam ser produzidos

durante o sono como ilusões presentes em sonhos. Deste modo, ao duvidar de tudo e de

todos, até mesmo da própria consciência do real, Descartes logicamente concluiu que,

diante da impossibilidade de distinguir o falso do verdadeiro, a única certeza que poderia

ter era da própria existência, ou seja, que se ideias e pensamentos estavam sendo

produzidas, então, necessariamente, deveria existir um “eu” pensante. Nas suas palavras:

Mas logo depois atentei que, enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade – penso, logo existo [cogito, ergo sum] – era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que buscava. (DESCARTES, 2009, p. 58)

Em Descartes e a Invenção do Sujeito, Joceval Andrade Bitencourt defende que

“Descartes rompe com o pensamento tradicional – Platão, Aristóteles, a Patrística, a

Escolástica, o ceticismo vigente até o século XVII, a cultura e a tradição -, indo em busca

de uma nova forma de fazer filosofia, fundada unicamente na ordem racional do sujeito,

tendo na razão o lugar originário do conhecimento verdadeiro sobre todas as coisas”

(BITENCOURT, 2017, p. 11). Com isso, seu pensamento se mostra “contrário à

divinização do mundo, que tira do sujeito a autonomia no processo de construção da

verdade e o submete às estruturas de uma verdade que dele independe e que a ele

antecede” (BITENCOURT, 2017, p. 29).

Ao fundar e fundamentar a partir do sujeito a verdade no processo de filosofar,

Descartes cria o conceito de subjetividade, que até então encontrava-se ausente do

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processo de filosofar39 e, de certo modo, redefine a mente como sendo a essência do

homem, estabelecendo através do uso da sua própria razão (em outras palavras, ignorando

o que já fora dito por pensadores que o antecederam), o dualismo entre alma e corpo. Em

Discurso do Método, afirma

… reconheci que eu era uma substância, cuja única essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não necessita de nenhum lugar, nem depende de coisa material alguma. De sorte que este eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele, e, mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é. (DESCARTES, 2009, p. 60)

Na concepção cartesiana, alma e corpo são componentes diversos do que constitui

um ser humano. Tal separação se mostra evidente, para ele, puramente por uma razão

simples e lógica: a alma é imaterial e o corpo não. No entanto, diferentemente dos

platonistas, Descartes não concebe um mundo ideal, onde a alma do homem reside e de

onde obtém todo o conhecimento; para ele, objetos materiais não são como sombras

projetadas na caverna, não são ilusões, mas tão reais quanto a própria mente.

Em conciliação com sua própria fé, defende que “não sendo Deus enganador, é

muito manifesto que ele não me envia por si mesmo imediatamente essas ideias,

tampouco por intermédio de uma criatura, na qual a realidade delas não seja contida

formalmente, mas apenas eminentemente” (DESCARTES, 2011, p. 120), ao mesmo

tempo em que admite que “não obstante a soberana bondade de Deus, a natureza do

homem, na medida em que ele é composto de corpo e alma, por vezes possa ser deficiente

e enganadora” (DESCARTES, 2011, p. 32). Como bem resume Arthur Arruda Leal

Ferreira, em seu capítulo inicial O múltiplo surgimento da Psicologia para o livro História

da psicologia: rumos e percursos,

Para Descartes, no interior do espírito é possível estabelecer uma distinção entre uma razão de origem divina enquanto cerne de toda inteligibilidade e consciência, onde o eu faz a sua morada, e uma região fronteiriça desse espírito, situada na interseção com o corpo: as paixões. Se na primeira região encontramos a fonte do conhecimento, na

39 Em Descartes e a Invenção do Sujeito, defende-se que, anteriormente a Descartes, “todo filosofar se inicia tendo uma verdade já dada como pressuposta, a partir da qual se ordena todo o processo do filosofar. Daí a necessidade de fazermos uma breve visita aos principais representantes do pensamento antigo e medieval, para mostrar que, neles, em suas mais diversas perspectivas - e interesses -, a verdade antecede ao sujeito e o filosofar passa a ser o processo pelo qual o homem, em sua racionalidade, identifica, descobre, desvela, traz à razão a verdade, a essência, a causa originária da qual cada coisa é constituída. Essa causa originária pode ser Natureza, Ideia, Substância ou Deus. A ruptura com essa antiga forma de filosofar se inicia com o ceticismo, mas principalmente com o nascimento da ciência moderna, e realiza-se plenamente na filosofia cartesiana. Em Descartes, pela primeira vez, a verdade passa a ser uma construção originária do sujeito. Como consequência, a verdade sem sujeito é superada pelo sujeito da verdade” (BITENCOURT, 2017, p. 8)

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segunda encontra-se a raiz de todos os nossos equívocos, de todas as nossas ilusões produzidas por nossos sentidos. Nesse mesmo movimento constitui-se, portanto, uma cisão fundamental entre alma e corpo (este, a causa de nossos enganos), distinção que, ao contrário do que se pensa, não remonta a uma cristandade medieval. Nesse momento, espírito e corpo são compreendidos como portando duas substâncias de naturezas diversas: a extensa (o corpo) e a inextensa (a alma). (JACÓ-VILELA, 2006, p. 20)

Consequentemente, Descartes se depara com o mesmo problema enfrentado por

defensores anteriores do dualismo alma versus corpo: como a alma, que é imaterial,

interage com o corpo que é material? Como uma ideia que surge na mente converte-se

em ação no mundo material? E como uma sensação percebida pelo corpo, pode resultar

em uma emoção na mente?

Para Descartes, o corpo humano nada mais era do que uma espécie de máquina

extremamente complexa, um sistema físico autorregulado governado por leis e princípios

mecânicos que muitas vezes operam automaticamente e independentemente da mente - a

digestão de alimentos ou o impulso por respirar não necessitam de uma ideia ou vontade

anterior para ocorrerem. Segundo ele, tal sistema seria de natureza mecânica-hidráulica e

funcionaria a partir do cérebro, onde o fluido no qual estava imerso (o fluido conhecido

hoje como líquido cefalorraquidiano), chamado por Descartes de “espíritos animais”,

aquecido e pressurizado pelo coração, fluiria do cérebro, através dos nervos, para os

músculos, gerando um inchaço que resultaria em movimento, e para os órgão sensoriais,

onde daria origem às sensações.

Descartes atribuía a esse sistema mecânico-hidráulico muitas das funções do

corpo como a digestão, a circulação do sangue e a respiração, mas também algumas

funções psicológicas como as impressões sensoriais, os apetites e paixões e até mesmo a

memória, que nada mais seriam do que um “rastro” deixado no cérebro pelo fluxo dos

espíritos. Nesse contexto, diferentemente do defendido por Tomás de Aquino (além de

Aristóteles), a alma seria puramente racional (e não possuiria uma função sensitiva ou

uma função vegetativa), seria o local onde funções mentais elevadas como o raciocínio,

a consciência e a vontade ocorrem.

Apesar de estruturas completamente distintas, Descartes reconhece o controle da

mente sobre o corpo e, portanto, conclui que, necessariamente, deve haver uma interação

entre ambas. Tal interação, embora ignorada nas conjecturas de outros pensadores que

concebiam o dualismo alma versus corpo, ocorria segundo Descartes, na glândula pineal,

um órgão minúsculo situado bem na fronteira entre os dois hemisférios do cérebro. Ainda

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que se tratasse de apenas uma hipótese40, - pois, apesar de seu amplo conhecimento

anatômico, Descartes não aventurou nenhuma teoria que explicasse como a interação

alma/corpo ocorreria na glândula pineal – a abordagem por ele assumida foi puramente

lógica e racional.

Segundo tal hipótese, por se tratar de uma estrutura unitária dentro do cérebro, um

órgão composto por dois hemisférios, a glândula pineal se apresentava como o lugar mais

lógico para a alma (que também possui um caráter único) interagir com o corpo. Além

disso, em função do seu posicionamento central dentro do cérebro, a glândula pineal, de

acordo com a hipótese cartesiana, estaria na posição ideal para ser afetada pela alma,

assim como também afetá-la. Para Descartes,

a parte do corpo em que a alma exerce imediatamente as suas funções não é de forma nenhuma o coração. Não é também todo o cérebro, mas somente a mais interior das suas partes, que é uma certa glândula muito pequena, situada no meio de sua substância e de tal modo suspensa por cima do conduto pelo qual os espíritos de suas cavidades anteriores têm comunicação com aqueles da posterior, que os menores movimentos que nela existem podem contribuir muito para modificar o curso desses espíritos e, reciprocamente, as menores modificações que sobrevêm ao curso dos espíritos podem contribuir muito para alterar os movimentos dessa glândula. (DESCARTES, 2017, p. 51)

A importância da interação entre alma e corpo, defende Descartes, consiste no fato

que é através da experiência e da lembrança de acontecimentos passados que algumas

ideias são produzidas na mente. Isso porque, na concepção cartesiana, duas classes de

ideias são produzidas na mente: as ideias obtidas da experiência e ideias inatas. As

primeiras ocorrem quando a alma coexiste com o corpo, produzidas na alma pelas

percepções do corpo, pelas paixões e pela memória, podendo ainda serem subdivididas

entre ideias adventícias (obtidas puramente a partir de percepções sensoriais) e ideias

factícias (obtidas a partir de uma combinação de imagens fornecidas pelos sentidos e

retidas na memória que possibilita a imaginação, a representação de coisas nunca antes

vistas).

No entanto, para Descartes, existe uma classe de ideias que não poderiam ser

originadas a partir de fontes sensoriais. Isso porque, a partir da sua própria conclusão

(cogito, ergo sum), Descartes reconhece a existência da alma que produz suas ideias, que

produz a própria ideia de alma. Tal reconhecimento, porém, não se dá de modo sensorial,

40 De fato, hoje sabe-se que a hipótese de Descartes não se verifica e que a glândula pineal é, na verdade, responsável pela produção da melatonina, um hormônio derivado da serotonina que modula os padrões do sono.

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o que leva Descartes a concluir que a ideia de alma está presente na própria alma. Assim

como outros conceitos abstratos, como “perfeição”, “substância”, “qualidade”,

“unidade”, “infinito”, “Deus” e os axiomas geométricos, tais ideias são independentes da

experiência sensorial e, portanto, devem ser necessariamente inatas. Tais ideias, ressalta

Descartes, não estão presentes na alma desde o nascimento, mas são uma resposta da alma

à experiência. Impressões sensoriais levam o homem a descobri essas ideias dentro dele

mesmo, de modo que, como afirma Descartes,

... quando começo a descobri-las [as ideias inatas], não me parece que aprenda nada de novo, mas, ao contrário, que me lembro do que já sabia anteriormente, ou seja, de que percebo coisas que já estavam em meu espírito, embora ainda não tivesse voltado meu pensamento para elas. E o que encontro aqui de mais considerável é que encontro em mim uma infinidade de ideias de certas coisas, que não podem ser estimadas um puro nada, embora, talvez, não tenham nenhuma existência fora de meu pensamento, e que não são fingidas por mim, se bem que esteja em minha liberdade pensá-las ou não as pensar; mas elas têm suas naturezas verdadeiras e imutáveis. (DESCARTES, 2011, p. 98)

No desenvolvimento de sua psicologia, Descartes estabeleceu como um dos

principais objetivos o controle das paixões através do uso da razão. Na sua concepção, as

paixões se originam no corpo e, através do fluxo dos espíritos animais, são percebidas

pela alma, que conscientemente as considera e comanda uma ação ou não em resposta a

tal paixão. Entretanto, paixões muito fortes, alerta Descartes, podem causar uma comoção

nos espíritos animais fazendo com que a alma perca o controle da glândula pineal e

resultando em respostas contrárias às da razão. Dentre as paixões que afetam o homem,

Descartes destaca 6 primárias, cuja combinação irá produzir todas as demais; são elas:

admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza.

A psicologia de cartesiana, ainda que não tenha sido concebida nos moldes de uma

ciência moderna, contribuiu significativamente para o desenvolvimento de temas

fundamentais para a psicologia moderna. Definindo o corpo humano como uma máquina

sujeita a regras pré-estabelecidas, Descartes estabeleceu que o homem pode ser estudado

seguindo a metodologia das ciências naturais. Adicionalmente, ao propor o dualismo

dentre mente e corpo de maneira clara e lógica, afirmou que diferentes princípios e regras

regem o corpo e a alma, o que, portanto, implica dizer que o estudo da mente humana

deve também ser conduzido de maneira diversa. Por fim, ao diferenciar, dentro da mente

humana, ideias inatas e ideias derivadas da experiência, Descartes antecipou um debate

ainda presente na psicologia moderna, a influência da natureza versus da cultura na

formação da psique humana.

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Da obra psicológica de Descartes, é digno de destaque o fato que suas teorias

foram elaboradas utilizando-se somente da razão e de algum conhecimento anatômico e

não através da metodologia científica pela qual o filósofo francês ficaria famoso. O

conhecimento científico da mente humana ainda estava a alguns séculos porvir, mas o

ceticismo cartesiano e a utilização desapaixonada da razão para a obtenção de

conhecimento psicológico se mostraram a ferramenta de escolha de muitos dos

pensadores que sucederam Descartes. Nesse sentido, ainda que a metodologia científica

não fosse utilizada em sua plenitude para desvendar os mistérios da mente humana, a

iniciativa de Descartes libertou a nascente psicologia do misticismo que antes a perseguia.

Dentre os pensadores que sucederam Descartes, talvez o seu herdeiro mais

próximo tenha sido Baruch de Espinosa (1632-1677). Apesar de discordarem em muitos

pontos, o que torna Espinoza um herdeiro direto de Descartes é o fato de que sua

exploração do funcionamento da mente se deu, tal qual Descartes, puramente pelo uso da

razão. Embora admirasse a filosofia de Descartes e utilizasse a razão pura para deduzir a

natureza do mundo, de Deus e da mente humana, Spinoza nunca o poupou de críticas.

Segundo Laurent Bove, em Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política

e antropogênese, quando Descartes tenta, em Tratado sobre as paixões, naturalizar os

sentimentos e as paixões, reduzindo-os a algo corporal,

Espinosa - em geral um crítico agudo das insuficiências de Descartes - afirma que nesse caso seu predecessor começou bem, mas se perdeu no meio do caminho, porque sofria de três preconceitos fundamentais, matriciais, que acabaram viciando seu empreendimento e o conduzindo ao fracasso. Primeiro e fundamental: Descartes não chega a abandonar por completo uma visão teleológica, finalista - uma visão de mundo que se apoia na pergunta "para quê?". Segundo, ele acredita no livre-arbítrio. Terceiro, repete algo que vem desde Platão e foi se tornando difundido por meio da. religião, do cristianismo e de outras visões religiosas: que existe uma dualidade entre a alma e o corpo. (BOVE, 2010, p. 28)

Espinosa defendia a visão controversa e polêmica para a sua época que a ideia de

Deus, algo infinitamente infinito, só faria sentido assumindo-se que Deus e o universo

são a mesma coisa41, portanto, tudo que é matéria e mente no universo está sujeito às

41 “Proposição 29. Nada existe, na natureza das coisas, que seja contingente; em vez disso, tudo é determinado, pela necessidade da natureza divina, a existir e a operar de uma maneira definida. Demonstração. Tudo que existe, existe em Deus (pela prop. 15). Não se pode, por outro lado, dizer que Deus é uma coisa contingente. Pois (pela prop. 11), ele existe necessariamente e não contingentemente. Além disso, é também necessariamente, e não contingentemente, que os modos da natureza divina dela se seguem (pela prop. 16), quer se considere a natureza divina absolutamente (pela prop. 21), quer se a considere como determinada a operar de uma maneira definida (pela prop. 27). Ademais, Deus é causa

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rígidas leis da natureza e, deste modo, não podem alterar a ordem dos eventos. A visão

determinística de Espinosa baseia-se na noção de causalidade em oposição a uma visão

finalista. Para Bove, sua “abordagem do real é completamente ‘necessitarista’, o que

significa que exclui qualquer casualidade, qualquer acaso, qualquer interferência do que

quer que seja exceto causas naturais, identificáveis e pensáveis” (BOVE, 2010, p. 27)

No entendimento de Espinosa, a noção de livre-arbítrio é conflituosa com o

universo observável, pois todo e cada evento que ocorre na mente ocorre em função de

múltiplas causas que, por sua vez, também derivam de múltiplas causas que as precedem;

todas essas, sujeitas às leis da natureza. Sugerir a possibilidade do livre-arbítrio, no

sentido de algo que independe da natureza, mas condicionado à vontade do sujeito,

configuraria, no raciocínio espinosiano, um “milagre permanente”.

Seguindo a rígida lógica de Espinosa, a dualidade corpo versus alma não se

verifica, pois, para ele, “existe uma unidade do real, que faz com que qualquer

acontecimento no plano do espírito seja simultaneamente um acontecimento no plano do

corpo” e, portanto, “na verdade, não existe causalidade do corpo sobre o espírito, nem

inversamente: há causalidades nos corpos e nos espíritos, que podem ser pensadas em

conjunto” (BOVE, 2010, p. 29). Isso porque Espinosa define os afetos como “as afecções

do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou

refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (ESPINOSA, 2015, p. 98).

Assim, segundo Bove,

... as afecções - ou modificações - do corpo decorrem de seus encontros com outros seres, outros entes, que lhe são exteriores, e com os quais ele entra em relações de conflito, confronto, aliança etc. Esses encontros acarretam modificações na potência de agir de cada um dos envolvidos (de onde a alegria ou a tristeza), e que correspondem simultaneamente, no espírito, a tipos de ideias ou de representações. Ou seja, o afeto é ao mesmo tempo e indissoluvelmente uma afecção ou modificação do corpo, algo sentido como uma sensação, vivência ou experiência, e uma afecção da alma, uma ideia. Para Espinosa, um afeto e uma ideia são duas faces de uma mesma coisa: não se separam, embora possam ser vividos e pensados diferentemente, como dois aspectos de algo idêntico, que é fundamentalmente de ordem corporal. (BOVE, 2010, p. 29)

desses modos não apenas enquanto eles simplesmente existem (pelo corol. da prop. 24), mas também (pela prop. 26) enquanto se os considera como determinados a operar de alguma maneira. Pois, se não são determinados por Deus (pela mesma prop.), é por impossibilidade, e não por contingência, que não determinam a si próprios; se, contrariamente (pela prop. 27), são determinados por Deus, é por impossibilidade, e não por contingência, que não convertem a si próprios em indeterminados. Portanto, tudo é determinado, pela necessidade da natureza divina, não apenas a existir, mas também a existir e a operar de uma maneira definida, nada existindo que seja contingente. C. Q. D.” (ESPINOSA, 2015, p. 35)

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Diferentemente de Descartes, a psicologia de Espinosa não encontra um obstáculo

na interação entre corpo e alma porque tal interação, no seu pensamento, não existe e não

existe simplesmente porque não é necessário que exista42. Inclusive, em Ética, Espinosa

classifica de mal embasada e carente de evidências a teoria cartesiana de que tal interação

ocorra na glândula pineal. Além disso, segundo ele, Descartes havia “concebido a mente

de maneira tão distinta do corpo que não pôde atribuir nenhuma causa singular nem a essa

união, nem à própria mente, razão pela qual precisou recorrer à causa do universo inteiro,

isto é, a Deus” (ESPINOSA, 2015, p. 215).

Ainda assim, de modo semelhante a Descartes, o foco de interesse da psicologia

de Espinosa reside nos afetos ou emoções e em como a razão pode levar ao conhecimento

das próprias emoções e, com isso, prevenir que estas controlem o homem. Se em

Descartes seis emoções combinadas davam origem a todas as demais, em Espinosa, 48

emoções diferentes originam-se da combinação de apenas quatro afetos primários ou

decretos da alma – alegria, tristeza, desejo e conatus – entre si e com estímulos externos

positivos e negativos.

Dos três afetos, Espinosa define o desejo como a essência do homem, mas com

um sentido diferente do utilizado por Freud séculos depois: para Espinosa,

o desejo é a produtividade mesma da vida por meio e através dos afetos, mas isso não envolve nenhuma ideia de falta: não é um “desejo de ...”, não pede complemento nominal. A natureza do desejo como afeto primário é a potência ou aptidão para fazer alguma coisa, ou seja, de produzir efeitos por si mesma. (BOVE, 2010, p. 34)

A falta no conceito de desejo espinosiano não é fundamental, mas algo produzido

na consciência como um “efeito ilusório da imaginação”, “uma inversão da própria lógica

do desejo, dos afetos e da sua explicação”, em que imagina-se que “desejamos uma coisa

porque a julgamos boa, quando na verdade é o contrário: julgamos bom aquilo que

desejamos” (BOVE, 2010, p. 33).

Conatus, por sua vez, é o termo em latim mais utilizado por Espinosa para

designar o esforço que cada ente faz para perseverar no seu ser43, um “desejo sem objeto

porque não é nada mais do que a produtividade do real em nós e através de nós, que

42 “Nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento ou ao repouso, ou a qualquer outro estado (se é que isso existe)” (ESPINOSA, 2015, p. 100) 43 “Proposição 6. Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser.” (ESPINOSA, 2015, p. 105)

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funciona sem finalidade alguma e sem motivação alguma” (BOVE, 2010, p. 32). Com

isso, Espinosa antecipa a teoria psicológica moderna ao afirmar o princípio de

autopreservação como o mais básico dos seus instintos44.

Nesse contexto, a alegria seria a sensação percebida por um aumento no desejo ou

potência de agir e a tristeza, analogamente, a sensação percebida por uma diminuição na

potência de agir. Laurent Bove destaca que há nesse processo de ação em acordo com o

desejo uma orientação que pode ser chamada de princípio do prazer, segundo o qual

“desejamos repetir os estados que produziram satisfação, a partir de experiências, traços,

hábitos tanto no corpo quanto no espírito”, e que, para tanto, de acordo com Espinosa45,

“a memória ganha destaque especial, porque é graças a ela que essa orientação pode se

estabelecer – em função dos traços e lembranças que ela conserva” (BOVE, 2010, p. 34).

Através de uma postura imparcial, Espinosa propõe “não rir, não chorar, nem

detestar as ações humanas, mas entendê-las” (ESPINOSA, 2009, p. 8), pois defende que

“Um afeto que é uma paixão deixa de ser uma paixão assim que formamos dele uma ideia

clara e distinta” (ESPINOSA, 2015, p. 216). Na sua demonstração, Espinosa argumenta

que

Um afeto que é uma paixão é uma ideia confusa (pela def. geral dos afetos). Se, pois, formamos uma ideia clara e distinta desse afeto, não haverá entre essa ideia e o próprio afeto, enquanto referido exclusivamente à mente, senão uma distinção de razão (pela prop. 21 da P. 2, juntamente com seu esc.). O afeto deixará, portanto (pela prop. 3 da P. 3), de ser uma paixão. C. Q. D.

Corolário. Portanto, um afeto está tanto mais sob nosso poder, e a mente padece tanto menos, por sua causa, quanto mais nós o conhecemos. (ESPINOSA, 2015, p. 217)

Embora admitisse a influência do mundo real no funcionamento da mente e na

formação das ideias, foi somente com os pensadores ingleses conhecidos como empiristas

que a experiência voltou a figurar de maneira expressiva na explicação da mente humana.

Ainda assim, os empiristas eram assim chamados não porque recorriam a experimentos

para atingir o conhecimento de como funciona a mente humana (tais procedimentos ainda

não eram concebíveis para a psicologia), mas porque recorriam à experiência para

44 “Proposição 7. O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual.” (ESPINOSA, 2015, p. 105) 45 “Proposição 13. Quando a mente imagina aquelas coisas que diminuem ou refreiam a potência de agir do corpo, ela se esforça, tanto quanto pode, por se recordar de coisas que excluam a existência das primeiras.” (ESPINOSA, 2015, p. 108)

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explicar o desenvolvimento da mente, a formação das ideias, assim como o

comportamento humano.

Dos empiristas, o primeiro de maior destaque por sua psicologia foi Thomas

Hobbes (1588–1679). Determinista e materialista declarado, Hobbes conheceu tanto com

Galileu quanto Descartes e o impacto que esses dois pensadores exerceram no seu

pensamento são evidentes na sua psicologia. Do seu contato com Galileu, Hobbes

inspirou-se na física celeste para concluir que todos os eventos nada mais são do que

matéria em movimento, inclusive todas as atividades mentais.

Mesmo sem ter formulado uma teoria explicativa, Hobbes conjecturou que a

atividade mental deveria ser o resultado da interação entre o fluxo dos átomos do sistema

nervoso e do cérebro com o fluxo dos átomos do mundo externo46. Desse modo, não

admitindo no universo nada além de matéria, Hobbes considera inconcebível a existência

de uma alma incorpórea. Segundo ele,

O mundo (não me refiro apenas à terra, cujos aficionados recebem o nome de “homens mundanos”, mas também ao universo, isto é, ao conjunto de todas as coisas existentes) é corpóreo, isto é, corpo, e tem todas as dimensões de grandeza, a saber, o comprimento, a largura e a profundidade; cada parte do corpo é igualmente corpo, e tem, por si mesma, as mesmas dimensões; consequentemente, cada parte do universo é corpo, e o que não é corpo não é parte do universo. Sendo o universo tudo, aquilo que não é parte dele não é nada e, portanto, não está em lugar nenhum. Com base nisso, não podemos inferir que os espíritos não sejam nada, pois eles têm dimensões e são, portanto, realmente corpos, embora esse nome, na linguagem comum, seja dado apenas aos corpos visíveis ou palpáveis, ou seja, possuidores de alguma opacidade. (HOBBES, 2014, p. 512)

Assim, o inatismo proposto por Descartes encontra em Hobbes um vigoroso

opositor, haja visto que, na teoria cartesiana, as ideias inatas fazem parte da alma

incorpórea. Portanto, defende Hobbes, é através das percepções sensitivas que a mente

forma ideias simples que, por sua vez, combinam-se em ideias compostas, concluído que

a única fonte de conhecimento possível é aquela obtida via experiência sensitiva47.

46 Segundo Hobbes, “Todas essas qualidades, denominadas sensíveis, nada mais são, nos objetos que as causam, que os diversos movimentos da matéria por meio das quais ela atua sobre os órgãos humanos. Quando somos influenciados por esse efeito, nada mais há que movimentos (pois o movimento não produz outra coisa a não ser movimento” (HOBBES, 2014, p. 26) 47 Em Leviatã, “No que concerne aos pensamentos do homem, quero considerá-los, a princípio, individualmente e, em seguida, em seu conjunto, isto é, em sua mútua dependência. Individualmente, cada um deles é a representação ou o aspecto de determinada qualidade ou qualquer outro acidente de um corpo exterior ao nosso, que vulgarmente chamamos objeto. O referido objeto atua sobre os olhos, os ouvidos e outras partes do corpo humano e, por sua diversidade de atuação, produz uma variedade de aparências. A origem de todas elas é o que chamamos sensação (efetivamente, não existe nenhuma concepção no intelecto

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Partindo desse princípio, Hobbes oferece uma das primeiras explicações de como

impressões sensoriais são transformadas em funções mentais elevadas como a memória

e a imaginação. Na sua concepção, uma vez que as sensações percebidas nada mais são

do que a interação da matéria em movimento com os órgãos sensoriais, a memória nada

mais seria do que uma sensação passada em decadência. Tal qual uma onda que continua

a existir e se propagar mesmo depois que o vento que a originou deixa de soprar, o

movimento da matéria percebida permanece em movimento nos órgãos simplesmente em

função da Primeira Lei de Newton, ou seja, por inércia. Nas palavras do próprio Hobbes,

Quando um corpo se põe em movimento, move-se eternamente (a menos que algo o impeça) e, ao encontrar algum obstáculo, não detém seu movimento imediatamente, mas, sim, depois de um certo período e gradualmente. (...) assim também ocorre com o movimento que se registra no interior dos homens, quando eles veem, sonham, etc. Realmente, mesmo depois que o objeto é apartado de nós, quando fechamos os olhos, nós continuamos a reter sua imagem, embora menos nítida do que quando a enxergávamos. Esse é o fato a que os latinos chamavam imaginação, aquilo que é criado pela imagem na visão; (...) Assim, a imaginação nada mais é que a sensação debilitada; sensação que se encontra nos homens e em muitas outras criaturas vivas, tanto durante o sonho como no estado de vigília. (...) A essa sensação declinante, quando queremos nos referir à coisa em si (à fantasia em si), chamamos imaginação, como eu já disse antes; porém, quando queremos nos referir ao próprio declínio, no sentido de que a sensação se atenua, envelhece e passa, chamamos a isso memória. Assim, imaginação e memória são a mesma coisa, mas recebem nomes diferentes, dependendo da consideração que desejamos fazer. (HOBBES, 2014, p. 27)

Assim sendo, a imaginação consistiria puramente de uma combinação de

elemento já experimentados na criação de algo novo e, portanto, seria necessariamente

dependente da experiência e fundamentalmente ligada à memória. Segundo Hobbes,

Novamente, referindo-se a imaginação apenas às coisas que foram percebidas pelos sentidos, ora de uma só vez, ora por partes e em tempos diferentes, o primeiro tipo (que consiste na imaginação do objeto inteiro, tal como foi apresentado aos sentidos) é a imaginação simples, e ocorre quando alguém imagina um homem ou um cavalo que viu anteriormente; o outro tipo é a imaginação composta, e se verifica quando, com base na Visão de um homem em certa ocasião e de um cavalo, em outra, compomos em nossa mente a imagem de um centauro. (HOBBES, 2014, p. 27)

Adicionalmente, Hobbes foi um dos primeiros pensadores modernos a sugerir de

maneira mais específica que as memórias são acessadas através de processos associativos.

Segundo ele, “um pensamento não sucede a outro pensamento de modo indiferente”, pois

as “ações que sucederam imediatamente as sensações continuam se encontrando, em

conjunto, depois delas” de modo que “quando o primeiro movimento volta a ocupar um

humano que não tenha sido recebida, totalmente ou em parte, antes, pelos órgãos dos sentidos). O restante deriva desse elemento original.” (HOBBES, 2014, p. 25)

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lugar predominante, o segundo continua, por coerência, com a matéria movida, da mesma

forma que a água numa mesa pode ser puxada de um lado para outro com o dedo”

(HOBBES, 2014, p. 33). Hobbes assinala, no entanto, que tais associações podem ocorrer

de duas maneiras: desorientadas - “não há nela pensamento apaixonado que governe e

atraia os que o seguem” (HOBBES, 2014, p. 33) - ou reguladas “por algum desejo ou

desígnio” (HOBBES, 2014, p. 34) e, deste modo, antecipando o mecanismo que

psicólogos modernos vieram a denominar associação livre e associação controlada.

A filosofia de Hobbes marcou o início do empirismo inglês e suas teorias, tanto

na política quanto na psicologia, influenciaram significativamente inúmeros pensadores.

Dos primeiros a perceber o impacto do pensamento de Hobbes, talvez o de maior destaque

seja John Locke (1632-1704). Tido como um dos maiores empiristas, Locke, assim como

Hobbes, interessava-se tanto por filosofia política quanto por psicologia, e o impacto das

suas ideias ampliou significativamente o conhecimento em ambas as áreas. Mas se no

campo da filosofia política as ideias de Locke se diferenciavam profundamente das ideias

de Hobbes, no campo da psicologia, pode-se dizer que Locke retomou a psicologia de

Hobbes e a expandiu.

Tal qual Hobbes, Locke rejeita a método de pesquisa baseada na especulação pura

e no raciocínio dedutivo de pensadores racionalistas como Descartes e Espinosa. No

entanto, diferentemente de Hobbes, e de Descartes, Locke optou por não especular sobre

a fisiologia das sensações e percepções e da relação entre estas e os pensamentos na

mente48. Talvez por julgar que o conhecimento da fisiologia humana não tinha avançado

o suficiente para se chegar a alguma conclusão significativa no tocante da relação mente

e corpo, Locke assumiu a abordagem mais empírica que lhe era disponível em seu tempo:

a observação e o exame de suas próprias experiências assim como a de outros (incluindo

crianças das mais variadas idades) afim de concluir que tipo de experiências e sob quais

condições tais experiências resultavam em conhecimento.

48 “Sendo, portanto, meu propósito investigar a origem, certeza e extensão do conhecimento humano, juntamente com as bases, e graus da crença, opinião e assentimento, não me ocuparei agora com o exame físico da mente; nem me inquietarei em examinar no que consiste sua essência; nem por quais movimentos de nossos espíritos, ou alterações de nossos corpos, chegamos a ter alguma sensação mediante nossos órgãos, ou quaisquer ideias em nossos entendimentos; e se, em sua formação, algumas daquelas ideias, ou todas dependem ou não da matéria.” (LOCKE, 2009, p. 29)

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Tendo lido e maravilhado-se com a exposição de Newton sobre um universo, que

funciona tal qual um mecanismo regido por um único conjunto de regras, Locke ansiava

o mesmo para o seu estudo da mente humana: delinear os elementos básicos da

consciência e as regras segundo as quais tais elementos interagem e se combinam. Nesse

modelo que Locke definiu para a mente, os elementos básicos são as ideias e a origem de

todas as ideias é uma só: a experiência. Nas palavras do próprio Locke, em Ensaio Acerca

do Entendimento Humano,

Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos. um papel em branco, desprovida de todos os. caracteres, sem nenhuma ideia; como ela será suprida? (...) De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. (LOCKE, 2009, p. 57)

Locke, portanto, rejeita por completo o inatismo das ideias, mesmo ideias

“universais” como “Deus” ou conceitos como “bom” ou “mau”, conforme proposto por

Descartes. Se tal fosse o caso, contra argumenta Locke, não seria possível encontrar

pessoas na terra que não possuísse a ideia de “Deus” e tampouco seria possível encontrar

uma variedade muito grande de interpretações do que é bom ou mau. No entanto, tais

pessoas existem49, afirma Locke, o que invalida a tese de que todos já nascem com tais

ideias prontas e presentes na mente.

Analisando, individualmente, cada caso de ideia que poderia ser considerada

inata, Locke observa que mesmo que ideias universais possam ser encontradas nas mais

variadas culturas, ainda assim elas não poderiam ser consideradas inatas se alguma outra

explicação pudesse ser encontrada. Tal explicação, ou seja, a origem das ideias e de todo

49 No que diz respeito a existência de pessoas desprovidas da ideia de Deus, Locke afirma: “Além dos ateus observados entre os antigos, e assinalados nos registros da história, não se descobriram, em épocas mais recentes, nações inteiras entre as quais não se encontra nenhuma noção de Deus e nem da religião? Estes são exemplos de noções em que a natureza inculta foi mantida por si mesma sem o auxílio da cultura e da disciplina, e o aperfeiçoamento das artes e ciências. Mas há outras que, apesar de terem disto usufruído, por falta da devida aplicação de seus pensamentos daquela maneira., carecem da ideia e conhecimento de Deus.” (LOCKE, 2009, p. 52) Já com respeito à proposta de que máximas morais como “bom” ou “mau” são inatas, Locke afirma “Outra razão que me leva ,a duvidar de quaisquer princípios práticos inatos decorre do fato de pensar que nenhuma regra mora! pode ser proposta sem que ,uma pessoa deva justamente indagar a sua razão: o que seria perfeitamente ridículo e absurdo se ela fosse inata, ou sequer evidente por si mesma, coisa que todo princípio inato deve necessariamente ser, sem precisar de qualquer prova para apurar sua verdade, nem necessitar de qualquer razão para obter sua aprovação.”(LOCKE, 2009, p. 46)

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o conhecimento, segundo Locke, provém de duas fontes: das sensações (obtidas a partir

do contato com objetos sensíveis) e da reflexão (obtidas a partir das operações internas

da mente). Nas palavras de Locke,

Parece-me que o entendimento não tem o menor vislumbre de uma ideia se não a receber de uma das duas fontes. Os objetos externos suprem a mente com as ideias das qualidades sensíveis, que são todas as diferentes percepções produzidas em nós, e a mente supre o· entendimento com ideias através de suas próprias operações. Quando efetuarmos uma investigação completa de ambos, de seus vários modos, combinações e relações, descobriremos que eles contêm todo o nosso estoque de ideias, e que não temos nada em nossas mentes a não ser o derivado de um desses dois meios. (LOCKE, 2009, p. 58)

Segundo o mecanismo descrito por Locke, as sensações são transmitidas para a

mente pelos órgãos sensoriais e, a partir dessas, gradualmente são formadas as ideias de

reflexão (ideias que remetem às atividades da mente, ou seja, à sua capacidade de

perceber, desejar, comparar, diferenciar, etc.). Da interação dessas duas classes de ideias

simples (as sensações e as ideias de reflexão), uma infinidade de ideias complexas pode

ser criada de modo associativo. Por exemplo, a partir da sensação visual obtida de um

copo de leite, a mente define, através de um processo comparativo e de diferenciação, que

a cor do leite é branca e que a qualidade de todo objeto cuja cor é branca é a brancura. De

modo bem mais complexo, porém similar, afirma Locke, tal mecanismo é capaz de chegar

a conceitos abstratos como identidade, diversidade, verdadeiro ou falso.

Embora não tenha sido o primeiro a sugerir um mecanismo de formação de ideias

complexas, a partir de ideias simples obtidas da experiência (conforme mencionado

anteriormente, Hobbes tinha sugerido tal modelo), Locke foi o responsável por defini-lo

como um processo de associação de ideias. Ainda que não tenha desenvolvido por

completo o modelo associativo a ponto de determinar as regras de associação das ideias

(Locke apenas menciona que a repetição e o prazer fazem parte desse processo), tal

modelo irá influenciar e estimular os pensadores do século XVIII de tal maneira que é

possível dividir suas psicologias entre empiristas-associativas, na tradição de Hobbes e

Locke, ou racionalistas-inatistas, na tradição cartesiana.

Locke reconhece, no entanto, que seu modelo associativo é fundamentalmente

dependente das sensações físicas que, como destacado desde os gregos antigos, não são

sempre confiáveis. Haja visto que sensações são subjetivas e não constituem uma réplica

das qualidades de um objeto, Locke demostra que sensações conflitantes podem

recorrentemente produzir ideias falsas ou ilusórias.

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Em um experimento comumente citado, Locke sugere que um homem, ao colocar

uma mão em um recipiente com água quente e a outra mão em um recipiente de água fria.

Se depois de alguns minutos com as mãos imersas a mesma pessoa colocar ambas as

mãos, ao mesmo tempo, em um recipiente de água morna, perceberá sensações confusas

com relação à temperatura da água, pois, na mão que estava imersa em água quente, a

temperatura da água no terceiro recipiente parecerá fria e, na mão que estava imersa em

água fria, a temperatura da água no terceiro recipiente parecerá quente.

A partir deste simples experimento, Locke propõe não somente uma diferenciação

das qualidades dos objetos percebidas pelos sentidos entre qualidades primárias (são

qualidades que existem dentro do corpo do objeto, independentemente da percepção

alheia, como solidez, número, extensão e movimento) e qualidades secundárias (seriam

poderes que os objetos têm de causar em quem sente ideias de cor, cheiro, gosto, som e

textura, mas que não existem dentro do objeto), mas também que a percepção sensitiva é

subjetiva e pode ser ilusória.

Porém, como toda a sua teoria do conhecimento e a sua psicologia dependem da

experiência e do contato com o real, como seria possível garantir que as sensações

constituem uma representação verdadeira da realidade? Locke não vê razão para duvidar

dos sentidos e do conhecimento obtido a partir deles, pela simples razão de crer, tal qual

Descartes, que Deus não enganaria os homens. Nas suas palavras,

Mas parece que Deus não pretendia que tivéssemos um conhecimento perfeito, claro e adequado delas [as qualidades dos objetos]: essa talvez não seja a compreensão de seres finitos. Nós somos providos de faculdades (lentas e fracas como são) para descobrir nas criaturas o suficiente para nos levar ao conhecimento do Criador, e ao conhecimento do nosso dever; e somos equipados o suficiente com habilidades para as conveniências da vida: essas são nossas obrigações nesse mundo. (LOCKE, 2009, L.II, cap. 23, §12)

George Berkeley (1685-1753), no entanto, apesar de concordar com Locke que a

experiência é a única fonte de conhecimento do mundo externo, extrapolou a proposição

de Locke e afirmou que a própria existência do mundo externo depende da percepção

humana. Apesar de aparentar um reductio ad absurdum da teoria do conhecimento

empírica de Locke, Berkeley argumenta que, partindo-se da distinção proposta por Locke

das qualidades primárias de um objeto e das suas qualidades secundárias, se todo o

conhecimento do mundo externo provém das sensações, então tudo o que se sabe sobre o

mundo externo são suas qualidades secundárias. Ora se tudo que o homem conhece como

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existente deriva da sua percepção desse objeto, como seria possível afirmar que tal objeto

existe quando ninguém o percebe?

Apesar de resgatar a existência do mundo externo apelando para Deus50, a

conclusão aparentemente absurda de Berkeley, em verdade indica uma característica

importante da mente, qual seja, que na mente humana, só existe aquilo que é percebido

(Esse est percipi – ser é ser percebido) e o que não é percebido pouco importa se existe

ou não. Tal doutrina, embora ridicularizada pelos contemporâneos de Berkeley,

encontrou seu lar na psicologia fenomenológica do século XX.

Além de Hobbes, Locke e Berkeley outro pensador empirista importante no

desenvolvimento de uma psicologia empirista-associativa foi David Hume (1711-1776),

que por sinal, produziu a crítica mais simples e clara dos argumentos de Berkeley:

segundo Hume, tais argumentos “não admitem nenhuma resposta e não produzem

nenhuma convicção” (HUME, 2004, p. 210).

Se a visão de Berkeley deixava dúvidas quanto a possibilidade de uma ciência da

mente, a ambição de Hume era criar uma filosofia moral baseada na “ciência do homem”,

ou seja, baseada na psicologia, pois, segundo ele, “nós não somos simplesmente os seres

que raciocinam, mas também um dos objetos acerca dos quais raciocinamos” (HUME,

2009, p. 21). Para ele, um domínio de como o homem adquire conhecimento era vital

para o desenvolvimento da ciência. Nas suas palavras:

Não existe nenhuma questão importante cuja decisão não esteja compreendida na ciência do homem; e não existe nenhuma que possa ser decidida com alguma certeza antes de conhecermos essa ciência. Portanto, ao pretender explicar os princípios da natureza humana, estamos de fato propondo um sistema completo das ciências, construído sobre um fundamento quase inteiramente novo, e o único sobre o qual elas podem se estabelecer com alguma segurança. (HUME, 2009, p. 22)

Naturalmente, para Hume, tal ciência deve ser fundada na experiência51, o que,

portanto, implica em dispensar toda e qualquer discussão sobre a natureza da alma

50 Segundo o argumento de Berkeley, o mundo externo continua a existir mesmo quando ninguém o percebe porque a percepção de Deus é continua e eterna e, portanto, nenhum objeto deixa de existir quando alguém deixa de percebê-lo. 51 Segundo Hume “Assim como a ciência do homem é o único fundamento sólido para as outras ciências, assim também o único fundamento sólido que podemos dar a ela deve estar na experiência e na observação.” (HUME, 2009, p. 22)

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incorpórea. Isso porque, para Hume, toda ideia deriva de uma impressão52 precedente e

constitui uma cópia fraca dessa impressão. Assim sendo, a ideia de substância na nossa

mente deve derivar de uma impressão obtida de uma substância e deveria se assemelhar

a essa substância. No entanto, Hume pondera, como deveria ser essa impressão no caso

de uma substância que, ao contrário de todas as substâncias já conhecidas, é imaterial? E

contra seus opositores na questão, causticamente declara:

... gostaria que aqueles filósofos que afirmam que possuímos uma ideia da substância de nossas mentes nos apontassem a impressão que produz essa ideia, e que nos dissessem distintamente como tal impressão opera, e de que objeto deriva. (...) Assim, nem considerando a origem das ideias, nem por meio de uma definição somos capazes de chegar a uma noção satisfatória de substância. Isso me parece uma razão suficiente para abandonarmos por completo a discussão acerca da materialidade ou imaterialidade da alma, e me faz condenar inteiramente a própria questão. (HUME, 2009, p. 266)

Hume assume que as mentes de todo ser humano “não são senão um feixe ou uma

coleção de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez

inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e movimento” (HUME, 2009, p. 285). Nesse

contexto, Hume diferencia essas percepções nas duas categorias mencionadas

anteriormente: as impressões e as ideias. Na sua definição em Tratado da Natureza

Humana, Hume declara

As percepções da mente humana se reduzem a dois géneros distintos, que chamarei de IMPRESSÕES e IDÉIAS. A diferença entre estas consiste nos graus de força e vividez com que atingem a mente e penetram em nosso pensamento ou consciência. As percepções que entram com mais força e violência podem ser chamadas de impressões; sob esse termo incluo todas as nossas sensações, paixões e emoções, em sua primeira aparição à alma. Denomino ideias as pálidas imagens dessas impressões no pensamento e no raciocínio, como, por exemplo, todas as percepções despertadas pelo presente discurso, excetuando-se apenas as que derivam da visão e do tato, e excetuando- se igualmente o prazer ou o desprazer imediatos que esse mesmo discurso possa vir a ocasionar. (...) Os graus mais comuns dessas duas espécies de percepções são facilmente distinguíveis; mas não é impossível que, em certos casos, elas possam estar muito próximas uma da outra. Assim, por exemplo, no sono, no delírio febril, na loucura, ou em qualquer emoção mais violenta da alma, nossas ideias podem se aproximar de nossas impressões. Por outro lado, acontece, às vezes, de nossas impressões serem tão apagadas e fracas que não somos capazes de as distinguir de nossas ideias. (HUME, 2009, p. 25)

Tal qual Locke, Hume afirma que é a partir desses elementos básicos que a mente

forma ideias abstratas e complexas. No entanto, diferentemente de Locke, Hume afirma

que tal processo associativo se dá segundo um princípio de união regido por três

qualidades: semelhança, contiguidade no tempo ou no espaço e relações de causa e efeito.

52 Para Hume, as impressões significam a mesma coisa que as sensações ou percepções e as ideias consistiriam das mesmas experiências que ocasionam impressões, mas sem objeto, como nas memórias reflexões e sonhos.

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Tal princípio, segundo Hume, deve ser visto “apenas como uma força suave, que

comumente prevalece, e que é a causa pela qual, entre outras coisas, as línguas se

correspondem de modo tão estreito umas às outras: pois a natureza de alguma forma

aponta a cada um de nós as ideias simples mais apropriadas para serem unidas em uma

ideia complexa” (HUME, 2009, p. 34).

Da análise de Hume das três qualidades, provavelmente, a análise feita sobre o

conceito de causalidade no processo associativo tenha sido a de maior impacto, até

porque, por admissão do próprio Hume, “nenhuma relação produz uma conexão mais

forte na fantasia e faz com que uma ideia evoque mais prontamente outra ideia que a

relação de causa e efeito entre seus objetos” (HUME, 2009, p. 35). Ainda assim, o

pensador também admite que o homem não é capaz de experimentar a causalidade

diretamente, e que apenas pode assumir, via experiência, que uma relação causal

provavelmente exista, sem nunca poder afirmar ou provar que de fato exista. Nas palavras

do filósofo escocês,

A ideia de causa e efeito é derivada da experiência, que nos informa que tais objetos particulares, em todos os casos passados, estiveram em conjunção constante um com o outro. E como se supõe que um objeto similar a um deles está imediatamente presente em sua impressão, presumimos, a partir disso, a existência de um objeto similar ao que habitualmente o acompanha. De acordo com essa explicação do que se passa - explicação que creio ser inquestionável em todos os seus pontos -, a probabilidade se funda na suposição de uma semelhança entre os objetos de que tivemos experiência e aqueles de que não tivemos. É impossível, portanto, que essa suposição possa surgir da probabilidade. (HUME, 2009, p. 118)

Portanto, afirma, “[n]ós supomos, mas nunca conseguimos provar, que deve haver

uma semelhança entre os objetos de que tivemos experiência e os que estão além do

alcance de nossas descobertas” (HUME, 2009, p. 120), o que implica dizer que “nossos

raciocínios acerca de causas e efeitos derivam unicamente do costume; e que a crença é

mais propriamente um ato da parte sensitiva que da parte cogitativa de nossa natureza”

(HUME, 2019, p. 216). Consequentemente, tal premissa leva Hume a concluir que “todo

conhecimento se reduz a uma probabilidade,” (HUME, 2009, p. 215), colocando o

próprio conceito de verdade em cheque. Hume, no entanto, não se atém a essa questão,

julgando-a supérflua:

Se me perguntassem se concordo sinceramente com esse argumento, que pareço esforçar-me tanto para estabelecer, e se sou realmente um desses céticos que sustentam que tudo é incerto e que nosso juízo não possui nenhuma medida da verdade ou falsidade de nada, responderia que essa questão é inteiramente supérflua, e nem eu nem qualquer outra pessoa jamais esposou sincera e constantemente tal opinião. A natureza, por uma necessidade absoluta e incontrolável, determinou-nos a julgar, assim como a respirar e a sentir. Não podemos deixar de considerar certos objetos de um modo mais forte e pleno

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em virtude de sua conexão habitual com uma impressão presente, como não podemos nos impedir de pensar enquanto estamos despertos, ou de enxergar os objetos circundantes quando voltamos nossos olhos para eles em plena luz do dia. (HUME, 2009, p. 216)

Diante de tamanha incerteza, Hume afirma que o homem é impotente e incapaz

de encontrar a verdade na forma de uma certeza. Por isso conclui de maneira resignada,

simplesmente supondo como dadas as relações de causalidade e a própria existência de

um mundo externo e admitindo-as como impossíveis de serem provadas. Em Tratado da

Natureza Humana, afirma:

Essa dúvida cética, tanto em relação à razão como aos sentidos, é uma doença que jamais pode ser radicalmente curada, voltando sempre a nos atormentar, por mais que a afastemos, e por mais que às vezes pareçamos estar inteiramente livres dela. É impossível, com base em qualquer sistema, defender seja nosso entendimento, seja nossos sentidos. Apenas os deixamos mais vulneráveis quando tentamos justificá-los dessa maneira. Como a dúvida cética nasce naturalmente de uma reflexão profunda e intensa sobre esses assuntos, ela cresce quanto mais longe levamos nossas reflexões, sejam estas conformes ou opostas a ela. Apenas o descuido e a desatenção podem nos trazer algum remédio. Por essa razão, confio inteiramente neles; e estou seguro de que, qualquer que seja a opinião do leitor neste momento presente, daqui a uma hora estará convencido de que existe tanto um mundo externo como um interno. (HUME, 2009, p. 251)

O impacto das ponderações de Hume acerca do processo associativo, que gera as

ideias e viabiliza o conhecimento, bem como seu ataque ao conceito de causalidade, foi

amplamente sentido nas ciências e, em específico, na psicologia. A partir das

considerações de Hume sobre o fenômeno mental da causalidade, a psicologia moderna

desenvolveu-se considerando que possivelmente a explicação causal não deveria ser um

objetivo a ser perseguido e sim a busca de correlações prováveis entre fenômenos

mentais.

Além disso, seu esforço por estabelecer uma ciência do homem em que a ética, a

moral, o comportamento político, a razão e as paixões fossem tratados como produtos

naturais da mente humana e, portanto, estudados segundo os métodos da ciência natural,

forneceu um grande impulso no estabelecimento da psicologia como uma ciência

separada da filosofia.

A linha de pensamento empirista-associacionista, que se desenvolveu na

Inglaterra nos séculos XVII e XVIII, continuou a crescer e a influenciar diversos

pensadores na ilha britânica, entre eles, destacam-se James Mill (1773-1836) e John

Stuart Mill (1806-1873). Pai e filho, ambos foram essenciais na vida intelectual britânica,

tendo escrito, inúmeras obras abrangendo temas que iam desde história, ciência política,

filosofia e psicologia.

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No campo da psicologia, James Mill foi responsável não tanto por expandir a

teoria psicológica empirista-associacionista, mas de simplificá-la a ponto de reduzi-la à

forma lógica e mecânica mais simples. Segundo ele, o princípio que rege a associação das

ideias seria puramente a contiguidade, ou a simultaneidade ou proximidade temporal em

que duas experiências ocorrem.

Seu filho John Stuart Mill, que fora criado e moldado pelo pai para ser uma

“máquina de raciocinar”, no entanto, não se contentou com a visão simplista e mecânica

do processo de associação do pai, revisando-o. Segundo ele, muito embora por vezes a

mente se comporte de modo mecânico no processo de associação das ideias, a formação

de ideias complexas corresponde a algo além da mera somatória das ideias simples que

as compõe. Em sua obra Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva, Mill afirma

Às vezes, as leis dos fenômenos da mente são semelhantes às leis da mecânica, mas às vezes também são similares às leis da química. Quando as impressões tiverem sido vivenciadas em conjunto tão frequentemente que cada uma delas evoca pronta e instantaneamente a ideia de todo o grupo, essas ideias às vezes se fundem ou se aglutinam e não parecem várias ideias, mas apenas uma. (Mill apud HOTHERSALL, 2006, p. 66)

Ao revisar a teoria de seu pai, John Stuart Mill sugere as ideias complexas por

vezes se comportam como um composto químico formado por inúmeros elementos

químicos, mas com características próprias, diferentes das dos elementos que o compõe,

assim como as características da água diferem das do hidrogênio e do oxigênio. Além

disso, tal qual um processo químico, a associação de ideias simples, dependo de como se

dá tal associação, pode produzir mais de uma ideia complexa, do mesmo modo que o

hidrogênio quando combinado com o oxigênio pode produzir tanto água quanto peróxido

de hidrogênio.

Mas talvez uma das mais importantes contribuições de Mill para o

desenvolvimento da psicologia tenha ocorrido ao afirmar que seja impossível prever que

ideia complexa surge da associação de duas ideias simples dadas, e que, tampouco seja

possível deduzir quais ideias simples compõem uma dada ideia complexa. Tal processo,

segundo ele, não se desenrola tal qual a matemática, de maneira lógica e racional, mas

através da experiência e da experimentação.

Apesar do avanço da psicologia proposto pela teoria psicológica empirista-

associacionista, tal teoria, no entanto, ao reduzir os maiores processos mentais à

percepção e à associação, foi incapaz de oferecer alguma explicação elucidativa a

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fenômenos mentais de nível elevado como, por exemplo, a consciência, o raciocínio, o

pensamento subconsciente e a criatividade. Tampouco sua forma simplista de explicar a

formação de ideias abstratas conseguia explicar conceitos não baseados na percepção

como virtude, alma, possibilidade ou necessidade.

Cientes das falhas da teoria empirista-associacionista, alguns pensadores, em

especial racionalistas-inatistas, ofereceram críticas e visões diferentes. Sucedendo

Descartes, talvez o pensador de maior destaque no século XVII tenha sido Gottfried

Wilhelm von Leibniz (1646-1716). Contemporâneo e conhecido de John Locke, Leibniz

foi, possivelmente, o primeiro a criticar a psicologia empirista de Locke. No entanto, por

respeito, optou por publicá-la postumamente.

Leibniz defendia um conteúdo inato da mente humana e, embora até admitisse que

parte da mente humana poderia ser empírica, não aceitava a teoria de Locke que a mente

humana nascia como uma tábula rasa e era preenchida pela experiência. Segundo ele,

existem verdades inatas eternas e necessárias presentes em um intelecto inato que permite

a razão e a ciência, além do conhecimento de si mesmo e de Deus.

No entanto, sua tentativa de explicar tanto o funcionamento da mente, bem como

do universo, não foi bem-sucedida (tanto que nunca foi utilizada por nenhum outro

pensador). Tentando resolver o dualismo entre mente e corpo, Leibniz desenvolveu a

teoria de que o universo é composto por mônadas, ou seja, composto por infinitos

elementos indestrutíveis e imutáveis, que não têm partes e tampouco podem ser

influenciados por outros elementos. Segundo Leibniz, o mundo físico e o mundo mental

seriam compostos de mônadas independentes que, apesar de não interagirem, dão a

impressão de interação por se comportarem paralelamente, tal qual dois relógios

sincronizados.

De acordo com a monadologia de Leibniz, cada mônada seria um relógio

infinitesimal e todas seriam arrumadas e organizadas por Deus para que cada evento, cada

mudança no mundo físico e no mundo mental ocorresse de maneira pré-ordenada e

harmoniosa. Obviamente, tal mecanicismo pressupõe um determinismo tal que tornaria

inútil qualquer consideração sobre uma psicologia. Naturalmente, tal sistema não

encontrou respaldo entre os pensadores que o sucederam no desenvolvimento de uma

ciência da mente, muito embora, algumas considerações levantadas pela monadologia de

Leibniz tenham antecipado alguns temas da psicologia moderna, como por exemplo, a

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88

possibilidade de mais de um nível de consciência53 e o caráter inato dos princípios da

lógica – ou seja, que sabe-se sem a necessidade de aprender, que o que é, é e não pode

não ser, por exemplo.

Herdeiro de Descartes e Leibniz (pelo menos no que diz respeito ao

desenvolvimento de uma psicologia racionalista e inatista), Immanuel Kant (1724–1804),

no entanto, foi inspirado justamente por Hume54, e incentivado pelas descobertas

inglesas, para desenvolver uma teoria do conhecimento muito mais detalhada do que de

seus predecessores. Kant, a despeito de ser um racionalista-inatista, reconhecia a verdade

por trás da proposta empirista de que todo o conhecimento decorre da experiência. Porém,

não se contenta somente com a experiência para conceber o conhecimento.

Segundo Kant, as percepções provêm a mente com dados empíricos, mas o que

torna a experiência inteligível é a ação da mente, pois, sem a mente, tudo que pode ser

obtido do mundo externo é uma multitude de sensações; somente através da mente a

experiência se torna possível, pois é através dela, da mente, que as sensações que vem do

mundo são organizadas em conhecimento. Concordando com Hume, Kant afirma que a

experiência só permite um conhecimento provável, a certeza só é possível graças à razão.

Em Crítica da Razão Pura, Kant afirma:

A experiência é, sem dúvida, o primeiro produto que nosso entendimento fornece ao trabalhar a matéria bruta das percepções sensíveis. Ela é, por isso mesmo, o primeiro ensinamento, e no seu progresso é tão inesgotável em termos de novas instruções, que a vida encadeada de todas as gerações futuras nunca sofrerá com a falta de novos conhecimentos que possam ser acumulados nesse terreno. Ao mesmo tempo, ela está longe de ser o único campo a que nosso entendimento se limita. Ela realmente nos diz que algo é, mas não que teria de ser assim, e não de outro modo, de maneira necessária. Por isso mesmo, ela não nos dá também nenhuma universalidade verdadeira, e a razão, que é tão ávida por esse tipo de conhecimentos, é por ela mais incitada do que satisfeita. Tais conhecimentos universais, que têm ao mesmo tempo o caráter de necessidade interna, têm de ser, portanto, independentes da experiência e claros e seguros por si mesmos; por isso são denominados conhecimentos a priori. Aquilo, pelo contrário, que só se toma emprestado da experiência, como se costuma dizer, é conhecido apenas a posteriori ou empiricamente. (KANT, 2012, p. 65)

Segundo Kant, o erro dos empiristas foi ter se concentrado apenas na experiência,

ignorando os elementos inatos da mente responsáveis por tornar a própria experiência

53 Antecipando, porém ainda muito distante, as noções de consciente e inconsciente, que anos mais tarde surgiriam com Freud. 54 Segundo Kant, “Confesso francamente: foi a advertência de David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa” (KANT, 1988, p. 17)

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89

possível. Tais elementos (ou categorias, como Kant denomina) organizam as sensações,

moldando a experiência, extraindo-a do caos das múltiplas sensações que o mundo

externo impõe à mente e fazendo com que a experiência surta efeito e seja cognoscível.

Resumidamente, a possibilidade de conhecimento empírico (conhecimento a posteriori)

depende necessariamente de um conhecimento inato (conhecimento a priori). Assim,

pode-se dizer, como exemplo da relação entre esses dois tipos de conhecimento, que o

aprendizado de um idioma se dá através da experiência, ou seja, é um conhecimento a

posteriori, mas, ao mesmo tempo, a capacidade de aprender qualquer idioma é uma

habilidade inata da mente humana, é, portanto, um conhecimento a priori. De acordo com

Kant,

Nosso conhecimento surge de duas fontes fundamentais da mente, a primeira das quais é a de receber representações (a receptividade das impressões), e a segunda, a faculdade de conhecer um objeto por meio dessas representações (espontaneidade dos conceitos); por meio da primeira nos é dado um objeto, por meio da segunda ele é pensado em relação àquela representação (como mera determinação da mente). A intuição e os conceitos, portanto, constituem os elementos de todo nosso conhecimento, de tal modo que nem os conceitos sem uma intuição correspondente de algum modo a eles, nem uma intuição sem conceitos, podem fornecer um conhecimento. Os dois podem ser puros ou empíricos. São empíricos quando uma sensação (que pressupõe a presença real do objeto) está neles contida; são puros, pelo contrário, quando nenhuma sensação se mistura à representação. Esta última pode ser denominada a matéria do conhecimento sensível. Por isso a intuição pura contém tão somente a forma sob a qual algo é intuído, e o conceito puro, apenas a forma do pensamento de um objeto em geral. Somente as intuições ou os conceitos puros são possíveis a priori, e os empíricos o são apenas a posteriori. (KANT, 2012, p. 96)

Sobre as intuições puras, Kant elenca duas, tempo e espaço, que, segundo ele são

ideias fundamentais a todas as outras percepções e ideias e que ao mesmo tempo não

podem ser pensadas ou sentidas. Como são intuições puras, tempo e espaço, são ideias

inatas e, portanto, existem a priori, mas constituem a primeira relação que a mente faz

com o objeto quando este é dado à mente por meio da sensibilidade. Só então, o objeto e

as intuições são pensados por meio do entendimento e deste surgem os conceitos.

De maneira simplificada, o modelo kantiano para explicar a formação de

conhecimento a priori inicia-se com o objeto ou evento sendo dado à mente e

imediatamente estabelecem-se as relações do objeto ou evento com o espaço e o tempo,

não de modo empírico, mas através da intuição. Só então é que o objeto ou evento é

pensado e organizado através dos conceitos puros, produzindo conhecimento sobre o

objeto.

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Com respeito aos conceitos puros ou categorias desenvolvidas por Kant, estes

seriam doze ideias inatos ou princípios transcendentais55 através dos quais a mente

organiza a priori os elementos da experiência, tornando-a possível de ser conhecida.

Dentre as categorias elaboradas por Kant, uma recebe destaque em função da atenção

dada a ela por Hume: a causalidade.

Diferentemente de Hume, que considera a causalidade uma ilusão, Kant defende

e reconhece que, apesar de não ser auto evidente e demonstrável logicamente, o ser

humano é capaz de compreender as relações de causalidade do mundo externo, pois, caso

contrário, seria impossível entender qualquer coisa que ocorre no mundo externo. Tal

capacidade de estabelecer relações de causalidade entre eventos externos, conclui Kant,

é, justamente, um conhecimento a priori, uma das funções lógicas inatas da mente

humana, sem a qual o conhecimento das causas e efeitos de um determinado evento não

se tornam cognoscíveis.

Mas se Hume afirmou a impossibilidade da certeza no conhecimento ao afirmar

que todo conhecimento se reduz a uma probabilidade, Kant restituiu a capacidade do

homem em produzir conhecimento e estabelecer verdades através do chamou uma

“inversão copernicana”. Se Copérnico efetuou uma inversão no modelo explicativo dos

corpos celestes ao colocar a Terra e os demais planetas girando ao redor do Sol ao invés

do Sol e demais planetas girando ao redor da Terra, a inversão perpetuada por Kant na

Teoria do Conhecimento consistiu em não mais colocar o objeto na posição central do

conhecimento, mas o homem e suas faculdades. Nas suas próprias palavras, Kant escreve

no prefácio da Crítica da Razão Pura:

Até hoje se assumiu que todo o nosso conhecimento teria de regular-se pelos objetos; mas todas as tentativas de descobrir algo sobre eles a priori, por meio de conceitos, para assim alargar nosso conhecimento, fracassaram sob essa pressuposição. E preciso verificar pelo menos uma vez, portanto, se não nos sairemos melhor, nas tarefas da metafísica, assumindo que os objetos têm de regular-se por nosso conhecimento, o que já se coaduna melhor com a possibilidade, aí visada, de um conhecimento a priori dos mesmos capaz de estabelecer algo sobre os objetos antes que nos sejam dados. (KANT, 2012, p. 29)

55 Kant, laboriosamente, definiu quatro classes de categorias, cada uma com três categorias: 1. QUANTIDADE: Unidade, Pluralidade, Totalidade 2. QUALIDADE: Realidade, Negação, Limitação 3. RELAÇÃO: Substância, Causalidade, Comunidade 4. MODALIDADE: Possibilidade, Existência, Necessidade

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A partir de Kant, o debate perene nos séculos XVII e XVIII sobre onde estaria a

fonte do conhecimento, se estaria na razão ou na experiência, encontra um ponto de

apaziguamento: para ele, o conhecimento deriva tanto da razão quanto da experiência.

Para ele, se considerados isoladamente, tanto a razão pura quanto a sensibilidade pura

incorrem no erro, pois sem a experiência sensível ou a razão, o conhecimento não seria

possível. Ainda assim, um ponto permanece em desacordo entre racionalistas e

empiristas: a questão do dualismo alma versus corpo e de como as ideias são formadas.

Kant mantém de modo inexorável a posição dualista e inatista; a mente é transcendental

e, portanto, incorpórea e as ideias são formadas através das categorias inatas e a priori e

não de leis de associação.

Apesar dos avanços produzidos pelas contribuições kantianas para o estuda da

mente, nem todas foram positivas. Kant era da opinião (compartilhada por muito tempo

no meio acadêmico alemão) que não seria possível estabelecer uma psicologia como

ciência. Segundo ele, a psicologia não possuía a base conceitual racional necessária para

se qualificar como uma ciência. Segundo a concepção kantiana,

a psicologia empírica para se provar como ciência propriamente dita deveria: 1. descobrir o seu elemento de modo similar à química, para com isto efetuar análises e sínteses; 2. facultar a esse elemento um estudo objetivo, em que sujeito e objeto não se misturem como na introspecção; 3. produzir uma matematização mais avançada que a geometria da linha reta, apta a dar conta das sucessões temporais da nossa consciência (o sentido interno). (JACÓ-VILELA, 2006, p. 85)

Na sua visão, nenhum dos critérios acima é atingido pela psicologia, pois toda

afirmação possível de ser feita sobre a alma e sua relação com o mundo material derivam

de uma premissa a posteriori, qual seja, a experiência do pensar. Sendo

fundamentalmente empírica, a psicologia, portanto, seria incapaz de produzir evidência

demonstrativa e matematizável, somente relatos históricos introspectivos e pouco

confiáveis. Adicionalmente, o fato de os processos mentais ocorrerem no tempo, mas não

no espaço os tornava imensuráveis.

Tal visão, apesar de influente, no entanto, foi constantemente desafiada no século

XIX, o século em que finalmente os esforços para se compreender a mente humana

assumiram um caráter de ciência. Seguindo a premissa kantiana, a psicologia irá buscar

objetividade, embasamento matemático e a determinação de um elemento básico de

investigação nos conceitos e métodos das ciências naturais, de início, na fisiologia.

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Com respeito as explorações fisiológicas sobre do sistema nervoso central no

século XIX, serve-se dizer que representaram grande avanço na compreensão do

funcionamento da mente e no desenvolvimento de uma psicologia científica. Ainda que

esse estudo não se preste a explorar os pormenores das descobertas desse período

merecem destaque. Estudos sobre a função da medula espinhal sobre as sensações de

François Magendie (1785-1855) e Charles Bell (1774-1842), bem como os estudos sobre

a fisiologia sensorial de Johannes Müller (1801-1858) e Hermann von Helmholtz (1821-

1894) estabeleceram os nervos e a medula espinha como os conduítes das sensações, bem

como a natureza elétrica dos impulsos nervosos.

Também o estudo de cérebro e suas funções produziram avanços significativos.

Ainda assim, casos como o da frenologia de Franz Joseph Gall (1758-1828) são exemplos

de que a curiosidade sobre as funções do cérebro e suas localizações nem sempre

obtiveram o resultado esperado56. Entretanto, mesmo que com solavancos, a exploração

do cérebro seguiu adiante e estudos seriamente conduzidos sobre as funções do cérebro

como os de Marie-Jean Pierre Flourens (1794-1867) produziram grandes resultados, entre

eles, a localização das funções da audição, da visão, além da comprovação que a mente

se localiza no cérebro e não no coração.

Os avanços na fisiologia do sistema nervoso contribuíram para mudar os critérios

do conhecimento na psicologia. Se até o século XVIII vigorava um modelo classificatório

ou representacional da psicologia, a partir do século XIX tem-se um modelo empírico em

que as faculdades mentais são vistas como processos naturais. Similarmente, a partir de

Kant, a metafísica passa a ser assumida como um saber sem fundamento e a psicologia,

que até então era tida com uma parte da metafísica, encontra-se em contradição.

Entretanto, independentemente de todo o avanço fisiológico, a psicologia ainda

precisava superar as três objeções kantianas (listadas acima) para se consagrar como

ciência. Com relação à primeira objeção, ou seja, a falta de um elemento objetivo, o

fisiólogo Johannes Müller propõe, em 1826, na sua teoria das energias nervosas

específicas, que cada via nervosa aferente possuía uma energia nervosa específica, que se

56 A frenologia, criada por Gall, foi por muito tempo aceita como ciência, segundo a qual a forma e as protuberâncias do crânio indicam as faculdades e aptidões mentais do indivíduo. Apesar de contar com uma base empírica cuidadosamente construída, sua teoria carece de confirmação científica e, hoje em dia, é considerada, no máximo, uma pseudociência.

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traduziria em uma sensação específica de cada nervo e, com isso, estabeleceu que a

sensação, “enquanto variação das energias nervosas específicas, representaria um

elemento preciso, corporalmente situado como fenômeno, ao contrário das ideias e

impressões descritas pelos filósofos empiristas do século XVIII” (JACÓ-VILELA, 2006,

p. 87).

Com relação à segunda objeção, ou seja, a falta de objetividade (ou excesso de

subjetividade) no estudo do objeto, a solução foi proposta por um discípulo de Müller, o

também fisiólogo, Hermann von Helmholtz. Ao estudar o surgimento das relações

psicológicas, Helmholtz propôs a sua teoria das inferências inconscientes, segundo a qual

as “sensações seriam organizadas por experiências passadas, que seriam armazenadas

como as premissas maiores de um silogismo, aptas a ordenar de modo inconsciente e

rápido as premissas menores informadas pelos sentidos, produzindo como conclusão as

nossas representações psicológicas” (JACÓ-VILELA 2006, p. 87).

Para a realização desse estudo Helmholtz precisou desenvolver uma nova

metodologia, que chamou de introspecção experimental, e consistia em uma análise

consciente do objeto de modo a neutralizar qualquer inferência inconsciente suscitada por

experiência passada. Portanto, para se minimizar o erro do experimento, o sujeito do

experimento deveria ser alguém treinado para não confundir o objeto percebido com

juízos inconscientes derivados de experiências passadas. Em se tratando de estudos cujo

objeto eram as sensações, para que tal estudo fosse objetivo, seria necessário que o sujeito

fosse um fisiólogo capaz de separar a experiência passada da sensação presente.

Por fim, a terceira objeção kantiana, ou seja, a falta de uma matematização da

psicologia, será resolvida não por um fisiólogo, mas pelo psicofísico Gustav Fechner

(1801-1887) que, em 1860, estabeleceu a primeira lei matemática na psicologia, a lei

Weber-Fechner. Partindo da equação desenvolvida pelo fisiólogo Ernst Weber (1795-

1878) sobre a relação de proporcionalidade entre as diferenças apenas percebidas entre

dois estímulos e os valores absolutos destes57, Fechner elaborou uma interpretação teórica

57 Segundo a proposta de Ernst Weber a relação de proporcionalidade entre as diferenças apenas percebidas (dap) entre dois estímulos (Ea e Eb) e os valores absolutos destes se dá pela fórmula dap = Ea – Eb/ Eb que se aplica, por exemplo, “na diferença percebida na relação entre um peso de 1 kg e outro de 2 kg, e a compararmos com a diferença percebida entre um peso de 21 kg e outro de 20 kg. A diferença absoluta é a mesma (um quilo), mas a diferença relativa, que é a efetivamente percebida, depende da relação da diferença com os valores absolutos” (JACÓ-VILELA, 2006, p. 89).

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mais complexa e aplicável às sensações, estabelecendo que "a resposta a qualquer

estímulo é proporcional ao logaritmo da intensidade do estímulo". Ou na forma de uma

equação matemática, S = k log R, em que S é a resposta sensorial percebida, k é uma

constante referente ao tipo de sentido testado bem como o estímulo utilizado e R é a

intensidade estímulo medida por uns instrumento preciso e não-humano.

Com o esforço conjunto de Müller, Helmholtz e Fechner, as objeções kantianas,

que até então impediam a psicologia de ser considerada uma ciência, foram atendidas,

abrindo as portas para uma nova geração de pensadores explorarem os limites da mente

humana. Dentre esses pensadores surge Wilhelm Wundt (1832-1920), um jovem

professor de fisiologia que teve contato com os maiores fisiólogos da Europa e as

principais mentes ocupadas com pesquisas sobre o sistema nervoso central58.

Em 1875, Wundt chegou à Universidade de Leipzig para lecionar um curso e

fisiologia da psicologia, um curso sobre um novo ramo da ciência que, segundo ele, era

objetivo e experimental. A universidade lhe concedeu uma sala para guardar os

equipamentos com os quais realizava demonstrações e experimentos em suas aulas. Ainda

assim, o transtorno de transportar esses equipamentos da sala de armazenagem para a sala

de aula, recorrentemente o fazia lecionar na própria sala de armazenagem.

No entanto, até então, os experimentos e demonstrações realizados por Wundt em

sua sala de equipamentos eram relativamente simples e vinculados ao seu curso. Foi

somente a partir de 1879 que Wundt começou a realizar experimentos exploratórios em

psicologia, que não faziam parte de seu curso, marcando o que muitos reconhecem como

o surgimento do primeiro laboratório de psicologia e o estabelecimento da psicologia

experimental como ciência independente59, razão pela qual o fisiólogo alemão ficou

conhecido por muito como o fundador da psicologia científica.

Apesar da inegável importância da criação do Instituto de Psicologia de Leipzig

para a autonomia da psicologia, não seria justo para com a obra de Wundt assumir que o

58 Wundt passou um semestre em 1856 na Universidade de Berlim estudando com Johannes Müller e Emil Du Bois-Reymond e foi assistente de Hermann von Helmholtz na Universidade de Heidelberg de 1858 a 1864. 59 O laboratório de psicologia de Leipzig, de fato, só foi oficialmente reconhecido em 1883 quando passou a ser chamado de Instituto de Psicologia e passou a ser listado no catálogo da universidade e incluído no orçamento universitário.

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título de fundador da psicologia científica se deva somente a isso. Até porque, seria

possível defender que a psicologia científica foi criada em 1830, com o trabalho de Ernst

Weber sobre a relação de proporcionalidade entre as diferenças apenas percebidas entre

dois estímulos e os valores absolutos destes, ou então em 1850, tanto com a medição da

velocidade de transmissão neural feita por Hermann von Helmholtz quanto com o

primeiro experimento em psicofísica feito por Gustav Fechner.

De fato, a contribuição de Wundt vai além da criação do Instituto de Psicologia.

A própria importância do Instituto não se restringe apenas ao fato de ter sido o primeiro,

mas o fato de que no último quarto do século XIX, o laboratório de Wundt foi o

responsável pela formação de toda uma geração de psicólogos, dentre esses, diversos

estudantes de várias partes do mundo, como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, que, ao

retornarem aos seus próprios países foram responsáveis por criar novos laboratórios de

psicologia, disseminando a metodologia de pesquisa de Wundt. Além disso, através do

Instituto, Wundt supervisionou pessoalmente cerca de duzentas dissertações e criou, em

1883, um dos primeiros periódicos de psicologia (o Philosophische Studien que, a partir

de 1906, passou a se chamar Psychologische Studien), destinado, principalmente, à

publicação dos trabalhos realizados no Instituto de Psicologia.

Mesmo que não caiba à Wundt e ao Instituto de Psicologia a primazia da

realização de experimentos psicológicos (Gustav Fechner já havia utilizado meios

experimentais para medir algumas respostas mentais anos antes dos primeiros

experimentos de Leipzig), foi ele quem de fato desenvolveu integralmente a metodologia

de pesquisa que seria utilizada pelas próximas gerações de psicólogos.

No entanto, acima de tudo, o que talvez seja a sua maior contribuição para

estabelecer a psicologia como um campo da ciência autônomo, seria o vasto volume de

artigos acadêmicos e livros dedicados a definir uma nova psicologia nos moldes da

tradição científica do século XIX: uma psicologia restrita ao campo da experiência

possível. Mesmo anos antes da criação do seu laboratório em Leipzig, Wundt já defendia

a visão de que os processos mentais poderiam ser estudados de maneira experimental. Em

1862, na introdução do seu livro Contribuições para a teoria da percepção sensorial,

Wundt escreve:

A importância que a experimentação eventualmente terá na psicologia ainda mal pode ser visualizada por completo. Tem-se mantido constantemente que a área da sensação e percepção é a única na qual o método experimental é possível ... [mas] certamente, isso é

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um preconceito. Tão logo a psiché seja vista como um fenômeno natural e a psicologia como uma ciência natural, o método experimental deve também ser capaz de ser aplicado integralmente a essa ciência. (Wundt apud HUNT, 2007, p. 142)

Com respeito à sua psicologia, Wundt a define como uma ciência empírica cujo

objeto de estudo é a experiência imediata, ou seja, o conteúdo subjetivo da experiência.

Para Wundt, toda experiência contém dois fatores inseparáveis, o objeto da experiência e

o sujeito da experiência, a partir dos quais podem ser elaborados dois pontos de vista

distintos para a análise da experiência, o ponto de vista objetivo e o ponto de vista

subjetivo. Tomando por base esses dois pontos de vista, Wundt define duas possibilidades

de constituição de uma ciência empírica: a primeira seria investigando os objetos da

experiência (mundo externo), abstraindo o sujeito da experiência, concentrando-se,

portanto, na experiência mediata – como no caso da ciência natural; e a segunda seria

investigando o próprio sujeito da experiência e concentrando-se, portanto, na experiência

imediata – como no caso da psicologia. Nas palavras de Wundt,

Toda experiência é unificada e em si conectada. Mas cada experiência contém dois fatores inseparáveis na realidade: os objetos da experiência e o sujeito da experiência. A ciência da natureza procura determinar as propriedades e as relações mútuas dos objetos. Por isso, ela sempre abstrai do sujeito, na medida em que isso seja possível, dadas as condições gerais do conhecimento. Assim, o seu modo de conhecimento é mediato e, ao mesmo tempo, conceitual-abstrato, uma vez que a abstração do sujeito exige o uso de conceitos hipotéticos auxiliares, aos quais a intuição nunca pode ser completamente adequada. A psicologia suprime essa abstração operada pela ciência natural, a fim de investigar a experiência em sua realidade imediata. Por isso, ela dá conta das inter-relações dos fatores subjetivos e objetivos da experiência imediata, assim como do surgimento de seus conteúdos individuais e de sua conexão. (WUNDT, 2018, p. 38)

Nesse sentido, Wundt destaca que o conhecimento obtido pela ciência natural

(Física, Química, Biologia, etc.) refere-se ao conteúdo específico da experiência mediata,

em que os objetos da experiência são sempre mediados por fatores fornecidos pelo sujeito

da experiência, ao passo que a psicologia possibilita um conhecimento em que o sujeito

do conhecimento não é abstraído, ele é o objeto do conhecimento e, portanto, reflete o

aspecto da experiência que não é mediado por nenhum fator subjetivo.

Sobre a experiência mediata, Wundt ressalta, que apenas uma parte poderia

constituir uma ciência indutiva dedicada a estudar os processos mentais através de

métodos experimentais. Tal ciência seria uma subdivisão da psicologia, que Wundt

denominou psicologia individual fisiológica ou experimental, dedicada ao estudo da

sensação, da percepção e da representação. Processos mentais superiores como a

linguagem, os mitos, a estética, a religião e os costumes sociais pertenceriam a uma

subdivisão da psicologia, denominada psicologia dos povos, dado que tais processos não

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poderiam ser manipulados ou controlados e, portanto, não poderiam ser estudados

experimentalmente – apenas poderiam ser pesquisados por meio e observações e através

de registros históricos.

Indo além, Wundt defendia que a psicologia, por estudar as formas universais da

experiência humana imediata, era a mais geral de todas as ciências do espírito (como

Filologia, História e Direito, por exemplo) e, portanto, deveria ser o fundamento de cada

uma delas. Nesse sentido, uma vez que a psicologia é o fundamento das ciências do

espírito e complementar à ciência natural, então ela, a psicologia, deveria ser uma ciência

preparatória para a filosofia60, guiando-a na formulação de um novo sistema filosófico

que integraria todas as ciências.

Apesar de ter formulado nos seus escritos filosóficos uma ética, uma lógica, uma

teoria do conhecimento e uma metafísica, Wundt falhou na sua ambição de produzir um

sistema filosófico integrado. De fato, menos ambiciosa, mas não menos grandiosa, sua

maior contribuição para a psicologia foi no campo prático, ao desenvolver um método

científico e experimental para a produção e conhecimento psicológico baseado nos

métodos utilizados pelas ciências fisiológicas, mas como comentado por Wundt61, com

adaptações específicas para a investigação psicológica.

Partindo do pressuposto de que a psicologia deve estudar o mesmo objeto que a

ciência natural, mas sob um ponto de vista diferente, Wundt assume que a metodologia

investigativa deve ser similar, ou seja, deve-se basear em experimentos e observação. Tal

qual na ciência natural, no caso da psicologia, Wundt define o experimento como sendo

uma “interferência proposital (manipulação) do pesquisador sobre o início, a duração e o

modo de apresentação dos fenômenos investigados” (JACÓ-VILELA, 2006, p. 96).

Com respeito à observação, Wundt introduziu, nos seus experimentos e de seus

alunos, a técnica da introspecção, porém não nos moldes da filosofia, como um processo

de auto-observação ou uma meditação contemplativa. Wundt concebia a introspecção

60 Em História da psicologia: rumos e percursos é dito que: “De todas as disciplinas empíricas, Wundt considera que a psicologia é aquela cujos resultados mais contribuem para a investigação dos problemas gerais da teoria do conhecimento e da ética, os dois domínios filosóficos fundamentais para ele.” (JACÓ-VILELA, 2006, p. 95) 61 Em Princípios da Psicologia Fisiológica (1874), Wundt diz que “a psicologia adaptou os métodos fisiológicos, assim como a fisiologia adaptou métodos físicos para seus próprios fins” b apud HOTHERSALL, 2006, p. 109)

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aplicada à psicologia individual como percepção interna precisa, circunscrita e

controlada. Para tanto, a metodologia wundtiana estipulava que o condutor da experiência

apresentaria um estímulo e observaria as reações visíveis do sujeito da experiência ao

mesmo tempo em que o próprio sujeito observaria as percepções e sentimentos gerados

nele pelo estímulo.

Tal abordagem, no entanto, confinada a pesquisa psicológica às percepções e aos

sentimentos simples e imediatos despertados por sons, luzes, cores e outros estímulos.

Além disso, por se tratar de um procedimento árduo e rigidamente controlado que exigia

tanto do observador quanto do sujeito um estado de atenção concentrada e pleno domínio

das condições do experimento, o procedimento de introspecção exigia que ambos,

observador e sujeito, fossem profissionais capacitados e treinados para realizar o

procedimento. Com isso, ao utilizar esse tipo de introspecção para experimentação

psicológica, a grande inovação e contribuição do procedimento foi produzir informação

quantitativa sobre as reações conscientes internas do sujeito.

Como resultado de seus experimentos, Wundt e seus pesquisadores concluíram

que existem dois elementos básico na composição dos processos mentais conscientes: as

sensações ligadas ao conteúdo objetivo da experiência imediata (som, luz etc.) e os

sentimentos simples ligados ao conteúdo subjetivo (prazer, desprazer etc.). A partir de

conexões (ou sínteses criativas, segundo Wundt) desses elementos básicos, processos

mentais complexos são criados.

Os processos mentais complexos, apesar de compostos por elementos básicos,

possuem características próprias diferentes das dos seus componentes e podem assumir

quatro formas diferentes dependendo do elemento básico que o origina; são elas as

representações (originadas a partir das sensações) e os sentimentos compostos, os afetos

e os processos volitivos (originados a partir dos sentimentos simples). Porém, a síntese

criativa descrita por Wundt difere da combinação de ideias proposta pelos

associacionistas, pois na sua concepção, a associação consiste apenas em um processo

secundário de conexão de elementos já presentes em diversos compostos. A criação ou

síntese criativa de novos processos mentais complexos se dá através do que Wundt chama

de fusão, quando elementos psíquicos simples se fundem em um composto psíquico novo

e diferente dos elementos que o compõem.

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99

Segundo a teoria wundtiana, as regras segundo as quais esses elementos se fundem

não correspondem às mesmas do mundo físico. Ainda que não defendesse uma visão

dualista – de fato, ele não acreditava na possibilidade da existência de uma mente

separada do corpo – Wundt concebia uma causalidade psíquica e uma causalidade física

coexistindo paralelamente. Segundo sua teoria do paralelismo psicofísico, dado que a

mesma experiência pode ser conhecida a partir de um ponto de vista objetivo e um

subjetivo, então, em alguns casos, reconhece-se que existe uma relação necessária entre

um dado processo psicofísico elementar e seu processo físico correspondente quando

existe uma correspondência direta entre a experiência imediata e a mediata. Deste modo,

tem-se que tanto a causalidade psíquica quanto a física coexistem não somente de modo

paralelo, mas também complementar, com a causalidade física fundamentada nas leis da

natureza e a causalidade psíquica nas leis fundamentais da vida psíquica. Diferenciando-

se do materialismo sugerido por fisiólogos para explicar as relações entre mente e corpo,

Wundt afirma que

a diferença característica entre o materialismo puro e o psicofísico em relação ao conceito de função consiste no seguinte: o primeiro concebe a relação entre o físico e o psíquico como função do primeiro tipo ou função causal, o último, simplesmente como função do segundo tipo ou, para usar uma expressão matemática, função “arbitrária”. Assim, até os defensores dessa posição geralmente enfatizam que entre o físico e o psíquico existe de fato “dependência”, mas não “causalidade”. (WUNDT, 2018, p. 56)

A importância da teoria do paralelismo psicofísico reside no fato afirmar que a

causalidade do aspecto objetivo ou físico da experiência não se aplica ao aspecto subjetivo

ou psíquico da experiência, o que justifica a sua pressuposição de uma causalidade própria

para o domínio dos processos mentais. Consequentemente, estabelece-se como lógico e

necessário o reconhecimento da autonomia do conhecimento psicológico e o

estabelecimento da psicologia como ciência independente. Segundo Wundt,

Porém, mesmo que fosse correta a afirmação de que a causalidade da natureza é completa - não apenas como postulado, mas em relação a todos os fenômenos individuais, incluindo os processos cerebrais correspondentes às vivências psíquicas -, ainda assim uma teoria fisiológica dos fenômenos da consciência não nos forneceria nenhuma informação sobre o significado e as relações internas daquelas vivências. A meta da psicologia, portanto, permanece autônoma, já que é impossível derivar o caráter de uma conexão psíquica a partir de um nexo mecânico ou das transformações das formas físicas da energia, assim como é impossível explicar a qualidade da sensação a partir de um movimento molecular. (WUNDT, 2018, p. 43)

A contribuição para a psicologia que fez de Wilhelm Wundt um homem famoso,

sem dúvida, se deu no campo experimental. Porém, embora tenha recebido menos

destaque, não menos importante foi sua contribuição no campo teórico. Nos seus últimos

Page 109: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Pedro

100

vinte anos de vida, Wundt dedicou-se a desenvolver uma outra parte da sua psicologia

que não fosse a sua psicologia experimental ou individual; tal psicologia, conforme

mencionado anteriormente, Wundt denominou psicologia dos povos. Para Wundt, o papel

da psicologia dos povos seria complementar ao da psicologia individual, analisando um

aspecto da mente humana que não poderia ser explorado pela psicologia individual, qual

seja, “dos processos psíquicos ligados à convivência dos homens”, “que surgem da

interação mental de uma pluralidade de indivíduos” (WUNDT, 2018, p. 101).

Apesar da sua dedicação tardia à sua psicologia dos povos, Wundt percebeu cedo

na sua carreira62 que existem elementos da vida psíquica que são inacessíveis ao método

experimental e, portanto, só podem ser estudados através da observação. Tais elementos

são os produtos mentais complexos originados ao longo dos tempos, como a linguagem,

a religião, os mitos e os costumes, e que não são originados individualmente, mas que

pressupõem uma comunidade de indivíduos com uma mentalidade compartilhada. Ainda

assim, embora as condições gerais para a formação de tais elementos dependam da

comunidade, sua criação também depende das características psíquicas do indivíduo em

particular, o que torna a psicologia dos povos não somente complementar à psicologia

individual, mas também dependente. Segundo ele,

A mente coletiva é um produto das mentes individuais, das quais ela é composta; mas estas são igualmente produtos da mente coletiva, da qual elas participam. (WUNDT, 2018, p. 110)

Ao longo de sua vida, Wilhelm Wundt produziu uma vasta obra abrangendo os

mais diversos temas da psicologia, mas, acima de tudo, dedicou-se arduamente (e com

sucesso) no projeto de estabelecer a psicologia como uma ciência legítima, estabelecendo

um sistema psicológico que compreendia não somente um ramo individual/experimental,

mas também um ramo social/observacional. Ainda assim, boa parte de sua obra foi mal

interpretada ou adaptada e, atualmente, pode-se dizer que pouco da teoria wundtiana,

afora sua histórica contribuição experimental, aparece nos livros de psicologia.

A responsabilidade por essa imagem distorcida de Wundt se deve, em grande

parte, a alguns de seus alunos no laboratório de Leipzig. Pelo Instituto de Psicologia da

Universidade de Leipzig passaram grandes nomes que moldaram a psicologia do século

62 Em 1862, Wundt já havia definido o termo “psicologia cultural ou étnica” na introdução de seu primeiro livro Contribuições para a Teoria da Percepção Sensorial

Page 110: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Pedro

101

XX, como Oswald Külpe (1862-1915), Emil Kraepelin (1856-1926), Hugo Münsterberg

(1863-1916), Edward Titchener (1867-1927), G. Stanley Hall (1846-1924), James

McKeen Cattell (1860-1944), Vladimir Bekhterev (1857-1927), James Rowland Angell

(1869- 1949) e Charles Spearman (1863-1945). Porém, é justo dizer, que, apesar desses

ilustres alunos, ao voltarem para seus lugares de origem, tenham levado consigo e

disseminado o modelo de pesquisa e de laboratório wundtiano, apenas “o seu laboratório

e, sobretudo, os aparelhos e técnicas experimentais foram assimilados e reproduzidos ou

adaptados às condições específicas de cada país, mas não o seu sistema teórico como um

todo, que era bem mais abrangente e complexo do que era transmitido nas atividades

experimentais” (ARAUJO, 2009, p. 12).

Com isso, muito do trabalho não-experimental de Wundt foi gradativamente

sendo esquecido e grandes contribuições como “toda a parte da relação entre psicologia

e cultura (psicologia dos povos) e de sua filosofia foi ou diminuída ou explicitamente

abandonada, resultando na imagem simplificada de Wundt como experimentador”

(ARAUJO, 2009, p. 13). Ainda assim, é inegável dizer que Wundt desempenha um papel

crucial na discussão da relação entre a psicologia e a sociologia, não somente devido ao

fato de ter moldado a psicologia moderna como ciência, mas por ter efetivamente se

debruçado sobre a questão em si.

Após Wundt, a psicologia vivenciou um acelerado processo de crescimento e

desenvolvimento, com inúmeros psicólogos surgindo com as mais variadas escolas de

pensamento quase que simultaneamente. É nesse período que Max Weber tem contato

com a disciplina da psicologia, porém, é difícil precisar em que medida e de que modo

essa prolífica geração de psicólogos pós-wundtianos influenciou a visão de Weber. Sabe-

se, no entanto, que Wundt foi uma figura pivotal na discussão que, mais tarde, será

assumida por Max Weber e Sigmund Freud sobre a relação entre a psique e a sociedade.

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102

III. Sociologia vs. Psicologia: a origem da barreira

psicossocial

Em se tratando da relação entre as ciências da sociologia e da psicologia, seria

justo afirmar que a noção de uma ciência que unificasse os conceitos de ambas é algo

bastante recente. De fato, tal ciência somente foi cogitada como possível ao final do

século XIX, por pensadores como Gabriel Tarde (1843-1904), Gustave Le Bon (1841-

1931) e o já citado Wilhelm Wundt63. No entanto, foi somente na década de 20 do século

XX que tal ciência se concretizou nos moldes de um conhecimento empírico com o

surgimento da Psicologia Social64, ramo da psicologia dedicada a essa questão. Na

sociologia, apesar de, em diversos momentos, ser reconhecido a influência do elemento

psicológico no comportamento social, não é possível dizer que exista um ramo dedicado

exclusivamente a explorar os fenômenos psicológicos sob uma ótica social65.

Ainda assim, tendo visto nos capítulos anteriores que tanto a sociologia quanto a

psicologia referem-se a conhecimentos que o homem busca a milhares de anos, é difícil

imaginar que uma relação entre ambas nunca tenha sido cogitada antes do século XIX.

Mesmo porque, os objetos de estudo de ambas, sociologia e psicologia, encontram-se

demasiadamente próximos, pois, de modo bastante simplificado, pode-se dizer que no

caso da sociologia, o seu objeto de estudo consiste em desvendar as relações sociais do

homem, ou seja, como os homens se relacionam entre si, enquanto a psicologia, a sua

vez, dedica-se ao entendimento do funcionamento da mente humana e de como o homem

se relaciona consigo mesmo e com o mundo exterior.

63 Como mencionado no Capítulo II, Wilhelm Wundt publicou de 1900 a 1920 os 10 volumes da sua Psicologia dos Povos. Apesar de Wundt ter desenvolvido a ideia de uma psicologia dos povos muitos anos antes da sua publicação (Em 1862, Wundt já havia definido o termo “psicologia cultural ou étnica” na introdução de seu primeiro livro Contribuições para a Teoria da Percepção Sensorial), anteriormente a ele, Gabriel Tarde publicou, em 1893, As multidões e as seitas criminosas e, em 1898, O público e a multidão, juntamente com Gustave Le Bon que publicou sua Psicologia da Multidão em 1895. 64 Apesar de não ser consensual (pois muitos consideram a Psicologia da Multidão de Le Bon como obra inaugural da Psicologia Social), pode-se dizer que a primeira obra a tratar a Psicologia Social como uma ciência experimental foi Social Psychology, escrita pelo psicólogo Floyd Allport em 1924. 65 A partir da década de 70 do século XX, sugeriu-se o termo “Sociologia das Emoções”, utilizado pela primeira vez em 1975 por Arlie Hochschild, para introduzir uma teoria das emoções incorporada à sociologia. No entanto, não é possível afirmar que a Sociologia das Emoções constitui um ramo da Sociologia.

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103

Tal relação pode ser considerada, com algum esforço, paralela ou similar à relação

de outras ciências, como, por exemplo, a relação entre a biologia e a química. Isso porque,

ainda que, nos primórdios das considerações humanas sobre a natureza das coisas, a

relação entre os seres vivos e os elementos que constituem o universo não passassem de

conjecturas diversas sem qualquer embasamento empírico (e, em alguns casos, nem

mesmo teórico), com o passar do tempo e o desenvolvimento em paralelo de ambas as

ciências, tal relação se tornou mais clara, a ponto de constituir um ramo independente da

Biologia e da Química: a Bioquímica.

Naturalmente, deve-se ressaltar de que tal paralelo é traçado apenas em caráter

ilustrativo, posto que o método científico aplicado às ciências naturais se diferencia

consideravelmente dos métodos científicos utilizados pela Sociologia e pela Psicologia.

De fato, a questão metodológica foi uma dificuldade central de constituição em ciência

aos moldes das ciências naturais tanto na Sociologia como na Psicologia. Dito isso, a

situação similar que se aplica à relação entre a Sociologia e a Psicologia diz respeito à

condição que se impunha a ambas as ciências até o final do século XIX, qual seja, a de

ciências novas ou não desenvolvidas o suficiente para ramificarem-se para além das

fronteiras autoimpostas pelos seus objetos de estudo e métodos.

Tal fronteira, de fato, ao final do século XIX parecia intransponível. Nas suas

buscas por independência da Filosofia (mas também da Medicina, no caso da Psicologia)

e validação como ciências propriamente ditas, tanto a Sociologia quanto a Psicologia

buscaram definir precisamente (mas também rigidamente) as fronteiras dentro das quais

estavam contidos seus objetos de estudo, assim como seus métodos de pesquisa. No

entanto, tal qual colonizadores em terras desconhecidas cujas fronteiras encontram-se em

constante conflito, os inovadores de ambas as ciências se viam atacados e suas obras eram

constantemente questionadas ou desqualificadas. Nesse período, pensadores como

Gabriel Tarde, Gustave Le Bon, Wilhelm Wundt, mais tarde Max Weber e Sigmund

Freud, que não se limitavam em suas ideias à fronteira artificial da tipologia das ciências,

eram raros, ainda que fundamentais para o avanço de ambas as ciências.

Porém, neste capítulo, pretende-se mostrar que tal fronteira nem sempre funcionou

como uma barreira impedindo o avanço da Psicologia pela esfera social assim como o

avanço da Sociologia pela esfera psicológica. De fato, muito antes de se cogitar uma

Psicologia Social, diversos pensadores desenvolveram teorias de como a interação do

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104

indivíduo com outros afeta sua vida mental, e, inversamente, como a personalidade e os

processos do indivíduo afetam o comportamento social, além de ponderar como isso tudo

afeta a cultura e as instituições que compõem a sociedade.

Como visto nos capítulos anteriores, o debate acerca da relação entre indivíduo e

sociedade sempre esteve presente na mente dos principais pensadores da história. Na

Grécia Clássica, abriu-se a possibilidade de compreender o funcionamento da mente

humana bem como a relação do homem consigo mesmo e com outros, baseando-se no

próprio homem e suas experiências. Isso porque o relativismo inaugurado nesse período,

segundo o qual o mundo poderia ser conhecido e organizado segundo as impressões

sensoriais e o raciocínio do homem, permitia definir a sociedade e a visão de mundo

refletida nela como um produto da mente humana.

Nesse contexto, o pioneirismo de uma teoria que relacionasse a alma humana com

o convívio social, ainda que não inteiramente nos moldes de uma teoria científica

moderna, coube não somente à Platão, mas também ao seu mestre, Sócrates, cujas ideias

e palavras foram retratadas e misturadas com as ideias de seu principal discípulo em suas

obras. Platão defende a existência de um lugar imaterial, um mundo das ideias, onde

residem todas as ideias e todo o conhecimento acessível ao homem. Com isso, apesar de

centrar no homem o processo compreensão e organização do mundo físico, Platão rechaça

o relativismo sofista ao admitir a existência de conceitos universais, porém separando-os

do mundo físico, que nada mais seria do que um reflexo imperfeito do mundo das ideias.

Dentre esses conceitos universais, destaca como um dos mais importantes não só

para a organização social, mas também para a salvação da alma, a justiça. Segundo Platão,

ser justo seria “organizar os elementos da alma numa relação natural de controle, um pelo

outro, enquanto produzir injustiça é estabelecer uma relação de governar e ser governado

contrário à natureza” (PLATÃO, 2016, 444d8, p. 200). Tal princípio, destaca em A

República, aplica-se não somente ao homem, mas também ao Estado e à organização da

sociedade, pois, para ele, “um homem é justo do mesmo modo que um Estado é justo”

(PLATÃO, 2016, 441d4, p. 195). Deste modo, na concepção platônica, haja vista que “o

mesmo número e os mesmos tipos de classes que há no Estado são encontrados na alma

de cada indivíduo” (PLATÃO, 2016, 441c5, p. 195), o Estado ideal deveria ser uma

projeção da estrutura da alma na ordem social.

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105

Na concepção de Platão, a alma do homem e a sociedade em que vivem

compartilham estruturas semelhantes, e o bom desempenho de ambas dependem do

equilíbrio de todas as suas partes. Mas isso não se deve simplesmente devido à escolha

do homem. Tanto a alma quanto a sociedade assim o são porque essas correspondem às

suas naturezas e não simplesmente uma convenção humana. A sociedade replica a

estrutura da alma porque é composta por homens, mas não criada por eles. Ou seja, ambas

espelham o ideal universal de alma e da sociedade que existe no mundo das ideias, onde

a parte e o todo compartilham os mesmos elementos constituintes e as mesmas regras de

funcionamento.

Naturalmente, Platão reconhece que, no caso da sociedade, tal concepção constitui

um ideal universal que, embora eterno e perfeito, não faz parte do mundo dos homens,

em que a matéria e as aparência são transientes e imperfeitas, iludindo e corrompendo os

homens, além de corromper, no processo, a sociedade. Essa distância entre o ideal e a

realidade é que irá motivar o pensamento de Aristóteles, bem como sua crítica à

concepção platônica.

Embora defendesse, tal qual Platão, que a origem da sociedade se dá por

necessidade, pois nenhum homem se basta, Aristóteles diverge de seu antigo mestre no

que diz respeito ao princípio de organização da sociedade. Se para Platão, a estrutura da

sociedade espelha a estrutura da alma humana, pois o homem e sua alma são partes

constituintes do todo que compõe a sociedade, para Aristóteles é a natureza que dita como

a sociedade deve ser estruturada. Segundo ele, não somente “foi a própria natureza que

formou as primeiras sociedades” (ARISTÓTELES, 2009, Livro I 1252b32-33, p. 16),

como também “o Estado está na ordem da natureza e antes do indivíduo; porque se cada

indivíduo isolado não se basta a si mesmo, assim também se dará com as partes em relação

ao todo” (ARISTÓTELES, 2009, Livro I, 1253a25-28, p. 17).

Na visão aristotélica, indivíduo e sociedade não possuem uma relação tão direta

quanto a proposta por Platão. Segundo Aristóteles “A natureza compele assim todos os

homens a se associarem” (ARISTÓTELES, 2009, Livro I 1253b25-29, p. 17), porém, o

filósofo não detalha como o homem é compelido a tal ato. Na sua concepção a sociedade

é uma instituição natural, sem a qual o homem não consegue viver (pelo menos não

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106

completamente66) e a existência do homem sem o elemento social algo contrário à sua

natureza.

Embora indique uma relação entre as esferas psicológica e social, Aristóteles não

detalha como essa interação ocorre no processo de associação entre os homens para

compor a sociedade. Indica também que a vida separada da sociedade produz um ser

humano pior, no entanto, novamente não detalha no que consiste essa piora. Seriam

malefícios físicos, referentes à saúde do homem? Morais? Ou psicológicos?

Na visão do Estagirita, tanto a alma do homem quanto a sociedade são geridas por

rígidas leis naturais e, embora assuma uma “natureza do homem”, admite que nem todos

os homens são iguais. Segundo ele, dentro de uma sociedade existem indivíduos com as

mais variadas características e nota que nessa sociedade “as leis só são necessárias para

os homens iguais por nascimento e aptidões; quanto aos que a tal ponto se elevam acima

dos outros, para esses não há lei; eles próprios são a sua lei” (ARISTÓTELES, 2009,

Livro III 1284a5-10, p. 105). Novamente, Aristóteles indica uma possível influência das

características psicológicas dos indivíduos na estruturação e composição de uma

sociedade, mas não desenvolve nada mais além disso.

Em A Política, Aristóteles examina a importância das qualidades naturais dos

cidadãos de uma cidade ou sociedade para a sua grandeza. Segundo ele, indivíduos

corajosos e inteligentes produzem cidades bem governadas e justas, porém tais qualidades

presentes naturalmente em uma determinada raça, dependem ou do clima ou da geografia

da cidade. Para Aristóteles, características, que poderiam ser examinadas

psicologicamente como a inteligência ou mesmo a coragem, são atributos naturais de

determinada raça de homem, não são características desenvolvidas, mas herdadas

geneticamente.

A partir desse pressuposto, Aristóteles pouco desenvolve em seu pensamento o

modo como o elemento social de uma dada sociedade, sua história ou sua cultura

influenciam na formação dos indivíduos que a compõem e a governam. O bom governo

ou não de uma sociedade tem uma relação causal direta com a felicidade dos seus

indivíduos, porém tal relação, por mais que não seja acidental parece, na teoria

66 “se o homem, tendo atingido sua perfeição, é o mais excelente de todos os animais, também é o pior quando vive isolado, sem leis e sem justiça” (ARISTÓTELES, 2009, Livro I 1253a30-35, p. 17).

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107

aristotélica, depender de elementos fora do controle humano, ou seja, das características

naturais dos indivíduos e da região geográfica em que uma dada sociedade se estabeleça.

Dentre os pensadores da Grécia Clássica, Platão e Aristóteles foram, sem dúvida,

os principais pensadores a intuir uma relação entre as esferas psicológica e social da vida

humana. Apesar de discordarem em muitos pontos, suas visões da alma humana e da

organização social davam indícios (mais diretos ou não) de uma ligação mais robusta

entre ambas do que deixavam transparecer. Prova disso está na importância que ambos

davam à educação e às artes na formação do homem grego. Ainda assim, uma teoria da

interação psicossocial estava longe de existir no pensamento de ambos, embora seja justo

dizer que, no pensamento dos dois, não há indícios de uma barreira que impedisse tal

suporte teórico.

Como visto nos capítulos anteriores, nos anos subsequentes aos de Platão e

Aristóteles e durante o período de domínio do Império Romano, pouco foi criado de

original e significativo para o avanço do conhecimento em direção das ciências da

Psicologia e da Sociologia. Consequentemente, tal também foi o caso de qualquer

conhecimento que sugerisse a existência de uma relação entre o funcionamento da mente

humana e a organização de uma sociedade. Foi somente após a queda de Roma, ao início

da Idade Média, que os questionamentos e as inspirações sobre o funcionamento da mente

e sua relação com o funcionamento da sociedade reapareceram.

Pode-se dizer que Agostinho, inspirado no idealismo platônico, assim como no

seu dualismo alma versus corpo, foi um dos primeiros a resgatar e a continuar a obra dos

pensadores gregos clássicos, submetendo seus conceitos à crença cristã. Apesar de rejeitar

a noção de um mundo das ideias e da possibilidade de conhecimento inato que dela deriva,

Agostinho adota de Platão o caráter transcendente da alma, bem como a superioridade da

alma frente ao mundo material, para centrar seu idealismo na figura de Deus.

Segundo Agostinho, o mundo ideal e perfeito é representado pela Cidade de Deus,

organizada e regida por regras divinas e onde habitam aqueles que querem “viver segundo

o espírito”. Já a Cidade dos Homens representa o mundo real e imperfeito, organizado e

regido por leis humanas e onde habitam aqueles que querem “viver segundo a carne”. Na

concepção agostiniana, a Cidade dos Homens nunca conseguiria alcançar a perfeição da

Cidade de Deus, apenas almejá-la e, de maneira imperfeita, espelhá-la – do mesmo modo

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108

em que o mundo real, segundo Platão, consiste apenas em um reflexo imperfeito do

mundo das ideias.

No entanto, diferentemente de Platão, não existe uma relação direta entre a alma

humana e a organização da sociedade. Posto que, na concepção agostiniana, a salvação

da alma e o estabelecimento da paz celestial constituem o objetivo último tanto do homem

como da sociedade, a organização desta e o comportamento do homem devem espelhar-

se não na alma do homem (como afirma Platão), mas no ideal Divino. Com isso,

Agostinho rompe a ligação estabelecida por Platão entre alma e sociedade para introduzir

um elemento mediador entre ambas: Deus. A partir da doutrina agostiniana, a conduta

humana que visa a salvação da alma, bem como a organização da sociedade para que tal

salvação seja possível, passa a ser ditada por Deus.

Ainda que tenha substituído a ligação direta platônica entre alma e sociedade por

Deus, um elemento ideal unificador na constituição e configuração de ambas, mesmo

assim Agostinho promoveu uma divisão entre os saberes referentes aos elementos

psicológicos e os saberes referentes aos elementos sociais da existência humana. Porque

a separação entre os poderes secular e espiritual defendida por Agostinho estabelecia que,

por decreto divino, todo o poder religioso deveria ser exercido pelas autoridades

eclesiásticas, assim como o poder secular deveria ser exercido pelo rei.

Consequentemente, qualquer conhecimento referente a temas psicológicos foi separado

do conhecimento referente a temas sociológicos, sendo que o primeiro ficou sob o

domínio da religião e o segundo ficou sob o domínio da política.

Espelhando a relação de Aristóteles e Platão, Tomás de Aquino contrapôs-se a

Agostinho ao não rejeitar o mundo natural, mas reconhecê-lo como criação divina. O

modo como a divindade transparece no mundo real, segundo Tomás de Aquino, é através

das leis estabelecidas por Deus. Mesmo admitindo que o homem é o agente da lei na

sociedade e que é através da sua razão que os homens estabelecem as leis necessárias para

o bem comum, Tomás de Aquino mantém que é Deus o princípio transcendente

fundamental de toda ação humana, pois a perfeição aspirada na ordenação de uma dada

sociedade através de suas leis consiste na perfeição de Deus.

Embora Tomás de Aquino tenha sido responsável por reintroduzir o pensamento

de Aristóteles à vida intelectual do século XIII, qualquer tentativa do padre escolástico

de naturalizar o conhecimento psicológico, assim como o conhecimento sociológico,

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109

estava fadada a esbarrar no mesmo obstáculo: o conceito absoluto de Deus. De fato, o

mesmo Deus onipotente e onipresente que assegurava a verdade da doutrina cristã,

impedia o desenvolvimento de qualquer novo conhecimento que pudesse não se basear

fundamentalmente em Deus. O conhecimento psicológico e sociológico, como visto nos

capítulos anteriores, foram vítimas dessa barreira, mas também qualquer ponderação

acerca da relação entre a alma do homem e as leis que regulam as interações humanas e

possibilitam a existência de uma sociedade.

Com o Renascimento, e o afrouxamento parcial do controle da Igreja sobre a

produção de ideias, novos pensadores avançaram no desenvolvimento do conhecimento

científico. O pensamento sociológico e psicológico, como pressuposto, também observou

um desenvolvimento significativo nesse período. No entanto, a área fronteiriça dessas

duas nascentes ciências não foi tão explorada. De fato, a análise dos dois capítulos

precedentes informa que apenas alguns filósofos habitaram a zona de intersecção do

pensamento sociológico com o psicológico.

Ainda assim, pensadores mencionados anteriormente que tenham contribuído

significativamente para o desenvolvimento ou da Sociologia ou da Psicologia, mas não

de ambas, como Maquiavel, por exemplo, não podem ser ignorados. Embora a filosofia

política do pensador fiorentino tenha repercutido de maneira mais intensa e direta no

campo do pensamento político e da sociologia, suas considerações sobre a natureza do

poder e da dominação dos homens pelos homens revelam considerações psicológicas

profundas sobre o homem e as massas. Porém, como mencionado, tais considerações não

foram exploradas por si só nos textos de Maquiavel, mas apenas associadas à sua análise

política. Por isso, muito embora exista material a ser desenvolvido nessas considerações,

possivelmente não se aplique a esta tese.

Nesse sentido, apesar do expressivo desenvolvimento técnico-intelectual

subsequente ao Renascimento, somente a partir do século XVI, foi possível uma maior

integração entre os campos do conhecimento sociológico e psicológico. Pois, somente a

partir de Descartes e da sua filosofia racionalista, que a produção de conhecimento

assumiu um viés racional focado no homem como criador de conhecimento pelo exercício

da razão. Citando novamente Joceval Andrade Bitencourt, em Descartes e a Invenção do

Sujeito, o pensamento de Descartes é “contrário à divinização do mundo, que tira do

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110

sujeito a autonomia no processo de construção da verdade e o submete às estruturas de

uma verdade que dele independe e que a ele antecede” (BITENCOURT, 2017, p. 29).

Embora, num primeiro momento, seja possível dizer que a filosofia cartesiana e

sua preocupação em desvendar o funcionamento da mente apresente maiores e mais

drásticas repercussões no desenvolvimento de conhecimento psicológico, é inegável que,

ao depositar a responsabilidade do conhecimento e da transformação do mundo real na

razão humana, Descartes abriu espaço para outras discussões, até então circunscritas ao

domínio religioso. Mesmo defendendo o inatismo de certas ideias, Descartes admite o

poder da experiência na formação de alguns tipos de ideias e, com isso, possibilita o

questionamento da influência do meio e da cultura no funcionamento da mente. Ainda

que não tenha desenvolvido, de fato, a concepção de uma ciência tal qual a psicologia

social, suas ideias permitiram que os herdeiros de suas ideias cogitassem tal possibilidade.

Um desses herdeiros, embora crítico do racionalismo cartesiano, foi Thomas

Hobbes e sua filosofia empirista. Hobbes defendia que o homem opta por viver em

sociedade por uma questão de necessidade, pois, sozinho, seria muito mais difícil

sobreviver na natureza. No entanto, para viver em sociedade, o homem tem que superar

o “estado da natureza”, em que todos encontram-se contra todos, firmando um contrato

social67, segundo o qual, os homens cedem parte dos seus direitos (além do uso da

violência) para o Estado, de modo que este garanta a convivência pacífica e os direitos

individuais. Na visão de Hobbes, tal configuração da vida em sociedade é fruto tanto da

influência do meio externo onde vive o homem quanto da própria natureza humana.

Para Hobbes, a sobrevivência do homem, vivendo na natureza e sozinho, enfrenta

enormes dificuldades e diversos desafios. Nesse sentido, é vantajoso e lógico para o

homem uma existência em grupo, compartilhando os riscos e dificuldades, mas também

os frutos do trabalho em conjunto. No entanto, Hobbes destaca que tal existência

cooperativa não ocorre naturalmente entre homens livres68 e, portanto, o contrato social

67 Para superar o estado de natureza e solucionar os conflitos decorrentes da vida nesse estado, Hobbes prescreve “uma unidade real de todos, numa só e mesma pessoa, por meio de um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que seria como se cada homem dissesse ao outro: desisto do direito de governar a mim mesmo e cedo-o a este homem, ou a esta assembleia de homens, dando-lhe autoridade para isso, com a condição de que desistas também de teu direito, autorizando, da mesma forma, todas as suas ações” (HOBBES, 2014, p. 141). 68 Segundo afirma Hobbes, citando um dito na sua Epístola Dedicatória em Do Cidadão, “o homem é o lobo do homem”.

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111

necessário para a vida em sociedade não pode ser firmado individualmente entre os

homens69. Segundo ele, cada homem deve firmar tal contrato com uma terceira parte

imparcial na resolução dos conflitos, mas que defenda em primeiro lugar o interesse

comum. Tal contraparte, argumenta Hobbes, seria o Estado.

A vida em sociedade humana, portanto, por mais benéfica que seja, não ocorre

naturalmente, pois a própria natureza do homem é seu maior obstáculo70. No entanto, por

mais que o Estado tenha como função impor as condições necessárias à vida em

sociedade, mas contrárias à natureza humana, a constituição inicial de um contrato social

entre Estado e indivíduo implica, necessariamente, uma renúncia (ou repressão) do

homem de parte de sua natureza. Muito embora os pensadores que o antecederam

defendam a função reguladora e punitiva do Estado, Hobbes foi um dos primeiros a

definir a vida em sociedade como útil, necessária e lógica, mas não natural.

Considerando seu pensamento acerca da mente humana, no entanto, Hobbes

defende que todas as ideias e pensamentos derivam das impressões sensitivas que

ocorrem através da interação entre os órgãos sensoriais e a matéria em movimento e que

tal coisa como uma alma incorpórea, em que as ideias seriam formadas não existe. Deste

modo, pode-se concluir que, segundo a própria definição de Hobbes, a maldade humana

inerente ao seu conceito de natureza humana não seria inata, mas fruto de interações com

o mundo exterior. No entanto, contraditoriamente, Hobbes define tal maldade como

natural ao homem, como algo que deve ser expurgado pela ação do Estado e que o homem

deve abdicar para viver civilizadamente.

Ainda que a natureza humana se apresente como uma contradição entre o

pensamento sociológico e psicológico, em Hobbes, tal contradição deixa transparecer na

filosofia do empirista inglês uma relação entre o indivíduo e a sociedade que não a

imaginada até então, qual seja, que o homem opta por criar as condições para a vida em

69 Para Hobbes, as “paixões que inclinam o homem a querer a paz são o medo da morte, o desejo das coisas que lhe dão conforto e a esperança de obtê-las por meio de seu trabalho” (HOBBES 2014, p. 110). Deste modo, reconhece a necessidade da figura do Estado para fazer valer o pacto firmado pelos indivíduos da sociedade, pois “Sem a espada, os pactos não passam de palavras sem força, que não dão a mínima segurança a ninguém” (HOBBES, 2014, p. 138). 70 Segundo Hobbes, “as leis naturais (tais como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, enfim, o que determina que façamos aos outros o que queremos que nos façam) são contrárias a nossas paixões naturais, que nos inclinam para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes, se não houver o temor de algum poder que nos obrigue a respeitá-las” (HOBBES, 2014, p. 138).

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sociedade abdicando de parte de sua natureza, mas uma parte que aflora, justamente,

quando o homem decide viver em comunidade.

Hobbes, no entanto, não se aprofundou nas ramificações psicológicas implicadas

no convívio em sociedade. Seu conceito de natureza humana, por mais contraditório que

possa parecer, encerra várias questões no pensamento hobbesiano ao simplificar o

funcionamento da mente humana, assim como as consequências das interações entre

amente do indivíduo e o mundo exterior criado por ele mesmo. Ainda assim, a análise do

pensamento hobbesiano deixa claro que, embora não explorada, existe a possibilidade de

estabelecer uma relação entre as esferas social e psicológica da vida humana.

Analogamente a Hobbes, John Locke defende que todo o conhecimento e todas as

ideias derivam da experiência sensitiva e que, portanto, o inatismo das ideias defendido

por pensadores como Platão e Descartes não condiz com realidade observável. Além

disso, no que diz respeito à sua filosofia política, Locke concorda com Hobbes no que

tange a concepção individualista do homem, a lei natural como lei de autopreservação, a

realização de um pacto entre os homens para sair do estado de natureza e a sociedade

política como solução para os males e problemas do estado de natureza. No entanto,

diferentemente de Hobbes, Locke assume uma perspectiva positiva acerca da natureza

humana, assume que o estado da natureza é essencialmente pacífico (e não violento como

afirma Hobbes) e que o pacto social é revogável e, portanto, a forma de governo é restrita

e não absoluta71.

Para Locke, o estado da natureza é, em tese, prazeroso e pacífico; um estado pré-

político, mas não necessariamente pré-social, em que o homem vive segundo a lei natural,

ou seja, vive de acordo com em certas regras da natureza que governam a conduta humana

e que podem ser descobertas com o uso da razão. No entanto, adverte que esse estado da

natureza ideal pode se tornar um estado de guerra equivalente à descrição de Hobbes,

quando indivíduos irracionais (pois não utilizam a razão para compreender a lei natural)

71 Para Locke, “o que inicia a e de fato constitui qualquer sociedade política não passa do consentimento de qualquer número de homens livres capazes de uma maioria no sentido de se unirem e incorporarem a uma tal sociedade. E é isso e apenas isso, que dá ou pode dar origem a qualquer governo legítimo no mundo” (LOCKE, 1998, Tratado II §99, p. 472). Portanto, uma vez que o consentimento se desfaça, a sociedade se desfaz e o Estado responsável por manter tal sociedade perde a sua legitimidade.

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113

tentam se aproveitar dos outros ou quando o conflito de duas ou mais pessoas, se não há

uma terceira parte para arbitrar o conflito, se resolve pela força e não de maneira justa.

Segundo Locke, a harmonia de um estado da natureza advém da ausência do uso

da força sem direito, pois “força sem direito sobre a pessoa de um homem causa o estado

de guerra” (LOCKE, 1998, Tratado II §19, p. 398), mas “uma vez deflagrado, o estado

de guerra continua” (LOCKE, 1998, Tratado II §20, p. 399). Por isso, argumenta que se

torna necessário ao homem abandonar o estado da natureza e constituir a sociedade civil.

Isso porque:

Ali onde existe autoridade, um poder sobre a Terra, do qual se possa obter amparo por meio de apelo, a continuação do estado de guerra se vê excluída e a controvérsia decidida por esse poder” (LOCKE, 1998, Tratado II §21, p. 400).

Na concepção de Locke, é possível a vida em sociedade no estado da natureza, no

entanto, quando o elemento da irracionalidade se enraíza no seio dessa sociedade, quando

indivíduos deixam de usar a razão e respeitar a harmonia da lei natural. Nesse momento,

a sobrevivência dessa sociedade depende de um pacto ou acordo entre os indivíduos que

a compõe, segundo o qual todos, de comum acordo, delegam ao Estado a função de juiz

e protetor dos direitos de cada cidadão à vida, à liberdade e à propriedade.

A irracionalidade, ou a incapacidade de compreender a lei natural pelo uso da

razão, é ao mesmo tempo, para Locke, o elemento disruptor e criador da sociedade civil.

É também um forte indício de uma possível integração entre os elementos sociológicos e

psicológicos do seu pensamento. Utiliza-se aqui os termos “indício” e “possível” com

cautela porque, apesar de Locke nunca ter rechaçado a possibilidade de uma teoria

explicativa integrada, que abarcasse a interação recíproca da mente humana com as

instituições que compõe a sociedade, tampouco explorou a raiz da irracionalidade que

descreve como fundamental para explicar a sociedade e o homem civilizado. Se existe

um elemento psicológico explicativo na formação da sociedade ou um elemento social

que explicasse o funcionamento da mente humana, Locke não se dedicou a estudá-los a

fundo.

O traço em comum no pensamento de Hobbes e Locke, assim como no

pensamento dos demais filósofos explorados neste capítulo, é que todos, mesmo que de

maneira indireta, estabeleceram nas suas respectivas filosofias alguma relação entre o

elemento psicológico e o social da vida humana. Com Platão, a sociedade replica a

estrutura da alma humana, ambas espelham imperfeitamente um ideal presente apenas no

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114

mundo das ideias. Aristóteles estabeleceu uma relação entre alma e sociedade derivada

da natureza real e não de um ideal, ao passo que tanto Agostinho quanto Tomás de Aquino

inspiraram-se em Platão e Aristóteles em suas teorias, mas adicionaram um elemento

unificador universal: Deus.

Por fim, os empiristas Thomas Hobbes e John Locke, no século XVII, deram

indícios tanto através da suas filosofias políticas, quanto das suas respectivas

epistemologias, que provavelmente a natureza humana, o modo como o homem

compreende e atua no mundo real afeta e influi na constituição e no funcionamento da

sociedade, assim como a vida em sociedade afeta o comportamento do homem e o modo

como encara o mundo exterior. Além desses pensadores, outros também citados nos

capítulos anteriores, contribuíram para o desenvolvimento de suas filosofias na direção

tanto da psicologia quanto da sociologia, porém sem efeito significativo para uma teoria

psicossocial unificada.

Tal também seria o caso de pensadores como Rousseau, Montesquieu, Hegel,

Marx e Saint-Simon (do lado dos “sociólogos”), assim como Espinosa, Berkeley, Hume,

Kant e Leibniz (do lado dos “psicólogos”), muito embora seja inegável o alcance dos

escritos dos pensadores listados acima (independentemente da categorização que possa

ser a eles atribuída em função da organização desta tese) estendem-se para muito além

das fronteiras em que foram circunscritos.

Nas considerações de Rousseau sobre a natureza humana, sem dúvida, existem

indícios e insights acerca do funcionamento da mente humana, não somente do modo

como o homem se relaciona e se organiza na presença de outros homens. Assim como,

naturalmente, ao buscar estabelecer a lógica por trás da organização de todas as

sociedades, Montesquieu teve que, necessariamente, considerar em cada caso o tipo de

homem que compunha uma determinada sociedade.

Explorados por Herbert Marcuse em Razão e Revolução, Saint-Simom, Hegel e

Marx, apresentam, em suas obras, provas irrefutáveis de que seus pensamentos não se

conformam às fronteiras de uma única ciência. Filósofos por definição, tanto Hegel

quanto Saint-Simon e Marx, no entanto, influenciaram de maneira muito mais

significativa o desenvolvimento do pensamento social e da formação de uma sociologia,

em oposição à psicologia. O mesmo não poderia ser dito de outras ciências, haja vista a

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expressiva presença de conceitos hegelianos no Direito, ou de conceitos marxianos na

Economia.

De modo análogo, o mesmo pode ser dito de pensadores como Espinosa, Hume e

Kant, que cruzaram a fronteira da filosofia e contribuíram de modo significativo para o

desenvolvimento do conhecimento psicológico, porém não influenciaram de maneira tão

marcante os primórdios de uma sociologia ou mesmo de uma teoria unificada entre

psicologia e sociologia. Ainda assim, em seus escritos epistemológicos, fica claro para

qualquer leitor atento, que nenhum desses filósofos deixou de considerar um aspecto

fundamental da condição humana, qual seja, que o homem é um ser social e que o

conhecimento, por mais introspectivo que possa ser, é, de fato influenciado por essa

condição.

Também seria correto afirmar que sem a contribuição de filósofos como Espinosa,

Hume Leibniz e Kant, o próprio conceito de ciência como entendemos hoje não seria

possível, assim como a visão de mundo e da realidade que hoje é compartilhada pela

humanidade em muito deve às obras desses pensadores. No entanto, também seria

possível dizer que nenhum desses pensadores contribuiu de maneira significativa para a

construção de uma ponte entre os conhecimentos de cunho sociológico e psicológico –

apesar que, justiça seja feita, tampouco contribuíram para impedir a integração desses

mesmos conhecimentos. Tal não foi o caso, no entanto, dos pensadores que serão

analisados na sequência, que, a partir do século XIX, assumiram uma posição bastante

definida acerca da fronteira que separava o conhecimento sociológico do psicológico.

O século XIX foi um período de intensa produção científica, mas também de uma

grande diversificação e especialização das ciências. A busca por conhecimento

verificável empiricamente, uma conditio sine qua non na configuração de uma ciência

moderna, distanciava as nascentes ciências de conceitos metafísicos e, por consequência,

da filosofia. Nesse contexto, o grande critério para se estabelecer a independência de uma

candidata a ciência consistia no método com o qual os dados e o conhecimento eram

obtidos.

Nas ciências naturais, o método apresentado por Bacon e Descartes para a

produção de conhecimento mediante experimentação se mostrava bastante direto e, acima

de tudo, suficiente para garantir a separação de ciências como a Física, a Química e a

Biologia da Filosofia. Isso porque a realização de experimentos em condições controladas

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116

permitiu, não somente de maneira dedutiva, mas também indutiva, alcançar conclusões

replicáveis, algo que o raciocínio dedutivo da Filosofia não necessariamente permite

nessas áreas do conhecimento.

No entanto, no caso das ciências humanas, como a Economia, a Sociologia e a

Psicologia, entre outras, o estabelecimento de seu método não ocorreu de maneira tão

direta e indiscutível. De fato, as propostas de estudo dos mais diferentes aspectos da

existência humana apresentam especificidades no que diz respeito ao objeto do estudo,

mas, principalmente ao modo como o conhecimento é obtido. Consequentemente, o

estabelecimento de um método científico que abrangesse todas essas ciências, se mostrou

um ideal de difícil, senão impossível, realização, dado que nem mesmo dentro o círculo

acadêmico de uma única ciência o consenso quanto ao método de pesquisa tem sido,

pacificamente, alcançado.

Um exemplo clássico desse tipo de disputa interna aconteceu entre economistas

alemães no final do século XIX na controvérsia metódica, que ficou conhecida como

Methodenstreit. Em disputa estavam de um lado a Escola historicista alemã, que defendia

uma Economia concebida como ciência histórico-individualizadora, dotada de conteúdo

normativo, e a Escola austríaca, que defendia uma economia separada da história,

composta por leis abstratas regendo os aspectos especificamente econômicos dos

fenômenos sociais.

A questão acerca do método, para a sociologia e para a psicologia, foi um marco

a ser atingido na busca de legitimação, porém, no caso da psicologia, o estabelecimento

de um método de pesquisa científica enfrentou não somente disputas internas, mas

questionamentos externos. Apesar dos avanços na medicina, especificamente na

fisiologia, um método empírico que unisse o aspecto material das sensações com o

aspecto imaterial das ideias e da mente humana, era amplamente desacreditado e

considerado impossível.

Ainda no século XVIII, Kant foi talvez o primeiro a atestar a impossibilidade da

psicologia como ciência. Segundo o filósofo, faltava à psicologia objetividade,

embasamento matemático e a determinação de um elemento básico de investigação.

Como compartilha em Princípios metafísicos da ciência da natureza, “a psicologia nunca

pode ser mais que uma doutrina histórica da natureza do sentido interno e, como tal, tão

sistemática quanto possível, ou seja, uma descrição natural da alma, mas nem sequer uma

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doutrina psicológica experimental” (KANT apud GOMES, 2005, p. 107). Na sua visão, que,

aliás, foi compartilhada pela comunidade científica por muitos anos após a crítica

kantiana, a psicologia fazia parte da metafísica e, como tal, constituía um saber a ser

fundamentado.

Kant e os idealistas alemães defendiam que a estrutura do raciocínio individual (a

subjetividade) era capaz de produzir leis e conceitos gerais, que pudessem constituir os

padrões universais da racionalidade e, portanto, defendiam a unidade e universalidade da

razão individual como princípio unificador, que preservasse os ideais de uma sociedade

individualística72. No entanto, os empiristas ingleses haviam demonstrado que a unidade

e a universalidade não eram fatos, pois não podiam ser encontradas na realidade empírica.

Como explica Herbert Marcuse em Razão e Revolução:

Os empiristas ingleses haviam demonstrado que nem sequer um único conceito ou lei da razão poderia aspirar à universalidade, e que a unidade da razão era apenas uma unidade conferida pelo hábito ou pelo costume, unidade que aderia aos fatos sem, jamais, os governar. (MARCUSE, 2004, p. 27)

Deste modo, para os idealistas alemães, a incapacidade dos homens de criar a

unidade e universalidade por meio da sua razão autônoma (mesmo contrariando os fatos)

necessariamente implicaria em submeter, tanto a existência material do homem quanto

sua existência intelectual, às condições desordenadas da vida empírica. Isso porque, se a

posição dos empiristas for tomada como verdade, ou seja, se for assumido que nenhuma

unidade ou universalidade pode ser atribuída à razão, então, segundo Marcuse, “teremos

de desistir de uma realidade organizada, pois, como vimos, tal exigência se funda na

capacidade que tem a razão de atingir verdades cuja validez não foi derivada da

experiência, verdades que poderiam, até mesmo, contrariar a experiência” (MARCUSE,

2004, p. 28).

Na visão dos idealistas alemães, as conclusões empiristas confinaram o homem

“aos limites do ‘dado’, à ordem existente das coisas e dos acontecimentos”, pois a verdade

não poderia escapar ao hábito e à ordem estabelecida e, tampouco, poderia a razão

72 Em Razão e Revolução, Herbert Marcuse, ao analisar a teoria social do individualismo alemão, pergunta-se “Poderia, no entanto, a estrutura do raciocínio individual (a subjetividade) produzir leis e conceitos gerais que pudessem constituir os padrões universais da racionalidade? Seria possível construir-se uma ordem racional universal, fundada na autonomia do indivíduo?” (MARCUSE, 2004, p. 27). Segundo ele, “Ao responder afirmativamente a estas questões, o idealismo alemão visava a um princípio unificador que preservasse os ideais de uma sociedade individualística e não sucumbisse aos seus antagonismos” (MARCUSE, 2004, p. 27).

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contrariá-la, resultando, portanto, não somente em ceticismo, mas também em

conformismo. A percepção do problema gerado pela visão empírica gerou uma resposta

no pensamento idealista alemão. Segundo Marcuse,

Os idealistas alemães reconheceram as manifestações históricas concretas do problema: isto se evidencia pelo fato de haverem, sem exceção, ligado a razão teórica à razão prática. Há uma transição necessária entre a análise da consciência transcendental, em Kant, e sua exigência de comunidade de um Weltbür gerreich [Império Mundial]; entre o conceito do Eu puro de Fichte, e sua construção de uma sociedade totalmente unificada e regulada (der geschlossene Handelsstaa); e finalmente entre a ideia de razão, de Hegel, e sua definição do estado como a união dos interesses comuns e individuais, e, pois, como a realização da razão. (MARCUSE, 2004, p. 27)

Na perspectiva do idealismo alemão, “atribuir a existência das ideias gerais à força

do hábito, ou derivar de mecanismos psicológicos os princípios pelos quais se apreende

a realidade, era o mesmo que negar a verdade e a razão” (MARCUSE, 2004, p. 29). Com

relação ao elemento psicológico da vida humana, explica Marcuse,

Eles [Os idealistas alemães] percebiam que o que é psicológico no homem está sujeito a mudanças; o psicológico é, na verdade, um domínio de incerteza e acaso de que não é possível derivar qualquer necessidade e universalidade; e as únicas garantias da razão são, entretanto, a necessidade e a universalidade (MARCUSE, 2004, p. 29)

Se de um lado, o conhecimento psicológico era taxado pelos empiristas ingleses

de depender demasiadamente de uma base metafísica, ao mesmo tempo em que era

criticado pelos idealistas alemães de não produzir nenhuma universalidade; de outro lado,

a nascente sociologia, fortemente influenciada pelo pensamento positivista do século

XIX, rejeitava, em seu método, toda fonte de conhecimento especulativa que não

estivesse seguramente calcada na experiência. Pregando a confiabilidade das observações

na busca de regularidades factuais, que levassem às leis gerais que regem a sociedade

humana, o método de pesquisa sociológico enfrentou, consideravelmente, menos disputa

dentro do meio acadêmico do que o método proposto para se estabelecer a psicologia

como ciência.

Consequentemente, ficou estabelecido dentro do meio acadêmico uma hierarquia

das ciências, segundo a qual o conhecimento da esfera social da vida humana refere-se ao

aspecto objetivo da realidade e o conhecimento da esfera psíquica da vida humana refere-

se ao aspecto subjetivo da realidade. Em A Invenção da Sociedade, ao discorrer sobre o

modo como o aspecto social e o aspecto psíquico da existência humana foram

hierarquizados pelas ciências, Serge Moscovici afirma que

Um [o social] corresponde a uma essência cujos movimentos são determinados por causas externas e impessoais: interesses, regras comuns etc. O outro [o psíquico] expressa antes

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uma aparência cujos movimentos provêm de dentro e formam um nítido contraste com os precedentes por seu caráter instável e vivido. O social é também racional, pois qualquer ação e qualquer decisão seguem uma lógica, levam em consideração a relação entre os meios e os fins. O psíquico, em contrapartida, passa por irracional, submetido ao impulso dos desejos e das emoções. (MOSCOVICI, 2011, p. 16)

Desta disputa por legitimidade entre as nascentes sociologia e psicologia,

surgiram muitos pensadores defendendo a objetividade da sociologia como critério de

validação do conhecimento por ela produzido e criticando a psicologia, justamente, por

não atender a esses mesmos critérios de legitimação. Dentre esses pensadores, um dos

primeiros foi o próprio Marx que afirmou: “Não é a consciência dos homens que

determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência”

(MARX, 2008, p. 47).

Tal afirmação de Marx, embora possa ser discutido que não reflete fielmente a

posição do pai da sociologia sobre a relação determinante/determinada entre a sociedade

e a consciência individual do homem, foi recebida e amplamente divulgada como uma

fórmula segundo a qual toda explicação psicológica encobriria a realidade social, esta sim

determinante para atingir o verdadeiro conhecimento da condição humana. Nesse

contexto, criou-se o termo “psicologismo” para identificar o erro de buscar uma

explicação psicológica para fenômenos sociais; algo que os sociólogos do século XIX e

muitos outros contemporâneos buscavam evitar a todo custo.

A despeito de suas palavras, Marx, no entanto, pode-se argumentar, foi mal

interpretado com relação ao tratamento que dá em sua obra ao tema do indivíduo e da

subjetividade. A visão economicista e determinista propagada, segundo a qual os

mecanismos internos e as atividades da consciência seriam um fenômeno secundário, que

apenas refletiriam as determinações materiais e as relações de produção, falha ao resumir

a intenção de Marx ao incorporar no seu pensamento uma teoria da subjetividade. Ainda

que não tenha sido o foco da sua obra73, Marx, no entanto, defende a subjetividade como

um componente inseparável dos processos de formação da vida humana.

73 Em O pensamento de Marx sobre a subjetividade, Eduardo Chagas afirma: “Não há, todavia, uma obra específica de Marx acerca da subjetividade, ou uma obra em que ele tenha tratado diretamente dela, mas, no conjunto de seus escritos, desde suas primeiras reflexões até as formulações mais amadurecidas, há passagens, elementos básicos, constitutivos, para uma construção teórica da subjetividade em Marx”(CHAGAS, 2013, p. 66).

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Na sua concepção, a objetividade e a subjetividade da vida humana estão

intimamente conectados, e fundamentam, simultaneamente, o processo de construção do

mundo real, pois, ainda que o homem tenha consciência das condições reais em que a

vida é produzida, é apenas através da sua subjetividade, ou seja da percepção do concreto

pensado, que o homem, de fato, reconstrói e apreende o mundo real. Ou seja, na visão de

Marx, quando se refere ao ser social como fator determinante da consciência individual,

sua intenção não é descartar a subjetividade ou o aspecto psíquico em função do elemento

social na formação da consciência humana, mas reforçar que a consciência é produzida

em um ser real inserido em um contexto social, e não um ser abstrato. Nesse contexto,

em O pensamento de Marx sobre a subjetividade, Eduardo Chagas apresenta uma

interpretação da frase de Marx diferente da disseminada no século XIX:

Ser um ser social quer dizer aqui não mais vida em geral, abstrata, mas uma qualidade de vida, a vida determinada, a vida social humana. E o ser social, que determina a consciência, está, por sua vez, condicionado historicamente pela produção material da vida, produção essa que significa não só produção econômica (economicismo), mas produção e reprodução dos meios necessários à vida, à sobrevivência humana, que envolve tanto produção de bens materiais quanto de bens imateriais, produção de objetividade e subjetividade, de elementos objetivos e subjetivos.(CHAGAS, 2013, p. 64)

Em A Ideologia Alemã, Marx resume sua visão:

A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. (MARX, 2007, p. 93)

O fator impactante na obra de Marx, é que ele não busca desenvolver verdades

universais, conceitos eternos e fixos sobre o funcionamento da sociedade ou das relações

humanas (internas ou externas), mas analisa de forma ímpar a sociedade de seu tempo e

o impacto que ela tem na vida do homem. A peculiaridade de tal sociedade é que se trata

de uma sociedade dominada pelo modo de produção capitalista, onde não há espaço para

uma filosofia, psicologia ou sociologia independentes, pois toda ciência “ou fora forçada

‘a servir o capital’, ou degradada à posição de um passatempo ocioso, apartado de

qualquer relação com as lutas reais da humanidade, enquanto que a filosofia fora

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incumbida de preservar, no domínio do pensante abstrato, as soluções para os problemas

das necessidades, medos e desejos do homem” (MARCUSE, 2004, p. 275).

Indubitavelmente, a análise de Marx da sociedade capitalista e do homem que nela

habita não se limitou às fronteiras de uma única ciência; suas descobertas têm conotações

econômicas, filosóficas, psicológicas e sociológicas que séculos depois ainda são

estudadas como relevantes ao entendimento da condição do homem moderno. Ao

estabelecer o trabalho como essência do homem, que na “civilização capitalista” não

pertence mais ao homem, mas o aliena, Marx possibilitou toda uma série de indagações

sobre os efeitos psicológicos para o homem moderno da vida em uma sociedade

capitalista.

Se a consciência é determinada pela existência social, ou não, o fato permanece

que Marx estabeleceu uma relação entre os elementos psicológicos e sociais da vida

moderna e, no século XX, principalmente, tal relação foi amplamente explorada. Para que

isso tenha ocorrido, no entanto, muito foi feito pelos pensadores que sucederam a Marx

para reverter os efeitos negativos no desenvolvimento da psicologia causados pela má

interpretação de seu pensamento.

Auguste Comte foi outro importante pensador do século XIX a criticar a

legitimidade da psicologia como ciência. Um dos fundadores do positivismo e criador do

termo “sociologia”, Comte afirmava abertamente a impossibilidade de uma psicologia

nos moldes de uma ciência. Segundo Comte, a psicologia tinha como fundamento a

metafísica, pois “sem perturbar nem o estudo fisiológico de nossos órgãos intelectuais,

nem a observação dos processos racionais que dirigem efetivamente nossas diversas

pesquisas científicas, pretende chegar à descoberta das leis fundamentais do espírito

humano, contemplando-o ele próprio, a saber, fazendo completa abstração das causas e

dos efeitos” (COMTE, 1978, p. 13).

Sem fundamentação na observação dos fatos, Comte argumenta que, no que tange

o futuro da psicologia, “os metafísicos, entregues ao estudo de nossa inteligência, não

podem esperar frear a decadência de sua pretensa ciência, a não ser mudando de opinião”

(COMTE, 1978, p. 13). Isso porque, na sua visão, o método de pesquisa psicológico é

ilusório ou nulo, dado que os fenômenos psicológicos somente poderiam ser observados

de duas maneiras: uma, exterior, e a outra, interior.

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Segundo Comte, a melhor maneira de observar um “estado de paixão” seria de

fora, ou seja, quando observador e observado são pessoas diferentes, mas os dados obtidos

de tal observação não seriam relevantes ao estudo dos fenômenos intelectuais. Neste caso,

o tipo de observação recomendado seria o da observação interior, ou seja, quando

observador e observado coincidem. No entanto, o positivista adverte que o ser humano

não estaria equipado para uma observação:

É perceptível que, por uma necessidade invencível, o espírito humano pode observar diretamente todos os fenômenos, exceto os seus próprios. Pois quem faria a observação? Concebe-se, quanto aos fenômenos morais, que o homem possa observar a si próprio no que concerne às paixões que o animam, por esta razão anatômica: que os órgãos, em que residem, são distintos daqueles destinados às funções observadoras. Ainda que cada um tivesse a ocasião de fazer sobre si tais observações, estas, evidentemente, nunca poderiam ter grande importância científica. Constitui o melhor meio de conhecer as paixões sempre observá-las de fora. Porquanto todo estado de paixão muito pronunciado, a saber, precisamente aquele que será mais essencial examinar, necessariamente é incompatível com o estado de observação. No entanto, quanto a observar da mesma maneira os fenômenos intelectuais durante seu exercício, há uma impossibilidade manifesta. O indivíduo pensante não poderia dividir-se em dois, um raciocinando enquanto o outro o visse raciocinar. O órgão observado e o órgão observador sendo, neste caso, idênticos, como poderia ter lugar a observação? (COMTE, 1978, p. 13)

Na avaliação de Comte, o histórico de resultados de tal método justifica a

conclusão da sua ineficiência, pois, segundo ele:

Há dois mil anos que os metafísicos cultivam assim a psicologia, e não puderam até agora concordar com uma única proposição inteligível e solidamente firmada. Estão até hoje divididos numa multidão de escolas que disputam incessantemente sobre os primeiros elementos de suas doutrinas. A observação interior engendra quase tantas opiniões divergentes quantos indivíduos há que acreditam a ela se entregar. Os verdadeiros cientistas, homens voltados aos estudos positivos, pedem, ainda em vão, a esses psicólogos para citar uma única descoberta real, grande ou pequena, que provenha desse método tão elogiado. (COMTE, 1978, p. 14)

Mesmo admitindo que as pesquisas psicológicas não foram totalmente

improdutivas e sem resultados, na opinião de Conte, com respeito aos conceitos da

psicologia, o que não consistia em “metáforas tomadas por raciocínios”, foi obtido

segundo o método do positivismo. Segundo ele, os resultados das pesquisas psicológicas,

“em vez de provir de seu suposto método, foi obtido graças a observações efetivas sobre

a marcha do espírito humano, que o desenvolvimento das ciências fez nascer de tempos

em tempos” (COMTE, 1978, p. 14). Mesmo assim, critica afirmando que:

Além do mais, essas noções tão ralas, proclamadas com tanta ênfase e que provêm exclusivamente da infidelidade dos psicólogos a seu suposto método, encontram-se o mais das vezes muito exageradas ou muito incompletas, bastante inferiores às observações já feitas pelos cientistas, sem qualquer ostentação, a respeito dos processos que empregam. (COMTE, 1978, p. 14)

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123

Comte foi um feroz crítico do estabelecimento da psicologia como ciência, porém,

apesar de num primeiro momento atacar a capacidade da mente humana de compreender

o seu próprio funcionamento, alegando uma impossibilidade física, ao longo da sua

crítica, fica claro que há uma restrição no que diz respeito ao método como psicólogos

obtém conhecimento. De fato, Comte salienta que, quando não utilizaram o próprio

método, mas recorreram ao método positivista, nesse caso, descobertas significativas

foram feitas. Naquele momento, Comte lança dúvida sobre a sua própria crítica inicial,

de que a mente humana é incapaz de compreender os seus próprios processos. Seria,

portanto, apenas uma questão de adequar o método de pesquisa da psicologia?

Em defesa da psicologia e opondo-se a Comte, John Stuart Mill, que, por sinal,

admirava a obra do filósofo francês, afirmava ser possível uma ciência da natureza

humana. Para ele, diferentemente de Comte, o critério de validação de uma ciência não

se resume à sua capacidade de produção de leis explicativas dos fenômenos estudados,

mas a obtenção do conhecimento das causas e dos efeitos de um determinado fenômeno.

Tal concepção não inviabiliza a possibilidade de uma psicologia como ciência, haja vista

que fenômenos psicológicos, por mais que não possam ser explicados, podem ser

observados e atribuídos como causa ou efeito de uma determinada ação humana.

No que diz respeito às leis do comportamento humano, Mill evita cair em um

determinismo das ações do homem, algo que, de fato, não poderia ser comprovado

cientificamente, ao diferenciar os conceitos de causalidade e necessidade. Segundo ele,

quando aplicado às leis dos fenômenos naturais, o conceito de necessidade implica que,

para cada causa específica, sempre ocorre o mesmo efeito e que cada efeito sempre

decorre de uma mesma causa. Porém, quando aplicado às leis do comportamento humano,

o conceito de necessidade

... significa apenas que determinada causa será seguida pelo efeito, sujeita, por outro lado, a todas as possibilidades de ação contrária por parte de outras causas (...). Quando dizemos que todas as ações humanas têm lugar necessariamente, queremos dizer somente que, se nada impedir, elas certamente ocorrerão... (MILL, 1999, p. 36)

Para Mill, no entanto, o homem possui a capacidade de mudar as circunstâncias

nas quais se aplicam o que chama de leis da natureza humana através da sua liberdade e

vontade. Através do seu livre arbítrio pode alterar as condições ou causas em que uma

dada lei da natureza humana produziria um dado efeito, produzindo um efeito não

esperado. Isso não altera a concepção de lei, pois, para Mill, no caso do comportamento

humano, o número de variáveis a serem consideradas seria grande demais para se obter

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124

para uma previsão precisa. Resultados imprecisos, portanto, seriam resultados do

desconhecimento de determinadas variáveis, mas não da inexistência de uma ou mais leis

regendo o comportamento humano. Portanto, para Mill, permanece válida a afirmação

que:

...sendo dados os motivos presentes à mente de um indivíduo e sendo dado, igualmente, o caráter e a disposição do indivíduo, a maneira pela qual ele irá agir pode ser inferida infalivelmente; se conhecêssemos completamente a pessoa e todos os induzimentos que atuam sobre ela, nós poderíamos predizer sua conduta com a mesma certeza com que podemos predizer qualquer evento físico...(MILL, 1999, p. 34)

Através da aplicação dos métodos de pesquisa das ciências naturais descritos em

Sistema de Lógica Indutiva e Dedutiva, a psicologia de Mill, ou sua ciência da natureza

humana estabelece que as leis psicológicas podem ser descobertas via indução direta, por

observação e experimentação. Ainda assim, as leis psicológicas, leis da mente que,

segundo Mill, produzem apenas verdades empíricas e, portanto, são consideradas leis

empíricas74, são generalizações aproximadas e não máximas universais dado que as

circunstâncias em que se aplicam diferem de indivíduo para indivíduo – diversas são as

configurações individuais e grupais ou culturais de cada período histórico.

No entanto, Mill defende que, mesmo não havendo um caráter humano universal

existem leis universais da formação do caráter, que, combinadas com as circunstâncias

particulares de cada indivíduo, produzem os sentimentos e ações humanas. Tais leis, as

leis de formação do caráter, seriam, segundo Mill,

... leis derivadas resultantes das leis gerais da mente e, para obtê-las, devemos deduzi-las dessas leis gerais, supondo um conjunto dado um conjunto qualquer de circunstâncias e considerando então qual será, de acordo com as Leis da Mente, a influência dessas circunstâncias na formação do caráter. (MILL, 1999, p. 67)

Na concepção do utilitarista, se as leis da mente seriam o objeto de estudo da

Psicologia, as leis de formação do caráter seriam o objeto de estudo da Etologia, ou

Ciência do Caráter, que corresponderia à ciência cujas leis, deduzidas das leis gerais

psicológicas, determinam o tipo de caráter (individual ou coletivo) produzido, de acordo

com essas leis gerais da psicologia, por qualquer conjunto de circunstâncias físicas e

morais.

74 John Stuart Mill define uma lei empírica como “uma generalização a propósito da qual sabendo que sua verdade não é absoluta, mas depende de algumas condições mais gerais e que só podemos confiar nela na medida em que há razões assegurando a realização dessas condições, não estamos satisfeitos em verificar sua verdade e somos obrigados a perguntar: por que é verdadeira?” (MILL, 1999, p. 59)

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125

Deste modo, estabelecida a possibilidade de uma ciência da natureza humana,

composta pela psicologia e pela etologia, Mill debruça-se sobre a questão da possibilidade

de uma ciência, cujo objeto de estudo fosse os fenômenos sociais. Segundo seu sistema

lógico “as leis dos fenômenos da sociedade não são nem podem ser outra coisa senão as

ações e paixões dos seres humanos unidos entre si em estado de sociedade” (MILL, 1999,

p. 77) e, portanto, como “as ações e sentimentos dos seres humanos no estado social são,

sem dúvida, governados inteiramente por leis psicológicas e etológicas” (MILL, 1999, p.

65), então, conclui que a sociologia deriva das duas ciências que compõem a ciência da

natureza humana: a psicologia e a etologia.

Ao ligar diretamente a sociologia à psicologia e a etologia, Mill reconhece as

limitações comportadas na investigação empírica dos fenômenos sociais, alegando que

“a multidão de causas é tão grande que desafia nossos limitados poderes de cálculo”

(MILL, 1999, p. 47). Ainda assim, mesmo que não seja possível fazer previsões acerca

do desenvolvimento de uma sociedade a partir das leis sociais derivadas da psicologia e

da etologia, como utilitarista, Mill defende a utilidade prática que o conhecimento de tais

leis pode ter na tomada de decisões de caráter político e econômico.

Dito isso, argumenta que as leis da sociologia não podem ser obtidas de modo

indutivo, mas via um método que leve em consideração a maior complexidade dos

fenômenos sociais (quando comparados aos fenômenos da natureza humana), dada a

multiplicidade de causas que podem cooperar para a produção de um determinado efeito.

Tal método, denomina, seria o método dedutivo concreto. Nas palavras do filósofo inglês:

...a Ciência Social (que tem sido designada pelo barbarismo cômodo de Sociologia) é uma ciência dedutiva; não é verdade, segundo o modelo da Geometria, mas segundo o modelo das ciências físicas mais complexas. Ela infere a lei de cada efeito das leis de causação de que esse efeito depende; entretanto, não infere a partir da lei de uma causa apenas, (...) mas considerando todas as causas que influenciam conjuntamente o efeito e compondo suas leis umas com as outras. Em suma: seu método é o Método Dedutivo Concreto, aquele cujo exemplo mais perfeito é a Astronomia... (MILL, 1999, p 93).

A dificuldade que tal método propõe, entretanto, não está na dedução das leis

gerais psicológicas e etológicas, mas na composição dos resultados agregados e na

predição de casos, que exigem a composição da influência de todas as causas. Essa

dificuldade, no entanto, só pode ser resolvida a posteriori, com a verificação das leis

sociais que consiste em “comparar as conclusões do raciocínio, ou com os próprios

fenômenos concretos, ou com suas leis empíricas quando estas podem ser obtidas”

(MILL, 1999, p. 95). Portanto, a ciência social proposta por Mill não seria somente o

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resultado de raciocínio a priori, mas uma combinação dos seus resultados com aqueles

provenientes da observação a posteriori.

Apesar de admirar Auguste Comte, John Stuart Mill foi seu principal crítico no

que diz respeito à fundamentação de uma ciência social, bem como à possibilidade de

uma ciência cujo objeto fosse a mente humana. Mais do que afirmar a possibilidade da

psicologia, Mill estabeleceu uma ligação direta entre a psicologia e a sociologia,

assumindo o risco de incorrer no indesejável psicologismo do século XIX. Porém, contra

os argumentos de Mill, a tese de que a psicologia não tem lugar entre as explicações dos

fenômenos sociais encontrou um defensor de peso na figura do sociólogo Émile

Durkheim.

Herdeira do positivismo de Comte, a sociologia de Durkheim estabelece que, em

direta oposição à tese de pensadores utilitaristas como John Stuart Mill de que é possível

deduzir a sociedade do indivíduo, é impossível separar o indivíduo do contexto social em

que nasceu e, igualmente impossível, seria estudar o indivíduo independentemente da

sociedade75. Tal impossibilidade se deve fundamentalmente, em sua sociologia, pela

própria definição de fato social:

É fato social toda maneira de fazer, fixa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou ainda, que é geral na extensão de uma dada sociedade que tem existência própria, independente de suas manifestações individuais. (DURKHEIM, 2012, p. 40)

Deste modo, haja vista que a característica essencial de um fato social está na

pressão que é exercida de fora nas consciências individuais, coagindo os indivíduos a

agirem ou sentirem de uma determinada maneira sob o risco do sentimento de culpa caso

não o façam, Durkheim conclui que “a sociologia não é um corolário da psicologia, pois

este poder coercitivo testemunha que eles [os fatos sociais] exprimem uma natureza

diferente da nossa” (DURKHEIM, 2012, p. 113). Portanto, argumenta Durkheim, tal

75 Sobre a unidade entre indivíduo e sociedade, Durkheim afirma: “Se essa importante verdade foi desprezada pelos utilitaristas, trata-se de um erro decorrente da maneira como eles concebem a gênese da sociedade. Supõem, na origem, indivíduos isolados e independentes, que, por conseguinte, só podem relacionar-se para cooperar, porque não tem outra razão para vencer o intervalo vazio que os separa e para se associarem. Mas essa teoria, tão difundida, postula uma verdadeira criação ex nihilo. De fato, ela consiste em deduzir a sociedade do indivíduo; ora, nada do que conhecemos nos autoriza a crer na possibilidade de semelhante geração espontânea” (DURKHEIM, 1999, p. 278).

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poder coercitivo não deriva dos indivíduos, como postulam as teorias utilitaristas e

psicológicas, caso contrário,

Se a vida social fosse apenas um prolongamento da existência individual, não a veríamos investir de tal forma contra sua origem e invadi-la impetuosamente. Uma vez que a autoridade diante da qual se inclina o indivíduo quando age, sente ou pensa socialmente, o domina a tal ponto, é porque ela é um produto de forças que o ultrapassam e que, por isso, ele não pode explicar. Não pode vir dele essa potência exterior que o domina; portanto, não é o que se passa nele o que pode explicá-la. (DURKHEIM, 2012, p. 113)

A partir dessa constatação, Durkheim afirma que “a sociedade não é uma simples

soma de indivíduos, mas o sistema formado por sua associação representa uma realidade

específica que tem suas características próprias”, e que, muito embora reconheça que

“nada de coletivo pode se produzir sem consciências individuais”, alerta que “esta

condição necessária não é suficiente” (DURKHEIM, 2012, p. 114) e que, portanto, as

motivações psicológicas do indivíduo são indiferentes no estudo de uma realidade social

que existe externamente ao indivíduo. Consequentemente, como conclui em As Regras

do Método Sociológico, “todas as vezes que um fenômeno social é diretamente explicado

por um fenômeno psíquico, pode-se ter certeza que a explicação é falsa” (DURKHEIM,

2012, p. 114).

Na concepção de Durkheim, “existe uma coesão social cuja causa está numa certa

conformidade de todas as consciências particulares a um tipo comum que não é outro

senão o tipo psíquico da sociedade” (DURKHEIM, 1999, p. 78) e que, portanto, existem

no indivíduo duas consciências: uma pessoal e que “representa apenas nossa

personalidade individual e a constitui”; e a outra coletiva e que “representa o tipo coletivo

e, por conseguinte, a sociedade sem a qual ele não existiria” (DURKHEIM, 1999, p. 79).

No entanto, com relação à Psicologia e à possibilidade de uma Psicologia Social, adverte:

... tudo o que sabemos sobre a maneira como se combinam as ideias individuais se reduz a essas poucas teses, tão gerais e tão vagas, comumente chamadas de leis de associação de ideias. E quanto às leis da ideação coletiva, elas são ainda mais completamente ignoradas. A psicologia social, que deveria ter por tarefa sua eliminação, é apenas um termo que designa todos os tipos de generalidades, variadas e imprecisas, sem objeto definido. (DURKHEIM, 2012, p. 22)

De acordo com o sociólogo francês, no entanto, a sociologia não deve ignorar ou

desconsiderar o homem e suas faculdades, pois

está claro que as características gerais da natureza humana entram no trabalho de elaboração do qual resulta a vida social. Mas não são elas que a suscitam nem que lhe dão sua forma específica; tudo o que fazem é torná-la possível. As representações, as emoções, as tendências coletivas não têm por causas geradoras certos estados da consciência dos indivíduos, mas as condições em que se encontra o corpo social em seu

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conjunto. Sem dúvida, elas só podem se realizar se as naturezas individuais não lhe são refratárias; mas estas são apenas a matéria indeterminada que o fator social determina e transforma. Sua contribuição consiste exclusivamente em estados muito gerais, em predisposições vagas e, portanto, plásticas que, por si mesmas, não podem tomar as formas definidas e complexas características dos fenômenos sociais, sem a intervenção de outros agentes. (DURKHEIM, 2012, p. 116)

Muito embora Durkheim não desqualifique abertamente a possibilidade da

psicologia como ciência e até a indique como auxiliar da pesquisa sociológica76, sua

concepção de uma ciência social em que os fatos sociais são tratados como coisas77

externas ao indivíduo, sem dúvida estabeleceu uma barreira entre a sociologia e a

psicologia. E, ainda que sua visão da sociologia tenha se tornado influente e

preponderante no meio acadêmico francês, tal status não se deu sem oposição. De fato,

das diversas escolas de pensamento que, ao final do século XIX, disputavam a primazia

intelectual no campo da sociologia, duas merecem destaque em função das suas

abordagens antagônicas acerca da relação entre sociologia e psicologia; são elas as

escolas de Émile Durkheim (1858-1917) e Gabriel Tarde (1843-1904).

Na comparação direta entre os dois pensadores, Tarde se mostrava como a versão

espelhada de Durkheim: não gozava do mesmo prestígio acadêmico (formado em direito,

era visto como amador entre acadêmicos das ciências sociais), apesar do forte

reconhecimento público78, e, além disso, era tido como um solitário, de modo que suas

ideias não seguiram adiante na figura de um discípulo ou de uma escola efetiva. No campo

das ideias, os dois pensadores discordavam em diversas questões, e o debate público que

76 Em As Regras do Método Sociológico, Durkheim afirma a importância da psicologia para a pesquisa sociológica, explicando que “Se a vida coletiva não deriva da vida individual, ambas estão estreitamente relacionadas; se esta não pode explicar aquela, o que pode é facilitar a explicação” (DURKHEIM, 2012, p. 120). Porém adverte que o sociólogo “não faça da psicologia, de forma alguma, o centro de suas operações, o ponto de onde devem partir e onde devem chegar suas incursões no mundo social, e que ele se mantenha no cerne dos fatos sociais, para observá-los de frente e sem intermediários, recorrendo à ciência do indivíduo apenas para uma preparação geral, e, quando necessário, para sugestões úteis” (DURKHEIM, 2012, p. 120). 77 Ao descrever seu método sociológico, Durkheim prescreve que “a primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas” (DURKHEIM, 2012, p. 41), dado que “é coisa, de fato, tudo aquilo que é dado, tudo aquilo que se oferece ou, ainda, se impõe à observação” (DURKHEIM, 2012, p. 51), de modo que “Tratar fenômenos como coisas significa trata-los na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência” (DURKHEIM, 2012, p. 51). 78 Segundo Marcia Consolim, no artigo Émile Durkheim E Gabriel Tarde: Aspectos Teóricos De Um Debate Histórico (1893-1904), “Ao longo do século XX, a recepção à obra de Tarde foi mais intensa nos meios jurídicos do que sociológicos, enquanto a de Durkheim tornou-se uma referência nas faculdades de letras e de filosofia. Contudo, no período em que se deu o debate, Tarde era tão conhecido pelo público intelectual francês quanto Durkheim e, certamente, era mais prestigiado do que este em certas instâncias do poder social e intelectual” (CONSOLIM, 2010, p. 41)

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travaram pela primazia dos seus conceitos (que durou cerca de dez anos) foi fundamental

para o desenvolvimento da sociologia francesa.

Uma das primeiras discordâncias entre os dois pensadores diz respeito à tese de

Doutorado de Durkheim, Da Divisão Social do Trabalho, na qual o sociólogo ataca o

conceito de imitação como princípio de coesão social, defendido por Tarde em As Leis

da Imitação. Segundo a concepção de Tarde, um grupo social nada mais era do que “uma

coleção de seres enquanto estão em vias de se imitar entre si, ou enquanto, sem se

imitarem atualmente, se assemelham e os seus traços comuns são cópias antigas de um

mesmo modelo” (TARDE, 2000, p. 93).

Isso porque Tarde define que o objetivo da ciência deveria ser conhecer as

semelhanças entre fenômenos e repetições para poder compará-las entre si e “observar o

laço de solidariedade que une as variações concomitantes” (TARDE, 2000, p. 26), pois,

segundo ele, “Conhecer as causas, isso permite prever, por vezes; mas conhecer as

semelhanças, isso permite numerar e medir sempre, e a ciência, antes de mais, vive do

número e da medida” (TARDE, 2000, p. 25).

No caso da ciência social, dado que postula que “Todas as semelhanças de origem

social que se observam no mundo social são o fruto direto ou indireto da imitação”

(TARDE, 2000, p. 35), logo, Tarde conclui que “o ser social, na medida em que é social,

é imitador por essência, e que a imitação desempenha nas sociedades um papel análogo

à hereditariedade nos organismos ou da ondulação nos corpos brutos” (TARDE, 2000, p.

31)79.

Na interpretação de Durkheim da obra de Tarde, o processo de imitação na

sociedade deveria produzir uma maior homogeneidade da população, porém, a conclusão

que chega com sua pesquisa é que, o desenvolvimento da sociedade e o consequente

aumento do volume e da densidade populacional produz, ao invés, diferenciação pela

individualização e pela especialização profissional decorrente da divisão social do

79 Como exemplo da imitação como princípio de coesão social, Tarde escreve: “Na origem, um antropoide imaginou (conjecturarei mais adiante como) os rudimentos de uma linguagem informe e de uma grosseira religião: esse passo difícil que franqueava ao homem a porta do mundo social foi um facto único, sem o qual este mundo, com todas as suas riquezas ulteriores, teria continuado mergulhado nos limbos dos possíveis irrealizados. Sem essa fagulha, o incêndio do progresso jamais se teria declarado na floresta primitiva cheia de selvagens; e é ela, a sua p propagação por imitação, que é a verdadeira causa, a condição sine que non” (TARDE, 2000, p. 65).

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trabalho. A resposta de Tarde à crítica de Durkheim veio na forma do artigo Questions

Sociales, de 1893, em que diz:

Manifestamente, a divisão do trabalho não é nem socializante nem moralizante lá onde, levada ao limite, ao ponto de apagar toda comunhão de ideias, de costumes, mesmo de língua entre as classes profissionais, ela as acentua em castas, profundamente divididas. (Gabriel Tarde apud CONSOLIM, 2010, p. 45)

Na concepção de Gabriel Tarde, um fenômeno de ordem material, essencialmente

econômico, não poderia definir algo de natureza social e que seria da ordem mental, pois

pressupõe que a oposição material entre grupos e indivíduos não seria capaz de produzir

solidariedade social. Ao invés disso, defende que a sociabilidade é um processo

psicológico que ocorre por meio do contágio imitativo e da simpatia inata dos indivíduos

com o propósito de fortalecer as crenças e costumes semelhantes de um dado grupo social.

Outro ponto de discordância entre Tarde e Durkheim diz respeito à questão do

acaso e como Durkheim, segundo a crítica de Tarde, desconsidera a importância do

imprevisto, do acidental e do irracional no desenvolver da história, priorizando, ao invés,

a busca por regularidades. Tal método, destaca Tarde, se mostra incapaz de dar conta da

totalidade do real, pois ignora os aspectos mais importantes, oriundos da originalidade

individual. Para ele, é o indivíduo, cuja importância na história deriva de um “acaso

biológico e psicológico”, que, ao inaugurar uma nova ideia ou comportamento, que

ultrapassa as determinações sociais, provoca a mudança social estudada pela sociologia.

Ignorar esse indivíduo, para Tarde, seria um erro na constituição de uma ciência social.

Apesar de incorporar integralmente a explicação psicológica em sua teoria social

e, com isso, dar um passo significativo na constituição de uma psicologia social, a

principal razão pela qual Gabriel Tarde não criou, de imediato, uma escola de pensamento

que divulgasse e desenvolvesse sua sociologia e, em última instância, o levou a perder a

disputa que travara com a sociologia de Durkheim, foi que seu pensamento caminhou na

contramão do desenvolvimento das ciências humanas.

Ao final do século XIX, na busca por legitimação, tanto a Psicologia quanto a

Sociologia buscavam atestar a objetividade dos conhecimentos produzidos. Nesse

sentido, para ambas, o caminho trilhado foi o da negação de uma base filosófica-

metafísica e o desenvolvimento de métodos para a obtenção empírica de conhecimento.

Tarde, à sua vez, priorizava na sua obra a sensibilidade e a arte em detrimento da razão e

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da ciência, dirigindo seu foco para fenômenos sociais imprevisíveis, casuais ou

irracionais e, consequentemente, restringindo o poder explicativo da sua sociologia.

Em crítica que resume a oposição e o conflito entre as sociologias dos dois

pensadores, Tarde afirmou que Durkheim despreza o “coração, o amor, a simpatia, a

imaginação, fonte de hipóteses e de teoria, assim como de poesia e arte” (Gabriel Tarde

apud CONSOLIM, 2010, p. 50). Mesmo assim, a iniciativa de introduzir a explicação

psicológica na interpretação de fenômenos sociais e criar uma ciência dedicada a integrar

os dois tipos de conhecimento não se extinguiu com Tarde.

Contemporâneo de Durkheim e Tarde, Gustave Le Bon (1841-1931), juntamente

com Gabriel Tarde, foi um dos primeiros a publicar um livro, Psicologia das Multidões,

sugerindo uma teoria social integrada com a psicologia80. Interessado tanto em sociologia

quanto psicologia (além de antropologia, medicina e física), Le Bon debruçou-se sobre

uma das questões fundamentais para se compreender a sociedade do século XIX: a

multidão e seu comportamento.

Tomada por movimentos populares e trabalhistas, a Europa do século XIX

vivenciou um período de intenso agito social81, porém de uma natureza peculiar, qual

seja, o principal agente desse fenômeno era um grande grupo de pessoas agindo como um

só organismo. Assim como Tarde, que em 1893 analisara a questão em As multidões e as

seitas criminosas, Le Bon busca compreender o comportamento das massas buscando

desvendar suas causas e seu funcionamento.

Le Bon reconhece que, a seu tempo, pouco se conhece verdadeiramente sobre as

multidões. No entanto alerta que o “conhecimento da psicologia das multidões constitui

o expediente do o homem de Estado que quer, não governá-las - coisa que hoje se tornou

80 Gustave Le Bom publicou Psicologia das Multidões em 1895, enquanto Tarde publicou As Leis da Imitação em 1890. 81 Segundo Le Bon: “Há apenas um século, a política tradicional dos Estados e as rivalidades dos príncipes constituíam os principais fatores dos acontecimentos. A opinião das multidões geralmente não contava. Hoje, as tradições políticas, as tendências individuais dos soberanos, suas rivalidades têm pouco peso. A voz das multidões tornou-se preponderante. Dita aos reis sua conduta. Não é mais nos conselhos dos príncipes, mas na alma das multidões que os destinos das nações não se preparam. A chegada das classes populares à vida política, sua progressiva transformação em classes dirigentes é uma das características mais chamativas de nossa época de transição” (LE BON, 2016, p. 20).

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muito difícil-, mas ao menos, não ser completamente governado por elas” (LE BON,

2016, p. 24).

Diferentemente do sentido comum, segundo o qual “a palavra multidão representa

uma reunião de indivíduos quaisquer, independentemente de sua nacionalidade, sua

profissão ou seu sexo, independentemente também dos acasos que os aproximam” (LE

BON, 2016, p. 29), Le Bom afirma que, do ponto de vista psicológico, o termo “multidão”

assume um significado completamente diverso:

Em certas circunstâncias específicas, e somente nessas circunstâncias, uma aglomeração de homens possui características novas muito diferentes daquelas de cada indivíduo que a compõe. A personalidade consciente desaparece, os sentimentos e as ideias de todas as unidades orientam-se numa mesma direção. Forma-se uma alma coletiva, sem dúvida transitória, mas que apresenta características muito nítidas. A coletividade torna-se então o que, na falta de uma expressão melhor, eu chamaria uma multidão organizada ou, se preferirmos, uma multidão psicológica. Ela forma um único ser e encontra-se submetida à lei da unidade mental das multidões. (LE BON, 2016, p. 29)

Opondo-se à tese de Tarde de que o comportamento dos indivíduos que compõem

as multidões de deve à comunicação entre emoções e opiniões e é reforçado pela simpatia

e pela imitação, Le Bom argumenta que, sob a lei da unidade mental das multidões,

impera entre os indivíduos da multidão um comportamento único motivado puramente

pelo automatismo do contágio emocional. Segundo Le Bon,

... o contágio mental, intervém igualmente para determinar nas multidões a manifestação de características específicas e ao mesmo tempo sua orientação. O contágio é um fenômeno fácil de constatar, mas ainda não explicado, e que deve ser associado aos fenômenos de ordem hipnótica a serem estudados adiante. Em uma multidão, todo sentimento, todo ato é contagioso, e contagioso ao ponto de que o indivíduo sacrifique muito facilmente seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Essa é uma propensão contrária à sua natureza, da qual o homem torna-se capaz apenas quando faz parte de uma multidão” (LE BON, 2016, p. 35)

Para explicar a razão pela qual uma massa heterogênea assume características

homogêneas, Le Bon recorre à divisão da mente em duas partes: uma consciente e a outra,

inconsciente. Segundo ele, “[a] vida consciente do espírito representa apenas uma

pequena parte comparada à sua vida inconsciente”, e que “[n]ossos atos conscientes

derivam de um substrato inconsciente formado sobretudo por influências hereditárias”

(LE BON, 2016, p. 33); tal substrato seria o que define como a alma de uma raça. Na sua

análise, conclui que:

É sobretudo pelos elementos inconscientes que compõem a alma de uma raça que todos os indivíduos dessa raça se parecem. É pelos elementos conscientes, frutos da educação, mas sobretudo de uma hereditariedade excepcional que diferem. Os homens mais dessemelhantes por sua inteligência têm instintos, paixões, sentimentos às vezes idênticos. Em tudo o que é matéria de sentimento, religião, política, moral, afetos,

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antipatias etc. -, os homens mais eminentes muito raramente ultrapassam o nível dos indivíduos ordinários. (LE BON, 2016, p. 33)

Nesse sentido, com respeito ao poder das massas de transformar o comportamento

individual, Le Bon descreve que as “qualidades gerais do caráter, regidas pelo

inconsciente e possuídas mais ou menos no mesmo grau pela maioria dos indivíduos

normais de uma raça, são exatamente aquelas que, nas multidões, são partilhadas” (LE

BON, 2016, p. 34). Quando inseridos na multidão e partilhando o que Le Bon chama de

alma coletiva, “apagam-se as aptidões intelectuais dos homens e, consequentemente, sua

individualidade” e, portanto, o “heterogêneo perde-se no homogêneo e as qualidades

inconscientes dominam” (LE BON, 2016, p. 34).

De acordo com Le Bon, as principais características do indivíduo na multidão são

“desaparecimento da personalidade consciente, predomínio da personalidade

inconsciente, orientação por meio de sugestão e de contágio dos sentimentos e das ideias

num mesmo sentido, tendência a transformar imediatamente em ato as ideias sugeridas”

(LE BON, 2016, p. 35). Nesse estado, como bem resumem Regina Duarte Benevides de

Barros e Silvia Carvalho Josephson, em A invenção das massas: a psicologia entre o

controle e a resistência,

o indivíduo perde seu autocontrole, atua de modo impulsivo, irracional e, até mesmo, bestial. Forma-se uma “mente coletiva” que se apossa de cada um, produzindo a incapacidade para raciocinar, a ausência do espírito crítico e de discernimento e uma unanimidade da qual cada um tem consciência e que traz consigo o dogmatismo, a intolerância, o sentimento de poder absoluto e a perda da noção de responsabilidade. (JACÓ-VILELA, 2006, p. 449)

Sobre o comportamento das massas, o psicólogo francês destaca ainda um outro

elemento explicativo: a figura do líder ou condutor da multidão. Caracterizando a

multidão como um rebanho incapaz de ter qualquer opinião que não seja aquela que lhe

fora sugerida, Le Bon define o comportamento da multidão em submeter-se à autoridade

de um líder como algo instintivo. O líder, por sua vez, é caracterizado por Le Bon como

um indivíduo carismático que goza de prestígio social e cuja “vontade é o núcleo em torno

do qual se formam e se identificam as opiniões” (LE BON, 2016, p. 111). Nas suas

palavras,

Em geral os condutores não são homens de pensamento, mas de ação. São pouco clarividentes e não poderiam sê-lo, pois a clarividência geralmente conduz à dúvida e à inação. São recrutados sobretudo entre os neuróticos, os excitados, os semi-alienados que beiram a loucura. Por mais absurda que seja a ideia que defendem ou o objetivo que perseguem, todo raciocínio se enfraquece diante de sua convicção. O desprezo e as perseguições apenas os excitam mais. Sacrificam tudo, seu interesse pessoal sua família. O próprio instinto de sobrevivência se anula neles a tal ponto que muitas vezes a única

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recompensa que pedem é o martírio. A intensidade da fé confere a suas palavras um grande poder de sugestão. A multidão sempre escuta o homem dotado de vontade forte. Como os indivíduos reunidos na multidão perdem toda vontade, voltam-se instintivamente para quem a possui. (LE BON, 2016, p. 112)

Para Le Bon, a importância do estudo das multidões refere-se ao perigo para a

civilização que identifica nesses movimentos. Segundo ele, uma civilização “implica

regras fixas, disciplina, a passagem do instintivo para o racional, a previsão do futuro, um

grau elevado de cultura”, porém, identifica que “as civilizações têm sido criadas e guiadas

por uma pequena aristocracia intelectual mas nunca pelas multidões”, que, segundo ele,

“só têm poder para destruir” e o “seu domínio representa sempre uma fase de desordem”

(LE BON, 2016, p. 25).

Muito embora, durante sua vida Gustave Le Bon tenha demonstrado um

esclarecimento científico amplo e não limitado pelas fronteiras das ciências, tal

declaração reflete o conservadorismo político que, em última análise, prejudicou uma

maior aceitação do seu pensamento. Junta-se a isso também, o fato de imputar ao

comportamento das multidões justificativas psicológicas e raciais e nãos, simplesmente,

a má distribuição de direitos políticos e sociais82. Ainda assim, pode-se dizer que foi

importante no campo da psicologia e da psicologia social, influenciando grande

pensadores, entre eles, o próprio Freud.

Antes de Freud, no entanto, Wilhelm Wundt teve uma importante participação no

desenvolvimento do que chamou de “Psicologia dos Povos”. O pai da psicologia

experimental concebia a ciência da psicologia como o fundamento das ciências do espírito

e complementar à ciência natural, e, por isso, uma ciência preparatória para a filosofia.

Deste modo, Wundt concebia uma relação entre psicologia e sociologia mais profunda do

que até então tinha sido proposto, haja vista que a psicologia seria a ciência que daria

fundamento para a sociologia. Ainda assim, dentro do esquema das ciências proposto por

82 Como afirma Antônio José Pereira Filho em Notas sobre a crítica de Ernesto Laclau a Antonio Negri e a psicologia das multidões de Gustave Le Bon, Psicologia das multidões “influenciou Hitler e Mussolini, sobretudo no que diz respeito aos rudimentos da propaganda fascista” (PEREIRA FILHO, 2019, p. 35), mas também ao destacar que “na multidão lebonianana as diferenças individuais não contam, sendo fundamental, nesta perspectiva, como notaram Hitler e Mussolini, que a multidão seja orientada para um mesmo centro de irradiação do poder através do lugar simbólico ocupado por um líder numa visada totalitária e intolerante” (PEREIRA FILHO, 2019, p. 41). Nas palavras do próprio Mussolini: “Li toda sua obra imensa e profunda. Sua Psicologia das multidões e sua Psicologia dos tempos novos, assim como seu Tratado de psicologia política são obras as quais me refiro com frequência. Inspirei-me nos princípios contidos nesses livros para edificar o regime atual da Itália” (PEREIRA FILHO, 2019, p. 43).

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135

Wundt, havia a descrição de uma ciência responsável pelo estudo das relações sociais do

homem.

Nesse contexto é importante notar que, conforme visto no Segundo Capítulo,

Wundt dividiu a psicologia e duas partes: a primeira, denominada psicologia individual

fisiológica ou experimental, seria uma ciência indutiva dedicada ao estudo da sensação,

da percepção e da representação através de métodos experimentais; a segunda, que Wundt

chamou de psicologia dos povos, seria responsável pelo estudo dos processos mentais

superiores como a linguagem, os mitos, a estética, a religião e os costumes sociais por

meio e observações e análise de registros históricos, dado que tais processos não poderiam

ser manipulados ou controlados e, portanto, não poderiam ser estudados

experimentalmente.

Para Wundt, o estudo “dos processos psíquicos ligados à convivência dos

homens”, “que surgem da interação mental de uma pluralidade de indivíduos” (WUNDT,

2018, p. 101), papel da psicologia dos povos, seria complementar ao da psicologia

individual. Segundo ele, o desenvolvimento de produtos mentais complexos originados

ao longo dos tempos, como a linguagem, a religião, os mitos e os costumes, não são

originados individualmente, mas pressupõem uma comunidade de indivíduos com uma

mentalidade compartilhada.

No entanto, mesmo a frente de seu tempo, a concepção de uma psicologia

dedicada ao estudo das relações humanas em sociedade permanecia essencialmente

filosófica. Pode-se dizer que a psicologia dos povos de Wundt não se encaixava na

definição de psicologia, que ele ajudara a solidificar essa, talvez, tenha sido a principal

razão pela qual essa parte do pensamento de Wundt não foi melhor desenvolvida pelos

seus seguidores. De fato, Edward Titchener, um dos principais discípulos de Wundt foi

um dos maiores responsáveis pela reduzida importância dada à parte final de sua obra.

Nas suas palavras, Titchener disse:

No entanto, eu quero me deter um pouco no Völkerpsychologie para contestar uma crença, corrente nos últimos anos e, até certo ponto, encorajada pelo próprio Wundt, que eu devo considerar baseada, na melhor das hipóteses, em uma meia verdade. Surgiu uma lenda - não posso chamá-la de outra coisa - que a psicologia social foi a primeira e mais cara paixão de Wundt e que toda sua vida até cerca de 1890 foi dedicada a tirar os intrusos do caminho para que, no final, ele pudesse voltar a ela. Em parte, o grande período de tempo dedicado ao Völkerpsychologie pode ser responsável; em parte, como já disse, certas declarações do próprio consentimento de Wundt; não devo aceitar essa lenda se ela decorrer do próprio consentimento de Wundt; devo desconfiar da memória de um homem velho. Eu acho que ninguém pode aceitar isso, quem conhece intimamente o curso de

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136

desenvolvimento de Wundt como seu livro retrata. (Edward Titchener apud HOTHERSALL, 2006, p. 118)

A postura de Titchener frente à Psicologia dos Povos wundtiana provavelmente

se refere à condição contraditória na qual ela se insere, a que se, de um lado, Wundt

possibilitou o estabelecimento de uma psicologia experimental ao propor uma

metodologia de pesquisa derivada da fisiologia e completamente separada da filosofia, do

outro, ao propor sua Psicologia dos Povos, Wundt afasta-se do método de pesquisa que o

consagrou e que legitimou a psicologia como ciência, assumindo um viés muito mais

filosófico na concepção desta nova ciência. A rejeição da Psicologia dos Povos por

Titchener e pela primeira geração de psicólogos que Wundt ajudou a formar, nesse

sentido, diz respeito muito mais à uma restrição ao método do que uma oposição

conceitual à possibilidade de integração da esfera psicológica individual com a esfera

social da vida humana.

Tal postura dessa primeira geração de psicólogos é justificável e até

compreensível, haja vista que o grande desafio ao longo dos séculos do saber psicológico

em consagrar-se como ciência foi de ordem metodológica. O conhecimento científico

implicava uma base empírica e um método experimental matematizável. Tais critérios

implicavam a separação entre a psicologia e a filosofia, e foram conquistados, na

psicologia individual, apenas com Wundt. No entanto, ao propor uma nova psicologia

responsável pelo estudo de produtos mentais complexos, Wundt depara-se com um

problema: tais elementos não podem ser manipulados e nem controlados e, portanto, não

podem ser submetidos a experimentos.

A solução, por mais contraditória que fosse, seria abrir mão do método que

legitimara a psicologia. Mas, deste modo, a Psicologia dos Povos, na concepção da

comunidade científica, se distanciava de um conhecimento científico e se aproximava de

um saber histórico-filosófico. Com isso, o estabelecimento de uma Psicologia Social

tornou-se um desafio mais metodológico do que conceitual. Ainda assim, um desafio

necessário, pois como argumenta Serge Moscovici,

... as teorias sociológicas descrevem e prescrevem. Mas não explicam. Eis o que pode desconcertar, sem, no entanto, surpreender. Contudo, o fato está aí: suas explicações – o que une, como se poderia dizer, o coração à cauda do cometa – são ou de ordem econômica, ou de ordem psicológica. Não existe uma terceira espécie que seria de ordem puramente sociológica. (MOSCOVICI, 2011, p. 33)

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Deste modo, o desafio de se estabelecer uma Psicologia social - desafio que seria

impulsionado, no início do século XX, por pensadores como Max Weber e Sigmund

Freud – se mostra fundamental, pois, como bem resume o antropólogo Claude Lévi-

Strauss,

...é bem verdade que, em certo sentido, todo fenômeno psicológico é um fenômeno sociológico, o mental se identifica com o social. Mas, em um outro sentido, tudo se inverte. A prova do social só pode ser mental; ou seja, jamais podemos ter certeza de ter atingido o sentido e a função de uma instituição, se não formos capazes de reviver sua incidência em uma consciência individual. Como essa incidência é uma parte integrante das instituições, qualquer interpretação deve fazer coincidir a objetividade da análise histórica ou comparativa com a subjetividade da experiência vivida. (Claude Lévi-Strauss apud MOSCOVICI, 2011, p. 30)

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IV. Weber e a possibilidade do conhecimento psicossocial

A crítica weberiana à Psicologia

Entre os estudiosos da obra de Max Weber, dificilmente encontra-se um consenso

sobre a relação do sociólogo alemão com a Psicologia. Muitos defendem que sua

Sociologia Compreensiva83 depende largamente da Psicologia e de conceitos

psicológicos espalhados pelos seus escritos. Outros defendem que na obra weberiana,

configura-se uma total separação entre a Psicologia e a Sociologia, que o objeto de estudo

e o método de ambas as ciências são fundamentalmente divergentes e não-

complementares.

Ainda assim, poucos podem negar que, no pensamento de Weber, o elemento

psicológico é cuidadosamente analisado e a Psicologia da sua época, bem como os

primeiros psicólogos, são substancialmente criticados. Weber mostra nos textos em que

critica o uso da Psicologia como ferramenta explanatória da realidade humana, ser

conhecedor dos avanços da Psicologia e dos méritos de muitos dos psicólogos, mas não

se cala diante das deficiências que enxerga, especificamente, no método de pesquisa

psicológica.

Se por vezes desdenha do caráter científico proposto para a Psicologia pelos

primeiros psicólogos, fica claro, ao longo de muitos dos seus textos, que sua crítica reflete

um interesse de longa data pela esfera psicológica da experiência humana. Ainda assim,

faz questão de diferenciar os aspectos psicológicos dos aspectos sociais, rejeitando

qualquer forma de psicologismo, ou seja, qualquer uso de explicações psicológicas para

fenômenos sociais.

Segundo Lawrence Scaff em Fleeing the Iron Cage, Weber faz sua primeira

menção ao termo psicologismo, surgido, em 1898, na coletânea não publicada de palestras

83 Este texto apresenta o termo “Sociologia Compreensiva” como tradução para o português do termo Verstehende Sociology cunhado por Weber. Todavia, existem autores que traduzem o termo como Sociologia Interpretativa. Ambas as possibilidades de tradução encontram-se citadas neste texto, mas, para fim de esclarecimento, deve-se destacar que ambas as traduções são utilizadas com o mesmo significado.

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139

de Weber Esboço básico de Palestras sobre Economia Política Geral (Teórica)84. No

capítulo intitulado “O Conceito de Sociedade e de Ciência Social”, Weber apresenta um

dos primeiros relatos da sua recepção da obra de Georg Simmel (1858-1918). Nele,

Weber explora, na obra de Simmel a rota para se estabelecer uma Sociologia e o problema

de validação do conhecimento social.

Ainda que reconheça o valor da sociologia de Simmel por se opor à versão

positivista ou racionalista de Auguste Comte (segundo a qual, a história nada mais seria

do que um movimento progressivo regido por leis), Weber critica a alternativa de Simmel

por se tornar “uma sociologia ‘psicológica’ a-histórica enfatizando as propriedades gerais

da interação social e das categorias típicas da experiência interior” (SCAFF, 1989, p.

135). Por essa razão, Weber define a sociologia de Simmel como psicologismo, muito

embora o faça não no mesmo sentido com o qual, anos mais tarde, criticou o historiador

Karl Lamprecht (1856-1915).

Alvos recorrentes de duras críticas, os escritos de Lamprecht são, na avaliação de

Weber, exemplos típicos de “uma construção de natureza filosófica que, a priori, postula

que o processo histórico seria um ‘progresso’, sendo que esta postura, de maneira

inteligente, é apresentada como se fosse uma abordagem objetiva e científica dentro dos

parâmetros da Psicologia” (WEBER, 2016c, p. 118). Com respeito a esse procedimento,

– que, segundo Weber, Lamprecht propõe a partir da sua interpretação dos conceitos de

Wundt – o sociólogo alemão adverte contra o erro em que

explica-se, pretensamente e à maneira psicológica, a formação da sociedade, a sua essência e a própria sociedade interpretada como “totalidade”. A partir desta mesma ideia, chega-se à conclusão (ou pretensão) de que fenômenos culturais só poderiam ser explicados dentro dos parâmetros do chamado “regresso causal” o que significa “partir do efeito para chegar à causa”. (WEBER, 2016c, p. 118)

Segundo a concepção de Lamprecht, que Sam Whimster, em Karl Lamprecht and

Max Weber: Historical Sociology within the confines of a Historians’ Controversy,

descreve como um “Hegelianismo positivizado”, seria possível “desenvolver uma ciência

independente da vida psíquica das pessoas que explicaria (i) o comportamento dos

indivíduos inseridos em qualquer época cultural, (ii) o movimento de uma para outra”

(WHIMSTER, 1987d, p. 270). Isso porque, segundo ele, “a psiché social em nada diferia

84 Grundriss zu den Vorlesungen über allgemeine (“theoretische”) Nationalökonomie

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140

de qualquer outro objeto de estudo no mundo natural e deveria, portanto, ser estudado de

acordo com os métodos das ciências naturais, assim como uma planta ou o corpo humano

deveria ser estudado” (WHIMSTER, 1987d, p. 272). Opondo-se às ideias positivistas e

naturalistas de Lamprecht e comparando-as com as do economista político da Escola

Histórica Alemã, Wilhelm Roscher, Weber escreve:

Entre os historiadores da atualidade, encontramos Lamprecht, que utiliza, sobretudo, conceitos e analogias provenientes das ciências biológicas. Nos seus escritos, encontramos também algo que poderíamos chamar de “hipostasiação” da noção de “nação” que ele, muitas vezes, apresenta como uma “unidade psicossocial” que se encontra num processo evolutivo. (...) Este processo evolutivo está sendo apresentado como um “crescimento contínuo da energia psíquica da nação” (...) Seria tarefa da ciência histórica a observação e a explicação da causalidade na sequência das fases culturais pelas quais deve passar, necessariamente, cada povo que apresenta um processo de desenvolvimento normal. (...) Uma diferença entre Roscher e Lamprecht consiste sobretudo na maior serenidade do primeiro, que nunca acreditava na possibilidade real de poder formular e representar conceptualmente a essência do cosmo unitário num sistema conceptual fechado. (WEBER, 2016c, nota 62)

No entanto, retornando a Simmel, pode-se afirmar que Weber, muito embora

concordasse com o colega e amigo ao rejeitar qualquer “tentativa racionalista de se

estabelecer ‘leis históricas’ sob a égide do ‘progresso’ evolucionário” (SCAFF, 1989, p.

135)85, discordava no tocante à argumentação psicológica de Simmel para tal rejeição.

Conforme escreve Weber, Simmel “tem razão quando afirma (...) que a indicação dos

interesses no tratamento das fontes, indubitavelmente, contribui para a formação dos

conceitos históricos”, porém, destaca que a sua argumentação “delineou-se, decerto,

apenas a tarefa da análise psicológica dos interesses históricos de caráter epistemológico”

e, sutilmente critica que “do ponto de vista da argumentação lógica, algumas das suas

afirmações são bastante discutíveis” (WEBER, 2016c, p. 154) .

Apesar das críticas, o débito da sociologia weberiana para com o pensamento de

Simmel é algo plenamente reconhecido. Segundo Eugène Fleischmann, o teólogo e amigo

próximo de Weber, Ernest Troeltsch, teria afirmado que “a teoria do comportamento

humano de Simmel teve influência decisiva sobre Weber” (FLEISCHMANN, 1977, p.

147). Além disso, como bem destaca Gabriel Cohn, Simmel “antecipa posições

85 Na série de artigos críticos ao método de pesquisa da Escola Histórica Alemã, Roscher e Knies e os problemas lógicos de economia política histórica, Weber retoma a sua avaliação sobre o pensamento de Simmel de 1898 ao escrever: “A nosso ver, Simmel deve perceber claramente que a infinidade e a variedade multifacetada e concreta, e também a absoluta ‘irracionalidade de vida’ – posição adotada por Simmel – fazem com que a ideia da ‘representação como adequação fiel e objetiva’ desta realidade, independentemente da ciência que a elabora, não pode ser outra coisa que não um pensamento totalmente absurdo” (WEBER, 2016c, p. 154 – Nota 143).

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141

fundamentais de Weber” (COHN, 2003, p. 53), como por exemplo, o caráter fragmentário

do conhecimento histórico-social, a utilização da análise tipológica como instrumento

básico para o entendimento dos fenômenos sociais e assumir o distanciamento do cientista

diante da realidade a ser compreendida86. Bryan S. Turner, por sua vez, defende a

importância de A Filosofia do Dinheiro, de Simmel, para a obra de Weber ao concluir

que o dinheiro é “um aspecto fundamental daquilo que Weber considerava como o

processo de racionalização nas sociedades modernas” (TURNER, 1993, p. 169)87.

Mas se Weber buscava desenvolver “uma teoria da interpretação racional da

motivação humana que não pudesse ser reduzida aos estados psicológicos da consciência

individual”, Simmel, por sua vez, “estava interessado na constelação de motivações

psicossociais para a interação humana” (FRISBY, 1987a, p. 425). Consequentemente,

com será visto, suas abordagens com relação à questão do uso de psicologismos para a

explicação e compreensão dos fenômenos sociais diferiam consideravelmente.

Para Weber, “o chamado ‘psicologismo’, entendido como a pretensão da

psicologia de criar uma visão do mundo, não tem sentido”, e essa maneira de ver as coisas

seria “até ‘perigosa’ para a ingenuidade da ciência empírica” (WEBER, 2016c, p. 124),

porque pode induzir o historiador “a ocultar o fato de ele ter descoberto valores por meio

de procedimentos filosóficos e afirmar, falsamente, o fato de tê-los encontrado com base

em categorias científicas da psicologia” (WEBER, 2016c, p. 118). Em outras palavras,

pode disfarçar em conhecimento científico conjecturas metafísicas, afirmando “haver

exatidão científica quando, na verdade, não há” (WEBER, 2016c, p. 118).

Simmel, por sua vez, acreditava que “a essência do moderno é, acima de tudo,

psicologismo”, ou seja, “a experiência e interpretação do mundo em termos das reações

de nossa vida interna e, de fato, como um mundo interior, a dissolução de conteúdos fixos

no elemento fluido da alma, do qual tudo que é substantivo é filtrado e cujas formas são

apenas formas de movimento” (Georg Simmel, em Philosophische Kultur , apud SCAFF,

1989, p. 137; FRISBY, 1987a, p. 431).

86 Ver (COHN, 2003, p. 54). 87 Na interpretação de Turner, “a investigação filosófica de Simmel sobre o desenvolvimento de um sistema monetário abstrato e universal como a medida de toda atividade humana forneceu o modelo fundamental de manifestações culturais de um processo subjacente de racionalização nas sociedades modernas” (TURNER, 1993, p. 176).

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142

Segundo David Frisby, em The Ambiguity of Modernity: Georg Simmel and Max

Weber, “todas as características centrais da modernidade, que Simmel analisa no ‘mundo

exterior’, são expressadas e manifestadas na vida ‘interna’ dos indivíduos”, e que

“Simmel buscou ganhar acesso a esse mundo interno na sua ‘microscopia psicológica’ ao

invés das análises das principais instituições da sociedade” (FRISBY, 1987a, p. 431).

Naturalmente, Weber enxergava um problema no método de Simmel. A sociologia

psicológica de Simmel, como bem destaca Lawrence Scaff,

... poderia ser resumida como tendo a ver com (a) a sua oposição à possibilidade do estabelecimento de “leis históricas”; (b) a crença que na vida moderna o caráter múltiplo e complexo do objetos de conhecimento “sociais” tornaram a “psicologia” indispensável; (c) a convicção de que um certo método psicológico era uma pressuposição para o conhecimento da “ação recíproca” ou da “interação” (WechselwirkungI) e da “socialização”88 (Vergesellshaftung), que era, pari passu, em combinação com (d) um interesse em explorar o mais profundo sentido subjetivo para os indivíduos das formas sociais objetivas, o tema da sociologia. (SCAFF, 1989, p. 137)

Para Simmel, a compreensão de fenômenos sociais primários como amor e ódio,

competição e cooperação ou egoísmo e altruísmo implica, necessariamente, que

“processos psicológicos primários tem que ser pressupostos”, ou ainda, implica que “os

métodos segundo os quais os problemas de socialização devem ser investigados são os

mesmos que aqueles empregados em todas as ciências psicológicas comparativas” (Georg

Simmel, em Das Problem der Sociologie, apud SCAFF, 1989, p. 137).

Com relação ao método de pesquisa da sociologia de Simmel, Weber enxerga um

de seus pontos mais frágeis. Na sua avaliação, entende que as “formulações de Simmel

são de natureza psicológico-descritivas e, por causa disso, na sua dimensão lógica, nem

sempre muito consistentes” (WEBER, 2016c, p. 189). Com relação ao conceito de

“compreensão”, fica clara a posição conflituosa de Weber com relação a Simmel: Weber

reconhece a importância do pensamento de Simmel, ao mesmo tempo em que o critica.

Além disso, fica claro também que a principal discordância entre os dois sociólogos diz

respeito muito mais à questão do método de pesquisa do que propriamente da validade da

88 Segundo Simmmel, “A socialização é, portanto, a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas) na qual os indivíduos, em razão de seus interesses – sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados, se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se realizam. Esses interesses sejam eles sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, causais ou teleológicos, formam a base da sociedade humana.” (SIMMEL, 2006, p. 60).

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Psicologia como ferramenta para a compreensão da realidade histórica social89. Nas

palavras de Weber:

A Simmel indiscutivelmente cabe o mérito de ter definido a diferença entre os conceitos “compreender” (verstehen) e “entender” (begreifen). O “entender” não inclui “revivência” interior da realidade dada, que é um dos elementos básicos do conceito “compreender”. Também especificou e diferenciou o “compreender” do “compreender” objetivo, e da “interpretação” subjetiva. A “compreensão” objetiva refere-se à compreensão do sentido de sinais (externos) e a “interpretação” subjetiva à compreensão dos motivos que estão por trás (internos) da fala ou da ação de uma pessoa. (WEBER, 2016c, p. 155).

Ainda assim, Weber discorda de Simmel quando este afirma que a compreensão

objetiva “só existe quando se trata de um conhecimento teórico, do conhecimento de um

conteúdo objetivo em forma lógica que - por ser conhecimento – poderia ser elaborado

objetivamente” (WEBER, 2016c, p. 156). Weber, em um primeiro momento, coloca em

dúvida se com a sua “terminologia psicologística” e com a sua “descrição psicológica, o

caráter desta maneira específica de “compreender” fica devidamente esclarecido. Porém,

afirma que “seria errôneo acreditar que o processo de ‘compreender’ apenas se daria nos

casos de um ‘conhecimento objetivo’” (WEBER, 2016c, p. 157). Como Weber

exemplifica:

A compreensão de algo apenas falado dá-se, por exemplo, quando se ouve e se escuta uma ordem, quando se atende ao apelo à consciência quanto a valores e a juízos de valor que, obviamente, não têm por finalidade uma interpretação teórica mas, diferentemente, visa “de maneira prática” provocar um sentimento e uma ação. (WEBER, 2016c, p. 156).

Mesmo sem ter como objetivo “apresentar uma crítica sistemática sobre a opinião

de Simmel”, Weber não deixou de expor seu incômodo com a deficiência referente ao

método do colega envolvendo os elementos psicológicos da sua sociologia. Ainda assim,

mesmo sem se calar, Weber se conteve ao criticá-lo. Tal não foi o caso dos fundadores

da Escola Histórica de Economia Política Alemã, Wilhelm Roscher (1817-1894) e Karl

Knies (1821-1898).

89 Com relação às formulações psicológico-descritivas de Simmel, apesar de julgá-las não muito consistentes, Weber escreve: “Concordamos com as seguintes afirmações: 1. que não é necessariamente uma vantagem o fato de o historiador, como ‘personalidade’, possuir uma forte ‘subjetividade’ na interpretação ‘causal’ de fenômenos históricos; 2. o nosso conhecimento histórico de ‘personalidades’ fortemente ‘marcantes’ e de destacada ‘subjetividade’ é, muitas vezes, de uma elevada ‘evidência’. O papel desempenha do pela relação com valores explica, em grande parte, a validade das suas afirmações. Os ‘intensos’ ‘juízos de valor’ de uma ‘personalidade’ rica e ‘bem específica’ de um historiador é um instrumental heurístico de primeira grandeza para descobrir ‘relações com valores’ de processos históricos e de personalidades históricas que se situam sob a superfície.” (WEBER, 2016c, p. 189).

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Ao final do século XIX, na Alemanha, debelou-se no campo da Economia

Política, uma disputa metodológica, a qual Weber participou ativamente, que ficou

conhecida como Methodenstreit. Em disputa estavam, de um lado, a Escola Histórica

Alemã de Economia Política e, do outro lado, a Escola austríaca. Os primeiros, liderados

por Gustav Schmoller90 (1838-1917), defendiam que a Economia deveria ser “concebida

como ciência histórico-individualizadora e dotada de conteúdo normativo” (COHN,

2003, p. 100), enquanto Carl Menger91 (1840-1921) e a Escola Austríaca “se esforçavam

em separar a economia da história para fazer uma ciência teórica, visando estabelecer as

leis abstratas que regem os aspectos especificamente econômicos dos fenômenos sociais”

(COLLIOT-THÉLÈNE, 1995, p. 23).

Weber, apesar de poder ser considerado um “egresso da escola histórica alemã”

(COLLIOT-THÉLÈNE, 1995, p. 22), assumiu uma posição frente à discussão que

poderia ser caracterizada como de ambígua. Se de um lado ele reconhecia o ponto de vista

dos austríacos em reforçar “a diferença de gênero que separa o conhecimento legal ou

nomológico (isto é, o conhecimento das leis) e o conhecimento da realidade concreta”

(COLLIOT-THÉLÈNE, 1995, p. 24), de outro, ele qualificava como errôneo tomar “a

formulação de leis abstratas pelo objetivo supremo do saber” (COLLIOT-THÉLÈNE,

1995, p. 24). Ao mesmo tempo, censurava a contradição fundamental da abordagem da

escola histórica (apesar de se declarar pertencente a esta), qual seja, “abraçar o sentido

que habita o movimento geral da história da humanidade” e, por isso, nunca “romper com

a especulação no plano metodológico” (COLLIOT-THÉLÈNE, 1995, p. 29).

Ainda assim, dentre os seus escritos metodológicos daquele período, sua crítica

mais direta e feroz foi contra os pais da Escola Histórica Alemã, Wilhelm Roscher e Karl

Knies. Nos dois artigos que compõem o ensaio Roscher e Knies e os problemas lógicos

de economia política histórica, escritos entre 1903 e 1906, Weber “problematiza todas as

conquistas do método histórico na Alemanha, mostrando como o debate metodológico,

90 Gustav Schmoller foi o líder da “jovem” Escola Histórica (em oposição à velha Escola Histórica de Roscher e Knies), além de figura dominante na Verein fur Sozialpolitik. 91 Foi o economista neoclásssico austríaco Carl Menger, um dos precursores da Teoria da Utilidade Marginal, quem desencadeou a controvérsia metodológica no campo da economia política “ao publicar, em 1883, as suas Investigações sobre os métodos das ciências sociais (...) obra, cuja influência sobre Max Weber não pode ser subestimada” (COHN, 2003, p. 102).

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então travado, estava preso a aporias que advinham de deficiências lógicas que surgiram

com o chamado método histórico” (SENEDA, 2008, p. 64).

No primeiro artigo, Weber explora o pensamento de Roscher e identifica neste

uma forte influência da filosofia de Johann Fichte (1762-1814) e da psicologia de Johann

Herbart (1776-1841). Especificamente, Weber atribui a influência de Fichte ao fato de

Roscher acreditar “na existência de uma uniformidade metafísica do chamado ‘caráter

nacional’, entendendo que este, semelhantemente à vida de um indivíduo no seu devir

vital, experimentaria a lenta evolução e decadência das formas do Estado, do Direito e da

Economia” (WEBER, 2016c, p. 73) e atribui a influência de Herbart à relação de

paralelismo que Roscher estabelece entre o indivíduo e a totalidade.

A crítica fundamental de Weber ao método de Roscher, como pontua Maurício

Tragtenberg em sua introdução para a edição brasileira de Metodologia das Ciências

Sociais, diz respeito aos seus fundamentos lógicos, mostrando que “a chamada escola

histórica não se constitui num núcleo de pesquisa histórica, mas sim num evolucionismo

em que as categorias do romantismo estão presentes (TRAGTENBERG, 2016, p. 21).

Segundo Tragtenberg, Weber critica o romantismo do método histórico que “privilegia

entidades metafísicas como sociedades ‘orgânicas’; apela a um improvável ‘espírito do

povo’, apelo este em que está contida a herança romântica da sociologia”

(TRAGTENBERG, 2016, p. 21). Nas palavras de Weber:

A esta altura, temos de analisar a chamada “teoria orgânica” da sociedade, com as suas inevitáveis analogias biológicas, que fez com que Roscher- e, aliás, muitos outros sociólogos- afirmasse haver uma identidade entre fenômenos sociológicos e biológicos, acreditando que, na História, só o que é significativo se repete com certa regularidade. Roscher também se ocupa da variedade empírica dos “povos” do modo como um biólogo aborda a variedade empírica de uma certa espécie animal, como, por exemplo, os elefantes, acrescentando ainda que o conceito “povo” não é devidamente explicado. Os “povos”, acredita Roscher, são tão diferentes entre si como os seres humanos; da mesma maneira, assim como, apesar desta variedade, o especialista em anatomia ou fisiologia pode, na sua observação, abstrair das diferenças individuais, também o historiador, deixando de lado as particularidades individuais, pode tratar as nações como exemplos das mesmas espécies. O historiador deveria comparar a evolução dos povos para descobrir “paralelismos” que, por meio do contínuo aperfeiçoamento dessa evolução, poderiam alcançar o status lógico de “leis naturais”, válidas para a espécie “povo”. (WEBER, 2016c, p. 74)

Na concepção de Weber, com respeito ao método de Roscher, mesmo admitindo-

se que “o seu valor provisório e heurístico pode ser muito grande, é bastante óbvio que

um conjunto de regularidades, encontrado deste modo, nunca pode ser considerado como

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146

sendo a finalidade última do conhecimento científico” (WEBER, 2016c, p. 74). Segundo

Weber, partindo-se dessa hipótese

O cientista, por exemplo, poderia ir em busca de um conhecimento exato, assim como o vemos nas "ciências naturais". Neste caso, a elaboração lógica da realidade levaria, necessariamente, a uma eliminação progressiva das casualidades individuais, e, ao mesmo tempo, a uma progressiva subordinação das "leis" supostamente já descobertas, e a outras leis de caráter mais geral, sendo que as primeiras seriam apenas casa; particulares das segundas. Procedendo desta maneira, chega-se a um esgotamento cada vez maior dos conceitos, no que diz respeito ao seu conteúdo, e, ao mesmo tempo, a um afastamento sempre maior da realidade empírica e concreta que, em última análise, deveria ser compreendida. O ideal lógico deste procedimento consiste na formulação de um sistema de conceitos de validade absoluta e universal, representando, de maneira abstrata, o que é comum ao devir histórico. Ao nosso ver, obviamente nunca é possível, a partir destes sistemas conceptuais, chegar à realidade histórica concreta, sobretudo quando se trata do "processo histórico universal" ou dos fenômenos culturais. A explicação causal, neste caso, consiste apenas na formação de um sistema de conceitos relacionais de caráter geral, e o seu intuito é a redução máxima de todos os fenômenos culturais a categorias puras e quantitativas. (WEBER, 2016c, p. 76)

Weber rejeita toda forma de teoria social reducionista que pretenda se passar por

uma visão de mundo. Tal seria, no seu julgamento, o caso do pensamento naturalista de

Roscher, mas também de toda forma de naturalismo, historicismo e psicologismo. Neste

sentido, a partir da segunda metade do ensaio sobre os dois pais da Escola Histórica

Alemã de Economia Política, Weber se dedica ao método e ao pensamento de Karl Knies,

criticando, principalmente, o uso que o economista e historiador faz de psicologismo

como método de pesquisa.

Metodologicamente, Knies rejeitava a abordagem da teoria econômica inglesa

clássica e “a noção de que a análise econômica pode estribar-se em axiomas

independentes do tempo e do espaço”, pois, segundo ele, “as teorias econômicas

modificam-se e evoluem paralelamente ao seu contexto histórico mais amplo” (RINGER,

2004, p. 24). Como descreve Fritz Ringer, em A Metodologia de Max Weber,

A ideia segundo a qual as “leis” permanentes do comportamento econômico podem ser baseadas na generalidade do “egoísmo privado” parecia a Knies pura “ficção”, que rejeitou por razões tanto éticas quanto metodológicas. Por idênticos motivos, considerou a busca de ganho máximo pelo maior número possível uma prescrição falsa que só poderia ser aventada onde os assuntos econômicos fossem artificial e perversamente separados dos elementos éticos e políticos da vida de um povo.” (RINGER, 2004, p. 24)

Para Knies, segundo Weber, o que caracteriza a História como uma “ciência do

espírito” e o que impossibilita o estabelecimento de leis gerais universais para a História

(assim como, a Economia Política) diz respeito ao elemento de “irracionalidade” da ação

humana. De acordo com Weber, “num sentido muito comum e vulgar, entendemos por

‘irracionalidade’ apenas a chamada ‘incalculabilidade’ da ação humana que, na opinião

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de Knies e de muitos outros pensadores, seria sintomática para o livre arbítrio que, por

sua vez, seria característico da espécie ‘homem’” (WEBER, 2016c, p. 125).

Consequentemente, conforme constata Weber, tal concepção “atinge direta ou

indiretamente a história, pois o ‘significado criativo’ da ação humana haveria de se opor

fundamentalmente à causalidade mecânica que está por trás do devir na natureza

(WEBER, 2016c, p. 108).

Nesse sentido, Knies assume que “a explicação causal é inerentemente

naturgesetzlich: uma explicação em termos de leis como as das ciências naturais ou

nomológicas” (RINGER, 2004, p. 25). Segundo Weber, “Knies vê uma oposição entre a

‘ação livre’ das pessoas, e, portanto, ‘ação irracional, individual e não previsível’ e a ação

das pessoas, determinada pelas condições naturais” (WEBER, 2016c, p. 107). No entanto,

mesmo admitindo que “as leis naturais exercem certa influência sobre a vida econômica”,

para Knies, “estas leis da natureza não seriam realmente leis da vida econômica, pois o

livre-arbítrio intervém nelas na forma de uma ação de caráter ‘pessoal’ (WEBER, 2016c,

p. 107).

Weber discorda de Knies sobre a sua convicção de que a irracionalidade (ou

incalculabilidade) seria típica da ação humana, afirmando que, por mais incalculável (ou

imprevisível, assumindo-se que o objetivo do cálculo, nessa terminologia, seria a

obtenção de uma previsão) que uma determinada ação humana possa parecer existe uma

parcela do comportamento que , por menor que seja, pode ser calculada. Segundo Weber,

Cada ordem militar, cada lei penal e cada sinal que fazemos, por exemplo, no trânsito, provoca, no nosso cálculo racional, uma determinada reação. Obviamente, não se espera uma única e exclusiva reação possível ou uma reação absolutamente necessária, mas, pelo menos, espera-se uma reação que seja suficiente à finalidade para a qual este mesmo sinal ou esta mesma ordem foi dada.

Weber afirma não haver uma diferença significativa entre a calculabilidade das

ciências naturais e a calculabilidade da ação humana, exemplificando que “A

‘calculabilidade’ dos processos naturais como, por exemplo, no setor da ‘previsão do

tempo’, muitas vezes nem de longe é tão exata como o cálculo que diz respeito ao

comportamento de uma pessoa, cujos hábitos comportamentais conhecemos muito bem”

(WEBER, 2016c, p. 126).

Deste modo, haja vista que, segundo Knies, a irracionalidade da ação humana

impede a previsibilidade do agir humano e, portanto, do devir histórico, o historiador

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148

alemão “recorreu a entidades como ‘organismo’ coletivo e o ‘caráter’ (ou ‘espírito’) de

uma nação” (RINGER, 2004, p. 24) para justificar a ação do indivíduo histórico. De

maneira condensada, “uma vez que os processos causais ‘mecânicos’ estavam excluídos,

a mudança só poderia ser um desdobramento teleológico de potencialidades preexistentes

ou uma ‘emanação’ de forças intelectuais ou espirituais” (RINGER, 2004, p. 22).

A partir dessa constatação, a abordagem adotada por Knies em sua teoria histórica

se aproxima consideravelmente à psicologia de Wilhelm Wundt. Ciente disso, porém sem

indicar de maneira explícita uma relação de dependência de Knies para com Wundt,

Weber dedica boa parte do artigo sobre Knies à análise do pensamento não só de Wundt,

mas também de outros pensadores contemporâneos92, sobre a questão da objetividade no

estudo da História. Apesar do título do artigo e do pretenso foco no pensamento de Knies,

Weber admite, em nota, que:

Em nossas considerações, de maneira nenhuma surge uma imagem adequada da importância científica e histórica de Knies. Os escritos de Knies aparecem corno “pretexto” e “ocasião” para a explicação das minhas preocupações metodológicas. (WEBER, 2016c, p. 106).

Ambos Knies e Wundt atribuíam a incalculabilidade da ação humana a algo

próprio do ser humano. Se para Knies a origem dessa incalculabilidade está no livre

arbítrio, Wundt a localiza na natureza criativa (ou criadora) do homem. Para que isso

fique claro, no entanto, é necessário que, antes disso, se explore um pouco mais a teoria

psicológica de Wundt.

Segundo Wundt, elementos psíquicos complexos, como ideias e sentimentos

complexos, seriam compostos pela fusão (e não por associação, segundo a teoria

psicológica inglesa) de elementos psíquicos simples, como sensações e sentimentos

simples. No entanto, destaca que “cada composto apresenta atributos que podem ser

entendidos a partir dos atributos dos seus elementos, embora de modo algum eles devam

ser vistos como a mera soma destes atributos” (Wilhelm Wundt apud MARCELLOS,

2011, p. 324).

92 Além de Wilhelm Roscher e Karl Knies, Weber analisa e critica a lógica por trás dos métodos dos já citados Karl Lamprecht, Georg Simmel e Wilhelm Wundt, mas também do psicólogo Hugo Münsterberg (1863-19126) e do economista Friedrich Gottl (1868-1958).

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Tal característica da combinação dos elementos psíquicos, segundo Wundt, seria

um dos princípios que regem a causalidade psíquica e que o levam a introduzir o princípio

da síntese criadora (schöpferische Synthese)93. Reconhecido “mais claramente nas

funções aperceptivas e nas atividades da imaginação e do entendimento” (MARCELLOS,

2011, p. 324), o princípio da síntese criadora estabelece que

as combinações psíquicas conteriam sempre algo qualitativamente distinto de seus componentes, não obedecendo à equivalência entre causa e efeito, decorrente do princípio de conservação de energia, e atribuindo à explicação psicológica um caráter regressivo, isto é, somente possível posteriormente à ocorrência dos fenômenos, e não a partir da simples observação dos elementos constitutivos. (MARCELLOS, 2011, p. 324)

Deste modo, segundo o princípio da síntese criadora, não se verifica na relação

causal dos fenômenos psíquicos uma equivalência entre causa e efeito (tal qual se verifica

nos fenômenos físicos em função do princípio de conservação de energia. De fato, como

a síntese criadora “provoca o surgimento de novos valores determinantes”, então, nesse

caso, imaginando-se uma “energia mental” (em oposição a uma energia física), pode-se

dizer que “a causalidade psíquica provoca um crescimento da energia mental em

contraposição à necessária conservação da energia física (ARAUJO, 2007, p. 254). Um

outro aspecto de diferenciação entre a causalidade psíquica da causalidade física diz

respeito à previsibilidade dos efeitos. Segundo Saulo de Freitas Araujo, o princípio da

síntese criadora de Wundt estabelece que

A criação de novos valores a partir da interação causal dos elementos psíquicos significa que o efeito sempre conterá algo imprevisível e qualitativamente distinto dos elementos causais, só podendo, pois, ser conhecido posteriormente. Assim, a explicação psicológica deverá ser sempre regressiva, isto é, deve partir sempre do efeito para a causa, ao contrário do procedimento padrão nas ciências naturais, que é progressivo. (ARAUJO, 2007, p. 254)

Portanto, Wundt concluiu que a irracionalidade (ou incalculabilidade, segundo

Weber) do agir humano deriva do princípio da síntese criativa. Do mesmo modo, quando

aplicado à Psicologia dos Povos, o princípio da síntese criativa, estabelecia que “o ‘todo’,

isto é, a nação, constituía mais do que a soma de suas partes” e que “o povo, como

93 No princípio nomeado por Wundt como schöpferische Synthese, a palavra “schöpferische” pode ser traduzida como “criadora” ou “criativa”. Ao longo do texto, aparecem as duas possibilidades, pois a opção “criadora” é utilizada nos textos Saulo de Freitas Araujo e de Cíntia Fernandes Marcellos e a opção “criativa” é utilizada nos textos de Weber. Além disso, nas referências em inglês a palavra “schöpferische” é traduzida como “creative”. Embora “creative” também admita a tradução para o português como “criativa” ou “criadora”. Ainda assim, excluindo-se os casos das citações, a opção utilizada nesta pesquisa será a de “criadora”, em alinhamento com os textos de Saulo de Freitas Araujo e de Cíntia Fernandes Marcellos.

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entidade composta, era um produto da síntese criativa dos indivíduos interagindo e

representava uma nova entidade com sua própria qualidade e suas próprias

características” (KLAUTKE, 2013, p. 66).

Consequentemente, a partir do princípio da síntese criativa, na concepção de

Wundt, seria possível explicar não somente o modo com que a mente compõe ideias e

sentimentos complexos, mas também se dá a interação entre indivíduo e o povo.

Adicionalmente, a partir do mesmo princípio seria possível explicar não somente a

imprevisibilidade do devir histórico, mas também o progresso na História, ou seja, o

modo em que se dá “a transformação de formas primitivas de civilização em estágios

mais avançados de desenvolvimento” (KLAUTKE, 2013, p. 66).

Naturalmente, haja vista tudo o que foi exposto até o presente momento, Weber

se opunha à psicologia de Wundt. No entanto, mesmo sabendo-se que Weber encarava os

membros do Círculo de Leipzig94 com uma dura reserva intelectual, o sociólogo não deixa

de ressaltar a importância científica da obra de Wundt no que diz respeito à psicologia.

Como o próprio Weber admite: “A extraordinária estima e aceitação das pesquisas e do

pensamento abrangentes deste notável erudito não deve impedir a percepção de

problemas específicos dentro dos parâmetros de sua teoria” (WEBER, 2016c, p. 118).

Do ponto de vista metodológico, o principal ponto de contenda com o psicólogo

de Leipzig dizia respeito ao princípio da síntese criadora ou criativa. Para Weber, “o

conceito de ‘criativo’ que é um termo fundamental na metodologia das ciências do

espírito de Wundt” não poderia ser visto como “outra coisa que não o resultado de um

juízo de valor, uma atribuição de um valor seja para o momento causal, seja para o efeito

final” (WEBER, 2016c, p. 111). Weber defende que “o conceito de ‘criativo’ não é um

termo ao qual corresponde objetivamente algo no mundo empírico” e que, portanto, só

poderia ser “um conceito relacionado com valores, a partir dos quais percebemos

94 O Círculo de Leipzig foi um grupo de intelectuais da Universidade de Leipzig influenciado postumamente por dois professores da universidade: Wilhelm Roscher e Gustav Fechner. Apesar das diferenças, ambos Roscher e Fechner “compartilhavam, e legaram aos seus sucessores, a ideia que a ciência era essencialmente uniforme e que as tendências de fragmentação da Wissenshaft deveriam ser resistidas” (SMITH, 1991, p. 206). Dentre os seus membros merece destaque Wilhelm Wundt, Karl Lamprecht e Wilhelm Ostwald. Weber, notoriamente, teceu duras críticas a todos eles em seus textos metodológicos.

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mudanças qualitativas na realidade empírica” (WEBER, 2016c, p. 112). Para justificar tal

afirmativa, Weber argumenta:

Os processos físicos e químicos que, por exemplo, levam à produção de carvão ou de diamantes poderiam ser classificadas, em termas de forma, como “sínteses criativas”, no mesmo sentido das relações de motivação que explicam o modo como, a partir da intuição de um profeta, por exemplo, nasce uma nova religião. A diferença que existe entre estes dois fenômenos se explica a partir do fato de serem diferentes, e de serem outros os valores que conduzem o processo cognitivo. Em ambos os casos, logicamente falando, a sequência de mudanças qualitativas tem as mesmas características. Isto se deu por causa do relacionamento com valores que acabou fazendo com que relações causais se transformassem em relações de significado. Percebe-se que a reflexão sobre o relacionamento com valores toma-se num dos objetos principais e fundamentais do interesse epistemológico da ciência histórica. Não é possível afirmar a validade da frase Causa aequat effectum para as ações humanas. Esta “não-validade” não existe por causa de uma suposta superioridade dos processos psicofisiológicos sobre outros que pertencem às chamadas “leis da natureza” independentemente de serem entendidas stricto sensu ou latu sensu a lei da conservação da energia, por exemplo). Esta não-validade se baseia unicamente numa razão lógica. Em outras palavras: os pontos de vista a partir dos quais a “ação humana” torna-se objeto de uma análise científica excluem, de antemão, a possibilidade de uma “relação causal”. A nossa afirmação, obviamente, vale para a ação de indivíduos e de grupos, entendidos como uma multiplicidade de pessoas. (WEBER, 2016c, p. 112).

Weber, portanto, defende que é a partir dos juízos de valor do historiador, nos

quais se concentra o seu interesse epistemológico, que são selecionadas determinadas

sequências causais dentre muitas possíveis. A criatividade, na concepção de Weber, seria

apenas a denominação dada pelo historiador ao fazer “referência ao êxito de uma

imputação causal à ‘ação’ humana” determinada “a partir de novos interesses

epistemológicos” dos quais derivam “novas relações, (...) que anteriormente não foram

devidamente percebidas” (WEBER, 2016c, p. 113). No entanto, Weber destaca,

Considerando apenas a dimensão lógica, não podemos afirmar que “puros processos naturais” e processos sociais tenham as mesmas características qualitativas. Nos “puros processos naturais” não há uma imputação causal. A “criatividade”, naturalmente, pode também assumir conotações negativas ou significar apenas uma mudança, sem classificá-la precisamente. É, portanto, evidente que não há uma relação necessária entre o sentido da ação humana, que é “criativa”, e o resultado que se atribui por imputação causal à criatividade humana. (WEBER, 2016c, p. 113).

Mesmo com relação estabelecida por Wundt entre as causalidades física e

psíquicas, Weber discorda que o princípio da síntese criadora seja exclusivo aos

elementos psíquicos. Segundo Weber, o princípio da síntese criadora atesta uma relação

de causalidade entre as “formas psíquicas” e seus elementos constitutivos de modo que

as “formas psíquicas” sejam simultaneamente determinadas pelos elementos

constitutivos e apresentem características novas e diferentes dos mesmos. No entanto,

como afirma Weber:

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152

Podemos sem dúvida afirmar o mesmo com referência aos processos naturais todas as vezes em que acreditamos surgirem destes processos mudanças qualitativas. A água, por exemplo, possui, em sua particularidade qualitativa, determinadas características que não se encontram nos seus elementos constitutivos. Se incluirmos em nossas reflexões com a relação de valores, não há, obviamente, sequer um único processo natural que não apresente "novas" características, comparando-o com os seus elementos constitutivos. O mesmo podemos afirmar sobre relações de pura natureza quantitativa, como, por exemplo, o sistema solar, comparando-o com os seus elementos constitutivos que, neste caso, seriam os planetas ou com as forças mecânicas que fizeram com que o sistema solar se formasse, emergindo das nebulosas.(WEBER, 2016c, p. 114)

Na avaliação de Weber, Wundt, ao buscar através da sua psicologia estabelecer

uma causalidade para o agir individual e coletivo humano, não considerou que a

“atribuição de valores e a imputação causal dependem dos ‘valores’, a partir dos quais

ordenamos a heterogeneidade e a diversidade dos fenômenos sociais a serem analisados”

(WEBER, 2016c, p. 116). Ou seja, ao se imputar sentido à ação humana, estabelece-se,

necessariamente um julgamento de valor para tal ação.

Nesse sentido, Weber considera que “a psicologia, entendida como ciência

empírica, somente é pensável se dela afastamos todos os juízos de valor que, entretanto,

nas ‘leis’ de Wundt, indiscutivelmente estão presentes” (WEBER, 2016c, p. 119). Mesmo

assim, admite que uma possibilidade em aberto seria “que qualquer dia se constate aquela

constelação de ‘elementos’ psíquicos que são, em termos de causa, condições inequívocas

para o surgimento dentro de nós de um ‘sentimento’ de ‘poder fazer’ ou de ‘ter feito’ um

juízo objetivamente ‘válido’ sobre um determinado assunto” c Porém, constata que essa

não era a realidade de sua época:

A pesquisa sobre a anatomia do cérebro talvez nos leve, futuramente, ao conhecimento dos condicionamentos e do funcionamento dos processos físicos. Mas, no momento, não nos interessa se isto será possível algum dia, mas, em todo o caso, tal pretensão não nos parece ser destituída de lógica. No que tange à situação atual e objetiva, podemos dizer que, por exemplo, o conceito de “energia potencial” no qual se baseia a “lei da energia” contém elementos que são tão “incompreensíveis” (aqui: não transparentes) como quaisquer hipóteses sobre a anatomia do cérebro da psicofísica que pretendem explicar o decurso quase “explosivo” de determinados processos cerebrais. Pressupor a possibilidade de tais constatações é, como problemática, fértil e significativo. Esta pressuposição da possibilidade é, obviamente, apenas uma meta “ideal” da pesquisa psicofísica, mesmo que esta meta dificilmente possa ser atingida. (WEBER, 2016c, p. 119).

No entanto, é na Psicologia dos Povos de Wundt que Weber encontra o principal

ponto de discórdia entre o seu pensamento e a psicologia wundtiana: o psicologismo.

Weber, de acordo com Fritz Ringer, “alinhou o ‘psicologismo’ de Wundt com as

metateorias naturalistas baseadas na mecânica ou na biologia”, pois “o que sobretudo lhe

repugnava nessas expansões de ideias disciplinares em Weltaschauungen era a falsa aura

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de exatidão científica que obviamente aumentava a sua popularidade” (RINGER, 2004,

63).

Tal visão de mundo, argumenta Weber, deriva do próprio princípio da síntese

criadora, pois este implica que “os seres humanos, no decorrer de sua evolução cultural,

ampliam cada vez mais a sua capacidade de assimilar intelectualmente as normas

atemporais e universalmente válidas” (WEBER, 2016c, p. 121). Nesse sentido, a

evolução cultural do homem é concebida por Wundt “como um processo histórico

interpretado como progresso que se transforma em ‘história’” (WEBER, 2016c, p. 123).

Em The Mind of the Nation, Egbert Klautke, ao avaliar a recepção da obra de

Wundt por parte da comunidade científica no começo do século XX, constata que, para

Weber, “a ideia de uma ‘síntese criativa’, que deveria caracterizar o desenvolvimento do

espírito do povo e explicar o progresso da civilização, era baseada em um julgamento de

valor mal disfarçado e, portanto, enganosa e insustentável” (KLAUTKE, 2013, p. 77).

Pelo fato de considerar que Wundt apresenta sua psicologia “como uma ciência objetiva

e empírica, quando era, de fato, construída com julgamentos sobre o progresso e valor

relativo de civilizações, que nunca poderiam ser provados empiricamente” (KLAUTKE,

2013, p. 77), Weber conclui que a psicologia de Wundt seria uma fé no progresso.

Segundo suas próprias palavras:

Dentro da imensa variedade de processos históricos possíveis, nós nos aferramos a um processo e, destarte, escapamos à falta de um “sentido” da história e do total absurdo do processo histórico. Tudo isso contribui para o surgimento de uma fé metafísica que afirma haver algo como uma fonte da eterna juventude da qual jorra, continuadamente e de maneira objetiva, a água pura de um “progresso da humanidade” em direção a um futuro infinito em termos de tempo. Abstraindo o nosso juízo de valor, esta fonte seria a ponte entre o reino dos valores atemporais e os valores relativos do devir histórico, que dar-se-ia com a mediação, quer de “personalidades geniais”, quer da “evolução sócio-psíquica”. A psicologia de Wundt é a apologia desta fé num “progresso” (WEBER, 2016c, p. 123).

Segundo Wolfgang Schluchter, nos artigos sobre Roscher e Knies, “Weber lidou

não somente com duas abordagens para a Economia, a histórica e a teórica, mas também

com duas formas de psicologia, a explicativa e a interpretativa” (SCHLUCHTER, 2000,

p. 61), além de criticar “dois dos principais representantes da psicologia experimental,

Wilhelm Wundt e Hugo Münsterberg” (SCHLUCHTER, 2000, p. 71).

Apesar de ter sido o assistente de pesquisa de Wundt, a concepção de Münsterberg

sobre a prática da psicologia divergia consideravelmente da opinião de seu antigo mestre.

Enquanto Wundt acreditava que a Psicologia deveria ser uma ciência pura, sem interesses

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práticos, Münsterberg defendia a aplicação de princípios psicológicos às questões práticas

do dia a dia.

Segundo Weber, coube a Münsterberg o feito de demonstrar “que a psicologia que

trabalha com o ‘pretenso’ princípio do devir psíquico não chega a resultado nenhum”,

pois “o devir ‘psíquico’ que é ‘objetivado’, isto é, sem se relacionar com valores, só

conhece o conceito de ‘mudança qualitativa’, e a observação causal objetivada, apenas o

de ‘inadequação causal’” (WEBER, 2016c, p. 125). Portanto, conclui Weber, “o conceito

de ‘criativo’ desempenha apenas uma função no momento em que começamos a colocar

determinados elementos dessas mudanças objetivamente existentes dentro de um

esquema de ‘relacionamento com valores’” (WEBER, 2016c, p. 125).

No entanto, se, na avaliação de Weber, Wundt definiu incorretamente a relação

entre valores e conhecimento, Münsterberg errou na sua definição da relação entre

experiência e conhecimento. Segundo Schluchter, a crítica de Weber à psicologia de

Münsterberg dizia respeito à tendência do psicólogo de “polarizar conhecimento e

experiência”, levando-o a “distinguir modos e observação objetificantes e subjetificantes”

(SCHLUCHTER, 2000, p. 72). Como o próprio Weber admite, “o seu [de Münsterberg]

raciocínio se torna sobremaneira confuso devido ao fato de confundir conceito, e

categorias epistemológicas de origem diversa apenas para ampliar ao máximo o abismo

entre procedimentos ‘objetivantes’ e ‘subjetivantes’” (WEBER, 2016c, p. 145).

As reservas de Weber para com o pensamento de Münsterberg, nesse sentido,

restringem-se mais ao plano metodológico do que à sua psicologia, pois, como afirma

enfaticamente, “a ciência histórica não se interessa pelo processo interior do ser humano,

desencadeado por certos estímulos; antes, ela se interessa pelo comportamento do homem

em sua relação com o ‘mundo’, no que concerne aos condicionamentos e efeitos

‘externos’” (WEBER, 2016c, p. 144).

Com respeito à sua metodologia, Münsterberg opõe a análise objetificante e livre

de valores dos processos naturais com a compreensão imediata e relacionada a valores

dos atos de vontade95, o que “implicou na ideia de que a categoria da causalidade era de

95 Para Münsterberg, segundo a leitura de Weber, “as categorias peculiares do conhecimento ‘subjetivante’ seriam as de ‘revivência empática’ e de ‘compreensão’. Podemos usá-las apenas na área dos ‘fenômenos espirituais’ ou ‘psíquicos’” (WEBER, 2016c, p. 136).

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fato aplicável aos processos naturais, mas não aos atos de vontade” (SCHLUCHTER,

2000, p. 72). Sobre a concepção de Münsterberg, Weber escreve:

O “querer”, por exemplo, que é “imediatamente” compreensível, ou o “Eu” como “unidade” que imediatamente pode ser “compreendido”, nunca deve ser enquadrado num procedimento nomológico e científico já que, neste procedimento, trata-se essencialmente de se tentar chegar a uma verdade “objetiva” e, portanto, supra-individual. (WEBER, 2016c, p. 150)

Contrário ao proposto por Münsterberg, Weber argumenta que “todo

conhecimento, inclusive a compreensão, exige objetificação” (SCHLUCHTER, 2000, p.

73). Weber não subscreve à classificação das ciências proposta por Münsterberg, em

ciências com tendências objetificantes e ciências com tendências subjetificantes.

Influenciado pelo neokantismo de Heinrich Rickert, Weber descarta a classificação das

ciências com base no objeto de estudo (uma proposta mais próxima a Dilthey do que aos

neokantianos) em favor de uma classificação baseada no interesse de conhecimento do

indivíduo – portanto, uma classificação em ciências generalizantes e individualizantes.

Nesse sentido, para Weber, mesmo para a compreensão é empática, o que

acontece “não é uma ‘divisão’ do eu que se transpõe empaticamente, mas o deslocamento

da própria vivência por meio da reflexão sobre um ‘objeto’ alheio, no momento em que

ela se inicia” (WEBER, 2016c, p. 171). Para Weber isso é válido seja o objeto um

pensamento ou um sentimento.

A busca pela objetividade do conhecimento nas ciências históricas e sociais é,

indiscutivelmente, o ponto central dos textos metodológicos de Weber e um dos temas de

interesse central do seu pensamento. Em 1904, enquanto ainda escrevia a série de artigos

sobre Roscher e Knies, Weber publicou o artigo A “objetividade” do conhecimento na

Ciência Social e na Ciência Política, que viria a ser o seu primeiro texto inteiramente

focado no estabelecimento de um método que garantisse a objetividade do conhecimento

produzido pelas ciências sociais.

A publicação do artigo insere-se em um momento em que se desenrolava, na

Alemanha, um debate sobre o papel da Psicologia no cenário acadêmico e sua relação

com as demais ciências. A visão psicologista ganhava adeptos no meio acadêmico e

muitos defendiam que a psicologia deveria servir como base teórica para a Filosofia e

para todas as ciências humanas. No artigo, Weber insere-se no debate, posicionando-se,

como muitos dos seus colegas, contra a “heresia” do psicologismo, afirmando que

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ainda hoje, não desapareceu completamente a opinião de que é tarefa da psicologia desempenhar, para as diversas ciências do espírito (Geistesvissenschaften), um papel comparável ao das matemáticas para as “ciências da natureza”. Para tal, ela deveria decompor os complexos fenômenos da vida social nas suas condições e efeitos psíquicos, reduzi-los a fatores psíquicos mais simples, e, enfim, classificar estes últimos em gêneros e analisar as suas relações funcionais. Assim, ter-se-ia conseguido criar, senão uma “mecânica”, ao menos uma “química” da vida social nas suas bases psíquicas. (WEBER, 2016a, p. 235)

O contra-argumento de Weber afirma que tal abordagem não seria possível às

ciências do espírito, mesmo admitindo que não seja possível ou necessário decidir “se tais

análises poderão algum dia contribuir com resultados particulares que sejam valiosos e –

o que é diferente – úteis para as ciências da cultura” (WEBER, 2016a, p. 236). Tal seria

o caso porque, para Weber, mesmo que fosse possível “quer por meio da psicologia, quer

de qualquer outro modo”, “decompor em fatores últimos e simples todas as conexões

causais imagináveis da coexistência humana (...) e supondo que se conseguisse abrangê-

las de modo exaustivo numa imensa casuística de conceitos e de regras com a rigorosa

validade das leis”, o resultado seria nada mais do que “um importante e útil trabalho

preliminar” (WEBER, 2016a, p. 236).

A ambiciosa tarefa de “deduzir a realidade da vida a partir destas ‘leis’ e ‘fatores’”

seria algo impossível, na avaliação de Weber, porque “para o reconhecimento da

realidade, só nos interessa a constelação em que esses ‘fatores’ (hipotéticos) se agrupam,

formando um fenômeno cultural historicamente significativo para nós” (WEBER, 2016a,

p. 237).Na concepção de Weber,

A significação da configuração de um fenômeno cultural e a causa dessa significação não podem contudo deduzir-se de qualquer sistema de conceitos de leis, por mais perfeito que seja, como também não podem ser justificados nem explicados por ele, tendo em vista que pressupõe a relação dos fenômenos culturais com ideias de valor. O conceito de cultura é um conceito de valor. A realidade empírica é “cultura” para nós porque, e na medida em que, a relacionamos com ideias de valor. Ela abrange aqueles e somente aqueles componentes da realidade que através desta relação tomam-se significativos para nós. (WEBER, 2016a, p. 237).

Deste modo, segundo George Cavalletto, em Crossing the Psycho-Social Divide,

“a razão básica porque fenômenos histórico-culturais não podem nunca ser deduzidos de

grandes sistemas conceituais é porque ‘conhecimento da realidade social’ é

epistemologicamente diferente do conhecimento do mundo natural” (CAVALLETTO,

2007, p. 47). Tais fenômenos, diferentemente dos fenômenos naturais, estão ligados a

valores condicionados pelas condições culturais e psíquicas do período em que estão

inseridos. Segundo escreve Weber,

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Os problemas culturais que fazem mover a humanidade renascem a cada instante, sob um aspecto diferente, e permanecem variáveis: o âmbito daquilo que, no fluxo eternamente infinito do individual, adquire para nós importância e significação e se converte em “individualidade histórica”. Mudam também as relações intelectuais, sob as quais são estudados e cientificamente compreendidos. (WEBER, 2016a, p. 246).

Portanto, haja vista que o conhecimento dos fenômenos sociais difere

epistemologicamente do conhecimento dos fenômenos naturais, então, o método para se

obter o conhecimento dos fenômenos sociais deve necessariamente diferir dos métodos

das ciências naturais. A importância do conhecimento nomológico, nesse contexto,

também será diferente, pois segundo Weber:

Para as ciências exatas da natureza, as leis são tanto mais importantes e valiosas quanto mais geral é a sua validade. Para o conhecimento das condições concretas dos fenômenos históricos, as leis mais gerais são frequentemente as menos valiosas, por serem as mais vazias de conteúdo. Isto porque, quanto mais vasto é o campo abrangido pela validade de um conceito genérico - isto é, quanto maior a sua extensão- tanto mais nas afasta da riqueza da realidade, posto que, para poder abranger o que existe de comum no maior número possível de fenômenos, forçosamente deve ser o mais abstrato e pobre de conteúdo. No campo das ciências da cultura, o conhecimento do geral nunca tem valor por si próprio. (WEBER, 2016a, p. 241).

Apesar de constatar que “o conhecimento de leis sociais não é um conhecimento

do socialmente real, mas unicamente um dos diversos meios auxiliares de que nosso

pensamento se serve para esse efeito” (WEBER, 2016a, p. 242), Weber reconhece que,

na disciplina da Economia Política, ainda persiste entre muitos pesquisadores de sua

época “o preconceito naturalista segundo o qual se deveria, nesses conceitos [os conceitos

das ciências culturais], elaborar algo de semelhante às ciências exatas”(WEBER, 2016a,

p. 249). O método teórico desenvolvido por muitos desses economistas, opunha-se à

investigação histórico empírica e buscava apoiar-se em axiomas psicológicos para

determinar as leis gerais do comportamento humano. Weber destaca que tal método

teórico...

... reconhece com toda a exatidão a impossibilidade metodológica de substituir o conhecimento histórico da realidade pela formulação de “leis”, ou de, pelo contrário, chegar ao estabelecimento das “leis”, no sentido estrito do termo, mediante a mera justaposição de observações históricas. Para conseguir estabelecer as leis - pois há consenso de que este é o fim supremo da ciência - parte do fato de que experimentamos constantemente as relações da atividade humana em sua realidade imediata. Em face disso, julga poder tornar esse curso dos eventos diretamente inteligível com evidência axiomática e assim explorá-los nas suas “leis”. (WEBER, 2016a, p. 248).

Segundo a análise de Weber, os que defendem tal método, argumentam que “a

única forma exata do conhecimento, a formulação de leis imediata e intuitivamente

evidentes, seria, ao mesmo tempo, a única que nos permitiria deduzir os acontecimentos

não diretamente observáveis” e, portanto, “o estabelecimento de um sistema de

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proposições abstratas e puramente formais, em analogia às proposições das ciências

exatas, seria o único meio de dominar intelectualmente a diversidade social” (WEBER,

2016a, p. 249).

Ainda que diga não ser sua intenção criticar “pormenorizadamente a significação

de uma ciência sistemática da ‘psicologia social’ - ainda não constituída - como futura

base das ciências culturais” (WEBER, 2016a, p. 250), Weber opõe-se, pelo menos, a uma

psicologia social baseada em leis abstratas. Segundo Weber, os grandes avanços da

psicologia social, em particular as “tentativas de uma interpretação psicológica dos

fenômenos econômicos de que temos conhecimento até agora” – tidas por Weber como

“em parte brilhantes” –, demonstram que “o esclarecimento das condições e dos efeitos

psicológicos das instituições pressupõe o exato conhecimento histórico destas últimas e

a análise científica das suas relações” (WEBER, 2016a, p. 250).

Para Weber, a análise psicológica representa “um valioso aprofundar do

conhecimento do seu condicionamento histórico e da sua significação cultural”, mas

nunca um meio para explicar as instituições sociais ou definir o que é significativo

culturalmente através de “de leis psicológicas ou de fenômenos psicológicos elementares”

(WEBER, 2016a, p. 250). Partindo do pressuposto que todo o conhecimento da realidade

histórica tem seu valor negado ao se assumir que tal conhecimento possa, ou deva, ser

uma cópia sem pressuposições de fatos objetivos, Weber afirma que, portanto, as

construções abstratas que pretendem estabelecer leis para a realidade histórica nada mais

são do que utopias.

Tais construções descrevem, de maneira limitada, um aspecto da realidade

histórica-social, mas ao negar-lhe qualquer valor, falha em compreender essa realidade.

Ainda assim, destaca que, como será visto mais adiante, a utilização dessas construções

abstratas como tipos-ideais, por mais que não deem conta de explicar a realidade social,

podem servir como ferramentas para essa compreender essa realidade.

Produzida concomitantemente ao artigo A “objetividade” do conhecimento na

Ciência Social e na Ciência Política, porém publicado logo após o primeiro, A Ética

Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, embora não se dedique, em nenhum

momento, a uma crítica direta à Psicologia e o seu uso nas Ciências Históricas e Sociais,

apresenta, em nota, a firme posição de Weber:

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Temos bons motivos para prescindir aqui das relações "psicológicas – no sentido técnico-científico da palavra – desses conteúdos religiosos de consciência, e mesmo o emprego da terminologia correspondente é evitado ao máximo. O cabedal de conceitos [realmente] seguros da psicologia [incluindo psiquiatria] ainda é insuficiente para ser aplicado diretamente, com proveito, para fins de pesquisa histórica na esfera de nosso problema [sem atrapalhar a imparcialidade do juízo histórico]. O emprego de terminologia da psicologia só faria criar a tentação de revestir com um véu de erudição diletante, repleta de termos estranhos, fatos perfeitamente compreensíveis e o mais das vezes triviais mesmo, dando assim a falsa impressão de maior rigor conceitual, como por exemplo foi típica de Lamprecht, infelizmente. (WEBER, 2010, p. 231)

Em suas críticas ao uso de psicologismos nas ciências sociais ou mesmo em

críticas metodológicas a psicólogos renomados, a arena de embate escolhida por Weber

foi sempre a intelectual e teórica. De fato, apesar de mostrar vasto conhecimento dos

campos da sociologia, filosofia, economia, assim como do campo da psicologia, sua

experiência com respeito à última era limitada, senão inexistente. No entanto, a partir de

1908 até 1911, Weber produziu uma série de artigos que tinha como tema a Psicofísica96.

Denominados pelo próprio Weber como seus “escritos psicofísicos”, os textos não

constam regularmente dos estudos da obra de Weber. Possivelmente porque o próprio

Weber admitiu que o resultado das suas incursões no campo da Psicofísica foi

decepcionante, levando-o a abandonar por completo o campo da Psicofísica nos seus

escritos posteriores a 1911. Dos textos que compõem seus “escritos psicofísicos” o que é

mais comumente citado é A psicofísica do trabalho industrial.

No artigo, encomendado e publicado em 1908 pela Verein für Sozialpolitik, Weber

explorou a literatura relacionada aos campos da Psicofísica e da Psicofísica do Trabalho

e foi a campo analisar os aspectos físicos, psíquicos e éticos do trabalho industrial, seus

efeitos no trabalhador e, consequentemente, o efeito na sua produtividade. Para tanto,

Weber consultou uma extensa bibliografia (como pode ser visto nas notas do autor), mas

recorreu, em grande parte, à pesquisa de Emil Kraepelin (1856-1924)97.

96 Segundo escreve Wolfgang Schluchter: “Max Weber se ocupou com a psicofísica diretamente e em detalhe em diversas ocasiões: o artigo metodológico ‘Estratégia de Pesquisa para o Estudo de Carreiras Ocupacionais e Padrões de Mobilidade na Força de Trabalho em Indústrias de Larga Escala’, escrito para colegas que conduziam uma pesquisa para a Verein für Sozialpolitik; a revisão de literatura de 1908/9 ‘A psicofísica do trabalho industrial’ que inclui um estudo de caso; a resenha de 1909 de ‘Sobre a metodologia dos Questionários Sociopsicológicos’; uma carta de leitor com respeito a Marie Bernays; e uma intervenção no debate na Conferência Anual da Verein für Sozialpolitik no outono de 1911.(SCHLUCHTER, 2000, p. 59) 97 Segundo Weber: “na seguinte compilação, os abrangentes trabalhos do excelente psiquiatra E. Kraepelin e de seus alunos - baseados em experimentos altamente engenhosos e esforçados, realizados continuamente por mais de uma década com trabalho intelectual extremamente intensivo - sobre os pressupostos e efeitos

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Uma das figuras mais proeminentes da psiquiatria alemã, em 1908, Kraepelin era,

juntamente com Wundt, uma das principais autoridades em psicologia fisiológica ou

experimental. Antigo pupilo de Wundt no Instituto de Psicologia de Leipzig, Kraepelin

era formado em medicina e, no seu trabalho em Leipzig, realizou estudos experimentais

sobre os efeitos de certas substâncias em processos psíquicos elementares, inaugurando

o campo, dentro da Medicina, da psicofarmacologia. Kraepelin importou procedimentos

do laboratório de psicologia de Wundt para a psiquiatria clínica e, através de medidas

precisas, estabeleceu a chamada “mecânica da doença mental”. Segundo Schluchter, o

programa de pesquisa de Kraepelin “diferenciava dois caminhos através dos quais a

psicologia experimental poderia ser útil à psicopatologia: comparação de resultados

experimentais colhidos de indivíduos normais e perturbados; e a investigação de estágios

transicionais entre eles através da administração controlada em indivíduos saudáveis de

álcool, cocaína, morfina, haxixe, brometo, chá, tabaco, entre outros” (SCHLUCHTER,

2000, p. 67).

Nas suas pesquisas, Kraepelin identificou a má nutrição, o sono insuficiente e o

esforço físico e psíquico excessivo como principais causas de distúrbios psicológicos,

além de constatar que o problema da capacidade de trabalho e da fadiga era algo

recorrente nos casos em que os indivíduos apresentavam distúrbios psicológicos. Da sua

pesquisa, Kraepelin desenvolveu o conceito de “curva de trabalho” – que relaciona a

produção do trabalhador em relação ao número de horas trabalhadas98 – e das “pausas

ótimas” que garantem maior recuperação do trabalhador entre períodos de trabalho.

Na concepção de Kraepelin, todo ser humano “possuía um aparato individual ‘no

qual estímulos são trabalhados” e as “qualidades psicofísicas eram aspectos básicos da

personalidade” (SCHLUCHTER, 2000, p. 68). Consequentemente, para Kraepelin, esse

aparato psicofísico é mais importante que a experiência para explicar o surgimento de

psicofísicos de rendimentos de trabalho estarão no centro da bibliografia psicológico experimental” (WEBER, 2009, p. 12). 98 Segundo Schluchter, “Kraepelin concordava com a visão convencional que a performance mental e corporal muda conforme o tempo, uma mudança que pode ser representada na forma de uma curva (sua bem conhecida curva de trabalho). Primeiro, suas medições de performance mostravam que o curso da curva de trabalho variava enormemente de um indivíduo para outro e de modo algum resultava em um modelo único. (...) Embora fosse imediatamente óbvio para Kraepelin que exercício e fadiga eram os determinantes mais importantes da curva, uma análise mais precisa mostrou que outros deveriam ser levados em conta, acima de tudo habituação, estimulação e esforço. A curva de trabalho é, portanto, uma soma de curvas.” (SCHLUCHTER, 2000, p. 68).

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enfermidades psicológicas. Ao aplicar a teoria de Kraepelin na sua própria pesquisa,

Weber destaca:

Kraepelin expõe os pontos de vista com os quais ele se confrontou com suas investigações: Partindo da teoria da afasia, a psiquiatria se acostumara a desmembrar de modo “monadológico” a alma em um sem-número de poderes específicos e destarte considerar os rendimentos psíquicos como “resultado de acordos majoritários entre a câmara baixa das percepções e a câmara alta das imagens de recordações”. Assim, é necessário considerar as “qualidades fisiológicas fundamentais” da personalidade, as quais decidem a forma como o indivíduo “processa” dentro de si os “estímulos” aos quais “reage”, como decisivas para o decurso dos rendimentos psicofísicos. Em última instância, portanto, a investigação visa o exame dessas “qualidades fundamentais” do trabalhador, e, para examiná-las, é preciso partir dos componentes fundamentais mais simples possíveis do rendimento do trabalho. (WEBER, 2009, p. 12)

Além de equipar-se com a psicofísica experimental de Kraepelin, Weber, no seu

trabalho de campo, analisou os livros de contabilidade, as jornadas de trabalho e as formas

de remuneração de uma indústria têxtil de parentes. Além disso, analisou o trabalho dos

tecelões, bem como as suas produtividades sob diversas condições (variando-se

equipamentos, dias da semana, temperatura e umidade dos ambientes, além da idade e

sexo dos trabalhadores). No entanto, é digno de nota que toda a sua análise foi feita sem

entrevistar pessoalmente sequer um trabalhador.

Sob um ponto de vista metodológico, Weber criticou em seus estudos o fato de

que as condições de pesquisa de um laboratório eram completamente diferentes das

condições de uma fábrica e que, como constatou, “há um abismo enorme entre o método

de mensuração ‘mais exato’ hoje existente na indústria e o experimento do psicólogo”

(WEBER, 2009, p. 50). Segundo Weber, na fábrica, por mais que se observassem

medições quantitativas precisas, do ponto de vista qualitativo, tais medidas eram

insuficientes, pois as condições de trabalho no mundo real não se enquadravam nas

categorias reducionistas obtidas em laboratório99.

Além disso, ressalta Weber em sua crítica, a opinião do próprio Kraepelin “é que

atualmente [em 1908] já está constatada a impossibilidade contínua de obter resultados

sobre as condições e os efeitos psicofísicos do trabalho - dependendo de sua peculiaridade

e das peculiaridades ‘típicas’ do trabalhador - através de qualquer tipo de observações de

99 Conforme relata Weber: “o trabalho fabril, tal como se realiza na vida cotidiana, está sempre submetido a uma série de condições inteiramente grosseiras e estranhas ao laboratório” (WEBER, 2009, p. 44).

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massa100” (WEBER, 2009, p. 40). Segundo Weber, isso seria o efeito da “extraordinária

influência” exercida pela “‘disposição diária’ variante do indivíduo”, o que ocasionava

em longos períodos de testes, “perspicácia e escrúpulo para eliminar a influência de

‘causalidades’” (WEBER, 2009, p. 41) e, por fim, em função da natureza restritiva dos

testes, um número reduzido de indivíduos testados. Tudo isso, constata, prejudica a

precisão dos resultados, tornando-os, inclusive, questionáveis. Weber, no entanto, avalia

que a falta de precisão nos testes não elimina a validade dos resultados, pois, como

escreve:

o fato do número inevitavelmente pequeno de pessoas testadas deve insinuar, em todo caso, o julgamento – aliás, aparentemente partilhado pelo próprio Kraepelin, segundo várias declarações - de que os resultados dessas investigações, na medida em que encontraram abrigo em “teorias” gerais, possuem valor essencialmente heurístico de hipótese plausível, para cada afirmação singular talvez num certo grau diferente, e sobre tudo: que seu valor não se encontra na obtenção de teoremas definitivamente seguros e geralmente válidos, mas na criação de conceitos com os quais se pode operar no âmbito da investigação de condições psicofísicas gerais do trabalho. (WEBER, 2009, p. 41).

Adicionalmente, pode-se justificar a maior imprecisão no mundo real de uma

fábrica pelo fato de todos os dados referentes à fadiga do trabalhador versus sua

produtividade não levam em conta a relação psíquica com o trabalho. Em outras palavras,

o modo como o trabalhador estabelece relações de sentido entre os mundos externo e

interno com o seu trabalho afeta a sua vontade e, portanto, também afeta a sua

produtividade com relação à sua fadiga. Nesse sentido, Weber propõe a questão: “como

se pode combinar a indubitável influência desses fatores, que em grande parte são

dedutíveis apenas psiquicamente, com uma teoria da fadiga e da prática que opera de

modo rigorosamente fisiológico” (WEBER, 2009, p. 42). Tal questão indica o que Weber

chama de “eterno problema das questões teóricas fundamentais da ‘psicofísica’”, qual

seja, o de

conduzir a uma ideia de processos “inconscientes” não “físicos”, mas “psíquicos”, e assim a uma estrutura totalmente diferente das teorias que fundamentariam as intuições sobre a relação entre o físico e o psíquico, do que aquela representada pelo “paralelismo” oficial wundtiano que a maioria dos psiquiatras (pelo menos supostamente) defende. (WEBER, 2009, p. 43).

100 Segundo Weber: “Por ‘observação de massa’ deveria entender-se, para deixar isso claro o quanto antes, qualquer tipo de investigação, que tenha como objeto pessoas, cujos comportamentos com relação a sono, alimentação, ingerência de álcool, ocupação corporal e mental e todas as outras expressões de vida importantes para a economia de energia do sistema nervoso e dos músculos, não são regulados e mantidos sob controle pelo observador.” (WEBER, 2009, p. 40).

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Weber iniciou sua pesquisa sobre a psicofísica do trabalho industrial com grandes

esperanças de um resultado positivo101, qual seja, estabelecer uma relação entre a

produtividade do trabalhador em função das exigências às quais o aparato psicofísico do

trabalhador é submetido. No entanto, Weber avalia que o problema por trás da

produtividade do trabalhador não pode ser reduzido simplesmente à conceitos mecânicos.

Conforme conclui sua análise:

Primeiramente, de um “lado”, ponderações racionais: sempre de novo nos depararemos com o fato de que os trabalhadores regulam, aumentam ou reduzem o grau e o tipo de seu rendimento planificadamente para fins “materiais” (isto é, “aquisitivos”), ou, na concomitância de vários rendimentos (p. ex., várias espécies com diferentes chances de ganhos em vários teares) alteram o modo de combinação. Através de interpretação “pragmática” podemos “inferir” a “máxima” seguida por tais regulações propositais. Do outro lado, seu rendimento se altera, quantitativa ou qualitativamente, por alterações no funcionamento de seu aparato psicofísico, que em dadas circunstâncias lhes chega à consciência pelo efeito psíquico: facilitar ou dificultar o rendimento, mas não pelo processo psicofísico que “está por trás disso”; (...) Podemos procurar “explicar” tais componentes, de acordo com sua causação, através de ajuda da assim chamada experiência “externa” e como casos especiais das regras obtidas por “experimento”. Assim se encontram componentes que ocupam uma posição intermediária específica (não: uma posição intermediária em geral: - pois dessas existem numerosas): isso são processos em que “estados de ânimo”, que chegam enquanto tais à consciência, influenciam o rendimento de trabalho sem que simultaneamente o processo dessa influência, o rendimento maior ou menor ou diferente, seja conscientemente “vivenciado” como relacionado a isso; nós podemos tornar tais processos “psicologicamente” compreensíveis. (WEBER, 2009, p. 52)

Ainda assim, apesar dos resultados negativos, sua pesquisa “teve efeitos positivos

na sua sociologia interpretativa” (SCHLUCHTER, 2000, p. 78). Conforme avalia

Schluchter, a conclusão de Weber que “a conduta dos trabalhadores não era determinada

unicamente pelos seus aparatos psicofísicos, nem tampouco regulada por máximas”,

levou-o à constatação de que “existia algo ‘no meio’, que estava conectado a estados de

ânimo” (SCHLUCHTER, 2000, p. 78).

Em 1913, Weber publicou o artigo “Sobre algumas categorias da sociologia

compreensiva”, a primeira apresentação sistemática de sua sociologia. O texto marca

também a primeira vez em que Weber trata a questão do psicologismo e o papel da

Psicologia como ciência a partir de um ponto de vista sociológico.Com respeito a uma

metodologia das Ciências Sociais, Weber delimita os parâmetros e define os conceitos

101 Weber surpreende-se que tal iniciativa não tenha tido sucesso até então. Segundo escreve: “Dados os extraordinários progressos da pesquisa antropológica, fisiológica, psicológico-experimental e psico-patológica, à primeira vista parece surpreendente que apenas houve tentativas rudimentares (que serão mencionadas mais tarde) de relacionar os resultados dessa disciplina com a análise sócio-científica do trabalho econômico” (WEBER, 2009, p. 11) .

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que devem fundamentar a produção de conhecimento objetivo da experiência humana em

sociedade. Neste sentido, Weber busca em seu texto separar explicitamente da sua

sociologia toda tentativa de fundamentar a obtenção de conhecimento social em teorias

reducionistas, como o psicologismo, ou em ciências “carentes” de um método objetivante,

como, a seu ver, era o caso da Psicologia da época.

No artigo, que Alan Sica qualifica como “a sua análise mais clara, mais

logicamente coerente e, em muitos aspectos, mais perspicaz, da interação, conceitual e

empírica, entre racionalidade e irracionalidade” (SICA, 1988, p. 188), Weber afirma, de

maneira direta: “a sociologia compreensiva não é parte de uma ‘psicologia’” (WEBER,

2016d, p. 496). Tal afirmação, condensa o argumento de Weber de que, na Sociologia

Compreensiva, “não é necessário compreender as motivações psicológicas dos indivíduos

para se empreender uma análise sociológica da ação” (GRABER, 1975, p. 69).

Segundo a concepção de sua Sociologia Compreensiva, “o seu objeto específico

não é para nós qualquer tipo de "estado interno" ou de comportamento externo, senão a

ação” (WEBER, 2016d, p. 494), entendendo-se por ação, “um comportamento que: 1)

está relacionado ao sentido subjetivo pensado daquele que age com referência ao

comportamento de outros; 2) está codeterminado no seu decurso por esta referência

significativa e, portanto, 3) pode ser explicado pela compreensão a partir deste sentido

mental (subjetivamente)” (WEBER, 2016d, p. 494). Nesse sentido, a ação “mais

imediatamente compreensível” seria “a ação orientada subjetivamente de maneira

estritamente racional, conforme meios que são considerados (subjetivamente) como

univocamente adequados para alcançar os fins propostos, os quais também, por sua vez,

são (subjetivamente) claros e unívocos” (WEBER, 2016d, p. 497).

Portanto, segundo a Sociologia Compreensiva, explicar uma ação não se trata de

“deduzi-la a partir de situações ‘psíquicas’”, mas sim de “deduzi-la unicamente a partir

das expectativas estabelecidas, de maneira subjetiva, referentes ao comportamento dos

objetos (racionalidade com relação a fins subjetivos), e das expectativas que, de direito,

poderiam ser alimentadas conforme as regras válidas da experiência (racionalidade em

relação ao que regularmente e objetivamente acontece)” (WEBER, 2016d, p. 497). Deste

modo, conclui, o decurso da ação, “indiscutivelmente, não ganha clareza maior por

qualquer reflexão psicológica” (WEBER, 2016d, p. 497). Porque, segundo Weber, “toda

explicação de processos irracionais (...) necessita, antes de tudo, a constatação: como teria

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se comportado no caso limite ideal típico racional com relação a fins e racionalidade

regular”, dado que “somente quando for estabelecido isto pode ser estabelecida a

imputação causal (...) referente aos componentes ‘irracionais’” (WEBER, 2016d, p. 497).

Somente a partir desse procedimento, de acordo com Weber,

sabe-se o que, na ação – para usar urna expressão que é muito característica – “de maneira exclusivamente psicológica”, pode ser imputado a conexões que dependem de uma orientação objetivamente errônea, ou, o que também é possível, de uma irracionalidade subjetiva com relação a fins, ou, por último, de motivos que podem ser interpretados e apreendidos unicamente segundo regras de experiência que são totalmente incompreensíveis até certo grau, mas que não são racionais com relação a fins. Não há outro meio para estabelecer o que, na "situação psíquica", seja relevante para o decurso da ação - supondo-se que esta situação psíquica seja totalmente conhecida. Tal colocação nosso vale, sem exceção nenhuma, para qualquer imputação causal histórica ou sociológica (WEBER, 2016d, p. 497).

Deste modo, Weber afirma que não apenas ações e comportamentos

instrumentalmente racionais são compreensíveis via uma análise sociológica

interpretativa, mas também as ações e comportamentos que “não possuem aquela

evidência qualitativa típica que caracteriza o compreensível.” (WEBER, 2016d, p. 493).

Para a Sociologia de Max Weber,

não se trata de não ser o “anormal”, como tal, acessível à explicação compreensiva. Pelo contrário: apreender o absolutamente “compreensível” e, ao mesmo tempo, “mais simples”, na medida em que corresponde a um “tipo regular” (o sentido deste termo explicaremos daqui a pouco), pode ser, precisamente, a obra daquele que se sobressai da média. Como já foi dito muitas vezes, “não é preciso ser César para compreender César” (WEBER, 2016d, p. 493).

O foco da Sociologia Compreensiva weberiana não está no significado interno de

uma ação, mas, acima de tudo, no significado externo da ação humana. Neste sentido, ao

fazer distinções em termos das relações significativas (acima de tudo, externas) típicas da

ação, Weber utiliza-se da ação racional como um tipo ideal, possibilitando o pesquisador

acessar o significado da ação irracional. A conclusão lógica da proposta weberiana para

uma Sociologia Compreensiva, nas palavras do próprio autor, significa que “as diferenças

das qualidades psicológicas não são por si sós importantes para nós”, pois a “igualdade

ou identidade da relação prevista de sentido não está ligada à igualdade ou identidade das

constelações ‘psíquicas’ que eventualmente estão presentes” (WEBER, 2016d, p. 495).

Weber, no entanto, não descarta a influência do elemento psicológico no decurso

da ação – apesar de qualificá-lo, dentro da análise sociológica, como “apenas dados que,

em princípio, devem ser aceitos da mesma maneira como quaisquer outros dados, como,

por exemplo, uma constelação de fatos que, como tais, não têm sentido nenhum”

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(WEBER, 2016d, p. 495). Fatos “meramente psíquicos”, assim como “processos que não

possuem uma ‘relação subjetiva ao sentido’”, segundo Weber, constituem

“‘condicionamentos’ e ‘consequências’ nas quais se orienta a ação provida de sentido” e,

como tais, devem ser simplesmente aceitos, assim como, no caso da economia política,

“os estados e as situações climáticas e fisiológico-vegetativas” (WEBER, 2016d, p. 495).

De fato, na concepção weberiana, “as conexões compreensíveis (irracionais com

relação a fins) que se chamam, comumente, de ‘psicológicas’” são classificadas como

possuidoras de uma “altamente difícil casuística” (WEBER, 2016d, p. 498) e, por mais

que se abstenha de abordá-la (“nem mesmo de maneira superficial”), Weber reconhece a

sua importância no decurso histórico. Como bem nota,

... temos o fato, já mais de cem vezes documentado (na história da cultura) de que fenômenos que aparentemente estão condicionados de maneira racional com relação a fins, surgiram historicamente, na verdade, por motivos inteiramente irracionais e, em seguida, sobreviveram “adaptando-se” e difundiram-se universalmente porque as condições modificadas de vida lhes atribuiu um alto grau de “racionalidade com relação ao regular” (WEBER, 2016d, p. 500).

No ímpeto de definir sua Sociologia Compreensiva como uma ciência objetiva

livre de psicologismos, Weber buscou isolar metodologicamente o elemento psicológico

presente na ação humana, classificando-o como desnecessário no processo de

compreensão da realidade social e cultural. Porém, Weber foi incapaz de refutar que “nem

toda ação que transcorre de maneira ‘racional com relação ao regular’ esteve

condicionada subjetivamente como sendo racional com relação a fins” e que “não são

conexões discerníveis de maneira lógica racional as que determinam a ação real, mas,

como se costuma dizer, as ‘psicológicas’” (WEBER, 2016d, p. 501).

Nesse sentido, Weber admite, mesmo que sutilmente, que a motivação para agir

pode ter raízes psicológicas, porém, segundo a concepção da Sociologia Compreensiva

de Weber, a motivação individual da ação social não precisa ser conhecida, basta ser

deduzida para que tenha uma compreensão da realidade social. De acordo com a definição

de Weber,

a sociologia compreensiva (no nosso sentido) trata o indivíduo isolado e a sua ação como unidade última, como seu “átomo”, se nos é permitido de fazer esta perigosa comparação. Outras abordagens podem trazer no seu bojo a tarefa de considerar o indivíduo talvez como um complexo de processos “psíquicos”, químicos ou de qualquer outro tipo. Mas para a sociologia, tudo o que ultrapassa o limiar de um comportamento que é suscetível de interpretação com sentido relacionado com objetos (interiores ou exteriores) não são consideradas de outro modo como os processos da natureza que “não tem sentido”, ou seja, como condição ou como objeto de referência subjetivo para o primeiro. Exatamente

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167

por esta razão, nesta maneira de ver, o indivíduo constitui o limite e o único portador de um comportamento provido de sentido (WEBER, 2016d, p. 504).

O artigo “Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva”, que fora

publicado em 1913 pretendia ser a introdução de uma obra maior que apresentasse a

sociologia de Weber. A obra em questão se trata de Economia e Sociedade que, por

caminhos tortuosos só foi publicada postumamente em 1920. No entanto, o capítulo

introdutório, “Conceitos Sociológicos Fundamentais”, apresenta-se diferente do que o

artigo escrito em 1913. Por ser considerado desnecessariamente complicado102, o artigo

de 1913 foi modificado por Weber em uma versão simplificada para compor o capítulo

introdutório de Economia e Sociedade.

Um outro ponto digno de nota é que o teor crítico com relação a psicologia foi

consideravelmente reduzido e, de certa forma, pode-se interpretar que a mudança no texto

reflete uma mudança na própria concepção de Weber sobre a sua Sociologia

Compreensiva. De fato, correndo o risco de ser repetitivo, vale a pena destacar que ao

descrever o processo de interpretação de um processo não compreensível, em “Conceitos

Sociológicos Fundamentais”, Weber explica de uma maneira muito mais clara e direta

essencialmente o mesmo que tentara explicar no seu artigo de 1913. Na citação abaixo,

Weber apresenta a versão modificada do texto de 1913 citado anteriormente:

Uma ação com sentido, quer dizer, uma ação “compreensível”, não se faz presente em muitos casos de processos psicofísicos, e em muitos outros somente existe para os especialistas. Processos místicos e, portanto, não comunicáveis por meio de palavras, não podem ser compreendidos na sua plenitude por pessoas que não têm acesso a este tipo de experiências. Mas, inversamente, não é necessário ser um César “para compreender César”. O poder de “reviver plenamente” algo que é alheio é importante para a evidência da compreensão, mas não é uma condição absoluta para a interpretação do sentido. Pois elementos compreensíveis e elementos não-compreensíveis de um processo estão muitas vezes unidos e misturados entre si. (WEBER, 2016b, p. 613; WEBER, 2000a, p. 4).

Com respeito a Psicologia, ainda que a relação desta com a Sociologia

Compreensiva seja menos explorada no texto de 1920, permanece na argumentação de

Weber certa resistência com o avanço e as possibilidades da Psicologia. Segundo Weber,

a seu tempo, “cada um entende por psicologia coisa diferente”, porém o foco da sua crítica

reside na justificativa científico-naturalista de uma “separação entre o ‘psíquico’ e o

‘físico’”, coisa que, para Weber, “é totalmente estranha (...) às disciplinas que se ocupam

102 Ao revisarem o texto do artigo de 1913, “Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva”, alguns colegas de Weber (entre eles Heinrich Rickert) o criticaram, alegando ser “desnecessariamente difícil de ler” (GRABER, 1981, p. 147).

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168

com a ação humana” (WEBER, 2016b, p. 629; WEBER, 2000a, p. 12). Com relação à

possibilidade de se constituir uma Psicologia aos moldes das ciências naturais, Weber

argumenta que

Os resultados de uma ciência psicológica que unicamente investiga o psíquico de acordo com a, métodos das ciências naturais e com os meios próprios destas ciências, e não se ocupa com a interpretação do comportamento humano a partir do seu sentido – o que é realmente algo totalmente diferente – interessam à sociologia, qualquer que seja a metodologia particular desta psicologia, como podem, obviamente, ser interessantes para qualquer outra ciência, e, em casos concretos, podem até alcançar uma significação eminente. Mas não existe, neste caso, uma relação mais estreita referente à sociologia do que em relação a qualquer outra ciência. (WEBER, 2016b, p. 629; WEBER, 2000a, p. 12).

Em oposição à uma Psicologia naturalista, cujo método espelha os métodos de

pesquisa das ciências naturais, Weber defende a constituição de uma Psicologia

Compreensiva, que não se resumisse a apenas explicar os fenômenos psicológicos, mas

que buscasse compreender o sentido por trás desses fenômenos psicológicos, que

buscasse revelar os valores por trás dos fenômenos psicológicos, conferindo sentido aos

mesmos. Nesse contexto, Weber acredita que, de fato, “a psicologia compreensiva pode

prestar indubitavelmente serviços decisivos para a explicação sociológica no que se refere

aos aspectos irracionais” (WEBER, 2016b, p. 630; WEBER, 2000a, p. 12). Ainda assim,

afirma Weber, essa constatação “não altera em nada a situação básica metodológica

fundamental” (WEBER, 2016b, p. 630; WEBER, 2000a, p. 12).

Tal seria o caso porque, segundo a Sociologia Compreensiva de Weber, os

conceitos construtivos “são típico-ideais não somente na sua dimensão externa, mas

também internamente”, haja vista, como argumenta Weber, que a “ação real se dá na

maioria dos casos com uma obscura semiconsciência ou com plena inconsciência do

sentido pensado” (WEBER, 2016b, p. 632; WEBER, 2000a, p. 13). Tal constatação

apresenta-se para Weber como um alerta para que, ao analisar a realidade sociológica,

deve-se ter plena consciência que “uma ação com sentido conscientemente percebido é,

na realidade, um caso limite” (WEBER, 2016b, p. 632; WEBER, 2000a, p. 13).

A conclusão de Weber resume a sua posição frente a questão da irracionalidade

no agir humano e como, metodologicamente, a sua sociologia contorna os elementos

psicológicos do agir social que não podem ser compreendidos, porém sem nunca ignorar

o efeito e a sua importância na constituição do real. Frente as essas dificuldades e

impossibilidades, Weber escreve:

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169

Mas isto não deve impedir que a sociologia construa os seus conceitos através de uma classificação dos “possíveis sentidos imaginados” e como se a ação real se desse sob a orientação consciente neste sentido. Sempre deve ser levada em consideração a distância que há em relação à realidade quando se trata do conhecimento desta mesma realidade. Em termos de metodologia, temos que fazer muitas vezes uma escolha entre termos obscuros ou termos claros, sendo que estes últimos são termos irreais e “ideal-típicos”. Nesta situação, temos que dar a preferência aos últimos em nome do procedimento científico. (WEBER, 2016b, p. 632; WEBER, 2000a, p. 13).

Weber recebeu com duras críticas toda tentativa de explicação psicológica dos

fenômenos sociais. O compromisso de seu pensamento era com a objetividade do

conhecimento produzido pelas Ciências Sociais e, na sua rigorosa análise, a Psicologia

de seu tempo não atendia aos requisitos básicos. No entanto, apesar dos psicologismos e

outras teorias especulativas, Weber ainda conseguia ver com olhos otimistas o

desenvolvimento de uma Psicologia Compreensiva.

Weber via como principal impedimento para a configuração de tal Psicologia

Compreensiva não questão epistemológica, mas uma deficiência metodológica. Como

será visto a seguir, ao buscar uma solução metodológica para a questão da objetividade

em sua Sociologia Compreensiva, Weber possibilitou também um tratamento objetivo de

questões psicológicas e, em última análise, uma integração entre Sociologia e Psicologia.

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170

A presença da Psicologia no pensamento de Weber

Dado o duro tom das críticas de Weber ao longo de sua obra à nascente ciência da

Psicologia e aos seus primeiros psicólogos, não é de se surpreender que comumente ele

seja considerado um opositor da Psicologia ou que rejeite todo argumento psicológico

que se proponha a fornecer uma explicação para um fenômeno social. De fato, mesmo o

primeiro e mais famoso tradutor da obra de Weber para o inglês, o sociólogo Talcott

Parsons (1902-1979), chegou a afirmar que “Weber tendia a não se interessar pela

psicologia e a repudiar sua relevância para seus problemas” (Talcott Parsons apud

CAVALLETTO, 2007, p. 42).

No entanto, se fosse esse o caso, ou seja, se, de fato, Weber fosse contra a

concepção de uma ciência psicológica, ou mesmo da possiblidade de um conhecimento

psicológico objetivo, então por que, ao longo de toda a sua obra e por mais de 20 anos,

ele revisitou tantas vezes aquele debate? Como bem destaca Catherine Colliot-Thélène,

“de 1904 (o ensaio sobre Knies) até 1920, toda uma série de escritos dá testemunho da

constância de seu interesse por uma questão decidida em princípio desde seus primeiros

escritos” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 74). Então, se a impossibilidade de uma

ciência psicológica que produzisse conhecimento válido e objetivo fosse uma questão

epistemológica já endereçada, por que retornar a ela?

A hipótese de que era um debate em andamento, que se estendeu do final do século

XIX até o começo do século XX, justifica em parte o constante retorno, porém não

totalmente. No período em que endereçou a questão, Weber manteve, essencialmente, a

mesma a posição e, nos seus textos, não se nota que tenha revisitado seus argumentos

para fazer frente a novos avanços na Psicologia. Deste modo, parece improvável que

Weber retornasse ao tema constantemente para reforçar um ponto já endereçado.

Ainda assim, talvez esse fosse o caso, haja vista que, naquele período, sociólogos

como Durkheim e o próprio Weber tentavam estabelecer a Sociologia como um novo

campo de conhecimento objetivo e, constantemente, tinham que “defender” sua

concepção de sociologia de teorias psicologistas que pretendiam estabelecer a psicologia

como base para toda a ciência humana. De fato, ao longo da obra de Weber, como visto

na seção anterior, existem diversos trechos que corroboram tal hipótese.

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171

Sem dúvida o anti-psicologismo percebido nos textos de Weber é um fator

inegável. Muito mais do que uma influência neokantiana103, Weber, de fato, enxergava

com preocupação o avanço de uma ciência com pouco compromisso com a objetividade.

Sua preocupação era justificável por dois motivos: primeiramente, na visão de Weber, o

psicologismo realmente representava um perigo para as ciências humanas e sociais por

propagandear exatidão nos seus conceitos quando, em realidade, ofereciam apenas

conjecturas metafísicas; e, em segundo lugar, a sociologia de Weber, de certa forma,

depende do desenvolvimento de uma Psicologia objetiva que não seja puramente

experimental.

Com respeito a essa dependência entre a Sociologia Compreensiva e a Psicologia,

como bem destaca Catherine Colliot-Thélène, foram “as dificuldades inerentes ao projeto

de conhecimento próprio à sociologia compreensiva que conduziram Weber a retomar

com insistência, e apesar dele mesmo, a confrontação com a psicologia” (COLLIOT-

THÉLÈNE, 2016, p. 75). Segundo ela,

A sociologia compreensiva devia se confrontar com a psicologia porque a interpretação compreensiva da ação social envolve certas hipóteses psicológicas. Em primeiro lugar ela pressupõe que o sentido que o agente atribui para sua ação contribui de forma decisiva em determinar as formas desta. Em segundo lugar (e aí reside a verdadeira dificuldade), ao propor ao sociólogo de reconstruir este sentido por meio de um tipo-ideal racional, ela admite que a ação só possa ser considerada como dotada de sentido na medida onde suas motivações são virtualmente racionalizáveis (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 74).

Embora a avaliação de Parsons sobre a consideração que Weber tinha pela

Psicologia tenha permanecido por muitos anos incontestável, a hipótese de que a

Sociologia Compreensiva de Weber incorporou certos conceitos e processos psicológicos

parece ser cada dia menos contestada. Ainda assim, há, entre os estudiosos de Weber,

aqueles que, apesar de reconhecer a existência de uma relação entre a Sociologia

Compreensiva de Weber e a Psicologia, rejeitam a hipótese de que Weber nutria pela

Psicologia qualquer outro sentimento além de rejeição.

O próprio Talcott Parsons, apesar da sua afirmação, teria afirmado, com respeito

ao uso que Weber faz dos tipos-ideais em A Ética Protestante e o “Espírito” do

Capitalismo, tende a “a unir as categorias de motivos a tipos de ação” e, deste modo,

Weber “‘psicologiza’ sobremaneira a interpretação da ação social no âmbito dos sistemas

103 Ver Neo-Kantianism and the Roots of Anti-Psychologism, de R Lanier Anderson.

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172

sociais” (Talcott Parsons apud MOSCOVICI, 2011, p. 282). Em A Invenção da

Sociedade, Serge Moscovici exagera, de certa forma, a hostilidade de Weber para com a

Psicologia, ao mesmo tempo em que reconhece a presença de conceitos psicológicos na

sociologia weberiana, quando afirma

Impressionante também me parece a arrogância rude, e até mesmo o desdém com que Weber trata a ciência sobre a qual se fundamenta seu trabalho e com a qual, evidentemente, ele tem muita familiaridade. (MOSCOVICI, 2011, p. 282).

Tal avaliação parece coerente e até justa, haja vista que a incidência de críticas à

Psicologia, a sua metodologia, aos psicólogos e aos defensores de uma fundamentação

psicológica das ciências humanas é muito mais frequente na obra de Weber do que trechos

em que avalia positivamente a ciência psicológica e seu uso. No entanto, tais trechos

existem e, além disso, suas críticas devem ser contextualizadas para se poder enxergar

além da aparente rejeição.

Nos ensaios sobre Roscher e Knies, o alvo das críticas de Weber é claramente o

psicologismo que adentrava a Escola Histórica de Economia Alemã. Weber critica não

somente, com respeito à Economia Política, o naturalismo de Roscher e o psicologismo

de Knies, mas também, critica o psicologismo na sociologia de Simmel, na teoria

Histórica de Lamprecht e na Psicologia dos Povos de Wundt. Em todos os casos, as

críticas são pontuais e específicas, atacando principalmente, de um ponto de vista

metodológico, a visão particular de cada pensador. Adicionalmente, em todos os casos, o

foco da crítica é sempre o mesmo: a questão da objetividade do conhecimento produzido.

Nesse contexto, Weber critica toda teoria reducionista, seja ela uma forma de

naturalismo, historicismo ou psicologismo, que pretenda produzir uma visão de mundo

compreensível a partir de um único fator. Maurício Tragtenberg, na “Introdução” para a

coletânea de textos metodológicos de Weber, Metodologia das Ciências Sociais,

condensa de maneira perfeita a posição de Weber com respeito a teorias reducionistas:

Como a realidade empírica é infinita, a ciência não pode abarcar a sua totalidade da realidade empírica. Quando o faz, transforma-na em entidade metafísica, prejudicial à filosofia e à pesquisa científica. (TRAGTENBERG, 2016, p. 24).

A partir de A “Objetividade” do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência

Política, Weber explicita não somente sua contínua crítica a toda psicologia que modele-

se a partir das ciências naturais ou que se proponha a ser o fundamento para toda ciência

social, mas também introduz a sua visão de como o conhecimento produzido pela

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173

Psicologia relaciona-se com a sua Sociologia. Ao mesmo tempo em que demonstra

preocupação com o desenvolvimento de uma “ciência sistemática da ‘psicologia social’ -

ainda não constituída - como futura base das ciências culturais” (WEBER, 2016a, p. 250),

conforme destaca Alan Sica, Weber estabelece, em seu ensaio, metas ambiciosas para a

Psicologia:

A análise psicológica significa, pois, em cada caso concreto, um valioso aprofundar do conhecimento do seu condicionamento histórico e da sua significação cultural. O que nos interessa na conduta do homem, dentro do âmbito das suas relações sociais, é especificamente particularizado segundo a significação cultural específica da relação em causa. Trata-se de causas e de influências psíquicas extremamente heterogêneas entre si e extremamente concretas na sua composição. A investigação sociopsicológica significa um exame aprofundado dos diversos gêneros particulares e díspares de elementos culturais, tendo em vista a sua acessibilidade para a nossa revivência compreensiva. (WEBER, 2016a, p. 250).

Ainda assim, ciente dos riscos da Sociologia incorrer em psicologismos, Weber

condiciona o papel da Psicologia nas ciências sociais, estabelecendo que apenas “partindo

do conhecimento das instituições particulares, esse exame auxiliar-nos-á a compreender

intelectualmente e, em medida crescente, o seu condicionamento e significação

culturais”, porém, afirma, “não nos ajudará a explicar as instituições a partir de leis

psicológicas ou de fenômenos psicológicos elementares” (WEBER, 2016a, p. 250). Essa

nova visão que emerge no ensaio de Weber baseia-se, segundo George Cavalletto, na

“distinção entre dois tipos de psicologia: psicologia fisiológica, modelada a partir das

ciências exatas, e uma psicologia verstehende [psicologia compreensiva] que busca

ganhar compreensão psicológica empática do sentido único de fenômenos histórico-

culturais específicos” (CAVALLETTO, 2007, p. 49).

Com respeito à psicologia fisiológica ou experimental, Weber adota uma postura

positiva, elogiando os avanços da ciência em função das pesquisas de Wundt,

Münsterberg e Kraepelin. Suas ressalvas e críticas dizem respeito, principalmente, à

questão da objetividade da Psicologia quando aplicada às Ciências Sociais, mas não à

validade do conhecimento produzido. De fato, Weber classifica como “em parte

brilhantes” as “tentativas de uma interpretação psicológica dos fenômenos econômicos

de que temos conhecimento até agora” (WEBER, 2016a, p. 250).

Sua posição com respeito à psicologia fisiológica fica clara no estudo de 1908, A

Psicofísica do Trabalho Industrial, que, conforme Catherine Colliot-Thélène, “partia da

hipótese de que um conhecimento das condições gerais de funcionamento do aparelho

psicofísico poderia constituir uma prévia útil para os estudos que a sociologia realiza

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174

sobre as condições e os efeitos das transformações do trabalho nas grandes empresas

industriais” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 72). Através da psicologia fisiológica,

Weber pretendia estabelecer “uma ponte entre as ciências da natureza e as ciências da

cultura” e, com isso, “corrigir o amadorismo que deram prova os sociólogos que se

satisfizeram com as experiências e suposições da psicologia ‘vulgar’” (COLLIOT-

THÉLÈNE, 2016, p. 72). No entanto, como visto na seção anterior, a tentativa de Weber

foi fracassada. O estudo de Weber destaca que, em 1909, a psicologia fisiológica não se

encontrava em condições de contribuir para os estudos sociológicos. Como destaca

Colliot-Thélène,

A insuficiência quantitativa dos estudos de caso sobre os quais elas se apoiavam, assim como a falta de rigor de seus conceitos e de seus métodos, impedia de considerar seus resultados como suficientemente significativos para que a sociologia pudesse aproveitá-los. (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 73).

Apesar dos resultados infrutíferos através da psicologia fisiológica, é na

psicologia compreensiva que Weber encontrou uma valiosa ferramenta para a

compreensão dos fenômenos sociais. Porém, antes de adentrar a Psicologia Compreensiva

de Weber, convém explorar alguns pontos da sua Sociologia Compreensiva. Segundo

Weber, deve-se entender sua Sociologia Compreensiva como “uma ciência que pretende

entender pela interpretação a ação social para desta maneira explicá-la causalmente no

seu desenvolvimento e nos seus efeitos” (WEBER, 2016b, p. 612; WEBER, 2000a, p. 3).

Ao destacar a interpretação como meio de compreensão da ação social, Weber

classifica como cognoscível os elementos que caracterizam fenômenos sociais não

comunicáveis e alheios à experiência de quem os examina, como “processos místicos” e

psíquicos. Para Weber, “poder de ‘reviver plenamente’ algo que é alheio é importante

para a evidência da compreensão” (WEBER, 2016b, p. 613; WEBER, 2000a, p. 4). Na

sua concepção, Weber distingue dois tipos de interpretação: “de caráter racional (e,

portanto, de natureza lógica ou matemática), ou de caráter empático (ou seja, de caráter

afetivo ou receptivo- artístico)” (WEBER, 2016b, p. 614; WEBER, 2000a, p. 4). Quando

empregada, a interpretação de caráter racional busca compreender “intelectualmente de

uma maneira exaustiva e transparente” a ação que é “racionalmente evidente” (WEBER,

2016b, p. 614; WEBER, 2000a, p. 4). No entanto, destaca Weber:

muitos dos “valores” dos “fins” últimos que parecem orientar a ação de um homem, não podemos compreender, pelo menos com plena evidência, mas tão somente e sob certas circunstâncias, entendê-los intelectualmente, tendo continuamente dificuldades crescentes para poder “revivê-los” por meio de uma transposição empática, na medida

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175

em que se afastam mais radicalmente das nossas próprias avaliações últimas. Temos de nos contentar com a sua interpretação exclusivamente intelectual, ou, em determinadas circunstâncias, aceitar aqueles valores ou aqueles fins sinceramente como dados para tratar de fazer compreensíveis o desenvolvimento de uma ação que foi motivada por eles para a melhor interpretação intelectual passível ou para um reviver os pontos de orientação o mais fielmente possível. (WEBER, 2016b, p. 614; WEBER, 2000a, p. 4).

A solução proposta por Weber para a compreensão dos fenômenos em que a

interpretação empática não é aplicável ou não apresenta resultados satisfatórios (em

função da separação entre fenômeno e a própria experiência do observante) não consiste

em simplesmente considerá-los “irracionais” e, por isso, incognoscíveis. A compreensão

desses fenômenos exige um método científico que, através da construção de tipos,

investigue e exponha “todas as conexões de sentido irracionais e afetivas

sentimentalmente condicionadas do comportamento que tem influência sobre a ação

como ‘desvios’ de um desenvolvimento desta mesma ação que foi construído como sendo

puramente racional em relação aos fins” (WEBER, 2016b, p. 615; WEBER, 2000a, p. 5).

Conforme escreve Weber:

Somente desta maneira seria possível a imputação dos desvios às irracionalidades que os causaram A construção de uma ação rigorosamente racional com relação a fins serve nestes casos para a sociologia - por causa de sua evidente inteligibilidade e do seu caráter de racionalidade e de univocidade - como tipo ( “tipo ideal”) mediante o qual é possível compreender a ação real que é influenciada por irracionalidades de todo tipo e de toda espécie (afetos, sentimentos) como um desvio do desenvolvimento esperado de uma ação racional.(WEBER, 2016b, p. 615; WEBER, 2000a, p. 5).

No caso da Psicologia, Weber advoga que as relações com a Sociologia

Compreensiva “diferem de caso a caso”, mas que a “racionalidade regular serve à

sociologia como tipo ideal no que diz respeito à ação empírica” e que, “através da

comparação com o tipo ideal se estabelecem, pensando na imputação causal, os elementos

irracionais causalmente relevantes” (WEBER, 2016D, p. 502). Deste modo, através do

uso do “tipo-ideal”, Weber estabelece a relação epistemológica e metodológica entre

Psicologia e Sociologia. No trecho abaixo de Economia e Sociedade, Weber esclarece

como essa relação é explorada no seu pensamento:

Os conceitos construtivos da sociologia são típico-ideais não somente na sua dimensão externa, mas também internamente. A ação real se dá na maioria dos casas com uma obscura semiconsciência ou com plena inconsciência do sentido pensado, O agente talvez o “sente” ou “tem um sentimento” de uma maneira indeterminada, que ele o “sabe” ou tem dele uma clara ideia, mas na maioria das casas age por instinto ou por costume. Apenas ocasionalmente - e quando se trata de ações de massas, apenas no que tange a alguns indivíduos - percebe conscientemente o sentido da ação (seja ele racional ou irracional). Realmente, uma ação com sentido conscientemente percebido é, na realidade, um caso limite. Toda consideração ou reflexão histórica ou sociológica deve ter plena consciência deste fato nas suas análises da realidade. Mas isto não deve impedir que a sociologia construa os seus conceitos através de uma classificação dos “possíveis sentidos

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imaginados” e como se a ação real se desse sob a orientação consciente neste sentido. (WEBER, 2016b, p. 632; WEBER, 2000a, p. 13)

De um ponto de vista metodológico, o tipo-ideal constitui uma ferramenta

heurística para a compreensão empática da individualidade concreta de um fenômeno,

seja ele social ou psicológico. A diferença essencial entre o método das ciências naturais

e o método proposto por Weber para o estudo das ciências sociais ou da cultura é que o

tipo-ideal, dada a sua natureza heurística, não se comporta como um conceito geral das

ciências naturais e, portanto, não serve como um teorema do qual o fenômeno possa ser

deduzido. Para Weber, “a construção de tipos ideais abstratos não interessa como fim,

mas única e exclusivamente como meio de conhecimento” (WEBER, 2016a, p. 254).

Através desse método, é possível produzir conhecimento objetivo de um dado fenômeno

social ou psicológico sem a necessidade de um modelo descritivo que reproduza o

fenômeno com exatidão – algo que Weber julgava impossível104 e que, inclusive, era a

fonte da sua crítica a psicologismos, naturalismos e historicismos.

Weber reconhece que a “o processo empírico-histórico que se desenvolveu na

mente das pessoas deve ser geralmente compreendido como um processo condicionado

psicologicamente, e não logicamente” (WEBER, 2016a, p. 258) e que, portanto, o

conhecimento da realidade social é epistemologicamente diferente do conhecimento do

mundo natural. A razão disso se dá porque os fenômenos que podem ser compreendidos

pelo método proposto por Weber, sejam eles sociais ou psicológicos, possuem raízes “em

‘ideias de valor’ historicamente variáveis e específicas a ‘eventos culturais e psíquicos’

individuais e concretos” (CAVALLETTO, 2007, p. 47).

Na concepção de Weber, a compreensão dos fenômenos sociais não implica

simplesmente deduzir a causalidade de um determinado evento. Tal procedimento não

reflete a pluricausalidade social que, segundo Weber, definem a realidade. Assim,

segundo ele, o fracasso de todo naturalismo nomológico estaria no fato de ignorar essa

característica da realidade social. Nesse sentido, a vantagem apresentada pela análise

típico-ideal seria em reconhecer que cada abstração típico-ideal idealiza para fins de

comparação apenas um dos múltiplos elementos explicativos da realidade social. Tal seria

104 Segundo Weber: “Um sistema das ciências culturais, embora só o fosse no sentido de urna fixação definitiva, objetivamente válida e sistematizadora das questões e dos campos dos quais se espera que tratem, seria um absurdo em si” (WEBER, 2016a, p. 246).

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o caso do materialismo histórico, que Weber louva como recurso heurístico, mas critica

quando tomado por fundamento único do decurso histórico-social, assim como da sua

obra mais famosa e sintética: A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo.

Além de poder ser considerada o mais claro e elaborado exemplo prático da

análise típico-ideal de Weber, A Ética Protestante também pode ser analisada como a

principal fonte de informação com relação à importância da Psicologia para o seu

pensamento. Tal importância diz respeito, conforme mencionado, ao fato de que “a

interpretação compreensiva da ação social envolve certas hipóteses psicológicas”

(COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 74).

Em A Ética Protestante, Weber defende que o desenvolvimento de seitas

protestantes como o Calvinismo e o Luteranismo, deram origem a uma ética favorável ao

desenvolvimento do modo de produção capitalista. De maneira extremamente resumida

e simplificada, Weber argumenta que as sanções psicológicas derivadas de dogmas como

o da predestinação e o do chamado vocacional, assim como da prática religiosa

direcionaram a conduta prática a uma direção favorável ao desenvolvimento da

mentalidade capitalista e mantiveram o indivíduo atrelado a essa conduta.

Weber constata a relevância do efeito psicológico ao destacar que a conduta do

indivíduo não necessariamente correspondia à reação lógica esperada em função dos

ensinamentos éticos do puritanismo da época. Weber também confirma a força da

influência psicológica na síntese de ideias ao notar que a conduta relacionada a uma

determinada doutrina permanecia inalterada no indivíduo e na cultura por séculos, mesmo

depois de sua presença na mente humana não ser mais consciente. Segundo ele,

O caráter típico-ideal dessas sínteses de ideias que tiveram uma ação histórica manifesta-se de forma ainda mais clara se esses princípios diretores e postulados fundamentais já não subsistem nas mentes dos indivíduos, ainda que estes continuem dominados por pensamentos que são consequência lógica destes princípios, ou que deles saíram por associação - quer porque a “ideia” historicamente original que lhes servia de base se extinguiu, quer porque apenas conseguiu exercer influência através das suas consequências. (WEBER, 2016a, p. 258).

Este é o caso, em A Ética Protestante, dos preceitos éticos do Calvinismo e do

Luteranismo presentes do “espírito” do capitalismo que sobrevivem até hoje, apesar de

não mais atrelados ao Calvinismo e ao Luteranismo, mas à cultura contemporânea.

Segundo Weber, o dogma do chamado vocacional, introduzido por Lutero, definiu a

vocação como algo que o puritano “tem de aceitar como desígnio divino” e o trabalho

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profissional é “uma missão, ou melhor, a missão dada por Deus” (WEBER, 2010, p. 77).

Nesse contexto, as profissões assumem a condição de dever, “uma obrigação que o

indivíduo deve sentir, e sente, com respeito ao conteúdo de sua atividade ‘profissional’”

(WEBER, 2010, p. 47).

Com a adição do “mais característico dos dogmas do calvinismo” (WEBER, 2010,

p. 90), o dogma da predestinação, a salvação espiritual deixou de ser atingida via o

cumprimento do dever profissional e, portanto, saiu das mãos dos fiéis e concentrou-se

exclusivamente nas mãos de Deus, dado que somente por decreto divino é que “alguns

homens (...) são predestinados à vida eterna e outros preordenados à morte eterna”

(WEBER, 2010, p. 91). Impotente e ignorante com relação à salvação da própria alma, o

puritano assumia que deveria agir como um eleito e convivia com a incerteza da sua

salvação, sem a possibilidade de uma descarga da tensão originada da constante

“autoinspeção sistemática que a cada instante enfrenta a alternativa: eleito ou

condenado?” (WEBER, 2010, p. 105).

Conforme argumenta Weber, a racionalização da conduta e da vida puritana,

entendida como uma “conformação racional de toda existência, orientada pela vontade

de Deus” (WEBER, 2010, p. 139) foi o fator essencial para levar o ascetismo religioso

para a esfera intramundana. O protestantismo ascético resultante, segundo Weber, foi

fundamental para despertar o “espírito” do capitalismo, ou seja, a singularidade histórica

que foi a cultura e a conduta de vida necessária para o desenvolvimento do capitalismo.

Nesse contexto em que, como destaca Serge Moscovici, “os protestantes

transformam o trabalho de necessidade em vocação, e o dinheiro de ganha-pão em ganha-

salvação” (MOSCOVICI, 2011, p. 280), ao explicar a razão pela qual “a doutrina da

predestinação [além do chamado vocacional] teve como consequência transformar as

práticas econômicas e sociais, Weber invoca motivações psicológicas” (MOSCOVICI,

2011, p. 282). O próprio Weber admite, remetendo ao argumento de A “Objetividade”

do Conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política, que a relação entre a doutrina

da predestinação e a transformação das práticas econômicas e sociais é psicológica e não

lógica:

A espiritualidade calvinista é exemplo [dentre os muitos que há na história das religiões] que ilustra a relação entre as consequências lógicas e psicológicas de determinadas ideias religiosas e o comportamento prático-religioso. Consequência lógica seria, naturalmente, poder deduzir da predestinação o fatalismo. O efeito psicológico, no entanto, foi

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exatamente o contrário, e isso porque interveio a ideia da “comprovação”. (WEBER, 2010, p. 217).

Segundo argumenta Weber, os dogmas do chamado vocacional e da

predestinação, além da preocupação egoísta com relação à própria salvação espiritual,

pressionavam o puritano psicologicamente na direção de um comportamento ascético.

Encarando o trabalho não mais como uma necessidade, mas como um dever, cujo grau

de sucesso apenas indicaria ao indivíduo o destino da sua alma, o puritano desenvolveu

uma personalidade específica cuja estrutura psíquica é retratada em A Ética Protestante

como “não apenas motivada por ansiedade, mas também internamente conformada por

ela a um grau patológico” (CAVALLETTO, 2007, p. 75).

Segundo George Cavalletto, Weber caracteriza a personalidade do puritano como

a manifestação de uma “estrutura psíquica que defende a si mesma do stress causado pela

ansiedade gerada internamente, defletindo constantemente a consciência da sua causa

para longe do ‘eu’ consciente e em direção ao que o Protestantismo ascético afirmava ser

o real antagonista, as realidades interna e externa do status naturae” (CAVALLETTO,

2007, p. 75). Moscovici, apesar de crítico quanto à atitude “ingrata” de Weber para com

a Psicologia, concorda com Cavalletto ao afirmar que “a obra de Max Weber é

inegavelmente uma psicologia” (MOSCOVICI, 2011, p. 292). Segundo argumenta,

Ela [a psicologia] toma corpo nas entranhas dos movimentos puritanos. Para que conseguissem conquistar uma forma econômica que constitui o segredo de sua potência, era necessário que inculcassem em seus adeptos uma disciplina para todos os momentos. Com tudo o que ela implica: iniciação muitas vezes difícil, controle severo pelos correligionários, ascetismo na vida cotidiana, mas também reciprocidade dos deveres. O objetivo disso? “Uma personalidade no sentido formal e psicológico do termo”, combinando as exigências contrárias de uma solidão da alma erigida como virtude e de uma existência no meio da comunidade e a seu serviço. Quaker, batista ou metodista, o indivíduo aprende a se tonar ardentemente racional e ardentemente impessoal. (MOSCOVICI, 2011, p. 293).

Racionais ao extremo, Segundo Weber, “os puritanos contemporâneos de

Descartes adotaram o cogito ergo sum” partindo do princípio que “só uma vida regida

pela reflexão constante podia ser considerada superação do status naturalis” (WEBER,

2010, p. 217) e adotando como prática o monitoramento compulsivo de cada pensamento

e cada sentimento. Como resultado, tem-se na psique ascética protestante, possivelmente

“a mais ‘intensiva forma de avaliação religiosa da ação moral” que já existiu”105, além do

105 Segundo analisa George Cavalletto, tal função moral poderia ser algo que a “psicanálise veria como sinal de um superego extremamente rígido, exceto pelo fato que essa função moral, diferentemente do

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desenvolvimento de uma personalidade caracterizada como “neuroticamente ansiosa,

compulsivamente auto controladora e, em um grau patológico, alienada não somente de

emoções espontâneas e impulsos eróticos, mas também da natureza catéctica da

sociabilidade humana” (CAVALLETTO, 2007, p. 76). Sobre a importância desse

mecanismo psicológico na constituição da personalidade puritana, Carlos Henrique

Pissardo afirma, em Angústia e Capitalismo em A Ética Protestante:

Embora o ascetismo profissional intramundano seja incapaz de “servir como meio de obter a bem-aventurança eterna – já que o eleito permanece criatura, e tudo o que ele faz permanece infinitamente aquém das exigências divinas”, ele ainda pode, como comenta Weber, ser “o meio técnico, não de comprar a bem-aventurança mas sim: de perder a angústia de não tê-la”. A angústia religiosa que tanto atormenta o fiel calvinista típico-ideal weberiano atualiza-se nessa demanda compulsiva por signos de certeza no trabalho profissional mundano. A tese de Weber resta rigorosamente incompreensível quando se desconsidera esse momento patológico do espírito capitalista. (PISSARDO, 2018, p. 159)

O fato de Weber ser versado nos principais psicólogos de sua época, corrobora a

tese de que o uso de conceitos psicológicos na construção e análise de tipos ideais não foi

acidental. Embora Weber nunca tenha declarado abertamente o uso da Psicologia na sua

Sociologia Compreensiva, é inegável que esse uso está presente em A Ética Protestante.

Ainda assim, pensadores como Serge Moscovici, que reconhecem a presença da

Psicologia no pensamento de Weber, criticam a sua falta de abertura em divulgar a

integração entre as duas ciências.

No entanto, a análise dos eventos sócio-históricos formulados por Weber, em A

Ética Protestante, permite, conforme defende George Cavalletto, deduzir um modelo

explicativo para a ação social de inspiração religiosa em que a sua Psicologia

Compreensiva tem um papel fundamental. Weber indica, em um trecho no início do

capítulo 4 de A Ética Protestante, em que compartilha o verdadeiro interesse da sua

pesquisa, como se estrutura tal modelo no seu pensamento. Segundo escreve:

... evidentemente não nos importa aquilo que era ensinado teórica e oficialmente nos compêndios por assim dizer éticos da época - por mais que tivessem significação prática por conta da influência da disciplina eclesiástica, da cura de almas e da pregação - mas antes [algo totalmente diverso:] rastrear [aqueles] estímulos psicológicos [criados pela fé religiosa e pela prática de um viver religioso] que davam a direção da conduta de vida e mantinham o indivíduo ligado nela. Mas esses estímulos brotavam, em larga medida, da peculiaridade das próprias representações da fé religiosa. (WEBER, 2010, p. 89)

superego freudiano, é conceitualizada como racional e completamente consciente” (CAVALLETTO, 2007, p. 76).

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A partir do trecho citado acima e de A Ética Protestante, Cavalletto sugere que

em todas as análises dos tipo-ideais apresentados por Weber destaca-se um padrão

explicativo simplificado, segundo o qual, a Psicologia apresenta-se como um elemento

mediador na ligação entre a ideia e a ação. Segundo esse modelo explicativo, o

surgimento de uma ideia – crenças ou práticas religiosas – de grande aceitação em um

grupo de indivíduos se desenvolve (ou não) em uma força histórica efetiva em função da

resposta psicológica gerada – prêmios e sanções psicológicas atrelados à ideia – que, por

fim, direciona a ação ou conduta prática do grupo de indivíduos. Nesse sentido, os

prêmios e as sanções psicológicos são consequência da introdução de uma nova ideia ao

mesmo tempo em que funcionam como pressão e motivo para o direcionamento e

manutenção, da ação.

No conceito central de sua pesquisa, qual seja, a influência dos preceitos da ética

protestante na configuração do espírito do capitalismo, a aplicação do modelo explicativo

sugerido (ideia → psicologia → ação) resulta na construção típico-ideal defendida por

Weber, segundo a qual, a introdução da doutrina puritana (especialmente os dogmas do

chamado vocacional luterano e da predestinação calvinista) ocasionaram no indivíduo

puritano, como resposta psicológica, o sentimento de ansiedade pela salvação da alma

que, por sua vez, motivou o direcionamento da conduta do indivíduo para o ascetismo

intramundano que, em última instância, segundo Weber, serviu como base para o

nascimento do espírito do capitalismo. Ainda assim, como constata:

As raízes dogmáticas [reciprocamente diferenciadas] da moralidade ascética, eis a verdade, após lutas terríveis acabaram se estiolando. Entretanto, a ancoragem original da práxis moral nesses dogmas deixou fortes vestígios na ética ‘não dogmática’ subsequente (WEBER, 2010, p. 89).

Deste modo, a importância e a força da mediação psicológica entre a crença ou

prática religiosa e a ação social que dela transcorre, justifica, defende Weber, o porquê de

um tipo de conduta permanecer arraigado num determinado grupo de indivíduos anos

depois de a ideia que originou tal conduta não estar mais consciente. Esse seria o caso da

ética trabalhista decorrente do ascetismo protestante presente na cultura contemporânea

muitos anos após os ideais da doutrina protestante não mais habitar a vida cotidiana.

No entanto, como Weber lembra, tal modelo não configura uma lei, mas apenas

uma ferramenta para a construção de tipos-ideais explicativos da ação social de inspiração

religiosa. De fato, é possível observar não somente em A Ética Protestante, mas também

em outros textos de Weber (especificamente os textos de Sociologia da Religião) a

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aplicação do modelo (ideia → psicologia → ação) em que a posição da psicologia é

substituída pelo tipo de personalidade dos indivíduos de diversas denominações religiosas

(católicos, luteranos, calvinistas, pietistas, metodistas, anabatistas e batistas, judeus,

hindus, budistas, etc.). Em cada caso, Cavalletto observa que o tipo de personalidade

funciona “como a resposta psicológica típica-ideal para ideias religiosas específicas e

como a fonte de motivação típica-ideal para uma ação social específica”

(CAVALLETTO, 2007, p. 77).

Uma visão semelhante é compartilhada por Martin Spencer, em The Social

Psychology of Max Weber. Segundo Spencer, Weber, ao elaborar, especificamente, sua

sociologia da religião, “desenvolveu uma psicologia do ‘homem religioso’ que utiliza o

conceito de determinismo cognitivo” (SPENCER, 1979, p. 253). No modelo da defendido

por Spencer, o papel da psicologia social weberiana no comportamento humano é

determinado pela “relação entre a visão de mundo [originada por uma crença religiosa] e

a criação de uma orientação de vida que projeta o caminho da vida no futuro a partir dessa

visão de mundo” e, por fim, essa orientação de vida “é conceitualizada como uma agência

singular para a formação de caráter” (SPENCER, 1979, p. 253).

Assim como Cavalletto explora os diversos tipos de personalidades de inspiração

religiosa de maneira típico-ideal através de seu modelo, Spencer mostra, na sociologia da

religião de Weber, que o modelo proposto para a psicologia social weberiana se aplica

como tipo-ideal a todas as visões de mundo exploradas por Weber (primitiva, politeísta,

impessoal e monoteísta) e as orientações de vida correspondentes (mundanas ou

transcendentais).

Nos seus textos metodológicos, Weber deixa claro a relação conflituosa que

mantinha com a Psicologia. Entre críticas aos psicologismos da época e à falta de

objetividade no método de pesquisa da Psicologia, no entanto, Weber sugere uma

integração entre conceitos psicológicos e a sua Sociologia Compreensiva. Porém, são nos

seus textos de Sociologia das Religiões (especialmente em A Ética Protestante) que

Weber deixa claro o grau e a extensão em que a Psicologia permeia o seu pensamento.

Ainda assim, quando se trata da presença de uma psicologia no pensamento

weberiano, a psicologia em questão corresponde a uma criada por Weber. Como bem

destaca Martin Spencer, nos seus “estudos sobre religião para investigar as origens

históricas da civilização ocidental (...), e para particularmente jogar luz sobre o

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aparecimento do capitalismo industrial moderno como um aspecto central dessa

civilização”, Weber foi compelido a criar “uma psicologia única no seu retrato do

homem”, “porque nenhuma psicologia adequada estava disponível” (SPENCER, 1979,

p. 240).

Nesse sentido, apesar da controvérsia em torno da relação da Psicologia com a

Sociologia de seu pensamento, Weber, em nota no final de A Ética Protestante, confirma

que essa relação está viva em seu pensamento e que o seu estabelecimento de maneira

concreta e histórica era o verdadeiro objetivo do seu clássico ensaio. Segundo Weber:

... uma ética ancorada na religião destina para o comportamento por ela suscitado prêmios psicológicos (não de caráter econômico) bem específicos e altamente eficazes enquanto a fé religiosa permanecer viva (...). Só na medida em que esses prêmios funcionam e sobretudo quando agem (e o decisivo é isto) numa direção que se afasta bastante da doutrina dos teólogos (a qual por sua vez não passa mesmo de “doutrina”), consegue a fé religiosa uma influência autônoma sobre a conduta de vida e, através dela, sobre a economia: sim, para falar claro, é este o nó de todo o presente ensaio, e não dava para esperar que ele passasse assim tão completamente sem ser notado. (WEBER, 2010, p. 178).

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Freud como complemento a Weber

Muito do que foi explorado nesta tese até este ponto a respeito da concepção e uso

de uma Psicologia weberiana ou compreensiva refere-se à Sociologia das Religiões de

Weber. De fato, como destaca Colliot-Thélène, “o emprego positivo do termo

‘psicológico’ é, contudo, frequente em suas obras, principalmente em Sociologia das

religiões” (COLLIOT-THÉLÈNE, 2016, p. 78). Porém, haja vista que Weber nunca

expressou formalmente a sua concepção de Psicologia e tampouco o seu alcance e uso, é

possível levantar a pergunta: estaria a Psicologia Compreensiva de Weber restrita à sua

Sociologia das Religiões?

Em tese, os modelos explicativos para a construção de tipos-ideais apresentados

por Cavalletto e Spencer não se restringem apenas às ações sociais de inspiração religiosa.

A princípio, a concepção de que a introdução de uma ideia em uma comunidade resulta

em uma resposta psicológica que motiva e direciona a ação dos indivíduos, constitui um

modelo que, embora simplificado, pode ser aplicado em outros fenômenos sociais além

dos de inspiração religiosa. Igualmente, também pode ser aplicado aos mais variados

fenômenos sociais o modelo explicativo segundo o qual a resposta psicológica à uma dada

visão de mundo produz uma orientação de vida determinada.

Ainda assim, na obra de Weber, a presença da Psicologia como parte do modelo

típico-ideal que busca compreender determinado fenômeno social só se torna clara nos

textos em que a Sociologia das Religiões constitui o foco principal da discussão, como é

o caso de A Ética Protestante. Contudo, parece ser improvável que em toda sua obra,

Weber, que disseca meticulosamente cada fenômeno social que o auxilie na compreensão

da configuração histórica e social que deu origem à sociedade capitalista moderna, que

concebe a sociologia como uma ciência da cultura e que posiciona o indivíduo ao centro

de sua sociologia, só tenha percebido a relação direta entre o universo psicológico dos

indivíduos e os fenômenos sociais quando tal relação se deu no âmbito da religião.

Logicamente, o receio de incorrer em psicologismos ao tentar aplicar um modelo

explicativo que incorpore elementos psicológicos constitui uma hipótese a ser

considerada. No entanto, apesar da sua dura crítica do psicologismo nas ciências sociais,

Weber soube evitar, metodologicamente, esses riscos nas suas análises das ações sociais

de inspiração religiosa. Nesse sentido, não há por que supor que não seria capaz de

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realizar o mesmo para outros tipos de fenômenos sociais que não os relacionados à uma

sociologia da religião.

Weber, no entanto, não arriscou incursões no campo da Psicologia além das já

mencionadas análises típico-ideais de ações sociais de inspiração religiosa, o que, para

alguns pesquisadores constitui um ponto digno de crítica da teoria social weberiana. Serge

Moscovici destaca na teoria social de Weber a ausência de um maior embasamento

psicológico em questões amplamente discutidas por Weber, como o poder e a dominação

carismática. Segundo Moscovici, “consideramos estranho que Weber seja tão impreciso

quanto às razões da ascendência do chefe carismático sobre as pessoas” e que, portanto,

falta em Weber a resposta à pergunta: “Por que elas [as pessoas] o seguem?”

(MOSCOVICI, 2011, p. 350). Howard Kaye, em Rationalization as Sublimation: On the

Cultural Analyses of Weber and Freud, adiciona que Weber apresenta sua teoria social

“aparentemente faltando uma psicologia do motivo e do sentido adequada” (KAYE,

1992, p. 45).

Em Weber And Freud: On The Nature And Sources Of Authority, Donald

McIntosh avalia que, ao examinar a visão de Weber com respeito ao tema da autoridade

a partir de uma perspectiva psicológica, que “a teoria weberiana é, em alguns aspectos,

incompleta e unilateral” (MCINTOSH, 1970, p. 901). Adicionalmente, Ralph Hummel

escreve, em Freud's Totem Theory As Complement To Max Weber's Theory Of Charisma,

que Weber indica uma explicação causal para o surgimento de lideranças carismáticas

relacionando-o a momentos de crise social, mas falha em conceber uma “teoria para

explicar os processos psíquicos nos quais crises sociais podem ser interpretadas como

severas o suficiente para levar à conexão intensa que caracteriza a liderança carismática”

(HUMMEL, 1974, p. 683).

Nesse contexto, a psicologia de Sigmund Freud (1856-1939), como defendem

Hummel e Kaye, oferece a possibilidade de complementar a teoria social de Weber nas

suas deficiências. No entanto, o fato de grande parte dos escritos freudianos de temática

psicossocial serem posteriores a Weber106, torna a comparação entre os dois autores, de

106 Max Weber morreu em 14 de Junho de 1920 enquanto Freud, apesar de ter publicado Totem e tabu em 1913, só publicou a maioria de seus “textos sociais” a partir de 1921 – Psicologia das massa e análise do eu (1921), O futuro de um ilusão (1927), O mal-estar na cultura (1930) e O homem Moisés e a religião monoteísta (1939).

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certa forma, injusta. Diferentemente de Weber, Freud presenciou de maneira pessoal um

dos principais eventos do século XX, não somente do ponto de vista histórico e político,

mas também do ponto de vista cultural e psicossocial: a ascensão dos regimes totalitários

fascista e nazista.

Ainda que não tenha vivenciado a Segunda Guerra Mundial (um dos principais

eventos do século XX a impulsionar o desenvolvimento da Psicologia Social), Freud

presenciou a escalada dos acontecimentos que levaram a tal evento. Freud pôde observar

o comportamento das massas e a sua manipulação por líderes carismáticos, assim como

o crescimento da irracionalidade, do ódio e do preconceito na conduta da população.

Weber morreu antes disso, quando o otimismo da República de Weimar ainda era uma

possibilidade e a insanidade da Primeira Guerra Mundial parecia algo já ultrapassado.

Sob esse ponto de vista, a teoria social de Weber não teria como não ser defasada

em comparação à de Freud. Porém, justiça seja feita, tal seria o caso para muitos outros

pensadores posteriores a Weber que tenham desenvolvido uma teoria social integrada a

elementos psicológicos – como por exemplo, Theodor Adorno (1903-1969) e Norbert

Elias (1897-1990). Portanto, o objetivo desta seção não consiste em comparar a

Sociologia Compreensiva de Weber com alguma teoria psicossocial mais avançada, mas

indicar o caminho para complementar algumas lacunas e inconsistências psicológicas do

pensamento de Weber com o que havia de disponível naquele período. Nesse sentido, o

pensamento de Sigmund Freud se mostra o mais apropriado para a tarefa.

Além da contemporaneidade107 e das inúmeras coincidências biográficas108, um

dos pontos que torna a análise da relação entre o pensamento de Weber com o de Freud

relevante é o fato de ambos “envolvidos com a grande questão cultural de como nossos

107 Uma semelhança digna de nota entre os dois pensadores se deve, de certo modo, ao fato de serem não somente contemporâneos, mas de viverem e experimentarem a mesma realidade, qual seja, a realidade da sociedade industrial europeia do final do século XIX e começo do século XX. Além disso, as disciplinas que ajudaram a desenvolver, a Sociologia e a Psicanálise, assumiram sua forma moderna institucionalizada no período entre 1895 e 1915. 108 Além de ambos terem nascido na Europa Central, logo após a metade do século XIX, eram também estudantes universitários extremamente bem sucedidos, que viveram com os pais até seus quase trinta anos. Ambos atingiram independência profissional e casaram-se aos trinta anos. Ambos viajaram no começo do século XX para os Estados Unidos, e a essas viagens foram associados desenvolvimentos significativos em suas carreiras. Além disso, talvez a coincidência mais surpreendente: no mesmo ano, em 1897, tanto Weber quanto Freud, entraram em um período de turbulência emocional em função do falecimento dos seus pais. Em ambos os casos, biógrafos dos dois pensadores concordam que esse período representou um ponto de virada no amadurecimento das suas orientações intelectuais. Ver (LEVINE, 1985, P. 179-198).

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mundos interno e externo se tornaram o que são, e, em última análise, com a questão

moral de como devemos viver em um mundo desses” (KAYE, 1992, p. 45).

Adicionalmente, apesar das diferenças disciplinares, ambos buscaram respostas em suas

pesquisas científicas a partir de “perspectivas intelectuais, aparentemente

complementares” (KAYE, 1992, p. 45). Pois como bem nota Howard Kaye,

De um lado temos a teoria social “verstehende” de Weber, procurando explicar o fenômenos sociais através da compreensão dos motivos internos e dos sentidos pretendidos atrelados pelos indivíduos às suas ações sociais, contudo, aparentemente faltando uma psicologia do motivo e do sentido adequada, e do outro lado, temos a psicologia “verstehende” de Freud, como Weber a chamou, esperando contribuir para a formação de uma “ciência social genuína”, contudo, faltando uma teoria social adequada para iluminar a modelagem cultural e social da psicologia individual. (KAYE, 1992, p. 45)

Adicionalmente, destaca Tracy Strong, em Weber and Freud: Vocation and Self-

acknowledgement, ambos Weber e Freud, dado o contexto histórico-social do período e

local em que viveram, podem ser enquadrados “como diagnosticadores pessimistas da

burguesia” (STRONG, 1987, pos. 13800) que ...

... enxergam humanos contemporâneos como encarcerados em prisões feitas por eles mesmos, tornados impotentes para escapar através da sua própria força, mesmo com cada movimento em direção à libertação tem-se uma repetição forçada dos termos do seu aprisionamento. (STRONG, 1987, pos. 13800)

Ainda assim, a pressuposição de uma relação entre Weber e Freud109 não é

imediata, haja vista que Weber, com todo o seu conhecimento e leitura sobre psicologia

(inclusive, é sabido que Weber chegou a ler parte da obra de Freud110), menciona

pouquíssimas vezes o nome de Freud e nunca num contexto relacionado à sua própria

pesquisa. Freud, por sua vez, não menciona Weber uma vez sequer (algo digno de nota,

109 Sobre a possibilidade real de um diálogo entre Max Weber e Sigmund Freud, Howard Kaye pondera sobre “o que poderia ter acontecido se, em 1901, já que ambos estavam em Roma se recuperando de acessos de depressão, eles tivessem, por acaso, se encontrado, talvez, na Igreja de S. Pietro em Vincoli, contemplando o ‘Moisés’ de Michelangelo, ou se o destino os uniu em Viena em 1917 ou 1918 quando Weber visitou a cidade. Infelizmente, o que o historiador H. Stuart Hughes chamou de ‘o confronto intelectual que detinha as maiores possibilidades da nossa era’ nunca ocorreu.” (KAYE, 1992, p. 46) 110 Segundo Tracy Strong, em seu artigo Weber and Freud: Vocation and Self-acknowledgement, Weber, “soube de Freud cedo e, até 1908, já tinha lido seus ‘principais trabalhos’ (Isso provavelmente inclui A Interpretação dos Sonhos, Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade)” (STRONG, 1987, pos. 13827)

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já que, nos seus escritos, Durkheim chega a ser mencionado) e não há registro nenhum

que indique que Freud tenha lido qualquer coisa de Weber111.

Mesmo com raras e esparsas menções à obra do Pai da Psicanálise, Weber estava

familiarizado com o trabalho de Freud e via com bons olhos o desenvolvimento da sua

psicologia. Weber demonstra o seu conhecimento sobre Freud em uma carta aos membros

da revista científica Archiv Für Sozialwissenshaft und Sozialpolitik em que rejeita um

artigo de Otto Gross, antigo discípulo de Freud, na qual afirma que...

... não há dúvida que a linha de pensamento de Freud poderia se tornar muito importante na sugestão de interpretações para uma ampla série de fenômenos culturais, especialmente na área de história da religião e moralidade: reconhecidamente, quando visto do elevado ponto de vista do historiador cultural, essa importância está bem distante de ser tão universal quanto assumida por Freud e seus seguidores, no seu muito compreensível entusiasmo e alegria pela descoberta. Uma pré-condição essencial [à universalidade] seria a criação de uma casuística exata com uma certeza e uma alcance que, apesar de todas as asserções contrárias, não existe hoje, mas que talvez vá existir em duas ou três décadas: deve-se apenas acompanhar todas as mudanças que Freud realizou em uma década para ver quão alarmantemente escasso, apesar de tudo, seu material ainda é (o que é muito compreensível e certamente não é nenhum descrédito). (WEBER, 1978, pos. 8594)

Em trecho posterior da mesma carta, Weber critica as alterações da teoria

freudiana e sua inconstância, mas ainda assim, mantendo uma perspectiva otimista para

o futuro da psicologia de Freud. Nas suas palavras:

As teorias de Freud, que eu agora conheço também através do seus principais trabalhos , foram admitidamente e consideravelmente modificadas ao longo dos anos, e eu tenho a impressão, falando como um leigo, que elas ainda não atingiram, de qualquer maneira, a sua forma final (WEBER, 1978, pos. 8590)

Com respeito às alterações na teoria freudiana, Weber afirma que “conceitos

importantes, como ‘ab-reação’, foram infelizmente e muito recentemente adulterados e

diluídos até o ponto em que perderam todo significado preciso” (WEBER, 1978, pos.

8590). Sobre o conceito de ‘ab-reação’, Antônio Flávio Pierucci destaca, no Glossário de

A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo (WEBER, 2010), que o uso do

“[n]eologismo cunhado por Breuer e Freud em alemão (Abreagiren) para designar a

intensa descarga emocional pela qual um indivíduo, no decorrer do processo

psicanalítico, se liberta da tensão afetiva que acompanha a lembrança de um

acontecimento traumático até então recalcado (...) se generaliza nos círculos da psicologia

111 Tracy Strong ressalta que, durante sua pesquisa, encontrou indícios de que “Freud nunca falou publicamente de Max Weber”, e que era “altamente provável que ele não havia lido Weber, ou pelo menos os escritos sociológicos de Weber (em oposição aos escritos jornalísticos)” (STRONG, 1987, pos. 13826).

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clínica a partir de 1912” (WEBER, 2010, p. 277). No entanto, ressalta que é “só na

segunda versão de A ética protestante, de 1920, que Weber vai fazer uso deste termo

técnico da psicanálise: insere-o duas vezes no contexto da exposição em que entram em

linha de consideração os efeitos liberadores da confissão individual dos pecados, prática

da Igreja católica que os reformadores protestantes ou destituíram do status de sacramento

ou suprimiram totalmente” (WEBER, 2010, p. 277).

Contudo, apesar da familiaridade de Weber com temas da Psicologia em geral e

da Psicanálise de Freud, a leitura da obra de ambos os pensadores leva a constatações de

que em alguns pontos da Sociologia de Weber podem beneficiar-se da teoria psicanalítica

de Freud. No entanto, deve ser destacado que o objetivo desta tese não consiste em

“corrigir” ou “completar” a teoria social de Weber com trechos da teoria psicanalítica de

Freud. A integração dos pensamentos de Weber e Freud se mostra, de início, uma tarefa

ambiciosa demais (e, possivelmente, arrogante), além de, muito provavelmente, fadada

ao fracasso. O que a presente tese pretende é, de maneira direta, endereçar as críticas

feitas à teoria social de Weber, com respeito ao seu uso (ou não) de elementos explicativos

psicológicos, e indicar possíveis pontos de integração com a teoria psicanalítica de Freud.

Dentre os pontos apresentados no início desta seção, Moscovici, Kaye, McIntosh

e Hummel destacam que falta, à Sociologia de Weber, um maior desenvolvimento em

uma psicologia do motivo. Segundo eles, por mais que Weber estruture a construção de

seus tipos-ideais seguindo uma estrutura como a apontada por Cavalletto em que a

introdução de uma ideia gera uma resposta psicológica que, por sua vez, motiva a ação

social, o real motivo pelo qual a ideia é introduzida e aceita não é discutido

suficientemente.

Retomando o exemplo clássico proposto por Weber, a questão da influência da

ética protestante do desenvolvimento do espírito do capitalismo, a pergunta que

permanece em aberto seria: por que as comunidades protestantes aceitaram e

incorporaram as doutrinas propostas por Lutero e Calvino? Muito embora Weber não

desenvolva explicitamente a questão, ele indica que a aceitação das doutrinas de Calvino

e Lutero remetem justamente à autoridade dos dois reformadores.

Por “autoridade”, Weber entende como legitimidade do tipo de dominação, que,

no caso de Lutero e Calvino, pode-se considerar como do tipo carismática. Ou seja, Weber

entende que entre Lutero e Calvino e suas respectivas comunidades existe uma relação de

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190

dominação caracterizada por um “certo mínimo de vontade de obedecer, isto é, de

interesse (externo ou interno) na obediência” (WEBER, 2000a, p. 139) cuja legitimidade

é garantida pelo carisma dos dois líderes. No caso da dominação carismática, o carisma

do líder é a fonte de legitimidade do poder exercido, e, por carisma, entende-se

uma qualidade pessoal considerada extracotidiana (na origem, magicamente condicionada, no caso de tantos profetas quanto dos sábios curandeiros ou jurídicos, chefes de caçadores e heróis de guerra) e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos ou então se a toma como enviada por Deus, como exemplar e, portanto, como líder (WEBER, 2000a, p. 159).

O reconhecimento do carisma do líder por parte do povo dominado e definido

psicologicamente, por Weber, como “uma entrega crente e inteiramente pessoal nascida

do entusiasmo ou da miséria e esperança” (WEBER, 2000a, p. 159). Por isso Weber

classifica o carisma como uma “força revolucionária” que promove “uma transformação

com ponto de partida íntimo”, em outras palavras, “uma modificação da direção da

consciência e das ações, com orientação totalmente nova de todas as atitudes diante de

todas as formas de vida e diante do ‘mundo’, em geral” (WEBER, 2000a, p. 161).

Segundo Arthur Mitzman, “Weber define o carisma como especificamente a-

histórico”, algo que “conota mais uma propriedade psicológica do que uma propriedade

sociológica ou histórica” (MITZMAN, 1985, p. 246). Ainda assim, como observa

Moscovici, Weber é notavelmente “impreciso quanto às razões da ascendência do chefe

carismático sobre as pessoas” (MOSCOVICI, 2011, p. 351). Weber descreve a estrutura

social e a instauração da dominação carismática e chega a indicar que as razões para o

estabelecimento de uma relação de dominação do tipo carismática são de cunho

psicológico, no entanto, não vai além disso, não chega a explicar o porquê da

manifestação do carisma e da aceitação e sujeição por parte dos dominados.

Embora Freud não tenha se dedicado ao tema do “carisma” diretamente, através

da leitura de seus textos, Donald McInstosh explica que o carisma, sob um ponto de vista

psicanalítico, “designa a força do inconsciente externalizado, ou seja, tendências

inconscientes que escapam para a consciência sob o disfarce de uma força externa”

(MCINTOSH, 1970, p. 902). Mas como “tendências inconscientes reprimidas sempre

representam um perigo para o ego”, este aciona mecanismos de defesa que, na maioria

das vezes, consiste em “distorcer a percepção de tal maneira que a tendência inconsciente

(em uma forma adequadamente disfarçada) é vista como inerente a ou emanado de algo

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191

fora de si mesmo: o inconsciente é projetado para fora” (MCINTOSH, 1970, p. 902).

Deste modo,

A aura da magia brota da ressonância entre o que é percebido como sendo a realidade externa e o pensamento inconsciente, que é a verdadeira fonte da experiência. As reverberações, assim criadas, penetram através e ao redor das camadas de repressão, bloqueios, deslocamentos e transformações que se situam entre o consciente e o inconsciente, e entram na consciência como o “sentido do estranho”. (MCINTOSH, 1970, p. 902).

Ralph Hummel, em Freud's Totem Theory As Complement To Max Weber's

Theory Of Charisma, sugere que, a partir da semelhança na descrição de fenômenos

carismáticos e totêmicos, é possível explicar o mecanismo responsável por estabelecer

uma união tão intensa quanto a presente na dominação carismática. Segundo Hummel, na

única tentativa de Weber de fornecer uma explicação psicológica, o sociólogo “define a

necessidade do indivíduo por carisma como originada de ‘um processo de abstração’”

(HUMMEL, 1974, p. 683), segundo a qual...

... a representação de certos seres que se ocultam “por trás” da atuação dos objetos naturais, artefatos, animais ou homens carismaticamente qualificados e que de alguma maneira determinam esta atuação. WEBER, 2000a, p. 281).

A partir dessa abstração, defende Weber, configura-se no homem o que chama de

“crença nos espíritos”, ou seja, a ideia de que o espírito – que “originalmente, nem é alma,

nem demônio, nem sequer um deus, mas algo indefinido: material e mesmo assim

invisível, impessoal, mas com uma espécie de vontade” – “confere ao ser concreto sua

força de ação específica, que pode penetrar neste e, do mesmo modo, abandoná-lo”

WEBER, 2000a, p. 281). Tal processo de abstração, segundo Hummel, coincide com a

descrição de Freud sobre animismo em Totem e Tabu. Segundo escreve:

No sentido mais estrito, animismo é a doutrina das almas, no sentido mais amplo, a dos espíritos em geral. Também se distingue o “animatismo”, a teoria do caráter vivo da natureza que se nos mostra inanimada, assim como o “animalismo” e o “manismo”. (FREUD, 2012, p. 121).

Além disso, segundo escreve Freud:

A primeira concepção do mundo a que os homens chegaram, a do animismo, era psicológica, portanto. Não necessitava de ciência para sua fundamentação, pois a ciência começa apenas quando as pessoas veem que não conhecem o mundo e têm de procurar meios de conhecê-lo. Mas o animismo era natural e evidente para o homem primitivo; ele sabia como eram as coisas do mundo, ou seja, eram tal como ele as percebia. Estamos preparados para saber, portanto, que o homem primitivo deslocava relações estruturais de sua própria psique para o mundo exterior (FREUD, 2012, p. 143)

Tanto para Weber como para Freud, o mecanismo observado nos povos primitivos

responsável pelo animismo de Freud ou pelas abstrações descritas por Weber

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192

continuariam presentes nos seres humanos contemporâneos sob a forma do carisma. O

carisma, para Weber, seria um traço psicológico, porém a dominação carismática seria

algo histórico que, segundo ele, em momentos de crise112, ou, como define Hummel,

“quando eventos externos são interpretados como ataques à validade de valores

fundamentais nos mapas mentais dos indivíduos sobre o mundo” (HUMMEL, 1974, p.

685).

No entanto, Weber não oferece nenhuma explicação adicional com respeito aos

processos psíquicos envolvidos. Freud, por sua vez, com respeito à origem da inclinação

de projetar processos mentais para o exterior, entende que tal inclinação “é reforçada ali

onde a projeção traz a vantagem de um alívio psíquico” (FREUD, 2012, p. 145). Sobre

isso, escreve que:

Tal vantagem certamente ocorre quando entram em conflito os impulsos que aspiram à onipotência; pois evidentemente não podem todos eles tornar-se onipotentes. O processo patológico da paranoia utiliza-se efetivamente do mecanismo da projeção para dar conta desses conflitos originados na psique. (FREUD, 2012, p. 146)

Conforme a argumentação de Freud, a uso da projeção nasceu da necessidade

humana de resolver conflitos entre opostos ou casos de atitudes ambivalentes como a

atitude de amor-ódio experimentada com relação aos mortos113. Deste modo, segundo

Freud, a criação do animal totêmico nas comunidades primitivas seria uma projeção. Isso

porque, nesse caso, os filhos, após matarem o pai primitivo, por inveja pelo controle das

fêmeas de um grupo, experimentam inconscientemente sentimentos de amor e ódio, o que

112 Segundo a concepção de Weber: “A criação de uma dominação carismática, no sentido ‘puro’ aqui exposto, é sempre resultado de situações extraordinárias externas, especialmente políticas ou econômicas, ou internas, psíquicas, particularmente religiosas, ou de ambas em conjunto. Nasce da excitação comum a um grupo de pessoas, provocada pelo extraordinário, e da entrega ao heroísmo, seja qual for o seu conteúdo.” (WEBER, 2000b, p. 331). Além disso, Weber afirma que: “O carisma é a grande força revolucionária nas épocas com forte vinculação à tradição. (...) o carisma pode ser uma transformação com ponto de partida íntimo, a qual, nascida de miséria ou entusiasmo, significa uma modificação da direção da consciência e das ações, com orientação totalmente nova de todas as atitudes diante de todas as formas de vida e diante do ‘mundo’, em geral.” (WEBER, 2000a, p. 161). 113 Em Totem e Tabu, Freud escreve: “O luto proveniente da ternura intensificada tornou-se, por um lado, mais impaciente com a hostilidade latente, e, por outro lado, não pôde admitir que dela resultasse um sentimento de satisfação. Assim chegou-se à repressão da hostilidade inconsciente pela via da projeção, à formação do cerimonial em que o temor de ser punido pelos demônios acha expressão, e, com a passagem do tempo, também o conflito perde em agudeza, de maneira que o tabu desses mortos pode se enfraquecer ou cair no esquecimento.” (FREUD, 2012, p. 106).

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193

resulta na projeção externa de seu amor pelo pai morto em um substituto paterno: o animal

totêmico114. No caso do surgimento da necessidade por carisma, Hummel sugere que:

Os valores culturais centrais e as instituições que os sustentam constituem, como o pai primitivo, o ponto central de orientação que mantém os indivíduos unidos na sociedade. Quando esses valores são atacados e as instituições que os apoiam são perdidas, pode-se esperar que a resposta seja semelhante à perda do pai primitivo. Aqueles à procura de um salvador carismático sentem subconscientemente que eles participaram na "matança" da sociedade e cultura. Tais sentimentos são reprimidos, mas isso apenas aumenta o conflito de amor e ódio pela cultura e suas instituições sociais, que agora não pode ser evitado, uma vez que todos os momentos da vida em um mundo social radicalmente mudado é um lembrete da ação assassina. Um dos pares de opostos – nesse caso, o amor – é projetado externamente para um indivíduo líder cujas palavras identificam-no como um notável companheiro assassino da cultura e da sociedade. No caso do carisma revolucionário, o portador do carisma, ao mesmo tempo, suporta a culpa dos outros e fornece-lhes o amor (atribuído) que eles precisam para restabelecer relações estáveis entre si. (HUMMEL, 1974, p. 685).

Corroborando a hipótese de Hummel, McIntosh afirma que “Qualquer figura que

se assemelhe ou possa ser associado à imagem reprimida do pai pode ser investido com

a aura de poder carismático” (MCINTOSH, 1970, p. 904). Assim, a relação entre líder e

liderados, em um regime de dominação carismática, corresponde a uma relação paternal,

na qual a população projeta no líder a figura de um substituto paterno. Em Moisés e o

Monoteísmo, Freud deixa clara essa relação:

Em nenhum momento chega a ser obscuro, para nós, o motivo por que o grande homem adquire importância. Sabemos que existe, na massa humana, a forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar, à qual as pessoas se dobrem, pela qual sejam dominadas e até maltratadas eventualmente. Na psicologia do indivíduo descobrimos de onde vem essa necessidade da massa. É o anseio pelo pai, inerente a cada um desde a infância, pelo mesmo pai que o herói do mito se gaba de ter vencido. Agora começamos a perceber que todos os traços de que dotamos o grande homem são traços paternos, que nesta concordância se acha a natureza do grande homem, que até agora buscamos em vão. A firmeza dos pensamentos, a força da vontade, a energia da ação fazem parte da imagem paterna, mas sobretudo a liberdade e independência do grande homem, sua divina indiferença, que pode chegar à ausência de escrúpulos. É preciso admirá-lo, é possível confiar nele, mas não há como não temê-lo também. (FREUD, 2018, p. 152).

Analisando as hipóteses de como a Psicanálise poderia contribuir para uma

psicologia do motivo a ser integrada à Sociologia Compreensiva, é possível conjecturar

que Weber desconfiaria do adendo freudiano proposto para a sua teoria social. Assumir

como regra que toda dominação carismática envolve uma projeção coletiva de um

substituto paterno na figura do líder parece ferir sua cuidadosa noção de objetividade. No

entanto, adotar a interpretação psicanalítica de Freud para o caso da dominação

carismática como um tipo-ideal, uma ferramenta heurística na busca por compreender a

114 Ver (FREUD, 2012, p. 216)

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força dos laços que unem o líder carismático e a população que o segue constitui algo que

o método da Sociologia Compreensiva de Weber poderia incorporar. A validade dessa

incorporação, no entanto, como o próprio Weber poderia afirmar, depende se o tipo-ideal

resultante sobrevive ao confronto com a realidade social, pois em última análise, a sua

Sociologia Compreensiva pretende ser uma ciência do real.

Neste sentido o uso da Psicanálise em conjunto com a Sociologia Compreensiva

de Weber para a construção de tipos-ideais constitui uma poderosa ferramenta para a

compreensão da realidade social. Porém, tal ferramenta, como é da natureza das

construções típico-ideais, deve ser confrontada caso a caso. Deste modo, a possibilidade

de se estabelecer uma teoria social freudiana-weberiana que proporcione uma

compreensão abrangente da realidade social constitui uma tarefa contínua e, como tal, um

terreno fértil para a pesquisa psicossocial.

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195

Considerações Finais

Com o final da Segunda Guerra Mundial, emergiu a percepção que o mundo havia

mudado completamente. De certa forma, a por trás da cortina, vislumbrou-se que a

humanidade era capaz de atrocidades em escala nunca imaginada. O resultado da Guerra

impôs uma nova visão de mundo em que a inocência não tinha lugar.

Nos anos subsequentes, era inescapável a qualquer ciência humana lidar com as

consequências do caos e da destruição humana e material. A Economia adaptou-se e a

noção de um equilíbrio econômico global ganhou forma, incentivando os países

vencedores a investir na reconstrução dos países derrotados e, assim, evitar ódio e rancor

(algo que não foi feito após a Primeira Guerra Mundial, contribuindo para a crise

econômica-social que levou o Partido Nazista ao poder na Alemanha).

O advento da bomba atômica e da guerra em escala industrial também trouxe

desafios à Filosofia, especificamente ao campo da Ética, que foi obrigada a fatorar as

implicações éticas da possibilidade de uma guerra de destruição mútua garantida, algo

que afetou profundamente o cenário geopolítico mundial. De fato, a divisão do mundo

em zonas de influências de duas superpotências com poder para aniquilar toda a

humanidade impôs ao mundo um estado de medo e constante tensão.

Neste cenário, a Sociologia, assim como a Psicologia, oferecia algumas respostas,

mas não todas. No mundo do Pós-Guerra, certas questões ainda incomodavam: Como um

homem apenas pôde disseminar, alimentar e expressar tanto ódio? Como essa retórica do

ódio se propagou e controlou toda uma população? Enfim, como tudo isso foi possível?

Tais perguntas, assim como uma série de novas indagações originadas num mundo

dividido pela Guerra Fria, impulsionaram o desenvolvimento de um tipo de ciência que

não mais impunha uma barreira entre o indivíduo e a sociedade, mas enxergava os efeitos

recíprocos da necessária relação entre esses dois elementos. A crescente Psicologia

Social, embora tida como um braço da Psicologia, integrou conceitos e a metodologia

sociológica para explorar os efeitos psicológicos de eventos sociais nos indivíduos, assim

como a força da psique humana na conformação da cultura e da sociedade.

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196

A presente tese propôs-se a mostrar nos capítulos iniciais que, muito embora a

Psicologia Social tenha oficialmente nascido como ciência na década de 1920 e se

desenvolvido no período pós Segunda Guerra, os questionamentos sobre a complexa

relação entre homem e sociedade já existiam há milênios. Desde a Antiguidade Clássica,

a ideia do homem como um animal pensante e social suscitou questionamentos filosóficos

sobre a natureza humana, o funcionamento da mente e modo como o homem se relaciona

com seus semelhantes.

Inicialmente, enquanto as especulações se davam no âmbito da filosofia nenhuma

fronteira se impunha no desenvolvimento do conhecimento da condição do homem em

sociedade. Ainda que houvesse uma visível distinção entre a esfera social e a individual,

não existia uma restrição metodológica ou epistemológica explícita com respeito a uma

relação entre as duas esferas. Ainda assim, sob o prisma da ciência moderna, a verdade e

a validez de qualquer conhecimento produzido sobre o tema eram algo ainda incerto, haja

vista, que muitas dessas conjecturas eram de natureza metafísica (como por exemplo o

idealismo de Platão ou o naturalismo de Aristóteles) e, geralmente, somente a estrutura

lógica de tais conjecturam podiam ser verificadas.

Na Idade Média, embora as concepções platônicas e aristotélicas tenham, de certa

forma, sobrevivido nos pensamentos de pensadores como Agostinho e Tomás de Aquino,

as ligações entre a alma humana e sociedade, tal qual concebidas pelos gregos, foram

subsumidas à figura do Deus judaico-cristão. Questões de natureza psicológicas

tornaram-se domínio da religião sob o controle das autoridades eclesiásticas, enquanto

questões de cunho sociológico restringiram-se ao domínio da política. Qualquer

conhecimento sobre a relação entre as duas esferas, nesse contexto, remetia à figura de

Deus e à vontade divina.

A partir do Renascimento o cerco da Igreja ao conhecimento da alma e da

condição humana se afrouxou, porém, foi somente no século XVI com Galileu, Bacon e

Descartes e o surgimento do método científico moderno a produção de conhecimento

assumiu um viés racional focado no homem como criador de conhecimento. Contudo

críticos do racionalismo cartesiano como os filósofos empiristas Thomas Hobbes e John

Locke defendem que todas as ideias e pensamentos derivam das impressões sensitivas

ocasionadas pela interação entre os órgãos sensoriais e a matéria em movimento. Para

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197

eles, não existe uma alma incorpórea, em que as ideias seriam formadas não existe. Além

disso, definem a vida em sociedade como algo útil, necessário e lógico, mas não natural.

Com o racionalismo do século XVI e o empirismo do século XVII, os critérios

para se estabelecer a verdade científica se tornaram mais rigorosos e o padrão de

objetividade do conhecimento se tornou mais exigente. Embora naquele período não

tenha se desenvolvido uma teoria explicativa integrada que afirmasse que o modo como

o homem compreende e atua no mundo influi na constituição e no funcionamento da

sociedade, assim como a vida em sociedade afeta o comportamento do homem e o modo

como encara o mundo exterior, pode-se argumentar que existem indícios de que

pensadores como Descartes, Hobbes e Locke concebiam a possibilidade de um saber

psicossocial.

Ainda assim, a partir daquele momento, lentamente estabeleceu-se, na história do

conhecimento humano, uma valorização de uma ciência objetiva em detrimento à da

metafísica e, portanto, impôs uma barreira separando o conhecimento válido, ou seja,

objetivo com base na observação e experimentação, e o que era concebido como

especulação metafísica, sem possibilidade de verificação empírica. Nesse contexto, uma

cunha epistemológica interpôs-se entre o desenvolvimento do conhecimento sociológico

e do conhecimento psicológico, em que os fenômenos sociais, por serem externos e

observáveis constituiriam um conhecimento objetivo, ao passo que fenômenos

psicológicos, por serem restritos à experiência interna do indivíduo e de difícil observação

por parte de terceiros corresponderiam a um conhecimento subjetivo.

Tal concepção estendeu-se ao século XIX, cristalizando-se numa concepção

positivista de ciência, calcada na experiência e livre de qualquer metafísica, e que se

dividia, conforme a abordagem diltheyniana, entre as ciências naturais e ciências do

espírito. Essa divisão partia do pressuposto que a objetividade do conhecimento estava

no conteúdo da ciência e, portanto, ciências do espírito (como a Psicologia) não eram, de

imediato, objetivas, mas naturalmente subjetivas. Nesse contexto, a Sociologia de muitos

pensadores positivistas, como Durkheim, procurou alinhar-se metodologicamente com as

ciências naturais na busca por um conhecimento nomológico dos fenômenos sociais.

Em oposição a esse movimento nas ciências e, especificamente nas ciências

sociais, Max Weber alinhou-se à divisão neokantiana da ciência baseada não no tipo de

conteúdo, mas na natureza do interesse pelo conhecimento, ou seja, entre ciências

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individualizantes (com interesse na compreensão de eventos individuais) e ciências

generalizadoras (com interesse na compreensão eventos gerais e no descobrimento de

regras universais). Portanto, afirmava que a objetividade do conhecimento não estava no

objeto de estudo, mas no método utilizado para a sua compreensão, permitindo, assim

que uma ciência como a Psicologia, com um método de pesquisa adequado, produzisse

conhecimento objetivo.

Como é sabido, Weber não se referia à Psicologia quando se referia à objetividade

do conhecimento. Suas duras críticas aos psicólogos do início do século XX visavam não

somente combater a ameaça do psicologismo para o desenvolvimento das Ciências

Sociais, mas também apontar os riscos de propor uma Psicologia baseada em leis

universais como fundamento todas as ciências humanas. Tal iniciativa prometia uma

precisão que Weber sabia ser inalcançável. O próprio Wundt afirmou acerca das leis da

Psicologia que:

Não há nenhuma lei psicológica em que as exceções não fossem mais numerosas do que os casos em concordância. ... Por isso, em contraposição às leis empíricas da natureza, as leis psicológicas correspondentes são geralmente distinguidas pela característica de que, sob certas condições, a eficácia de uma determinada lei só pode ser prevista como possível, mas nunca como necessária. (Wundt apud ARAUJO, 2007, p. 253).

Os avanços na Psicologia promovidos pelo método experimental de Wundt

conferiram à Psicologia Fisiológica o status de ciência objetiva, prontificando muitos

pensadores (entre eles, o colega de Wundt, Karl Lamprecht) a afirmar que seria possível,

a partir da previsibilidade obtida em laboratório estabelecer leis para o comportamento

humano e consolidar a Psicologia como base para toda ciência humana. Tal psicologismo,

no entanto não correspondia inteiramente ao pensamento de Wundt. O pai da Psicologia

Moderna afirmava que existia um limite explicativo para a psicologia experimental, ou

seja, que ideias e pensamentos mais complexos não eram possíveis de ser compreendidos

através do método experimental. Para complementar a sua psicologia experimental,

Wundt sugeriu uma Psicologia dos Povos.

Weber, em princípio, concordava com a postura de Wundt em negar a aplicação

universal dos resultados da psicologia experimental para o embasamento das Ciências

Humanas, mesmo admitindo as possibilidades que se abriram com as descobertas feitas

no laboratório de Wundt. Porém, Weber se opunha enfaticamente ao psicologismo

proposto por Wundt, segundo o qual, tanto a Psicologia Experimental como a Psicologia

dos Povos deveriam compor a base fundamental das Ciências Humanas. Na visão de

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Weber, ambos os exemplos de psicologismo constituem processos de natureza filosófica

disfarçados sob uma abordagem científica e objetiva, que prometiam exatidão científica,

apesar de seu método de pesquisa não ser objetivo.

Ao longo da obra de Weber, é possível afirmar, pelo menos de um ponto de vista

metodológico, que sua grande luta foi em estabelecer de modo inequívoco as Ciências

Sociais como um conhecimento objetivo. Nesse processo, sempre em meio a polêmicas,

Weber contrapôs seu pensamento a toda forma de reducionismo no que se refere a um

modelo explicativo da realidade social, seja ele uma forma de naturalismo, historicismo,

materialismo e, sem dúvida, psicologismo. No entanto, a dureza e constância de suas

críticas consolidaram a imagem de Weber como um opositor à ciência da Psicologia. A

realidade, no entanto, não poderia estar mais distante disso.

Weber não somente indicou em seus textos ver com bons olhos os avanços da

Psicologia, como enxergava possibilidades de aplicação de seus conceitos. Contudo, tinha

ciência que o conhecimento psicológico, a seu tempo, ainda não estava suficientemente

desenvolvido e carecia do rigor metodológico necessário para se estabelecer um modelo

explicativo psicossocial. Reconhecimento seja feito, tal realidade também se aplicava, em

muitos aspectos, à Sociologia de seu tempo.

Porém, foi com o desenvolvimento de um método objetivo para a sua Sociologia

Compreensiva que Weber forneceu uma solução para a questão da objetividade não

somente para a produção de conhecimento sociológico, mas também para a produção de

conhecimento psicológico. O estabelecimento do tipo ideal como uma ferramenta

heurística, apesar de não ter sido uma criação de Weber, foi um passo fundamental nessa

direção.

A análise típico-ideal proposta por Weber permitiu não somente uma visão

objetiva da realidade social, mas também dos mecanismos psicológicos presentes na

interação do homem consigo mesmo e com o resto da sociedade. Como visto no Capítulo

final da tese, em A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, a aplicação de um

complexo e extenso tipo ideal foi o recurso utilizado por Weber para desvendar não

somente as condições históricas e sociais, mas também as ramificações psicológicas no

indivíduo dessas condições que, em conjunto, contribuíram para estabelecer a relação

entre a modo de conduta de vida do protestante e o desenvolvimento de uma singularidade

cultural significativa para o surgimento e reforço do capitalismo moderno.

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Ao desenvolver o método para a Sociologia Compreensiva, Weber possibilitou a

concepção de uma Psicologia Compreensiva. Ainda que Weber não tenha formulado uma

teoria da ação formalmente incorporando elementos psicológicos motivacionais, a

aplicação de sua análise típico-ideal em seus textos de Sociologia das Religiões fornece

forte indício de que algo do gênero estava presente em seu raciocínio. Aliado a isso, o

fato de Weber tampouco ter desenvolvido muitos dos conceitos psicológicos associados

à sua análise sociológica, representa um fértil território para a pesquisa científica e para

a produção de conhecimento psicossocial.

Esta tese teve, como um de seus objetivos, mostrar que não somente a Sociologia

weberiana não era aversa à Psicologia, como beneficiava-se do aumento de poder

explicativo que a Psicologia agregava à análise típico-ideal. Adicionalmente, buscou-se

mostrar que a teoria psicanalítica freudiana fornecia à Sociologia Compreensiva de

Weber um aumento ainda maior de seu poder explicativo ao agregar uma psicologia da

motivação que, segundo a crítica de vários autores, estava ausente do pensamento

weberiano.

Dos diversos pontos que poderiam ser escolhidos para explorar a complexa

relação entre dois dos maiores pensadores sociais do século XX, a questão da dominação

do homem pelo homem apresenta-se como ideal para mostrar como o pensamento de

Freud complementa o de Weber, e vice-versa. Na sociologia, Weber explora as diversas

formas em que o homem domina o seu semelhante e como essa dominação conforma a

sociedade, explorando, inclusive, mas não de maneira aprofundada, as ramificações

psicológicas. No caso específico da dominação carismática, Weber explora o tema do

carisma não somente como uma característica psicológica e individual, mas também

como uma força revolucionária histórica. Ainda assim, do ponto de vista psicológico, o

mecanismo de funcionamento do carisma como ferramenta de dominação é

superficialmente explorado por Weber.

Para Freud, a dominação carismática deriva da necessidade de cada indivíduo de

se ter uma figura de autoridade a qual se possa admirar. Nesse sentido, o carisma do

indivíduo corresponde a uma projeção, por parte dos seus admiradores ou seguidores, da

figura paterna. Portando, em linhas gerais, o anseio pelo pai, presente no indivíduo é

projetado na figura do líder, e o respeito pela figura paterna aliado à culpa pela morte do

pai, legitima a autoridade do líder.

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Muito embora Freud nunca tenha se dedicado diretamente a ao tema do carisma,

justifica-se o uso da Psicanálise em conjunto com a análise weberiana para esclarecer o

modo como essa dominação, que é verificada externamente, se desenvolve internamente

no indivíduo. Além da questão do carisma e da dominação carismática, explorada por

Hummel, McIntosh e Cavalletto, diversos outros temas constituem um prolífico campo

de pesquisa com respeito a complementariedade do pensamento weberiano com o

pensamento de Freud. Howard Kaye, por exemplo, explora em sua pesquisa,

Rationalization as Sublimation: On the Cultural Analyses of Weber and Freud, o conceito

de “sublimação”, presente no processo de racionalização proposto por Weber, sob a ótica

da teoria psicanalítica de Freud. Além desses autores, Carlos Henrique Pissardo, em

Angústia e Capitalismo em A Ética Protestante, busca suporte na teoria psicanalítica de

Freud para analisar a questão da angústia do puritano pela confirmação da salvação da

alma na conformação do “espírito” capitalista, em A Ética Protestante e o “Espírito do

Capitalismo.

Adicionalmente, é possível afirmar que a complementaridade, apontada pelos

autores citados, entre a Sociologia Compreensiva weberiana e a Psicanálise freudiana

representa um ponto vital para o desenvolvimento de uma teoria psicossocial. De fato,

pensadores importantes como Theodor Adorno, Norbert Elias, Herbert Marcuse, Paul

Ricoeur e Michel Foucault, inspiraram-se nas obras de Weber e de Freud para

desenvolverem um conhecimento da condição do homem moderno que não se restringe

nem às fronteiras da Sociologia e tampouco da Psicologia.

Deste modo, o objetivo desta tese foi de, não somente mostrar que a Psicologia é

parte integral da Sociologia Compreensiva de Weber e que suas carências podem muito

bem ser supridas pela teoria psicanalítica de Freud, mas também estimular novas

pesquisas sobre a fértil, porém pouco divulgada, relação entre a Sociologia weberiana e

a Psicologia, bem como a relação entre a Weber e Freud.

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