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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP) RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA 2018-2019 A CONSTRUÇÃO DE UM IMAGINÁRIO PAULISTA: AFFONSO TAUNAY COMO UM AGENTE DE MEMÓRIA (1890-1930) COLEGIADO: FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS NOME: LÍVIA BARANOWSKI TIERI / RA: 00194407 CURSO: HISTÓRIA-BACHARELADO TURNO: NOITE TURMA: 6º SEM. ORIENTADOR: PROF. DR. ALBERTO LUIZ SCHNEIDER SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA 2018-2019

A CONSTRUÇÃO DE UM IMAGINÁRIO PAULISTA: AFFONSO TAUNAY

COMO UM AGENTE DE MEMÓRIA (1890-1930)

COLEGIADO: FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS

NOME: LÍVIA BARANOWSKI TIERI / RA: 00194407

CURSO: HISTÓRIA-BACHARELADO TURNO: NOITE TURMA: 6º SEM.

ORIENTADOR: PROF. DR. ALBERTO LUIZ SCHNEIDER

SÃO PAULO

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ÍNDICE

PARTE 1 – RELATÓRIO DE ATIVIDADES

Sistemática adotada pelo professor na orientação...........................................2

Os objetivos alcançados, dificuldades encontradas e as estratégias usadas

para superá-las....................................................................................................2

Atividades acadêmico-culturais.........................................................................3

PARTE 2 – RELATÓRIO CIENTÍFICO

APRESENTAÇÃO............................................................................................5

I.CONTEXTO HISTÓRICO: REPÚBLICA VELHA (1890-1930).........................8

II. O OUTONO DA IMPERIAL ACADEMIA.......................................................15

III. AURI SACRA FAMES.................................................................................24

IV. ENTRE DESBRAVAMENTOS E INVASÕES, A GLÓRIA.........................36

V. NA REDE O HERÓI ENCONTRARÁ SEU FIM

- 1. O empirismo caiçara de Benedito Calixto....................................................42

- 1.1 O mar anuncia as boas-vindas do progresso............................................47

- 1.2 Um historiador à beira-mar........................................................................51

- 2. A contradição de Henrique Bernardelli........................................................57

- 2.1 A rebeldia de um pintor andarilho..............................................................58

- 2.2 Um bandeirante à la italiana......................................................................63

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................72

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................73

RESUMO DA PESQUISA................................................................................79

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PARTE 1 – ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

SISTEMÁTICA ADOTADA PELO PROFESSOR NA ORIENTAÇÃO

Ao longo da pesquisa a orientação do professor Alberto Luiz Schneider se

deu através de reuniões presenciais ou por troca de e-mails, onde foi discutido

amplamente todos aos caminhos que a pesquisa levaria, além da discussão

ampla da metodologia e da bibliografia. O orientador, desde o início da pesquisa,

estimulou a ampliação das fronteiras acadêmicas, propondo artigos e resenhas

referentes ao tema estudado. O interesse do orientador pela pesquisa foi algo

de extrema importância para a continuidade da mesma, sempre disposto a

agregar algo para nossas discussões e encontros.

Durante as férias, que englobou a maior parte do tempo de pesquisa, a

orientação se deu por meio de e-mails e encontros, onde fui estimulada a

produzir conforme a demanda cada vez maior que a pesquisa exigia.

O orientador me estimulou a projetar na presente pesquisa o meu futuro

acadêmico, visando, a partir deste tema, um mestrado. Dessa forma, fui

orientada da melhor maneira para que ampliasse o meu campo de visão,

explorando a capacidade do tema e entrando, cada vez mais, dentro de uma

sistemática que também englobava as margens do meu tema.

OS OBJETIVOS ALCANÇADOS, DIFICULDADES ENCONTRADAS E AS

ESTRATÉGIAS USADAS PARA SUPERÁ-LAS

Seguindo os objetivos propostos no projeto da pesquisa, houve um

avanço maior no que diz respeito à análise social da arte e a sua troca

cultural/pedagógica. Como será demonstrado na segunda parte do relatório,

aprofundei-me mais na relação entre Affonso Taunay, o grande responsável pela

perpetuação do mito bandeirante, e dois pintores de maior relevância para a

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pesquisa, Benedito Calixto e Henrique Bernardelli. Além de tratar do mecenato

e das trocas intelectuais entre os artistas e Taunay, dei maior enfoque na

retratista bandeirante dos dois artistas acima citados, evidenciando o caráter

polissêmico da imagem do bandeirante – o que é palpável nas obras analisadas.

Encontrei algumas dificuldades na pesquisa, como encontrar uma

historiografia que tratasse de um público operário e local – não apenas o público

estrangeiro. A superação desta dificuldade foi conquistada através da leitura de

bibliografias que tratassem do vínculo e entre as classes sociais e a consequente

predominância de uma classe não instruída, a qual poderia ser moldada

conforme a demanda imposta pela necessidade de legitimação da elite.

Outra estratégia adotada foi entender que a elite cafeeira não se

desassociava completamente de uma elite imigrada, que a disputa entre os dois

“lados” era, principalmente, no campo imagético e memorial. Desse modo, foi-

me de grande ajuda a pesquisa em jornais locais, como O Correio Paulistano,

que durante os primeiros dez anos da República Velha fora um espelho da nova

sociedade burguesa.

A pesquisa, portanto, também buscará o olhar da imprensa local sob as

interações entre classes e a arte – já que ela é o refletor direto das relações

sociais –, além das críticas atribuídas aos dois artistas estudados, Benedito

Calixto e Henrique Bernardelli. Para que possamos compreender a iconografia

como um meio de instrução, é necessário entender que a motivação da utilização

deste instrumento permeia todas as sociedades recém-instauradas.

ATIVIDADES ACADÊMICO-CULTURAIS

Monitoria no curso de História no 1º semestre de 2018 na disciplina

Fundamentos do Sistema Colonial da América Portuguesa, ministrada pelo

professor Alberto Luiz Schneider. A monitoria foi-me de extrema importância

para compreender a sociedade brasileira desde seu cerne, além do uso da arte

como propaganda, sobretudo, no Brasil Holandês.

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Produção e apresentação do artigo ‘Affonso Taunay como um agente de

memória’ no GT História e Memória: História dos Intelectuais coordenado pelo

professor Alberto Luiz Schneider na XVII Semana de História da PUC-SP.

Estágio no arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no 2º

semestre de 2018 que, apesar de fugir do tema da pesquisa, foi essencial para

o aprendizado no manuseio de fontes históricas, além do contato direto com

processos do século XIX, sendo muitos estritamente vinculados com a elite

cafeeira – que terá grande importância na presente pesquisa.

Idas constantes à Reserva Técnica do Museu Paulista, além de cursos

ministrados pelo Educativo do Museu, como o Encontros com o Acervo, uma

palestra sobre a tela Fundação de São Vicente de Benedito Calixto e outra sobre

a retratista bandeirante, ministrada por Paulo César Garcez Marins.

No primeiro semestre de 2019, participei – como aluna ouvinte – do curso

de pós-graduação da USP ministrado pela Prof. Dr. Lilia Moritz Schwarcz,

intitulado ‘Lendo Imagens’. Mesmo como aluna ouvinte, recebendo autorização

da própria Lilia, participei de todas as atividades do curso, como seminários,

debates e artigos. Já na PUC, fiz o curso optativo ‘A arte brasileira da “missão

francesa” ao modernismo’, ministrada pelo meu orientador Prof. Dr. Alberto Luiz

Schneider.

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PARTE 2 – RELATÓRIO CIENTÍFICO

APRESENTAÇÃO

Foi de grande importância como instrumento de pesquisa uma bibliografia

que abordasse o cenário artístico nacional naquele momento e suas vicissitudes,

tais como Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano de Caleb

Farias Alves e o artigo de Maraliz de Castro Vieira Christo para o Projeto História,

Bandeirantes na contramão da história: um estudo iconográfico.

Como a arte iconográfica é o enfoque principal da presente pesquisa, fez-

se necessário a adoção do princípio de História Social da Arte, que compreende

a arte com a sua dialética: ela é fortemente influenciada pela sociedade e, ao

mesmo tempo, a sociedade a influencia. Para melhor compreensão de uma

história social da arte e a correlação com a mentalidade e a consequente criação

de uma memória bandeirante, baseei-me fortemente nas análises de Michael

Baxandall em Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros, que

entende a arte como um “depósito de relações sociais” (BAXANDALL, 2006, p.

21), o que elucida o papel crucial que o meio iconográfico teve na formação de

uma imaginário regional; outros historiadores da arte, como Enrico Castelnuovo

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em Retrato e Sociedade na Arte Italiana: Ensaios de História Social da Arte, E.

H. Gombrich em Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação

pictórica e Giulio Carlo Argan em História da arte como história da cidade dão

ênfase no papel do observador na compreensão e recepção das obras, que são,

antes de tudo, o espelho do meio cultural em que está inserido. Assim como

aprofundei na História Social, também me debrucei na Escola Frankfurtiana com

Walter Benjamin.

Michael Baxandall também foi crucial para analisarmos, aqui, o papel do

mercado artístico nas encomendas das obras para o Museu Paulista, realizadas

por Affonso Taunay. O autor destaca o caráter “mecenático” do mercado

artístico, o que nos leva a situar Taunay como um grande mecenas – além de

um cliente. Na melhor acepção do mercado artístico nacional da época e,

principalmente, no mecenato estabelecido entre Taunay e os artistas

contratados, foi de grande importância os trabalhos de Michelli Monteiro, Ana

Cláudia Fonseca Brefe e Carlos Rogério Lima Júnior, que em seus trabalhos

elucidam a estruturação do Museu Paulista para as comemorações do

centenário de 1922, que movimentou a opinião pública da época, além de ser

um marco para o regionalismo paulista.

No âmbito da construção de um imaginário bandeirante, foi-me de grande

relevância a tese de mestrado de Thais Chang Waldman Entre batismos e

degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo, que, com maestria, traça

um (des)caminho da memória bandeirante e o entendimento da figura

bandeirante até os dias atuais, expondo o fato de que a história paulista (porque

não nacional?) ainda é fortemente influenciada pela noção do bandeirante herói

e como essa noção é contestada por novas mentalidades e concepções, seja no

meio artístico, literário ou informal. Outros trabalhos importantes para a

assimilação do tema foram os de Lúcia Klück Stumpf, Arthur Valle, Paulo

Cavalcante Oliveira Jr., Vera Lúcia N. Bittencourt, Cláudia Valadão de Mattos,

Lourenço Dantas Mota e Karina Anhezini. Destaco também o artigo de Paulo

Cézar Garcez Marins O museu da paz: Sobre a pintura histórica no Museu

Paulista durante a gestao Taunay e o capítulo de J. H. Rodrigues em História

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Combatente, ambos cruciais para entender como Taunay orquestrou as

encomendas para o museu.

Como o enfoque principal da pesquisa recai em Benedito Calixto e

Henrique Meirelles e as diferentes concepções e representações dos

bandeirantes, saliento o trabalho de Caleb Farias Alves e a sua biografia de

Benedito Calixto, que afirma o início modesto de Calixto nas artes e sua

desconexão com a Academia, algo não usual entre os artistas de maior relevo

da época. Para as pesquisas sobre Henrique Bernadelli, além de utilizar

sobremaneira os artigos de Maraliz de Castro Vieira Christo, embasei-me

também nos artigos de Camila Carneiro Dazzi, sendo essas autoras as únicas a

estudar, até hoje, as obras de Henrique Bernardelli.

Para a contextualização do tema foi-me de grande valor os capítulos de

Elias Thomé Saliba e Suely Robles Reis de Queiroz em História da Cidade de

São Paulo (org. Paula Porta), além dos trabalhos de Lilia Moritz Schwarcz, Silvio

Luiz Lofego, Warren Dean, Ana Paula Cavalcanti Simioni, Nestor Goulart Reis

Filho e Roseli Maria Martins D’Elboux. Para contextualizar a questão bandeirante

e sua mentalidade, baseei-me, principalmente na obra da historiadora Adriana

Romeiro ‘Paulistas e emboabas no coraçao das minas: ideias, práticas e

imaginário político no século XVIII’, onde, em uma brilhante pesquisa, nos

elucida acerca da Guerra dos Emboabas e da lenda negra que rondava os

paulistas. Assim como sua obra, outras também foram de grande importância

para esta pesquisa como ‘Capítulos de história intelectual: racismos, identidades

e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960)’ de Alberto Luiz Schneider

e ‘Heroísmos, sedições e heresias: a construção do ufanismo e do ressentimento

nos sertões da capitania de São Paulo (1768-1774)’ de Michel Kobelinski, assim

como os escritos do jesuíta Antônio Ruiz de Montoya.

As fontes usadas para a presente pesquisa são as telas O mestre de

campo Domingos Jorge Velho e seu lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu,

de Benedito Calixto e Ciclo da caça ao índio, Os bandeirantes e Os últimos

momentos de um bandeirante, todas de Henrique Bernadelli, assim como os

periódicos Correio Paulistano e Revista Illustrada.

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I. CONTEXTO HISTÓRICO: REPÚBLICA VELHA (1889-1930)

O progresso é uma via expressa em construção, com apenas um caminho

para um trem sem vagão para terceira classe. Para seguir seu rumo é preciso

destruir tudo aquilo que impede sua passagem, afinal, o desenvolvimento é

autodestrutivo. Porém, engana-se quem acredita que ele é repentino e inócuo.

Este conceito ilustrado não desabrocha em terras tupiniquins apenas no final do

século XIX, mas nos acompanha desde o início do Império, dando tema para as

discussões entre liberais e conservadores no Parlamento.1 O progresso, que

1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. História do Brasil Nação: 1808-2010. Vol.3. A construção nacional:

1830-1889. Rio de Janeiro. Objetiva. 2013. Parte 2: A vida política, por José Murilo de Carvalho. P. 83-129.

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antes tinha como maior significado a substituição da escravidão pelo trabalho

assalariado2 agora era sinônimo de um novo regime, moderno, descentralizado,

que refletia a ascensão econômica de uma elite empreendedora. Esta elite

empreendedora, a elite cafeeira, estava concentrada em uma região que tomava

o protagonismo para si: São Paulo.

A pequena vila paulista despontou seu caminho para a metrópole ainda

no século XVIII, quando, finalmente, se insere no mercado nacional e, apesar

das dificuldades de um clima não favorável e a muralha natural que era a serra

do mar, produz-se cana e exporta-se açúcar.3 Contudo, essa inserção no

mercado nacional não será de grande vulto, mas servirá para preparar o terreno

para o plantio do café, que já nesta época era plantado em terras fluminenses.

A medida em que a demanda pelo café aumenta na Europa, o café vai se

tornando um dos meios mais eficazes para se alcançar a riqueza; do Vale do

Paraíba fluminense ele segue para Minas Gerais e, finalmente, para o Oeste

Paulista a partir de 18504. No Vale do Paraíba paulista o café encontra o seu

auge, em um solo fértil com um clima apropriado.

O aumento do consumo do café possibilitou o investimento de capital

estrangeiro no país, principalmente britânico, que, interessado nas exportações,

financia uma estrada de ferro que facilitaria o transporte e a exportação do café

para o porto de Santos, agilizando, desse modo, o comércio internacional.5 A

estrada de ferro Santos-Jundiaí principiou a mudança tecnológica em que São

Paulo passaria a partir deste momento. Sendo assim, a modernização da cidade

teve seu ponto de partida no governo de João Teodoro Xavier de Matos (1872-

1875), que modernizou a cidade conforme os moldes europeus, alargando ruas,

instalando iluminações a gás, pavimentando ruas e calçadas, demolindo ruínas,

2 O fim da escravidão foi tema para disputas entre liberais e conservadores até o final do Império.

Para os liberais, a escravidão significa o atraso do Brasil em relação ao cenário econômico mundial. Para saber mais sobre a questão ver: ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 3 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 1889-1954. In: PORTA, P. (org.). História da cidade de São Paulo. 3 v. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (terceiro volume), p. 15. 4DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo: 1880-1945. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1971, pag. 9. 5 Idem, pag. 10.

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etc. A cidade enfim tentava se desvencilhar dos ares de vila, que era apenas

marcada pela estadia dos alunos da Faculdade de Direito, e vislumbrava a

Metrópole, ainda longínqua, mas cada vez mais tangível graças às riquezas que

a indústria cafeeira proporcionava para a elite paulista.6

Contudo, se a possibilidade da transformação de São Paulo em metrópole

ocorreu, sobretudo, a partir de 1870, a realização deste intento ocorreu

efetivamente após a Proclamação da República. Inúmeros motivos deram força

a cidade nesta época, mas talvez a principal fora a fragmentação do polo político

e econômico, que antes era situado na Corte, ou seja, o Rio de Janeiro, que se

torna apenas o polo político, deixando o econômico quase exclusivamente à São

Paulo. Desta forma, os principais agentes do "Progresso da Nação" eram

paulistas e atuaram em prol do principal motriz do progresso, a República — que,

aliás, nasceu em solo paulista7. Estes agentes faziam parte da elite paulistana,

elite essa que detinha parte considerável dos meios econômicos e comerciais

do país, quase inteiramente dependente do café.

Se o advento da estrada de ferro possibilitou o aumento do comércio

cafeeiro e, consequentemente, a urbanização proveniente de seu capital, com a

queda do Império a ascensão paulista se deu de forma mais acentuada e

hegemônica. A medida em que São Paulo ia se tornando um polo econômico, a

região nordeste ia entrando, cada vez mais, em acentuada decadência, assim

como o Vale do Paraíba fluminense. Porém, o poder econômico da elite paulista

cafeeira ainda não era um poder político, já que, mesmo decadente, a capital

imperial ainda era a mandante política, com seu caráter centralizador, o que

impedia a autonomia da região paulista. Esta era uma das causas da

insatisfação da elite paulista, que acarretou em um forte desejo de mudança, de

progresso, que era representado por um regime que daria fim à centralização

governamental e possibilitaria a maior participação de São Paulo no cenário

econômico e político do Brasil. Assim sendo, essa elite insatisfeita, junto com um

6 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 1889-1954. In: PORTA, P. (org.). História da cidade de São Paulo. 3 v. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (terceiro volume), p. 15. 7 A criação do primeiro partido republicano, o PRP, se deu na Convenção de Itu, em 18 de abril de 1873.

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Exército também insatisfeito, foi a grande responsável pela queda do Império na

madrugada do dia 15 de novembro de 1889.8

Segundo Warren Dean, com a queda do Império e a consequente

descentralização, o Estado paulista foi capaz de reter para si os lucros

provenientes de um comércio que, a partir daquele momento, não possuía mais

o entrave rígido da coroa. Ainda segundo o autor, outros fatores possibilitaram o

crescimento da economia cafeeira em São Paulo a partir de 1890, como a

abolição da escravidão em 1888, que permitiu uma mão-de-obra mais eficiente

e produtiva, e uma praga que atingiu o Ceilão, principal concorrente de São

Paulo, e destruiu quase que totalmente a produção cafeeira.9 A prosperidade

econômica de São Paulo refletiu diretamente na política. Após o governo militar

de transição, os três próximos presidentes civis do Brasil foram paulistas,

alternando, depois, com políticos mineiros, caracterizando a política “café com

leite”.10

As mudanças que ocorreram na cidade a partir deste momento, buscaram

refletir o novo status de metrópole. Mesmo com as reformas de urbanização da

década de 1870, São Paulo ainda possuía ares de vila colonial; é apenas a partir

das décadas de 1880 e 1890 que a cidade passa por uma intensa transformação,

em vias de, cada vez mais, se europeizar11. As construções de taipa e pilão, tão

características do Brasil colônia, são demolidas e dão lugar aos modernos

arranha-céus, em uma velocidade espantosa. Os imigrantes, que já nessa época

representavam a metade da população paulista, trouxeram para cá métodos de

construção e estilo arquitetônico europeu, sendo os maiores responsáveis pela

nova feição da cidade.12

8 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 1889-1954. In: PORTA, P. (org.). História da cidade de São Paulo. 3 v. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (terceiro volume), p. 15. 9 DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo: 1880-1945. Tradução de Octavio Mendes

Cajado. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1971, pag. 10. 10 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 1889-1954.

In: PORTA, P. (org.). História da cidade de São Paulo. 3 v. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (terceiro volume), p. 17 11REIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo e outras cidades: produção social e degradação dos

espaços urbanos. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1994, p. 23 12 Ibidem, p. 22

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12

Segundo Nestor Goulart Reis Filho,

As mudanças vividas no Estado, ao longo do último século,

podem ser bem exemplificadas pelo que se passou na Capital.

Cada cidade tem a sua fisionomia, a sua feição, como as

pessoas tem um conjunto de traços com os quais se constrói a

sua identidade, o seu caráter. Mas uma fisionomia se transforma

com o tempo. Em São Paulo, esse caráter se perde com

facilidade e as novas gerações se perguntam qual é a nova

fisionomia, qual é o caráter da cidade.13

A facilidade com que a cidade se reconstrói causa a sensação de

progresso e a descaracterização da cidade oitocentista, que é profundamente

modificada, afim de se encaixar nos moldes europeus. Ruas foram alargadas e

pavimentadas, avenidas foram criadas, bairros foram planejados, e, assim, a

cidade se expandia cada vez mais – porém, se dividindo. Com a chegada de

imigrantes, a expulsão de trabalhadores do centro e a construção de vilas

operárias, a periferia foi tomando forma. Bairros como o Brás e a Freguesia do

Ó são tomados por cortiços e casebres pobres, que abrigam, muitas vezes, mais

de uma família em um cômodo, em um rico contraste com bairros planejados

como Higienópolis e Campos Elíseos, famosos por suas mansões.14

Apenas o prestígio econômico e a reestruturação urbana não eram o

suficiente para a cidade, e muito menos para a elite. Era preciso algo mais sólido,

concreto e mítico. O papel dos paulistas na memória coletiva antes do século XX

sempre fora o de coadjuvante; eles nunca foram uns grandes senhores de

engenho, por isso nunca foram de grande importância no cenário político e

social. Consequentemente, eram vistos como simplórios, rudes, mamelucos e

distante de qualquer ditame metropolitano. Estas alcunhas jamais poderiam ser

o significado de progresso e muito menos poderiam ser atreladas aos grandes

Barões do Café. Os paulistas precisavam de um começo épico que justificasse

o presente glorioso.

13 Ibidem, p. 17 14 Ibidem, p. 27

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13

A identidade de São Paulo se fez, então, a partir desse

ofuscamento da memória que, senão eliminou, turvou bastante

a transparência do passado, selecionando imagens consensuais

que foram se tornando cada vez mais opacas à percepção

social.15

Sendo assim, a construção de um passado glorioso estava na ordem do

dia. Logo após a Guerra do Paraguai (1864-1870) o país entra em uma profunda

crise econômica e política – que será uma das causas da queda do Império em

1889 –, que resultará, também, em uma crise de identidade. O país clamará pela

autonomia cultural regional e esse fenômeno possibilitará uma mudança de olhar

historiográfico, desviando do litoral e focando no sertão inóspito e, até então,

pouco explorado.16 Desse modo, essa nova manifestação historiográfica e o

crescimento do prestígio paulista acarretou na valorização da nobiliarquia

paulistana, como a republicação da obra de Pedro Taques de Almeida

Nobiliarquia Paulistana Historica e Genealogica, que tivera Affonso d'E. Taunay

como grande responsável. Taunay, filho do Visconde de Taunay e um historiador

devotado, não fora unicamente responsável pela revalorização da nobiliarquia

paulistana, mas também fora o grande responsável pela criação e,

principalmente, pela evocação do mito bandeirante, o que mais tarde se tornaria

sinônimo de paulista.17

O mito se valia a partir de que se tornava razão de ser do paulista

moderno, uma justificativa que englobava não apenas um passado regional, mas

também um passado nacional, já que "a história de São Paulo é a História do

Brasil"18. Quando antes ser paulista era ser bárbaro, agora era ser herói. O papel

de coadjuvante fora deixado para trás, dando lugar ao protagonismo bandeirista;

o papel de São Paulo no cenário nacional não apenas se restringia ao presente,

15 SALIBA, Elias Thomé. História, memorias, tramas e dramas da identidade paulistana. In: História da cidade de São Paulo, vol. 3. Paz e Terra, São Paulo, 2004 p.570 16 Este fenômeno tem como grande responsável Capistrano de Abreu (1853-1927). O

revisionismo representava o enfoque do povoamento e das bases econômicas e sociais para a compreensão da história nacional, possuindo base positivista e regionalista. 17 Affonso D’Escragnolle Taunay foi um importante historiador das bandeiras paulista e filho do

Visconde de Taunay. 18 Lema do IHGSP.

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mas se estabelecia no passado. O paulista só dava impulso a modernização no

país pois no passado fora ele que expandira as fronteiras e criara a Nação de

fato, pois enquanto o Nordeste açucareiro se limitava a abastecer o comércio de

Portugal, os bandeirantes, ou seja, os paulistas, criavam geograficamente o

Brasil.19

Para a nova elite dirigente – antes de tudo, uma elite cafeeira e, grosso

modo, “quatrocentona” – era necessário criar barreiras e distinções

paulatinamente maiores com a elite imigrante que crescia na cidade, uma elite

que se diferenciava dos trabalhadores também imigrantes pela riqueza que, na

maioria das vezes, provinha do comércio. Esta elite imigrada – como Francisco

Matarazzo e Rodolfo Crespi – foi responsável pelas primeiras grandes indústrias

nacionais que, por sua vez, foram as responsáveis diretas pela criação da classe

operária brasileira.20 Com a criação das grandes indústrias e com a vinda de

mais trabalhadores para as fábricas, a hegemonia da elite cafeeira foi perdendo

força a medida em que seu capital foi perdendo espaço para os novos

empreendimentos capitalistas. É neste âmbito que a narrativa bandeirante é

inserida: ela não servia apenas para evocar uma memória perdida – ela era um

poderoso instrumento de instrução e de perpetuação do domínio de uma

classe.21 A constituição imperial, após a Reforma Pedreira, garantia o ensino

primário público, porém, este ensino era restringido à uma parcela pequena da

população, ou seja, à elite22. A verve positivista do novo regime, porém,

impulsionava a atuação exclusiva do governo na educação e a sua maior

inclusão, desse modo, escolas públicas foram abertas e a instrução foi cada vez

mais valorizada – mas, apesar da maior inclusão em comparação à dados

19 MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. Vol.2. São Paulo, Senac, 2002. Afonso d'Escragnolle Taunay - História geral das bandeiras paulistas, por Wilma Peres Costa, p. 97-121 20 DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo: 1880-1945. Tradução de Octavio Mendes

Cajado. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1971, pag. 19. 21 LOFEGO, Silvio Luiz. IV Centenário da Cidade de São Paulo: uma cidade entre o passado e

o futuro. São Paulo: Annablume, 2004, p.26 22 SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857): e a

constituição do espaço social do artista. Cadernos Cedes, ano XX, no 51, novembro/2000, p. 103-118.

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imperiais, o ensino primário, médio e, sobretudo, superior, ainda eram restritos

a condições de classe social.23

A instrução não se faz somente nas escolas ou nos livros didáticos, ainda

mais quando é preciso alastrar este conhecimento não só para a parcela

alfabetizada dos habitantes. Durante a construção da identidade nacional no

Segundo Reinado (1840-1889) um dos instrumentos mais eficazes para a

criação de uma memória foi a iconografia.24 Por meio dela um passado é criado,

reivindicado e alastrado. Para este fim instituições, como a Academia Imperial

de Belas Artes (AIBA) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),

serviram de base para tal intento, formando e financiando os agentes

necessários. Artistas como Victor Meirelles e Pedro Américo ajudaram a criar a

épica nacional com os seus grandes quadros históricos, principalmente após a

Guerra do Paraguai, que evidenciavam e propagandeavam as glórias do

Império.25 Isto não se daria de outra forma com São Paulo. Não mais a nação

precisava ser construída, mas, sim, os agentes que de fato a construíram. Deste

modo, as elites paulistas utilizarão a iconografia como, antes de tudo, um meio

de representação, onde, segundo Roger Chartier, a realidade social é construída

e orquestrada.26 Os bandeirantes, ou seja, os grandes construtores da nação,

serão os antepassados diretos desta elite cafeeira, que, a partir daquele

momento, terá uma justificativa heroica para governar não só a cidade, mas o

país.

De acordo com Michelli Monteiro,

A pintura histórica tornava-se, assim, um poderoso instrumento

capaz de legitimar a posição ocupada por essas elites,

constituindo-se como “lugar de memória”, já que tinha o poder

23 Ibidem, p. 21. 24 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos naturais.

Sociol. Antropol. (online). Vol. 4, n.2, pp. 391-431 25 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 120 26 CHARTIER, Roger. O mundo como representaçao. Estudos Avançados, 11 (5), 1991.

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de idealizar cenas do passado, de modo a poderem ser

consideradas dignas de compor o imaginário da sociedade.27

Foi em 1922 que o bandeirismo tomou mais força. Com o centenário da

Independência — e antes com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) —, a

necessidade do fortalecimento da identidade cultural ficara mais forte e mais

precisa. Era preciso separar e institucionalizar o regionalismo, deixar explícito o

papel de cada região para a criação da Nação, deixando claro, assim, que o

Brasil se libertara da metrópole portuguesa unicamente por causa de seu povo.

Contudo, apenas um território poderia se sair soberano; e, se libertando das

amarras da Corte, o Rio de Janeiro perdia o posto para São Paulo, que agora

representava o progresso que regia o país. O impacto da urbanização e do

desenvolvimento econômico da cidade gerou na elite política um orgulho

regional, que rapidamente se transformara em identificação coletiva.28

Se a classe dirigente já possuía o seu meio de dominação, era preciso um

lugar que o divulgasse e o perpetuasse. Este lugar era um velho conhecido da

cidade. O Museu Paulista que, desde 1895, funcionava como um museu de

história nacional passava por uma profunda reestruturação com a nomeação de

Affonso d'E. Taunay em 1917 para diretor do museu, escolhendo-o para narrar

a história da cidade que, antes de tudo, era o elo da história nacional. Afinal, o

Brasil era aquilo que havia se tornado pois São Paulo, com suas bandeiras e

próceres, possibilitou tal futuro.29 Com as comemorações da Independência em

1922, Taunay cria uma narrativa dentro do Museu que, até os dias atuais, é

reivindicada e revisitada. A epopeia bandeirante caracterizará uma população

que, a partir da Revolução de 1932, será inteiramente descendente dos

sertanistas. A épica, enfim, estava criada e enraizada.

27 MONTEIRO, Michelli. Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva: trajetórias de uma imagem urbana. Dissertação de mestrado defendida na FAU/USP – 2013, p. 5 28 OLIVEIRA JR, Paulo Cavalcante. Affonso d'E. Taunay e a construção da memória bandeirante. IHGB, Rio de Janeiro, junho 1995. pag. 15 29 ABUD, Katia Maria. O Sangue Intimorato e as Nobilíssimas Tradições (a construção de um

símbolo paulista: o bandeirante), São Paulo: Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP, 1985. P. 132

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II. O OUTONO DA IMPERIAL ACADEMIA

Antes de tudo, a Nação é um projeto. Um projeto que demandou a

submissão de artistas à um tema recém-explorado naqueles meados de

oitocentos: o indianismo30. Da literatura para as artes plásticas, a temática foi

altamente popularizada com o intuito de vangloriar a verve guerreira e egrégia

do indígena, buscando avidamente um passado nacional autêntico que

distinguisse e dignificasse a história do Brasil31.

O projeto foi amplamente financiado pelo governo imperial e o instrumento

mais eficaz da produção dessa memória foi a Academia Imperial de Belas-Artes

(AIBA). A seleta Academia, decretada ainda por D. João VI em 1816, desde seu

início conturbado teve a missão de tornar a ex-colônia civilizada32. As artes

plásticas, além de ser um meio pedagógico eficaz, era um poderoso símbolo da

nobreza.33 Artistas eram contratados por toda a corte europeia para fazerem

parte do staff real, popularizando a imagem de um monarca e de sua família,

fazendo com que a arte se tornasse, também, um instrumento diplomático. Por

este motivo, o ofício era amplamente incentivado pela coroa, que fundava e

mantinha academias de pintura oficiais, além de Salões de Exposição e Galerias

Reais. Os Bragança não eram alheios a este costume; em 1816 desembarca no

Rio de Janeiro a Missão Artística Francesa, responsável por inserir a educação

artística nessas terras, administrando e moldando a Academia.34

30 O movimento caracterizado como indianismo tinha como pressuposto a revalorização da

origem indígena da recém-criada Nação. Este novo olhar sobre o passado nacional teve como estopim com a publicação de Primeiros Cantos (1846) de Gonçalves Dias. Sobre indianismo, ver: PADILHA, Solange. O imaginário da nação nas alegorias e indianismo romântico no Brasil do século XIX. II Congresso de Patrimônio Histórico, 2002. 31 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos naturais. Sociol. Antropol. (online). Vol. 4, n.2, pp. 391-431 32 SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857): e a

constituição do espaço social do artista. Cadernos Cedes, ano XX, no 51, novembro/2000, p. 103-118. 33 SCHLICHTA, Consuelo Alcione Borba Duarte. A pintura histórica e a elaboração de uma

certidão visual para a nação no século XIX. Tese de doutorado. 34 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível sob o olhar do "outro": Jean Baptiste Debret e o Rio de Janeiro (1816-1831). Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, Vol.4, 2007.

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Apesar da tentativa de uma legitimação da coroa portuguesa no Brasil

através das artes é apenas no Segundo Reinado, mais especificadamente com

a Reforma Pedreira e com a gestão de Araújo Porto Alegre (1854-1857), quando

o governo central reestrutura a formação pública, que a Academia de Belas-

Artes vai se moldar a estrutura clássica e se tornará um apêndice da propaganda

imperial35. Os alunos, então, seguiam o molde; aprendiam a desenhar de forma

geométrica, estrutural e matemática – costumes não esquecidos de uma

inclinação neoclássica. Ingressavam prematuramente nos estudos e eram

preparados para o grande triunfo da carreira: uma obra vencedora do Salão

Anual que lhes conferiria, além do prestígio, o financiamento dos estudos na

Europa – pagos, com muito prazer, aliás, pelo Imperador36.

(...) a despeito do desejo de se igualar as nações “cultas” da

Europa, como a França, as elites do período não estavam

acostumadas a admirar, ou comprar, obras de artes. Restava

aos artistas e alunos da Aiba a esperança de que suas obras

agradassem a D. Pedro II, praticamente o unico comprador das

produções da Academia. A raridade das encomendas e a falta

de publico tornavam imperioso que alunos, ex-alunos e até

professores da Academia realizassem outras atividades,

alternativas a atividade artística, para sobreviver.37

Não possuindo um mercado ativo, os pintores eram reféns da Academia

e do Império. Destacavam-se aqueles que ganhavam o prêmio, com o destino

para a Académie Julian38, em Paris, onde aprendiam as melhores técnicas

francesas. Quando retornavam ao Brasil, os que davam sorte, viravam retratistas

de uma nobreza fissurada na cultura europeia, ou, recebiam encomendas do

35 Idem. 36 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 85. 37 SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857): e a

constituição do espaço social do artista. Cadernos Cedes, ano XX, no 51, novembro/2000, p. 103-118. 38 Para ver mais sobre a Académie Julian, ver: SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão: pintora – a Académie Julian e a formação das artistas nos finais do século XIX em Paris. Caderno Pagu, nº 15, 2000.

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governo central – retratos ou pinturas históricas39. Desta forma, o mercado

artístico germinava; utilizando o conceito de troc, de Michael Baxandall,

podemos caracterizar a AIBA como um mercado intelectual e o governo central

como um mecenas, onde as trocas eram bilaterais e, sobretudo, intelectuais. O

mercado faz parte do contexto cultural do artista, assim como do mecenas40.

Uma crise atingiu a Academia nas décadas de 1870 e 1880. Esta crise foi

fortemente marcada pelo debate da Exposição Geral de 1879, onde a crítica se

dividiu entre Victor Meirelles e sua Batalha dos Guararapes e a Batalha do Avaí,

de Pedro Américo41. Uma parte da crítica ficou ao lado de Meirelles, que era a

fidedigna projeção da Academia, com seu traçado neoclássico e estático, e a

outra, com uma inclinação mais moderna (não podendo, ainda, enquadrar em

uma visão naturalista) que priorizava a cor e o movimento42. Era o início da

decadência da instituição e, a posteriori, do regime imperial.

Por conseguinte, a crise da AIBA seguiu à do Império, e, após as grandes

encomendas sobre a Guerra do Paraguai, feitas à Meirelles e Américo, o

mecenato do governo central diminui drasticamente, assim como o seu

financiamento43. Com a Proclamação da República, não se sabe o destino da

Academia. O maior propósito da instituição de perpetuar a imagem do Império já

não mais existia; qual a importância, então, ela teria sob o novo regime? Esta

foi, sem dúvida, a principal indagação da época – o destino não apenas da

Academia, mas, também, do mercado artístico. Com a mudança de Academia

para Escola, há uma fragmentação entre instituto e mercado. A ENBA não deixa

de cumprir seu papel como formadora artística, porém, é desassociada ao

mundo mercadológico. A função que antes era ocupada pelo Estado passar a

ser ocupada por instituições burguesas, que estavam, de fato, no poder.

39 SCHLICHTA, Consuelo Alcione Borba Duarte. A pintura histórica e a elaboração de uma

certidão visual para a nação no século XIX. Tese de doutorado. 40 BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. Companhia

das Letras, São Paulo, 2006, p. 89 41 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 135. 42 Idem, p. 148 43 MIGLIACCIO, Gustavo Barreto de. “Arte no Brasil entre o Segundo Reinado e a Belle époque”.

In: BARCINSKI, Fabiana (org.). Sobre Arte Brasileira: da pré-história aos anos 60. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 174-230.

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Com a desfragmentação do poder central, o Estado virou federativo; as

antigas províncias, agora cidades que demandavam uma memória, viraram, por

si só, mercados ativos que disputavam o imaginário nacional. Após os primeiros

anos de instabilidade, cresce a demanda artística, consequência da construção

em massa pelo Brasil de edifícios públicos que seguiam uma tendência

decorativa importada da França e da Alemanha, onde a decoração interna era

composta de grandes painéis e obras que relatavam a história da cidade,

principalmente de sua fundação44. Paralelamente, cresce o mercado informal,

que é acompanhado da abertura de Galerias de Exposição, no Rio de Janeiro e

em São Paulo. Este mercado informal é o fruto da maior concentração de renda

de uma burguesia cafeeira, que passou a tratar a arte não apenas como um

produto de permuta, mas, principalmente, passou a vê-la como uma

demonstração de riqueza e poder45.

Apesar do crescimento das incumbências privadas, as maiores

aquisições ocorrerão na esfera pública, com o objetivo maior da criação da

epopeia bandeirante.46 Não há como separar totalmente, porém, as duas

esferas, pública e privada, pois os interesses eram mútuos e os objetivos

intrinsecamente ligados. A aristocracia paulista, cafeeira, era a gestora, de fato,

da grande metrópole; sendo uma classe dominante, em todo seu sentido, ela

possuía todos os meios para se perpetuar e conseguir aquilo que mais almejava:

respeito e prestígio. Desse modo, trabalhou para construir uma imagem que

pudesse evocar o paulista como construtor empírico do Brasil, e nada mais

acertado do que o papel do paulista do século XVI, aquele que de fato aumentou

as fronteiras do domínio português. Este paulista ancestral fora inventado e

reinventado, dando forma ao destemido e bravo Bandeirante, que com sua

coragem e destreza representava tão bem o paulista moderno.

44 VALLE, Arthur. “Pintura decorativa na 1a Republica: Formas e Funções”. In: 19&20. Rio de

Janeiro, vol. II, no 4, outubro de 2007. 45 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 150. 46 OLIVEIRA JR, Paulo Cavalcante. Affonso d'E. Taunay e a construção da memória bandeirante. Rio de Janeiro, 1995, p. 131

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Já criada na historiografia, o mito bandeirante precisava de um palco tão

glorioso quanto seu pretexto. O palco já estava montado nas colinas do Ipiranga

e já abrigava, desde sua inauguração em 1895, uma grande pintura histórica –

Independência ou Morte!, de Pedro Américo – e outras obras históricas, de

menor porte, como pinturas de Benedito Calixto, que tratarei mais adiante.

Porém, a gestão de Hermann Von Ihering (1894-1916) não serviria para o

intento: apesar de aceitar obras de valor histórico, a sua gestão era pautada,

sobremaneira, em história natural. Com a sua demissão, o Museu Paulista se

tornará, além de um museu histórico, uma prova do passado glorioso paulista,

onde telas encomendadas representavam o mito bandeirante, narrando seus

grandes feitos e dispostos de modo que conseguissem passar a informação

necessária para o grande público47. O grande responsável pela encomenda

destas obras e seu arranjo no espaço do museu foi Affonso d'E. Taunay que,

eleito diretor do Museu Paulista em 1917, assumiu o cargo com um objetivo

definido, que era o de decorar e rearranjar o museu para as comemorações do

centenário da Independência em 1922.

A invenção do passado nacional, com uma origem determinada,

marcos históricos precisos, heróis e símbolos memoráveis se

apresenta como poderoso instrumento pedagógico capaz de

forjar uma identidade nacional intrinsecamente comprometida

com os interesses das elites políticas e intelectuais paulistas.

Deste modo, as camadas dirigentes de São Paulo vislumbram,

no universo cultural a ser representado no Monumento do

Ipiranga, a possibilidade de se auto afirmarem através da

construção de um campo simbólico.48

Affonso Taunay fora indicado para o cargo de diretor do Museu por

Washington Luís, um político que estava ligado diretamente à oligarquia

cafeeira49. Com sua nomeação ao cargo, Taunay ficara diretamente incumbido

47 BREFE, A.C. Um lugar de memória para a nação: o Museu Paulista reinventado por Affonso d'Escragnolle Taunay. São Paulo, 1999, p. 67 48 Idem, p. 101. 49 OLIVEIRA JR, Paulo Cavalcante. Affonso d'E. Taunay e a construção da memória bandeirante.

IHGB, Rio de Janeiro, junho 1995, p. 17

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da tarefa de reorganizar o museu para o Centenário da Independência, que havia

muito estava sendo planejado por todo país. Apesar de ser uma comemoração

nacional, esta era a oportunidade de ascender São Paulo aos olhares da nação:

a comemoração perfeita para demonstrar, de fato, que a cidade fora central para

todos os acontecimentos que levaram a expansão geográfica e a emancipação

nacional. Em suma, o Brasil apenas era o Brasil de fato porque os bandeirantes

– diga-se, os paulistas – possibilitaram sua construção empírica50. Este discurso

foi o pilar da nova organização do “novo” Museu Paulista, que seguirá uma

narrativa através do novo acervo histórico, que será guiado pela iconografia.

Dessa forma, o Museu será fechado para a preparação da comemoração

e, durante este tempo, o governo disponibilizará uma verba para que a nova

direção dispusesse o novo arranjo museológico. Taunay que, segundo J. H.

Rodrigues, seguia “a corrente do revisionismo factual, mais especificamente,

factualismo apaixonado e factualismo ideológico” (RODRIGUES, p. 241), além

de, intrinsecamente, seguir um factualismo religioso, provinha de uma linha

metódica e usava o documento como fonte primária e fundamental para a

validação da “verdade”; o seu método positivista refletiu na encomenda e na

produção das obras que fariam parte do novo acervo. Consequentemente, tratou

a imagem como um documento51. Em sua organização, escolheu os

personagens da gloriosa narrativa – sempre prezando pela veracidade dos

personagens, que eram frutos, boa parte, de uma pesquisa genealógica e de

documentos que podiam ser retirados de atas da Câmara, de documentos régios

e de fotografias52.

Escolhido os personagens, inicia-se a construção da imagética popular.

Taunay atua como um mecenas moderno, seguindo a mesma relação de troc,

defendida por Baxandall: seleciona os artistas aos quais negociar as obras e

influencia diretamente na produção das imagens como um veículo de troca

50 Ibidem, p. 67. 51 ANHEZINI, Karina. Um Metódico a Brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay

(1911-1939). São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 31 52 Idem.

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intelectual53. A iconografia, consequentemente, se tornou um meio de resgate

de memória que “quando não era achada era encomendada”54, de forma que a

imagem encomendada seguisse o padrão determinado para a caracterização do

bandeirante, ou seja, a representação de um paulista europeizado. Portanto, o

bandeirante era um molde; a sua caracterização seguia uma historiografia

advinda do final do século XIX e que transpassava o milênio, sendo fortemente

desenvolvida pelo IHGSP, ao qual Taunay era membro e fiel “seguidor”55. Como

falaremos mais adiante, a primeira representação do bandeirante no Museu

Paulista foi com a obra O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu lugar-

tenente Antônio Fernandes de Abreu de Benedito Calixto, adquirida pelo museu

em 1903 ainda na gestão Ihering. Esta será a representação perpetuada, o

bandeirante como um homem branco europeu (ignorando as origens indígenas),

com trajes cosmopolitas e guerreiros, portanto sua arma e seu elmo56.

Os artistas determinados por Taunay eram, em sua maioria, advindos da

Academia – agora, Escola Nacional de Belas-Artes (ENBA). Eram estudantes

advindos da transição de gestão, provenientes da onda modernizadora, que

seguia as estéticas naturalistas e realistas57. Consequentemente, a estética

utilizada nas encomendas também era a naturalista. Um dos fatores da escolha

da estética naturalista, era que ela era uma via direta de comunicação entre as

elites e outros grupos sociais, pois ela usa a experiência cotidiana e o repertório

pictórico tradicional na compreensão mais abrangente da obra58. Ou seja, a

forma pedagógica do quadro fica mais evidente, podendo ser compreendida

universalmente por meio de características próprias da cidade colonial, não

restando dúvidas daquilo que está retratado. Outro fator para a escolha da

53 BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. Companhia

das Letras, São Paulo, 2006, p. 90 54 OLIVEIRA, P.C. Op. Cit., p.43 55 ANHEZINI, Karina. Um Metódico a Brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 111 56 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p.41 57 JÚNIOR, Carlos Rogerio Lima. Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, o Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 2015, p.120 58 ibid, pp. 155

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estética naturalista era o crescente mercado artístico de São Paulo e do Rio de

Janeiro que tinham grandes instituições burguesas, como o Museu Paulista,

como gestoras do lucro proveniente de tais obras59. Sendo assim, a

comercialização estava amparada financeiramente por representantes da elite e

da política, que facilitariam o trabalho de Taunay na composição do novo acervo

iconográfico do Museu, que, como aponta Vera Lucia N. Bittencourt, era o “(...)

espaço expositivo organizado para "aprisionar" o olhar, seduzi-lo e provocar no

expectador a sensação de ser capaz de reencontrar, em imagens e objetos, os

sinais e traços de uma identidade, que se supunha perdida, mas que é dado a

ele "encontrar de novo" (...)60. Os representantes das famílias paulistas de maior

vulto estavam, em sua maioria, inseridos na política do estado. Isso quer dizer

que as encomendas feitas por Taunay passam pelo crivo dessas famílias, que

selecionavam aquilo que mais os convinha, já que os retratados eram os seus

antepassados diretos e legítimos61. Eles utilizam o poder que a encomenda e o

mecenato possuem de dominação e legitimação política62.

As encomendas para o Museu foi a maior já feita por um museu brasileiro,

onde as expedições para o Oeste eram reproduzidas de forma que o público a

entendesse como uma marcha pacífica e gloriosa, ignorando propositalmente a

violência implícita nas bandeiras e em suas máquinas de guerra63.

Segundo Paulo César Garcez Marins,

Seu programa decorativo e suas exposições voltavam-se não

para os eruditos de seus círculos político literário e

historiográfico, mas para o visitante comum. Para eles, Taunay

optou pela narrativa consensual e, em todos os longos anos de

59 LIMA, S. F. de; CARVALHO, V.C. de. São Paulo Antigo, uma encomenda da modernidade: as fotografias de Militão nas pinturas do Museu Paulista. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, n.1, 1993., p. 154 60 BITTENCOURT, Vera Lucia N. Affonso d'Escragnolle Taunay: a musealização de acervos e práticas historiográficas. Museu Paulista-USP. São Paulo, 2017. p. 105 61 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 248 62 CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na arte italiana: ensaios de história social da

arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 175 63 Até o século XVIII, os paulistas eram denominados de ‘máquina de guerra’ da coroa

portuguesa, pois ofereciam seus serviços bélicos aos empreendimentos reais, como a tomada do Quilombo de Palmares em 1695.

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sua gestão, jamais houve oscilação significativa nesse seu

projeto visual, de dar a ver uma história do Brasil como uma

história de paz64.

O “visitante comum” não é apenas uma generalização. O novo arranjo do

museu quis, justamente, atrair a camada mais baixa da população – a classe

que seria dominada. Esta camada não era apenas representada por uma

população local, também ela era fortemente representada por imigrantes, que

foram os grandes responsáveis pela consolidação dos museus históricos

nacionais, os principais meios de contar a história do país que os acolhia. Deste

modo, o discurso pacifista adotado por Taunay foi uma estratégia de

conformidade e acomodação entre a classe dominante e a subalterna65. A saga

heroica da elite cafeeira (os descendentes diretos dos bandeirantes, até o

momento) não era o único instrumento de dominação. O instrumento mais eficaz

se fez na iconografia, quando a imagem evocada era atrelada ao guerreiro

protetor, que no passado protegeram as fronteiras do país e seus habitantes e,

agora, encarnados nos quatrocentões, protegiam a população subalterna dos

perigos trazidos, a priori, pela elite imigrante que não vinha como mão-de-obra.

A iconografia, portanto, era a melhor maneira de se expor a ideia central.

Podemos entender iconografia, aqui, como o retrato, personificação do state

portrait do século XVII, como definiria Enrico Castelnuovo. O state portrait não

mais representaria os caracteres individuais do retratado, mas, sim,

representariam os caracteres de uma classe social66. Por este motivo analisarei

nesta pesquisa mais especificadamente o retrato bandeirante e suas

vicissitudes, que foram a encarnação dos desejos monárquicos de uma elite

republicana, que possuía os meios propagandísticos através de uma instituição

burguesa a qual se pretendia o Museu Paulista.

64 MARINS, Paulo César Garcez. O museu da paz: Sobre a pintura histórica no Museu Paulista durante a gestão Taunay. Museu Paulista-USP. São Paulo, 2017. p. 178 65 Idem, p. 186-187 66 CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na arte italiana: ensaios de história social da

arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 56

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Contudo, para melhor analisarmos a mítica paulista do século XX,

precisamos voltar as inóspitas minas coloniais, onde o discurso “paulistinizante”

das bandeiras tem a sua matriz, mesmo sendo carregado de julgamentos

morais, políticos e religiosos produzidos não por eles próprios, mas, sim, em sua

maioria, por reinóis e jesuítas – forasteiros e distantes da realidade própria e

isolada em que viviam os habitantes da Vila de São Paulo de Piratininga.

III. AURI SACRA FAMES

A maldita fome de ouro que Virgílio, em seus poemas épicos,

amaldiçoava, volta a caçoar dos homens que, sedentos, são capazes de abrir

fronteiras em sua busca. O ouro, assim como as demais pedras preciosas, move

ambições, sendo a maior delas a da própria coroa portuguesa que, para chegar

no seu objetivo e reproduzir o feito da descoberta da montanha de prata feita

pelos espanhóis em Potosí, usa os serviços dos destemidos paulistas – bárbaros

que não se curvam ao poder régio, mas, quando bem recompensados, são

verdadeiras máquinas de guerra.67

Os habitantes de Piratininga se mantiveram fechados em si mesmos por

muitos séculos.68 A muralha natural que era a Serra do Mar, além do solo

desfavorável para as plantações de cana, impediram que a economia tomasse

maior vulto, ficando os paulistas, assim, isolados e afastados da cultura

metropolitana e europeia que nesse momento efervescia o nordeste açucareiro.

Desse modo, impedidos economicamente de escravizar os africanos, os

paulistas saíam mata a dentro em busca de uma espécie distinta de ouro, porém,

tão valioso quanto o dourado flamejante: o ouro marrom, o indígena.69 As

técnicas e os costumes aprendidos com os gentis são incorporados nos hábitos

locais, favorecendo a entrada dos paulistas nas matas.

67 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário

político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 234 68 SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra

à lenda áurea. Revista de História, 2000, p. 261-276. 69 MONTEIRO, John Manoel. Negros da terra – índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 62

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A entrada das matas é sinônimo não apenas de escravização indígena,

mas, sobretudo, de descobertas. Logo a reputação paulista de grandes

descobridores foi alastrada por eles próprios até, rapidamente, chegar além-mar.

Porém, por causa de seu isolamento estratégico, não se viam como súditos do

rei, muito menos como vassalos; eram arrendatários da terra autônomos e

independentes, que prestavam serviços à coroa em troca de mercês.70 As

máquinas de guerra foram úteis para o mantimento da ordem portuguesa na

colônia, principalmente após a Restauração, quando a coroa necessitava

mostrar a sua força e seu poder, garantindo suas terras e a vassalagem

obediente.71 A insubordinação dos paulistas, no momento, era vantajosa para a

coroa, que soube usar adequadamente de sua força mameluca e rebelde.

Contudo, a subversão não agradava um estrato igualmente poderoso: os

jesuítas.

A escravização indígena não agradava em nada aos seguidores de

Loyola. Os indígenas escravizados eram, muitas vezes, capturados nos próprios

aldeamentos jesuíticos, sendo privados dos ensinamentos católicos e da

salvação de suas almas. A animosidade entre os locais e os religiosos

aumentará drasticamente após a expulsão dos mesmos do território paulista em

1640.72 No entanto, a poderosa arma dos jesuítas – a verdadeira antítese da

arma bélica dos paulistas – será a escrita e os sermões, propagados sem limites

de fronteiras e mares. Em 1628, em passagem pela Vila de São Paulo de

Piratininga, Dom Luís Céspedes Xería escreverá enfurecido sobre os paulistas,

os quais considerará ladrões e cruéis, capazes de horrendos crimes contra o

cristianismo e capazes de horrendas traições e infâmias.73

70 Ibidem, p. 235 71 O maior exemplo da prestação de “serviço” dos paulistas a coroa é a tomada de Palmares

liderada por Domingos Jorge Velho, que, em troca, recebeu diversas mercês, como terras e direitos sobre os negros do antigo quilombo. Para ver mais sobre a Guerra dos Palmares, ver: FREITAS, Décio. República de Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII. Alagoas: EdUfal, 2004. 72 SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra

à lenda áurea. Revista de História, 2000, p. 261-276. 73 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 187

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Assim como Xería, o padre Antônio Ruiz de Montoya (1585-1652), jesuíta

influente na Bacia do Prata, protestará enfurecidamente contra a invasão

paulista ao Prata em seu livro Conquista espiritual feita pelos religiosos da

Companhia de Jesus nas províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape de

1639.74 A sua fúria é, ao mesmo tempo, um pedido de ajuda à coroa espanhola

já que os religiosos e nem os indígenas conseguiam se proteger dos ataques

paulistas. Montoya os descreve como portadores de todo o mal, missionários do

sobrenatural, cujo intuito é destruir a obra divina das missões. A reprovação não

é apenas direcionada aos paulistas que, segundo ele, são “lobos vestidos de

ovejas”75, mas também aos seus vizinhos e aos próprios portugueses.

(...) castellanos, portugueses e italianos y de outras naciones,

que el deseo de vivir com libertad y desahogo y sin apremio de

justicia los ha congregado. Su instituto es destruir el genero

humano matando hombres, si por huir la miserable esclavitud en

que los ponen se le huyen...76

A lenda negra dos paulistas é, então, difundida por demais religiosos,

como Francisco Jarque e Nicolau del Techo.77 Desse modo, a pequena vila se

torna um couto de fugitivos que vivem longe da civilização como nômades e

bárbaros.78 A sua diferenciação que pode ser, inclusive, considerada étnica, os

coloca em uma fronteira cultural que os distingue sobremaneira dos demais

colonos, dos emboabas, que não falam a mesma língua geral e não possuem a

mesma cultura material fruto da simbiose do indígena e do português.79

Até o começo do século XVIII, a lenda negra não afetava a relação dos

paulistas com el-rei. Contudo, esta relação sofrerá uma drástica ruptura quando

os interesses econômicos da metrópole forem colocados em risco pelos próprios

paulistas nas recém descobertas Minas. O território do ouro, descoberto pelos

74Ibidem, p. 188. 75 MONTOYA, Antônio Ruiz de. Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus

nas províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Capítulo XXXV. 76 Idem. 77 Idem. 78 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário

político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 245 79 Idem.

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ávidos sertanistas, era um território fora da jurisdição real, dentro do sertão

inóspito e selvagem. Segundo Laura de Mello e Souza, a descoberta das minas

pelas bandeiras complicou, ainda mais, o papel dos paulistas na colônia.80 De

máquinas de guerra e descobridores a serviço do rei, passaram a detentores de

um território e de sua riqueza. Passam, desse modo, a ocupar importantes

cargos dentro das minas, possuindo ali maior força e riqueza. Porém, o poder

que possuíam nas minas era derivado de um descaso da coroa com tal

empreendimento, considerado um risco para a economia colonial, já que a

extensão de seus achados auríferos eram uma incógnita; ademais, o risco se

continha também no possível deslocamento de mão-de-obra para essa região,

desfalcando o real alicerce econômico colonial, que era a região açucareira do

nordeste. Era preciso acabar com esta arriscada empreitada.81

A região mineradora dividia-se em diversos potentados, que consistiam

em pequenos ou grandes poderes atribuídos a um homem ou a uma família, em

sua maioria paulistas. Estes potentados adquiririam em sua volta uma rede de

submissão, garantida pela sua proteção à conflitos diversos, já que a violência

era uma constante, sendo uma forma não apenas de retaliação, mas de ato

político e atestado de poder. Porém, a riqueza era medida muito mais pelo

número de escravizados, já que quanto maior a mão-de-obra, maior o ouro

retirado das minas.82 A relação dos paulistas com os emboabas, ou seja, com os

forasteiros, era plausível de conflitos relacionados à medição de força, e,

conforme a riqueza das minas se tornava notória em toda a colônia, essa

medição de força passa a se dar com a própria lenda negra.83

Segundo o Padre Antonil, em seu livro Cultura e opulência do Brasil por

suas drogas e minas de 1711, o ouro das minas não era repassado

adequadamente à coroa por causa da lacuna da administração local, causada

pelos vícios morais, éticos e religiosos não só dos paulistas, mas de todos os

80 Ibidem. 81 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 36 82 Ibidem, p. 88. 83 SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra à lenda áurea. Revista de História, 2000, p. 261-276.

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locais. Com isso, favorecendo os senhores de engenho, defende as plantações

do litoral contra o “vício do ouro”.84 Dessa forma, as minas passaram a ser vistas

como uma terra sem lei, onde crimes horrendos aconteciam diariamente.

A imagem de uma terra sem lei dominou os relatos coevos e a

correspondência dos agentes coloniais. Estupefatos, cronistas e

autoridades retrataram um quadro assustador da vida nas Minas

nos primeiros anos do século XVIII, comparando a região a um

verdadeiro atalho, onde todos os dias muitos perdiam a vida em

circunstâncias extremamente violentas. Ao lado do enxame dos

pobres e vadios, que viviam de faiscar nas lavras abandonadas,

cometendo aqui e ali pequenos e grandes delitos, havia ainda a

sanha dos potentados, homens enriquecidos que se entregavam

a grandes demonstrações de poder, perseguindo e justiçando os

inimigos.85

Não há consenso em como teria se iniciado o conflito entre paulistas e

emboabas, provavelmente por causa do crescimento dos forasteiros na região

que passaram a pleitear cargos e postos, colocando em cheque a hegemonia

paulista86. Podemos afirmar que o conflito ocorreu em um momento de

desinteresse da coroa pelos serviços das bandeiras e de um recrudescimento

da lenda negra. Os paulistas passaram a serem vistos cada vez mais como

incapazes de administrar os interesses reais, já que eram, como sua própria

propaganda, autônomos e independentes. Os emboabas, em contrapartida,

eram fiéis vassalos do rei, sendo assim, apenas eles capazes de aplicar a lei da

coroa nas terras inóspitas e selvagens das minas. A coroa, enfim, se interessava

em colonizar a região, exigindo, assim, povos sedentários e obedientes.87

Ao narrar o conflito, o cronista e historiador Sebastião da Rocha Pitta

(1660-1738) não escondeu de que lado estava. Caracterizava o conflito como

84 Ibidem. 85 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 84. 86 Há também a teoria de que o conflito teria se iniciado devido uma querela entre dois

potentados, paulista e emboaba, causada pela proteção de seus respectivos protegidos. 87 Ibidem, p. 265

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“um delito contra el-rei” praticado, apenas, pelos “selvagens” paulistas, que

usavam de sua crueldade para cometer os mais bárbaros delitos nas minas.88

A lenda negra, dessa forma, foi uma poderosa arma ideológica, mais forte

do que qualquer tática de guerrilha indígena. Os paulistas são vistos como

tiranos que querem destruir a liberdade representada pelos emboabas, vítimas

dos terríveis bárbaros intrépidos. Perdedores não só politicamente, mas,

principalmente, ideologicamente, se isolam ainda mais na Vila de Piratininga,

contudo, a verve de sua rebeldia é deixada nas minas, que, conforme Adriana

Romeiro aponta, germinará nas rebeliões contra o quinto no final deste mesmo

século, onde o direito de conquista se tornará a resistência dos inconfidentes.89

O estigma atribuído aos paulistas precisava ser superado para a própria

manutenção do Império ultramarino. No século XVIII, anos após a perda do

território das minas, a Vila de Piratininga cresce economicamente, atraindo para

si reinóis, colonos e espanhóis. É nos últimos quartéis do século que a questão

territorial e a segurança de sua manutenção pela coroa portuguesa entram em

crise. Os tratados territoriais com a coroa espanhola, como os tratados de Madri

(1750) e o de Ildefonso (1777) passam a ser a principal preocupação do governo

ultramarino; era necessário, antes de tudo, assegurar política e economicamente

o interior da colônia. Estratégias políticas foram adotadas, como a restauração

da Capitania de São Paulo – anexada à Capitania do Rio de Janeiro após a

Guerra dos Emboabas – e a construção de fortes na região do Prata comandada

pelo quarto morgado de Mateus (1722-1798).90

Com a restauração da capitania e o consequente crescimento de sua

importância econômica, dava-se a deixa para que a reputação paulista fosse

também restaurada; a sua restauração seria uma faca de dois gumes:

fortaleceria os laços com a coroa portuguesa criando uma muralha moral contra

88 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e

alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 196, 197. 89 Ibidem, p. 276. 90 DERNTL, Maria Fernanda. Entre a coesão e a dispersão: a política urbanizadora pombalina e

a criação de Guaratuba, na capitania de São Paulo sob o morgado de Mateus (1765-1775). URBANA: Revista Eletrônica Do Centro Interdisciplinar De Estudos Sobre a Cidade, 2(1), 1-13.

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os invasores espanhóis ao mesmo tempo que serviria para lembrar os forasteiros

recém-chegados na capitania – reinóis que competiam com os paulistas os

cargos e honras na vila – a importância e a honra das famílias antigas de São

Paulo.91 Esta honra seria resgatada por meio de uma literatura linhagística que,

pela primeira vez, faria o esforço de retirar de dentro dos vícios as virtudes.92

A bravura e a coragem dos velhos paulistas que alargaram as fronteiras

foi veementemente lembrada por Frei Gaspar da Madre de Deus (1715-1800).

Na sua obra Memorias para a historia da capitania de S. Vicente, hoje chamada

de S. Paulo, do estado do Brazil (1797) reuniu testemunhos de diversas famílias

vicentinas, patrícias ou não, elaborando o primeiro discurso heroico acerca dos

paulistas, os verdadeiros “heróis luso-americanos”.93 Empenha-se sobremaneira

em apagar o estigma de selvagem e violento que o paulista carregava,

substituindo-os por fortes e bravos conquistadores, transformando a lenda negra

em motor para a expansão do Império luso, construindo uma ligação com a coroa

e, assim, fazendo-os cair novamente nas graças do el-rei. O alargamento das

fronteiras e a descoberta de riquezas foi um serviço prestado à metrópole, que

podia contar com a lealdade absoluta dos velhos paulistas, que, em

consequência, para garantir que tais serviços fossem executados corretamente,

caçavam e escravizavam indígenas. Tudo por amor ao rei. Desse modo, além

de Madre de Deus admitir a caça ilegal dos gentis admite a miscigenação dos

primeiros paulistas com os filhos da terra; a coragem e a bravura dos indígenas

e a inteligência dos portugueses resultaram em mamelucos fortes e capazes de

expandir o grande império luso.94

Madre de Deus atacava diretamente a credibilidade dos jesuítas,

principalmente dos estrangeiros como Charlevoix95, afirmando que eles serviam

91 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e

alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 209. 92 SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra à lenda áurea. Revista de História, 2000, p. 261-276. 93 Idem, p. 203. 94 KOBELINSKI, Michel. Heroísmos, sedições e heresias: a construção do ufanismo e do

ressentimento nos sertões da capitania de São Paulo (1768-1774). 2008. 250 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2008. 95 Jesuíta, Pierre-François-Xavier de Charlevoix também denuncia as práticas dos paulistas em sua obra monumental Historia do Paraguai, publicada em 1757.

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diretamente à corte espanhola, sendo os ataques feitos aos paulistas uma

estratégia para enfraquecer a coroa portuguesa.96

Como aponta Michel Kobelinski,

Sistematicamente, frei Gaspar desconstruiu não apenas os

textos de historiadores que invocam um conjunto de imagens

histórias e pessoais para São Paulo, mas também essas outras

experiências pela América que são diferentes das suas, em que

as interpretações do passado não tinham comprovação e eram,

portanto, mais ficção do que realidade, pela ausência da análise

documental. É uma contestação bem dirigida que refuta a versão

estrangeira sobre a capitania de São Paulo e sobre os

paulistas.97

Frei Gaspar, numa tentativa de diferenciar a capitania de sua faixa

litorânea, destaca os prazeres em que a faixa campestre proporciona para seus

habitantes. É importante destacar que as impressões contidas na obra são frutos

não apenas de testemunhos, mas, principalmente, das impressões pessoais do

próprio autor, que não escapa do tom imaginário de suas alusões.98

Descendente de Brás Cubas e de Fernão Dias Paes, Pedro Taques de

Almeida (1714-1798), ao contrário de Madre de Deus que admite a origem

mameluca do paulista, enfatiza a origem nobre dos mesmos, descendentes

diretos de cristãos-velhos de Portugal, fiéis súditos da coroa.99 A alusão a uma

linhagem nobre europeia era uma importante ferramenta de retórica à lenda

negra, já que ia contra todo o estereótipo de selvageria imposto aos paulistas.

Considerado o primeiro historiador das “bandeiras paulistas”, Taques

realizou um influente estudo da genealogia das velhas famílias locais com a

ajuda de seu padrinho, o frei carmelita Luís dos Anjos, em sua obra Nobiliarquia

paulistana histórica e genealógica, de 1772. O ufanismo, presente também em

Madre de Deus, fica evidente em seu ressentimento com o passado colonial

96 Ibidem, p. 80. 97 Ibidem, p. 79. 98 Ibidem, p. 76. 99 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 206

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português – realçando o português –, que, antes mesmo do descobrimento

destas ermas terras, já praticava a miscigenação (algo fortemente

menosprezado pelo genealogista), além dos embates de poder que causaram

conflitos e matanças.100

Assim como Frei Gaspar, heroiciza as bandeiras, afirmando que a

expansão pelos sertões só poderia ser realizada com muito suor e que o

descobrimento das pedras preciosas foi fruto direto dos esforços dos paulistas,

sempre subservientes ao poder metropolitano.101 Para Taques, trazer o passado

de volta significava mudá-lo, dando aos seus antepassados a chance de saírem

vitoriosos contra as situações desventurosas colocadas pelos cronistas

emboabas e jesuítas.102 Devido ao seu bom relacionamento com o governo de

morgado de Mateus, prestando, aliás, diversos serviços ao governo, o historiador

justifica a ação dos paulistas na relação respeitosa que os mesmos sempre

possuíram com seus governadores e ministros.103

Toda a obra é baseada em exemplos de superação dos atuais paulistas

aos insucessos das minas e das descobertas de pedras preciosas, assim como

hostilização bárbara dos índios carijós e das políticas contra Salvador Corrêa de

Sá e Benevides, nomeado pela coroa à administrador e governador das Minas

de São Paulo.104

Ainda segundo Kobelinski,

Tanto Frei Gaspar quanto Pedro Taques compartilharam alguns

preconceitos porque eram descendentes de uma pequena

nobreza portuguesa que havia enriquecido na colônia. Assim,

ambos foram condescendentes com o sistema colonial,

preocupando-se “com a limpeza de sangue dos cristãos velhos,

judeus, índios e negros” e, principalmente, levando em conta sua

100 KOBELINSKI, Michel. Heroísmos, sedições e heresias: a construção do ufanismo e do

ressentimento nos sertões da capitania de São Paulo (1768-1774). 2008. 250 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2008, p. 67. 101 Ibidem, p. 67. 102 Ibidem, p. 68. 103 Idem. 104 Ibidem, p. 70.

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origem social, e acima de tudo seus desafetos. Enquanto Pedro

Taques privilegiou os “indivíduos” integrantes das camadas

superiores, promovendo-lhe uma blindagem, Frei Gaspar

considera a miscigenação e a capacidade adquirida dos

indígenas como o sentido de liberdade, coragem e rebeldia.105

O paulista, podemos concluir, já se via como um exemplo de virtude, em

um contraste visível em como era visto nas outras regiões da colônia e

metrópole: um habitante de um lugar distante e inóspito, com hábitos simplórios

que refletiam suas moradias e vestimentas. Em outras palavras, bárbaro.

A defesa que Frei Gaspar e Pedro Taques fazem aos paulistas é, durante

mais de um século, quase esquecida. O século XIX será marcado pela

construção de uma história nacional, numa tentativa de desvincular o passado

do Brasil colonial de Portugal, priorizando a gênese indígena – o guerreiro e

bravo gentil que possibilitou a transformação do Brasil em uma nação, mas, que,

ainda assim, não poderia coexistir com a civilização.106 O indianismo, desse

modo, pautado em um idílico passado que não poderia retornar, se dividia entre

denunciar a ambição da coroa portuguesa e aclamar a conversão civilizadora

jesuítica. Desse modo, os paulistas serão vistos como aliados da coroa no

extermínio indígena e na repulsa à Companhia de Jesus, sendo os responsáveis

pelos males do Brasil atrelados ao escravismo, que exterminou tribos inteiras,

além de introduzir a mão-de-obra africana. A solução, portanto, seria a

integração dos índios a sociedade – porém não os capacitando de serem

“civilizados” como os brancos – e a promoção da imigração europeia, sobretudo

a latina, feita pelos liberais.107

A história de cunho indianista que buscava criar um topos nacionalista e

autêntico à origem da nação – no sentido, obviamente, metódico da palavra –

era, assim como todas as narrativas históricas nacionais do século XIX, pautada

na ocupação do litoral. Será o cearense João Capistrano de Abreu que primeiro

105 Ibidem, p. 73. 106 SCHWARCZ, Lilia Moritz. História do Brasil Naçao, vol. 2. Objetiva. São Paulo, 2011. 107 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 140.

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defenderá a necessidade de voltar o olhar historiográfico aos sertões e pela sua

ocupação feita, em sua maioria, por gente mestiça e seus descendentes –

caboclos, sertanejos e caipiras. Para o historiador, falar sobre o interior era falar

sobre as sesmarias, as descobertas das minas, os caminhos antigos, a criação

de gado no interior da Bahia e, especialmente, das bandeiras paulistas.108

É em 1899 que Capistrano publica seus dois primeiros artigos sobre os

sertões no prestigiado Jornal do Commercio, intitulados Caminhos antigos e

Povoamento do Brasil. Estes textos configurarão, mais tarde em 1907, a base

para o capítulo O Sertão em sua aclamada obra Capítulos da História Colonial.

Em sua obra ele defende a tese de um Brasil fragmentado, sendo dividido em

quatro núcleos de povoamento: Grão-Pará e Maranhão, Pernambuco, Bahia e

São Paulo. Era a primeira vez que São Paulo aparecia como um dos

protagonistas da história nacional sem ser narrado por seus conterrâneos.

Contudo, para Capistrano, as bandeiras e a consequente conquista do sertão

não eram uma exclusividade paulista, mas, sim, a todos os núcleos povoadores,

tanto do litoral quando do interior. As bandeiras paulistas foram mais destacadas

por terem sido mais numerosas e terem chegado à lugares mais distantes.109

É importante salientar que o tema das bandeiras já interessava Capistrano

muito antes de concluir sua grande obra em 1907. Quando, em 1878, o aclamado

historiador Francisco Adolfo de Varnhagen falece, Capistrano é encarregado de

escrever o seu obituário. Começa o Necrológio com uma recapitulação da vida

e da obra de Varnhagen, dando ênfase em sua contribuição para o IHGB e para

a construção da historiografia nacional. Coloca-o com um descobridor da

história, possuindo a “a flama sombria do Anhanguera”.110 A comparação direta

com o bandeirante, para Maria da Glória de Oliveira, incitava a Capistrano “a um

só tempo, reconhece-lo como “mestre” e submetê-lo ao escrutínio crítico por sua

condição de predecessor”.111

108 Ibidem, p. 137. 109 Idem. 110 ABREU, João Capistrano de. Necrológio. Op. Cit. p. 83. 111 OLIVEIRA, Maria da Glória de. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853-1927). Dissertação (mestrado), UFRGS, Porto Alegre, 2006, p. 70.

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Com uma matriz territorialista, a história produzida por Capistrano não

redireciona o foco historiográfico apenas para os limites políticos do território,

tratando a centralidade da ocupação do sertão, o que, de fato, constituiu as

fronteiras coloniais do Brasil e não a sua criação política. A ocupação do sertão

seria, antes de tudo, a vitória do colonizador perante o meio físico e os

indígenas.112 Este discurso, então, conferiu legitimidade ao futuro discurso

bandeirante quando centrou a sua historiografia na importância da ocupação do

sertão; o historiador, porém, defenderá em sua obra a diversidade cultural na

expansão do território colonial e na consequente formação do Brasil

contemporâneo, urgindo a visão de uma suposta unidade cultural brasileira.113

Como destaca Alberto Luiz Schneider,

Para ele “os caminhos antigos” levariam ao povoamento e a

consequente integração dos diferentes núcleos de ocupação

herdados do período colonial. Daí o caráter integrador das

velhas sendas coloniais e do próprio movimento dos sertanistas

paulistas ao longo da Colônia. Esse tema reaparece no capítulo

“O sertão”. Logo, as bandeiras se tornam fundamentais para o

imaginário nacional (e nacionalista). Ele entendia a unidade

brasileira como uma circunstância precária e incompleta

herdada do passado, bem como projeto de futuro, mas nunca

como uma essência original, muito menos como uma criação

paulista.114

Pupilo de Capistrano, Affonso Taunay teria sido incumbido pelo mesmo a

continuar a história das bandeiras. Tendo trocados inúmeras cartas, além de ter

tido aulas particulares com o historiador, Taunay alegará que seu ensejo de

escrever sobre as bandeiras teria partido de Capistrano em uma visita que lhe

fez em São Paulo em 1902, tendo-lhe rogado para desviar a atenção dos

governadores-gerais, o que pretendia enfocar, e dar vistas às bandeiras

112 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e

alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 141 113 Ibidem, p. 142. 114 Idem.

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paulistas.115 Surgia, então um longo casamento entre Taunay e as bandeiras,

dando vazão a onze volumes de História Geral das Bandeiras Paulistas, de

1911, e a posterior reformulação do acervo do Museu Paulista.

Esquecidos pela historiografia do XIX, Madre de Deus e Taques são

revividos por Taunay e usados como documentos fiéis e verídicos na elaboração

de sua obra. Ao contrário de Capistrano, adotará um discurso completamente

“paulicêntrico”, colocando as bandeiras paulistas como as unicas responsáveis

pela expansão territorial, construindo, em cima das genealogias de Taques,

histórias individuais de cada bandeirante, conferindo, assim, um sentido heroico

e pessoal a história paulista, incapaz de ser contestada, já que era diretamente

ligada as famílias ainda dominantes do velho planalto; a alcunha de documento

histórico dada às obras dos antigos historiadores paulistas reforçavam a sua

veracidade.116

O contexto em que escreve Taunay de ameaça interna – como a greve

de 1917, a organização do movimento operário, o tenentismo e a revolta militar

de 1924 – e de ameaça externa – a presença imigrante e de suas respectivas

fortunas – que rondava a elite paulistana117, é, se não idêntica, muito similar ao

contexto em que escrevia Madre de Deus e Pedro Taques no final do século

XVIII. Em ambos os casos, a história, sempre vinculada à elite, foi um poderoso

meio de legitimação de poder.

O paulista, ou seja, o bandeirante, de Taunay se diferenciará apenas em

um aspecto: ele será, inegavelmente, branco. O que, em tempos de discursos e

práticas eugênicas, servirá, ainda mais, para validar e destacar a ação dos

“bravos heróis”. A elite cafeeira branca precisava estreitar seus laços com a

Europa, em ampla concorrência com uma recém-formada elite imigrante. Não

poderia uma “macula de sangue” ser tolerada, buscando se diferenciar da matriz

afrolusoameríndia do caipira que, no final do século XIX, ganhou amplo destaque

tanto na historiografia quanto na arte, em destaque nas produções de Almeida

115 Ibidem, p. 172. 116 ANHEZINI, Karina. Um Metódico a Brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay

(1911-1939). São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 60. 117 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 174

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Júnior.118 A visão do bandeirante europeu presente das obras de Taunay e

demais autores, como Washington Luís, é transplantada para as telas e reinará

hegemônica por muito tempo.

IV. ENTRE DESBRAVAMENTOS E INVASÕES, A GLÓRIA

Ao visitar o Museu Paulista, somos levados pelas grandes escadarias de

mármore até o Salão Nobre. Em um salão de estruturas magnificentes está a

chave para o surgimento de um sentimento regionalista que será, por muitos

anos, a razão de ser do prédio monumento. Com uma dimensão monumental, a

obra Independência ou Morte! (1888) de Pedro Américo ocupa toda a parede

central do grande salão. Para observar a obra é preciso se distanciar vários

passos, porém, a medida em que se distancia o observador é atraído

exatamente para o ponto da obra em que o artista quer que recaia a maior

atenção. Geralmente esta função fica concentrada na parte central da pintura,

onde a luz é mais forte e nítida, contrastando com uma parte mais escura e,

portanto, mais irrelevante. Isto não ocorre com esta obra, apesar do ponto

principal da narrativa exposta estar centralizada, quase geometricamente, no

centro, onde um D. Pedro I napoleônico119 ergue sua espada e, bravamente,

exclama e exige o desejo mais íntimo do povo: “independência ou morte”. A

esquadra do futuro imperador rodeia a cena, como peões em um grande jogo

político, obedecendo e servindo aos desejos do monarca no centro da tela120.

Por mais que a explicação do título da obra se encontre na posição mais

central do quadro, Américo não faz a subordinação entre os elementos que a

compõem. A técnica, usada sobremaneira nas pinturas históricas, usa as cores

e as dimensões como fator de diferenciação de relevância – o que precisa de

118 Ibidem, p. 155. 119 A pose de D. Pedro I na obra, em cima de um cavalo e bradando sua espada, é um molde de representações napoleônicas. Para mais informações ver: OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles; MATTOS, Claudia Valadão de. O brado do Ipiranga. Edusp: São Paulo, 1999. 120 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 137.

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maior atenção vai, consequentemente, ter cores mais atrativas cognitivamente,

como o vermelho e o azul, responsáveis pela ilusão de maior aproximação do

objeto121. Na obra em questão, essa técnica é ignorada. Isso torna os elementos

confusos e ambíguos; o olhar, então, é redirecionado ao canto esquerdo da tela,

onde um trabalhador “da terra” puxa um carro de bois ao mesmo tempo que

passa de forma alheia pelo ocorrido122.

Figura 1: Pedro Américo. Independência ou Morte!. 1888. Óleo sob tela. 415

cm x 760 cm. Museu Paulista da USP.

Esse trabalhador é a primeira representação de maior vulto do paulista123.

Ele está representado em cores terrenas, como se isso atestasse a sua ligação

direta com o solo, como um agente da paisagem histórica. Não é mais um

caipira, mas, sim, um trabalhador heroico e livre dos vícios da corte portuguesa,

que trabalha para a construção de um ambiente também “puro”.

Ele fica num meio-termo indeciso e desconcertante, mas que,

por isso mesmo, parece ter correspondido perfeitamente às

121 GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. WMF

Martins Fontes. São Paulo, 2007, p. 87. 122 Ibidem, p. 137 123 Idem.

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expectativas dos paulistas. Finalmente ele era visível, não mais

no documento. Apresenta-se submetido ao Imperador de forma

ambígua, mas, nem por isso, deixa de estar inserido no contexto

da historicidade dos eventos, não mais no registro da

estagnação, do atraso típico do interior brasileiro. Ele e a sua

obra, o seu trânsito pelo país e o ambiente que ele criou nessas

viagens, são a inspiração para o grito da independência.124

Dessa forma, o paulista começa a ser moldado. Por mais que a épica

bandeirante ainda não estivesse consolidada, o carroceiro é identificado já como

um herói. Por este motivo, esta obra é o elemento-chave para a compreensão

da estética figurativa que comporia a retratista bandeirante. Por outro lado, a

figura bandeirante que se busca criar não pode ser totalmente vinculada à terra,

ao trabalho; ela precisa de ares aristocráticos e embranquecidos125. A tela que

inaugura esta narrativa no museu é a já citada O mestre de campo Domingos

Jorge Velho e seu lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu de Benedito

Calixto, onde o bandeirante destruidor de Palmares – como popularmente era

conhecido Domingos Jorge Velho – se figura em uma posição majestosa e

monumental, em comparação direta com os state portraits de Luís XIV e outros

monarcas (MARINS, 2007).

124 Idem, p. 191 125 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p. 48

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Figura 2: Benedito Calixto. O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu

lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu. 1903. Óleo sob tela. 140 cm x 100.

Museu Paulista da USP.

Esta pose aristocrática era o que garantia a heroicidade do objeto central,

evidenciando a pureza da “raça paulista” e ignorando a sua origem indígena e

negra, colocando-o, assim, como superior antropologicamente e apto ao intento

proposto126. A obra é inserida em sua historicidade, já que quando foi produzida,

no começo do século XX, as discussões eugênicas acerca da pureza da raça

estavam em seu auge. Portanto, para que ocorra a associação da elite com a

“superioridade da raça branca”127, é fundamental que o bandeirante seja

associado a esta mesma raça. O herói é branco e europeu.

126 Idem 127 No final do século XIX teorias científicas que “comprovavam” superioridade da raça branca tomaram o meio social e intelectual, dando início a um racismo científico. Para mais informações ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racional no Brasil do século XIX. Companhia das Letras: São Paulo, 1993.

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Como fundamenta Thais Chang Waldman,

Ao ser exibido no Museu Paulista, o retrato do “conquistador do

Piauí e derrubador da Troia Negra”, nos termos de Afonso

Taunay, dá o pontapé inicial para a transformação do local em

uma “galeria em que todos têm atitudes heroicas”. Exposta com

uma finalidade pedagógica, extrapolando os circuitos

intelectuais a acadêmicos frequentados pelo então diretor do

Museu Paulista, a obra irá também estampar diversos livros

didáticos, que ajudarão a imagem do “vencedor dos Palmares”

a transpor a colina do Ipiranga.128

Adquirida pelo Museu na gestão Ihering, esta tela será a maior fonte de

inspiração para a retratista bandeirante. Toda a composição da obra, além da

figuração do bandeirante, será usada na maioria das obras encomendadas129.

A escolha pelos artistas também influenciará a estética e a visualização

das obras. Taunay busca os artistas mais renomados para o seu

empreendimento iconográfico, tais como Henrique Bernadelli, Rodolpho

Amoedo, Fernandes Machado, entre outros130. Coincidência ou não, a maioria

era carioca, evidenciando a importância que o renome destes artistas, tidos

como os melhores no cenário artístico nacional, tinham para o sucesso da

hegemonia da memória paulista. Porém, a figura do bandeirante não era apenas

um discurso paulista. Ao mesmo tempo em que essa memória heroica era

produzida em São Paulo, ela também era contestada em outras esferas.

Pintada por Antônio Parreiras em 1936, portanto após as encomendas

para o MP, a tela Os Invasores já em seu título mostra seu caráter não-heróico

ao bandeirante, pelo contrário, evidencia um caráter violento e invasor. Na tela

há cinco personagens, sendo quatro deles bandeirantes e uma indígena. Os

bandeirantes aparecem destituídos de qualquer figuração monárquica ou

128 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São

Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p. 52 129 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 251 130 JÚNIOR, Carlos Rogerio Lima. Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, o

Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 2015, p.120

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heroica, são retratados rudemente como selvagens, com longas barbas e longos

cabelos. Contudo, o que chama mais atenção é a forma com que os

bandeirantes seguram, ou melhor, capturam, a índia. Há uma evidente inversão

de valores: a indígena é que possui o caráter virtuoso, resistindo a selvageria

dos seus algozes. Parreiras, assim, coloca o bandeirante como um covarde

selvagem, que é impossibilitado de controlar seus impulsos131.

Figura 3: Antônio Parreiras. Os invasores. 1936. Óleo sob tela. 194, 5 cm x

281 cm. Museu Antônio Parreiras.

Portanto, para que possamos entender a disputa de memória que envolvia

a nação no começo do século passado, temos que também analisar a obra

bandeirante fora do Museu Paulista e fora de São Paulo e entender que o que

motivou a heroicidade bandeirante foi, em grande parte, o projeto aplicado por

Taunay. Fora da instituição o discurso era livre.

131 STUMPF, Lúcia Klück. A terceira margem do rio: mercado e sujeitos na pintura de história de

Antônio Parreiras. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 2014, p. 141

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Temos que o tratar, então, como um discurso polissêmico, ou seja,

composto por sua historicidade e multiplicidade de significados, que, inserido em

um contexto cultural, é um instrumento mental do observador. Desta forma, o

público visualizará a obra sempre dentro do contexto cultural em que ela está

inserida e na qual ele vive132. Portanto, também podemos definir a narrativa

bandeirante de duas formas, como monumental e não-monumental, sendo que

ambas serão inseridas em um contexto cultural regional diferentes, servindo,

sempre, a sua historicidade. Dessa maneira, atestaremos está hipótese no

próximo capítulo, abordando os eixos centrais da pesquisa nos dois artistas

representantes da confluência de discurso: Benedito Calixto e Henrique

Bernadelli.

V. NA REDE O HERÓI ENCONTRARÁ O SEU FIM

1. O empirismo caiçara de Benedito Calixto

Benedito Calixto não escondia a sua origem caiçara. Nascido em Santos,

a sua escola foi a praia, sem a expressão do sentido figurado. Advindo de uma

família de artesões, cresceu na oficina em que o pai era ferreiro e, por seu talento

para as artes, passou a pintar ex-votos na Igreja Matriz Sant’Anna,

aperfeiçoando, assim, suas habilidades. Segundo Caleb Alves, a tradição

portuguesa dos ex-votos consistia na produção de pequenos quadros sobre

acontecimentos históricos, podendo configurar-se, desta maneira, em pequenas

pinturas históricas. 133

Devido a proeminência de seu talento, vai morar com seu tio em Brotas,

afim de alcançar um público maior para o seu trabalho134. O reconhecimento de

seu trabalho se dará gradualmente enquanto conquista um público seleto

através de encomendas de cunho propagandísticos para comerciantes e

132 BAXANDALL, Michael. O olhar renascente, pintura e experiência social na Itália da renascença. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 48. 133 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 45 134 Idem.

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políticos, instalando-se, assim, na cidade santista, onde a demanda artística

crescia a passos largos. Além destes trabalhos, as obras de sua juventude são,

em sua maioria d’aprés nature; isso atesta as múltiplas habilidades do artista,

que mostra os seus talentos paisagistas e históricos, retratando Santos e suas

particularidades. Ao mesmo tempo em que Calixto passa a realizar pequenas

encomendas, a cidade Santista recebia o primeiro surto de modernização,

proveniente da construção da linha-férrea Santos-Jundiaí. Levando em conta

que a elite cafeeira paulista era, grosso modo, a mesma elite santista, nessa

época ela ganha prestígio econômico e sente a necessidade da valorização do

espaço em que vive, o que já foi abordado nos capítulos anteriores. Então,

analogamente, desperta-se, também, o desejo de produção de artistas regionais

renomados e Calixto estava pronto para ser notado135.

Seu primeiro grande trabalho foi na ornamentação dos novos edifícios

construídos durante a modernização da cidade. Por este motivo, consegue ser

descoberto pela elite local, como o visconde de Vergueiro, que será um dos

responsáveis pela ascensão de Calixto. É preciso lembrar que a trajetória do

artista difere da do costume da época: não estudou na Academia e nem

frequentou Liceu, fez de sua vida e de seu cotidiano a sua grande escola. A sua

origem humilde impossibilitou a sua ida à capital, onde teria que arranjar um

padrinho que lhe pusesse no liceu carioca. Contudo, o apadrinhamento foi

conquistado mais tarde.

Trabalhar com arte no Brasil até meados do século XX significava

diversas complicações. A primeira, e talvez a mais difícil, era ser aceito na

prestigiada Academia de Belas-Artes. O ensino acadêmico era extremamente

restrito, o que era natural à uma instituição de elite; o jovem que tivesse interesse

nos estudos oficiais deveria vincular-se a um artista de renome que lhe ensinaria

particularmente os aprendizados básicos do ensino, lhe guiando em alguma

encomenda local. Logo, este artista e os demais mestres da cidade deveriam

indicar o pupilo a algum padrinho, sendo este da elite; obviamente, a

recomendação viria se o jovem conseguisse impressionar suficientemente os

135 Ibidem, p. 59

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seus mestres. Nota-se que grifei as palavras jovem e oficiais – não foi por acaso.

O limite para o ingresso na Academia era de apenas dezesseis anos, isso

significava que o descobrimento do jovem pelas artes teria que ser

extremamente prematuro e exclusivo, não possibilitando outra ocupação.

Quanto ao padrinho, ao apresentar a carta de recomendação à Academia,

deveria especificar que o interessado não era oriundo e muito menos desejava

dedicar-se as artes decorativas. A distinção entre a “arte oficial”, representada

pela AIBA, e a arte aplicada servia, entre outras coisas, para distinguir o local da

classe dominante e da classe dominada no mundo artístico.136

Benedito Calixto, portanto, foi uma curva fora do caminho. A sua formação

se deu, justamente, dentro da oficina, não recebendo a instrução “oficial” da

Academia. Contudo, teve seus estudos na França financiados por Afonso

Vergueiro, seguindo uma recomendação do dr. Garcia Redondo após a

realização do trabalho de Calixto no Teatro Guarany. As pinturas feitas no teto

do teatro e no pano de boca do palco renderam-lhe prestígio entre os pares da

cidade, prestígio este, aliás, que já havia sendo alcançado com seus pequenos

trabalhos propagandísticos e com sua exposição em São Paulo, em 1881.137

É importante ressaltar a importância da figura do visconde de Vergueiro

na Santos do começo do século. Primeiro presidente da Associação Comercial,

ocupando o cargo de 1870 a 1878, dividia-se entre realizar as ocupações

específicas de seu cargo e de ser o principal benfeitor público da cidade –

ressaltando o seu combate às epidemias que assolaram a baixada santista no

começo do século XX.138 Dessa forma, o mecenato de Vergueiro foi, além de

único possível, já que era o único que possuía o status e o capital para tal

financiamento, extremamente estratégico. O financiamento dos estudos de

136 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 65. 137 Por mais que a exposição de 1881 tenha rendido certo prestígio ao artista, não lhe rendeu

muitos frutos materiais. O polo artístico, até aquele momento, era o Rio de Janeiro. Isso significava um maior investimento nos artistas cariocas e, consequentemente, uma centralização do mercado artístico nacional. 138 BANAT, Ana Kalassa el. A cidade pelos olhos do pintor: memória e representação de Santos

em Benedito Calixto entre 1890 e 1927. ANPUH, 2014.

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Calixto se deu em um contexto de valorização de artistas locais em todo o Brasil.

A arte nacional, em fins do XIX, passa a estar cada vez mais ligada a

proeminente burguesia, sendo sinônimo não apenas de erudição e requinte,

mas, sobretudo, de modernidade. Portanto, para uma cidade em ascensão como

São Paulo e Santos, a promoção de um artista local e que encarnasse o “espírito”

da cidade, como Calixto, representava elevar a cidade a um status quo

moderno.139

A sua ida à Paris, em 1883 ou 1884140, durou cerca de um ano. Durante

os primeiros meses de sua estada aproximou-se de Victor Meirelles que lhe

indicou os estudos na Académie Julian – a mesma em que eram enviados os

vencedores do Salão Anual da AIBA. A Academia, que se diferenciava da École

de Beaux-Arts por seu caráter liberal, foi marcada pelo ingresso de alunos e

tendências pouco valorizadas no mercado artístico parisiense, cabendo ressaltar

que foi a primeira a aceitar mulheres como alunas. Por mais que se diferenciasse

da École em seu sentido rígido e conservador artístico, o ensino na Julian

também atendia as formas clássicas, valorizando o desenho e o traçado.

Contudo, os seus alunos possuíam uma liberdade artística maior do que

qualquer outra academia, sendo palco de confluências de estilos, como o

impressionismo.141 Deste modo, Calixto entrou em contato com as novas

tendências artísticas e com as velhas técnicas neoclássicas do desenho, onde

copiava pinturas históricas renomadas, como era de praxe142.

Durante todo o tempo de seu estudo no estrangeiro, Calixto sentia-se

nostálgico de suas raízes. Era um artista do mar, das coisas simples. E foi o jeito

simples, caiçara e livre do artista que lhe rendeu a primeira admiração de seus

benfeitores; o surgimento do sentimento anti-academicista mudou radicalmente

a visão de como ser artista. O tópos artístico a ser valorizado, então,

transcenderia a obra e o estilo – a vida do artista, sua moradia, seus gostos e

139 Ibidem, p. 59. 140 Não há consenso entre os historiadores sobre a data de partida do artista à França. 141 VALLE, Arthur. Pensionistas da Escola Nacional de Belas-Artes na Academia Julian (Paris)

durante a 1ª República (1890-1930). 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 3, novembro/2006. 142 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003.

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até o modo de se portar seriam fundamentais na apreciação de sua obra. O

pintor intelectual dava lugar ao pintor empírico e aventureiro, dono de sua própria

arte e, antes de tudo, livre das amarras acadêmicas.143

Podemos notar esta nova visão atribuída aos artistas em uma crítica feita

à Calixto no Correio Paulistano, em 1890:

Benedicto Calixto, um belo typo de homem, figura alourada, de

cabeleira meio cahida sobre os hombros, é também um pintor

de grande talento.

Encafuado n’um pittoresco retiro, no caminho da Barra, de

Santos, vive o artista com os seus quadros e os seus filhos, uma

vida affectiva, perto do mar, com toda a vegetação uberrina

daquela cidade, em derredor.144

Na sua volta ao Brasil no final da década de 1880, as portas estavam

abertas, porém, mesmo inserindo-se na capital paulista, nunca abandonou suas

raízes caiçaras. Mesmo antes de sua ida à França já era reconhecido pelas suas

pinturas históricas e de paisagem de São Paulo e Santos, dessa forma, o

mercado paulista que nesta mesma época estava tomando fôlego, notou e deu

chances ao trabalho de Calixto. Sendo assim, realiza diversas pinturas de cunho

histórico, destacando as obras adquiridas pelo Museu Paulista durante a gestão

Ihering, como a já citada O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu lugar-

tenente Antônio Fernandes de Abreu (1903), o retrato de D. Pedro I (1902), entre

outros.145

A destreza de Calixto nas pinturas históricas se deve, também, ao fato do

pintor ser um grande entusiasta da história paulista. Membro do IHGSP, publicou

trabalhos sobre Martin Affonso de Souza, trocando, aliás, inúmeras

correspondências com Taunay146. Por esta razão, podemos concluir que Calixto

estava de acordo com a representação heroica do bandeirante, pois também a

defendia intelectualmente; sua interação com Taunay não era apenas restringida

143 Ibidem, p. 127. 144 A. C. S., Correio Paulistano (1890). 145 Ibid. 146 Ibid.

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ao campo intelectual, já que ambos compactuavam do mesmo discurso, era,

também, uma amizade nutrida pelos mesmos interesses.

Como atesta Caleb Alves,

Benedito Calixto esteve presente de forma acentuada no Museu.

Não iniciou seu contato com Taunay em virtude de seu cargo,

como a maioria. Ambos eram amigos antes disso e se

conheciam muito bem, provavelmente do Instituto Histórico e

Geográfico de São Paulo, frequentado por ambos. A

correspondência entre eles inclui trocas de informações

históricas, de documentos e crítica mútua de trabalhos

desenvolvidos.147

Sua obra, então, não provinha de um mecenato direto e impositivo, ao

contrário dos outros artistas encomendados por Taunay, como Bernadelli. O seu

bandeirante, dessa forma, pôde servir de inspiração aos demais pois, além de

compor um acervo já existente, ele compactuava com a ideia dominante. Apesar

de ser plenamente interessado na história local e de participar ativamente de sua

formulação, Benedito Calixto não fora escolhido por Taunay para realizar as

novas obras retratistas para o centenário, sendo relegado, somente, para as

pinturas históricas.148 Apesar de o maior número de suas encomendas serem de

cunho histórico, encontrava maior realização na produção de paisagens,

sobretudo nas marinhas de sua amada Santos.

1.1. O mar anuncia as boas-vindas do progresso

Como poucos artistas, Calixto terá o dom do olhar. A sua visão será revestida

de uma capa romântica, não do estilo, mas o do sentir. Os seus mares são

carregados de pertencimento, de afirmação de seu próprio lar; como se, por

conhecer tão bem a sua natureza, a pintasse de olhos fechados. O seu

romantismo será, portanto, de ordem pessoal, seguindo, porém, o seu

147 Ibidem, p. 231 148 Idem.

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movimento estilístico. No romantismo, a natureza é incorporada a sensibilidade

do artista e de sua percepção, impregnada de nostalgia e de um valor

sentimental às suas ruínas, transformando o território em uma suspensão do

tempo.149 E é como se o tempo estivesse congelado nas baías vicentinas.

O artista realizará seus painéis paisagísticos em um momento de

urbanização da cidade, onde retratar a harmonia da natureza seria retratar a

própria harmonia da cidade. É neste período que Santos toma vulto

economicamente, tornando-se a porta de entrada para o capital proveniente das

exportações do café. Era necessário, portanto, que o responsável físico por

estas exportações fosse exaltado; a paisagem, portanto, é o fator fundamental

para sua propaganda. Como já abordado anteriormente, Calixto receberá

diversas encomendas propagandísticas, sendo elas, em sua maioria, cenas do

Porto recém-construído, dando ênfase para os armazéns comercias ao seu

redor. Muitas destas paisagens enfeitarão os cartões-postais em voga no XX.150

A cidade deveria seguir a ordem da natureza; nas obras de Calixto os dois

elementos são tratados não como espaços distintos, mas, sim, como um

complemento histórico, em plena sintonia com a materialidade humana. A

natureza santista seria uma das razões do progresso urbano e econômico da

cidade.151 O que não podemos deixar de lado é o contexto histórico no qual as

obras foram produzidas. As ciências ditas deterministas ainda estavam em voga

no Brasil e situar a ordem da modernização na ordem da natureza era colocar o

presente como algo já pré-determinado pelo ambiente.

As paisagens de Calixto são todas voltadas para a direção oeste, de costas

para a Serra do Mar. Esta perspectiva não foi escolhida ao acaso; o artista, ao

retratar o mar, privilegiava não a fonte da riqueza – o café produzido no Leste –

mas o seu meio de realização concreta. Ou seja, ele privilegiava o Porto

149 BANAT, Ana Kalassa el. A cidade pelos olhos do pintor: memória e representação de Santos em Benedito Calixto entre 1890 e 1927. ANPUH, 2014. 150 Idem. 151 ALVES, Caleb Farias. A fundação de São Vicente na ótica de Benedito Calixto. REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 120-133, março/maio 1999.

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exportador, o mar que possibilitava o progresso cafeeiro.152 A importância do

Porto também residia no seu potencial de desenvolvimento para São Paulo,

tendo superado o entrave que a Serra do Mar representava para o escoamento

das produções do planalto, e não esquecendo do seu caráter de gênese do

Estado, tendo sido o lugar pelo qual os primeiros colonizadores

desembarcaram.153

Figura 4: Porto de Santos. Benedito Calixto. 1890. Óleo sobre tela. 1134x535

cm. Sérgio Guerini/Divulgação Itaú Cultural.

Em um caos completamente ordenado, a cidade é projetada sobre o ritmo

do trabalho. A paisagem e os navios opulentes engolem a presença humana –

figuras diminutas de trabalhadores que apenas são usados como elementos

ornamentais. E por mais que os navios ocupem parte considerável da tela, eles

são ofuscados pela grandiosidade do mar, que também contrasteia

enormemente com o tom avermelhado da terra firme. O azul turquesa do mar e

o marrom-terra do porto e dos armazéns servirão para diferenciar os dois

152 ALVES, Caleb Farias. A fundação de São Vicente na ótica de Benedito Calixto. REVISTA

USP, São Paulo, n.41, p. 120-133, março/maio 1999. 153 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 42.

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elementos e, ao mesmo tempo, ligá-los por meio de elementos indissociáveis na

natureza, como o mar e a terra. Outro elemento fundamental na tela é a luz, o

que será uma recorrente nas obras de Calixto. A ênfase em que o artista dá a

luminosidade pode ser entendida como sua visão subjetiva ao objeto retratado,

como se o ambiente representasse um “Porto de luz”, de esperança.154

Todos os panoramas e os cartões-postais da esplendorosa natureza

vicentina ignoravam as reais mazelas da cidade. Longe de ser ordenada e

urbanizada, a cidade de Santos passava por uma epidemia catastrófica, causada

pela falta de saneamento básico público, onde o esgoto a céu aberto causava

os males que a civilização tentava, em vão, esconder. As telas retratam o visível,

colocando o resto na categoria marginalizada do não-visível, desumanizando a

miséria e a doença causada pelo mesmo progresso que trazia a civilização pelos

mares. Aquilo que não era retratado não existia, abarcando um projeto de

higienização classista, étnica e territorial; o projeto de um futuro valia mais que

o presente.155

Como ressalta Ana Kalassa el Banat,

Nessas superfícies podemos ver muitas cidades, algumas

contraditórias, umas gloriosas, outras nem tanto, expressões de

tempos em suspensão... O que parece permanecer entre os

vazios de umas e outras são certas ausências. Aquilo que está

sendo eliminado pelo processo de urbanização e saneamento

parece não causar interesse. As doenças e o movimento sujo do

porto, a miséria dos imigrantes, a escravidão e os forros que não

encontraram espaço na cidade urbanizada, os cortiços e outros

aspectos da degradação da cidade estão distantes.156

Calixto, então, passará a comparar o suposto progresso (representado

como verdade incontestável do presente) em comparação direta com o passado.

Se a cidade é ordenada em 1922 ela também a era em 1822. Os três painéis

154 BANAT, Ana Kalassa el. A cidade pelos olhos do pintor: memória e representação de Santos

em Benedito Calixto entre 1890 e 1927. ANPUH, 2014. 155 Idem. 156 Idem.

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feitos para a o majestoso prédio da Bolsa do Café, elucidam este discurso. Nos

painéis, aliás, podemos inserir a lógica da natureza determinante e da história

também determinante. No meio das duas paisagens marinhas, uma de 1822 e

outra de 1922, está retratada a fundação de São Vicente. Ora, se o presente é

moderno é devido aos ilustres que aqui aportaram, deixando os frutos de seus

empenhos civilizacionais.157

Figura 5: Santos em 1922. Benedito Calixto. 1922. Óleo sobre tela.

550x820 cm. Bolsa Official do Café, Santos.

Assim como a pintura histórica, a paisagem também servirá a um projeto

de legitimação da ordem dominante em ascensão. Funcionando como fortes

meios propagandísticos a uma cidade que queria atrair mais investimentos sobre

si, alterava o seu presente concreto, forjando uma ordem e apegando a

realidade. O projeto de reurbanização planejada, nos moldes parisienses, nunca

157 ALVES, Caleb Farias. A fundação de São Vicente na ótica de Benedito Calixto. REVISTA

USP, São Paulo, n.41, p. 120-133, março/maio 1999.

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saiu do papel; só foi vivo enquanto tinta, estático na paralização do tempo

abstrato, que só existiu enquanto delírio de uma elite iludida com as benesses

de um fruto que julgavam eterno. A ganância é subvertida e subverte até a

natureza incapaz de lhe ser eternamente fiel.

1.2. Um historiador à beira-mar

Em 1885, Joaquim de Paula Souza publica o seu romance Palmares. Nele,

a vitória dos paulistas no quilombo de Palmares é rudemente exaltada,

colocando o seu mandante, Domingos Jorge Velho, em um verdadeiro altar dos

benfeitores da nação. O velho sertanista é retratado imponentemente, possuidor

de uma bravura que não altera a sua civilidade e a sua característica branca,

portanto, europeia, é ressaltada. O livro, apesar de sua qualidade literária parca,

obtém bastante prestígio entre os círculos sociais e intelectuais, além de

instituições como o IHGSP e, consequentemente, ao próprio Benedito Calixto

que retratará em sua obra O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu

lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu (figura 2) a exata personificação do

bandeirante de Joaquim de Paula Souza.158

A imagem de um sertanista branco surge em um contexto onde a eugenia

tomava conta dos meios intelectuais. Retratar um paulista branco e dos olhos

verdes, em um contraste evidente com o mameluco de outrora, era um recado

direto às demais elites, principalmente para a imigrante; a superioridade dos

paulistas não adivinha somente das riquezas do café e da expansão territorial,

mas, também, pela sua superioridade genética, sem máculas de sangue. O

bandeirante branco, porém, não será uma particularidade sua. O será também

para Taunay, para Henrique Bernardelli e demais artistas contemporâneos

seus.159

Conhecemos Benedito Calixto como um pintor muito renomado em sua

época, mas, o que poucos sabem, é que também era um exímio historiador.

158 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e

alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 151 159 Ibidem, p. 156.

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Membro do IHGB e membro-fundador do IHG de Santos, Calixto dedicou parte

de sua vida para a estudar sobre a colonização portuguesa em São Vicente,

focando seus estudos na figura de Martim Afonso de Souza. Em 1895 publica A

Villa de Itanhaém segunda povoação fundada por Martim Affonso de Souza,

estudos históricos sobre sua fundação, seu desenvolvimento, sua decadência e

estado atual, onde, em um intenso debate acadêmico, defende a tese de que

Martim teria desembarcado na baía de São Vicente, tomando o partido da

tradição oral dos próprios vicentinos.160 Como um bom pintor, transpassou a sua

teoria histórica para as telas, retratando o desembarque de Martim Afonso em

São Vicente. Aliás, Calixto soube unir estes seus dois lados muito bem: foi um

exímio pintor de pinturas históricas – não à toa a sua íntima aproximação com

Victor Meirelles quando em Paris.

Figura 6: Fundação de São Vicente. Benedito Calixto. 1900. 192x385 cm.

Museu Paulista da USP.

Em sua obra Fundação de São Vicente, encerra o seu discurso quanto ao

local de desembarque de Martim. Durante esta presente pesquisa o fator

pedagógico e absoluto da imagem foi abordado muitas vezes, portanto, sabemos

que a iconografia possuía, nos séculos XIX e XX, o incontestável poder da

160 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 42.

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verdade – ainda mais sob o jugo documental do positivismo. Calixto, ao contrário

dos demais artistas da época, não pintava quadros históricos apenas pela força

da encomenda. Primeiro de tudo, ele as pintava pois realmente acreditava

naquilo em que estava retratando e na necessidade urgente de levar a história

para o máximo de pessoas possíveis, sendo o meio iconográfico o meio mais

eficaz. Quando projeta Martim como propagador da civilização europeia no

Estado, ele, automaticamente, compra o discurso bandeirante.

Dessa forma, o artista possuirá um caráter e um estilo mais atrelados ao

conservadorismo acadêmico, por mais que não tenha estudado na instituição.

Os seus traços precisos serão comparados ao de Bouguereau que, à época,

fugia do gosto artístico.161 O desenho de Calixto será, por vezes, quase estático,

em contraste com a pintura em movimento, em voga no começo do século.

O seu estilo lhe renderia críticas, como a do pintor Almeida Júnior para o

Correio Paulistano, em 1890:

(...) – o desenho é em geral bom, e me parece em certos pontos

os mais francos elogios dos entendidos na difícil arte da qual

afirmava Ingres, neste conceito que na sala hoje se vê gravado

na Academia das Bellas Artes de Paris: - Le dessin c’est la

probité de l’art.

A restrição única dos meus elogios á bondade do desenho

consistiria em dizer:

- há nos primeiros planos uma certa dureza nas linhas em que o

artista procura obter a energia que deve salientar estes planos e

que a meu vêr conseguiria com muito mais propriedade artística

pela maneira de modelar.

E’proprio de um jovem artista talentoso e inexperto

impressionar-se com o seu trabalho e procurar dar-lhe relevo

pela energia de certas expressões; no caso de Benedicto Calixto

161 Ao final do século XIX, o desenho dará lugar à luz e ao seu movimento. Os críticos se voltarão

contra os traços duros do desenho clássico, como, por exemplo, a Revista Illustrada, que defenderá o realismo/naturalismo como o único estilo capaz de transmitir o espírito nacional.

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é uma exagerada nitidez das linhas dos primeiros planos,

degeneram em seguidão.

Quanto ao colorido, possuem as telas do meu collega certos

trechos muito louvaveis; mas noto em geral a crueza dos tons.

Este é defeito de muitos mestres, sendo que outros incidem no

defeito opposto, de pintarem em tons neutros (...).162

O estilo do artista, portanto, é marcado pelo volume dos corpos,

possuindo caráter escultórico e por vezes dando a impressão de descolamento

da tela. A composição é sempre muito bem estruturada e equilibrada, contudo,

tendem a desaparecer em comparação à figura humana representada. As cores

são pouco saturadas, dando maior ênfase à luz, que constituirá a característica

mais marcante de todas suas obras, levando-nos a uma contemplação serena

da pintura, feita propositalmente pelo artista.163

162 Correio Paulistano, ano 1890/edição 10173. 163 POLETINI, Moisés. Um estudo das obras sacras de Benedito Calixto. Dissertação de

mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP. 2003, p. 22

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Figura 7: D. Pedro I. Benedito Calixto. 1902. Óleo sobre tela. 140x100 cm.

Museu Paulista da USP.

O retrato, adquirido pelo Museu Paulista, situa D. Pedro I como foco

central da tela. Porém, com forte precisão geográfica – aliás, outra característica

de suas obras –, situa a várzea do Carmo paulista atrás do imperador, já

adotando, antes mesmo de Taunay, o discurso da centralidade de São Paulo.

De costas para a cidade e de frente para o antigo caminho do Rio de Janeiro,

recebe o viajante como um anfitrião e habitante local. A paisagem atrás não

apenas indica uma localização geográfica, indica também o percurso pelo qual

o anfitrião trilhou. O ponto de vista pelo qual o artista recorre na tela é o mesmo

usado nas aquarelas dos viajantes que, em sua maioria, vinham à São Paulo

pelo caminho do Rio de Janeiro.164

A claridade da paisagem paulista obriga o observador a focalizar na

feição do jovem imperador, gerando uma simbiose entre a serenidade de seu

rosto e o ambiente calmo em que está inserido. A serenidade dá tom à

informalidade na qual D. Pedro é retratado. Trajado de forma elegante, porém

164 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 197.

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informal, difere dos uniformes militares ao qual era costumeiramente retratado.

Ao que tudo indica, a obra é uma inspiração direta de um medalhão pertencente

à Marquesa de Santos.165

Assim como esta obra, muitas telas de Calixto se encontrarão no Museu

Paulista, algumas adquiridas ainda na gestão Hermann Von Ihering (1850-1930)

e outras encomendadas na gestão de Affonso Taunay (1917-1945). Ao contrário

do que muitos pensam, o retrato de Domingos Jorge Velho não fora

encomendado para as comemorações do centenário da independência;

adquirido pelo juiz de direito ituano José de Mesquita Barros e doado ao Museu

Paulista na gestão Ihering junto do retrato do último capitão-mor de itu, Vicente

da Costa Taques Góes e Aranha, a obra servirá de inspiração direta ao

estereótipo inventado do paulista nas obras encomendadas por Taunay.166 Mas,

se o retrato do bandeirante feito por Benedito Calixto inventara a personificação

iconográfica bandeirante, por que não fora contratado para pintar outros retratos

bandeirantes em 1922? Antes de respondermos à questão, é interessante

adentrar mais fundo na percepção do artista acerca das bandeiras.

Benedito Calixto, assim como os intelectuais da virada do século,

acreditava na necessidade de a história possuir personagens-mitos e tradições

para de fato se instituir como ciência.167 De fato, encontra na figura do

bandeirante a personificação do personagem-mito, o que fica evidente no retrato

de Domingos. Em seu livro Capitanias Paulistas168, de 1924, empenha-se em

tornar o paulista neste personagem mítico, no fundador da história nacional,

justificando os atos considerados como bárbaros, como a escravização indígena,

em um lado humano: “Podiam os paulistas ser qualificados de violentos, as

vezes até cruéis em suas acções, mas eram, entretanto, francos, honestos e

sinceros e isto constituía uma das principais qualidades da nobreza e da firmeza

165 Idem. 166 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e

alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 152. 167 OLIVEIRA, Emerson Dionisio G. de. Instituições, arte e o mito bandeirante: uma contribuição de Benedito Calixto. sÆculum - REVISTA DE HISTORIA [19]; João Pessoa, jul/ dez. 2008. 168 O livro aborda a colonização da capitania paulista e seus desdobramentos por meio das

disputas entre as famílias herdeiras dos irmãos Martim Affonso de Souza e pero Affonso de Souza.

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de seu caráter” (CALIXTO, 1924, p. 131). Dessa forma, o artista considera

Domingos a prova da veracidade das pesquisas históricas acerca o

bandeirantismo, como atesta uma carta trocada com Taunay em 1919.169 A obra

de 1903 seria, então, o fiel espelho das instituições na qual Calixto estava

inserido, onde, aliás, estreitou suas relações com Affonso Taunay.

Voltamos para a questão proposta acima. Calixto possuía todos os meios

para fazer parte do rol dos pintores contratados para os retratos bandeirantes

em 1922; não apenas era conivente com o discurso paulista, mas ajudava a cria-

lo, fazendo parte das instituições e mantendo uma relação muito próxima à

Taunay, além de ter se especializado em pintura histórica – o que conferia

erudição ao artista, possuindo um forte sentido pedagógico – e paisagem – o

que conferia virtuosismo para com a compreensão da natureza, da luz e suas

formas.170 Contudo, era considerado um artista ligado aos moldes acadêmicos,

mesmo não tendo frequentado a Academia, antiquado em detrimento dos

artistas cariocas, como Oscar Pereira da Silva e Henrique Bernardelli. Foi

contratado, ainda assim, para passar às telas as fotografias de São Paulo de

Militão Augusto de Azevedo, junto de Wasth Rodrigues.171

O artista não ficou contente com o seu esquecimento por Taunay, pois,

mesmo tendo se consagrado no MP, não alcançou o prestígio de Oscar Pereira

da Silva e Henrique Bernardelli.172 Logo após, passou a se dedicar às pinturas

sacras, também reflexo de sua religiosidade. Igrejas como a da Consolação e da

Santa Cecília, em São Paulo, recebem seus afrescos de temáticas bíblicas.173

Viveu uma vida mansa em Santos, junto de seus filhos e netos, possuindo uma

história que andou junto da história da criação da mitologia paulista.

169 apud ALVES, op.cit, p.235-236. 170 OLIVEIRA, Emerson Dionisio G. de. Instituições, arte e o mito bandeirante: uma contribuição de Benedito Calixto. sÆculum - REVISTA DE HISTORIA [19]; João Pessoa, jul/ dez. 2008. 171 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:

EDUSC, 2003, p. 271. 172 Ibidem, p. 303. 173 POLETINI, Moisés. Um estudo das obras sacras de Benedito Calixto. Dissertação de

mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP. 2003, p. 20

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2. A contradição de Henrique Bernardelli

Na contramão de Calixto, que, como dito acima, concordava com a

narrativa imposta pelo museu, estava o carioca Henrique Bernardelli.

Proveniente de uma formação acadêmica, não ganhou o Prêmio de Viagem

financiado pelo governo, porém, concluirá seus estudos na Itália com a ajuda da

instituição. Posteriormente, se tornará um dos professores mais renomados da

ENBA em sua fase transitória, que terá seu irmão, Rodolpho, como diretor174.

Participará, dessa forma, ativamente na produção oficial para o regime

republicano. Um anti-academicismo que ignorará o papel da ENBA na

construção da República rondará uma historiografia artística que, até a segunda

metade do século passado foi suprema. Este anti-academicismo aprisionará a

produção artística da virada do milênio em um termo pré-moderno, intitulando-

as como retrógadas e não autênticas. Esse pré-conceito que teve origem com o

movimento modernista – que, aliás, conviveram no meu espaço-tempo-cultural

– será um dos responsáveis pela atribuição negativa que darão para ENBA e,

consequentemente, para os artistas provenientes dela, como no caso de

Bernardelli, que mesmo inserido em um repertório distinto do molde academista

– vide, pinturas e paisagens históricas monumentais – é entendido como fruto

direto desta “corrente”175. Portanto, na presente pesquisa, desmitificaremos esta

alcunha dada ao artista através da retratista bandeirante e a sua dualidade, aqui,

a chave para o entendimento dos discursos convergentes. Abordaremos

também a aura de encanto que cercava o artista e como isso influenciou

diretamente nas suas obras, já que sua “liberdade a la italiana” era o que mais

lhe rendia o status de pintor rebelde.

2.1. A rebeldia de um pintor andarilho

174 DAZZI, Camila Carneiro. Relações Brasil-Itália na arte do Segundo Oitocentos: estudo sobre

Henrique Bernadelli (1880-1890). Dissertação de mestrado apresentada para o departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, 2006, p. 34 175 COLI, Jorge. Questões sobre a arte brasileira no século XIX? XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, 2002.

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Em 1886, Henrique Bernardelli expunha suas obras no Rio de Janeiro,

juntamente do pintor italiano Nicolau Facchinetti. A exposição, de caráter

particular, foi um estrondoso sucesso. Com a irregularidade a qual as

Exposições Gerais da AIBA ocorriam – ainda mais após as divergências da

Exposição de 1879 –, as exposições particulares aumentaram, especialmente

no Rio de Janeiro. O motivo do aumento dessas exposições também pode ser

justificado pelo crescente mercado artístico privado, juntamente do colecionismo

de uma nova elite burguesa proveniente das riquezas do café e da borracha. O

principal mercado para esses pintores, a partir da década de 1880, passará a

ser o privado, visando os artistas à não apenas uma encomenda do governo,

mas a atender o gosto dos colecionadores.176

O jovem Bernardelli, residente na Itália, foi só elogios perante a crítica. Foi

apontado como a vanguarda de uma possível escola moderna brasileira, com

suas obras inovadoras e sensíveis ao belo e a natureza. A sua pincelada rápida,

livre das amarras rígidas do desenho, suas cores saturadas e vibrantes e o modo

único no qual manejava a luz em suas telas renderam-lhe a admiração da crítica

e do público. Foi comparado a tudo o que havia de moderno na arte finessecular.

As críticas não foram apenas dirigidas ao seu trabalho, mas, principalmente a

persona do artista. O seu vestir e portar eram a exata personificação do artista

que não se curvava perante os ditames sociais; era, antes de tudo, um artista

livre e independente, que pintava de acordo com sua essência artística. Um

artista, de fato, deveria ser um rebelde.177

Em 1884 manda algumas obras para a Exposição Geral da Academia, não

fora muito notado, embora dois de seus quadros tivessem sido adquiridos pela

própria Academia.178 Um ano depois, porém, Bernardelli já passa a ser notado

positivamente pela crítica – mesmo que ainda na alcunha de irmão de Rodolpho

Bernardelli –, como neste artigo de Angelo Agostini para a Revista Illustrada:

176 DAZZI, Camila; VALLE, Arthur. Modernidade na obra e na autoimagem de Henrique

Bernardelli. Bahia: ANPAP, agosto/2010, pp. 133-147. 177 DAZZI, Camila; VALLE, Arthur. Modernidade na obra e na autoimagem de Henrique

Bernardelli. Bahia: ANPAP, agosto/2010, pp. 133-147. 178 DAZZI, Camila. A recepção do meio artístico carioca à exposição de Henrique Bernardelli em

1886 – A apreciação da imprensa. I Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2005.

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(...) Esse distincto artista acha-se em Roma, em companhia de

seu irmão e tem feito notáveis progressos; os seus quadros são

bem aceitos nas exposições, onde, só por empenho, se recebem

os dos srs. Pedro Américo e Victor Meirelles.179

Já em 1886, as críticas serão muito mais calorosas, colocando-o no rol

dos grandes pintores nacionais, graças à exposição:

N’uma das salas do pavimento terreo da Typographia Nacional

expos o Sr. Rodolpho Bernardelli, grande quantidade de quadros

a oleo e a pastel feitos pelo seu irmão Henrique Bernardelli.

De todos os artistas brazileiros modernos que foram para a

Europa aperfeiçoar-se na arte da pintura, este parece ser o que

mais tem aperfeiçoado.

Ao longo do artigo, Agostini exalta o fato de Bernardelli ter escolhido a

Itália como país de estudo, enfatizando que Roma será sempre a capital da arte

e “quem quer aprender vá a Roma; quem quer vêr ou expôr, vae a Paris”, e

continua:

Henrique Bernardelli foi para a capital da Itália; ele queria

estudar e não podia escolher melhor.

Eis ahi a vantagem que vemos na sua pintura sobre a dos outros

seus collegas da Academia, que estão na Europa.

Os seus quadros já são bem aceitos nas exposições da Itália e

de Paris e o mais brilhante futuro espera o jovem pintor que

muito honra nossa Academia das Belas Artes, apezar desta ter

sido algum tanto injusta para com elle.180

Alega a injustiça da Academia com Bernardelli por não ter lhe dado o

prêmio de viagem e adiante compara o artista a uma empresa a qual os lucros

tendem a aumentar com o passar do tempo, imputando à Bernardelli um sucesso

ainda maior no futuro após o término de seus estudos na Itália. O fato de Agostini

179 Angelo Agostini, Revista Illustrada. Ano 1885/Edição 406. 180 Angelo Agostini, Revista Illustrada. Ano 1885/Edição 441.

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ser italiano pode ser decisivo para o seu favorecimento da Itália em relação à

França, contudo, mais adiante ao tratar de Facchinetti, seu conterrâneo, não usa

do mesmo tom elogioso com o qual empregou a Bernardelli. Não lhe atribui

críticas negativas, porém, atribuiu suas obras a um imobilismo estilístico, “aquilo

é um Fachinetti”.181

A personalidade de Bernardelli era construída minuciosamente por ele

próprio, como um artista andarilho que saía para pintar nas campagnas italianas

munido de cavalete e caixas de tinta. Com uma boina na cabeça e um cão ao

seu lado, pintava ao ar livre, correspondendo a idealização do artista errante.

Passa, então, a ser comparado com Courbet: um artista que não se curva a uma

academia, que pinta a partir de seus próprios gostos, possuindo uma ética e um

valor próprios. Um artista marginal. Era vinculado, também, ao pintor italiano

Francesco Paolo Michetti, que, de fato, serviu de inspiração direta ao jovem

artista, sendo sua imagem muito similar aos auto-retratos de Michetti.182

Na exposição de 1886, Bernardelli chega a expor pinturas históricas, mas

estas foram esquecidas pelo público e pela crítica, e, os poucos comentários que

obtiveram, foram negativos. Os quadros históricos escolhidos por ele –

Bachanal, Depois da Bachanal, Banhos Romanos, Profano e Sacro e Valeria

Messalina – estavam em voga na Itália, seguindo um modelo específico de

retrato de personagens da Roma antiga, seguindo o estilo naturalista. A crítica e

o público, que buscavam obras de pequeno formato e de temas aprazíveis para

enfeitar suas casas, não perceberam o tom inovador destas pinturas.183

Junto das obras históricas, se encontravam as obras com a temática

camponesa. Representou os camponeses em seu cotidiano, na lida, no trato

com a terra, em suas casas, unindo a miséria e a alegria em um típico arranjo

naturalista.184 É importante destacar que a temática camponesa entrara em voga

na Europa com o surgimento dos estudos antropológicos e sociais, assim como

181 Idem. 182 DAZZI, Camila; VALLE, Arthur. Modernidade na obra e na autoimagem de Henrique

Bernardelli. Bahia: ANPAP, agosto/2010, pp. 133-147. 183 DAZZI, Camila. A recepção do meio artístico carioca à exposição de Henrique Bernardelli em

1886 – A apreciação da imprensa. I Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2005. 184 Idem.

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e do realismo, em um verdadeiro contraponto à realidade industrial burguesa das

grandes cidades, tornando a pobreza e o sofrimento do trabalho duro aceitáveis

perante à obediência fiel dos mais pobres, como exemplo a obra Angelus de J.

F. Millet. O naturalismo, ou verismo, veio, então, fazer um contraponto a esta

realidade “sentimentalizada” e maquiada que o realismo atribuía ao

campesinato, não fugindo de retratar o que era desconfortável à realidade

burguesa das cidades.185

Figura 8: Cabeça de Cicioro. Henrique Bernardelli. c. 1884. Óleo sob tela.

O camponês de Bernardelli seguia a tradição naturalista, com forte

inspiração italiana, sofrendo influências de artistas contemporâneos seus, como

Vincenzo Caprile, Vincenzo Irolli e Giuseppe Costantini.186 As rugas e a

expressão cansada causadas pelo trabalho intenso marcam a obra Cabeça de

Cicioro (figura 8), que, juntamente da obra Cabeça de Carroceiro, foi

apresentada na exposição de 1886. Por mais que o trabalho tenha causado

185 HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 295. 186 DAZZI, Camila. A recepção do meio artístico carioca à exposição de Henrique Bernardelli em

1886 – A apreciação da imprensa. I Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2005

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danos ao velho camponês, um tipo regional italiano187, ele é retratado com um

sorriso faceiro. É interessante notar que ao mesmo tempo que a burguesia é

retratada de forma melancólica, sobretudo as mulheres, os camponeses são

retratados de forma alegre e bucólica, como em sua obra Tarantela (1886).

Podemos atribuir este fato a mentalidade da burguesia oitocentista, a qual

negava valor a qualquer coisa que não fosse o trabalho e, para as mulheres, o

lar.188 A diversão, como a dança popular, seria considerada vulgar e de pouco

tom.

As telas com temática camponesa atraíram os olhares durante a

exposição, contudo, as que mais fizeram sucesso foram as paisagens. Em um

contexto nacional de apreciação das paisagens, consideradas os únicos meios

reais de retratar o espírito brasileiro, em contraposição ao estilo acadêmico,

Bernardelli fora considerado moderno, um artista que conseguia transmitir a

essência da natureza brasileira, sabendo usar apropriadamente as cores e a luz.

Contudo, o que mais chamava atenção era sua técnica.189 Segundo a

historiadora Camila Dazzi, suas paisagens napolitanas “revelavam um novo e

vibrante cromatismo, advindo de uma atitude de pesquisa e renovação da gama

cromática revitalizada pela abordagem ao ar livre” (DAZZI, 2005).

É na exposição de 1886, portanto, que Henrique Bernardelli será

consagrado como um artista moderno na vanguarda de uma nova escola

artística. As suas obras se diferirão das de Benedito Calixto no que concerne à

forma e à luz; seus traços não serão duros, suas pinceladas serão rápidas e

marcadas – enfim, representava o rompimento total dos moldes clássicos e

austeros acadêmicos. Ainda assim, será privilegiado nas escolhas dos artistas

encarregados nas encomendas do MP que exigia as formas acadêmicas as

quais a crítica e o próprio artista rechaçava. Porém, um artista receber uma

187 Com o incremento dos estudos antropológicos, crescem os retratos de tipos regionais. 188 HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 265. 189 DAZZI, Camila. A recepção do meio artístico carioca à exposição de Henrique Bernardelli em

1886 – A apreciação da imprensa. I Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2005.

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encomenda do governo significava maior reconhecimento artístico190, e, já que,

segundo Walter Benjamin, é necessário inserir o artista e sua obra dentro dos

meios de produção191, não podemos negligenciar o fator mercadológico da arte

e não levar em conta às necessidades materiais do artista. Receber uma

encomenda, na maioria das vezes, garantia uma renda muito maior do que

qualquer outro mercado. Henrique Bernardelli, então, conseguirá produzir um

bandeirante à altura das rédeas de Affonso Taunay?

2.2 um bandeirante à la italiana

Como já citado anteriormente, as pinturas expostas no Museu não eram

a livre expressão do artista192. Taunay, nas centenas de correspondências

trocadas com os pintores contratados, comandará o arranjo pictórico das

imagens, aprovando aquelas que condiziam com a abordagem heroica

escolhida. Acreditava que, para a maior veracidade da obra, ela precisava de um

desenho preciso e realista, justamente o que será criticado pelos modernistas.

Dessa forma, Taunay comanda os trabalhos expostos, visitando os ateliês dos

artistas e compartilhando inspirações iconográficas (muitas delas aquarelas de

viajantes, como Debret e Saint Hilaire). Não seria diferente com Bernardelli.

O controle que tentaria exercer sobre o artista fica evidente nas

correspondências trocadas para a produção das obras Ciclo da caça ao índio

(figura 9) e Retirada do Cabo de São Roque, que configurariam dois dos painéis

expostos no museu. A questão relevante é o embate de discursos entre

Bernardelli e Taunay, onde o diretor do Museu sente dificuldade em fazer com

que o artista represente o bandeirante de maneira intrépida, como no quadro de

Calixto. Para a Retirada, falta, segundo Washington Luís, ressaltar o vigor e a

resistência da tropa que havia ganhado contra os holandeses, fazendo com que

190 STUMPF, Lúcia Klück. A terceira margem do rio: mercado e sujeitos na pintura de história de

Antônio Parreiras. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 2014 191 BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. São Paulo: Autêntica editora, 2017, p. 105. 192 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes na contramão da história: um estudo iconográfico. Projeto História, n. 24, pp. 307-335. São Paulo, 2002.

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Bernardelli os coloque em armaduras enquanto são seguidos pelos servos

indígenas e pelos prisioneiros de batalha.193 Já na segunda obra, a forma com

que constitui o bandeirante é em uma posição relaxada, fumando um cigarro de

palha e acompanhado de um cão. Esta obra, se exposta no museu, destoaria

das demais, justamente por retratar um bandeirante completamente diferente de

Domingos Jorge Velho, que seria o modelo para os demais retratos.194

A importância que o controle daquilo que seria representado possui para

Taunay pode ser justificado não apenas pela necessidade de criar um passado

e um presente, mas, também, para planejar um futuro.

Como aborda Giulio Carlo Argan,

Uma ação que determina um valor é uma ação dotada de uma

finalidade e cujo processo se controla: realiza-se no presente,

mas pressupõe a experiência do passado e um projeto de futuro.

A ação artística é uma ação que pressupõe um projeto –

portanto, o procedimento da cópia, que substitui a experiência e

o projeto pelo modelo, não é artístico. E o projeto é uma

finalidade que, realizando-se no presente, assegura à ação um

valor permanente, histórico... A relação experiência-projeto

reflete a relação em que se fundamenta a ideia da ação histórica

e, por conseguinte, da sua representação, a história falada ou

escrita.195

Dessa forma, Taunay compele Henrique Bernardelli a mudar a

composição do quadro e a obra que será exposta mostrará um bandeirante mais

vigoroso, rejuvenescido e intrépido, portando uma arma de cano longo, que,

segundo Maraliz Christo, “remete a impotente figura esculpida por Brizzolara

para o hall, representando Fernão Dias, que a segura da mesma maneira. Essa

pose, própria de um soldado em guarda, está presente na maioria dos

bandeirantes retratados no Museu Paulista. Se o bandeirante ganhou em força,

193 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p.82 194 Idem. 195 ARGAN, Giulio Carlo. A história da arte como história da cidade. Martins Fontes, São Paulo, 1992. p. 23

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a composição tornou-se dura, perdendo a sua antiga poética” (CHRISTO, 2002).

Assim, a composição se aproxima das demais, em uma estética parecida com

as esculturas de Fernão Dias Paes Leme e Raposo Tavares, porém só após

diversas modificações. Levando em conta que a história da arte também deve

se ater para as expectativas do público, levando em consideração a sua classe

social (CASTELNUOVO, 2006), Bernardelli soube se condizer a tais

expectativas que eram pressupostas no projeto, mas, do mesmo modo, também

soube convergir o discurso imposto, em uma relação direta de artista-público196.

Figura 9: Henrique Bernadelli. Ciclo da caça ao índio. 1922. Óleo sob tela. 222

cm x 152 cm. Museu Paulista da USP.

196 Idem.

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As cores terrosas usadas pelo artista na composição imagética do quadro

poderiam configurar um desejo de atrair os olhares a Cardoso de Almeida,

porém, essa paleta de cor é usada não somente na figura central do bandeirante,

mas, também, no fundo da obra, mais especificadamente, nos indígenas197. Não

podemos afirmar que a intenção de Bernadelli fosse necessariamente esta,

porém, esta composição nos leva a acreditar que o artista quis fazer uma

comparação direta com os dois polos do quadro. A cor pode representar, aqui,

uma certa igualdade entre o bandeirante e os indígenas que trabalham ao fundo,

como se ele quisesse nos passar a impressão de que o indígena não era um ser

subjugado à maestria do bandeirante, mas que era um adversário a sua altura.

Isso também pode ser atestado no fato de que Bernardelli, apesar das

modificações feitas a pedido de Taunay, mantém a composição que usaria no

Ciclo da caça ao índio em outra obra intitulada O chefe dos bandeirantes que faz

parte do acervo do Museu Mariano Procópio (MMP)198. O artista, portanto,

consegue, em duas obras extremamente similares – sendo que uma é fruto da

outra –, transitar pelas duas representações bandeirantes, a monumental e a

não-monumental. Porém, não podemos incluir Henrique Bernardelli nos dois

polos opostos, pois ele pertencia mais ao polo não-monumental do que ao

contrário. Conforme Maraliz Christo defende, o seu anti-heroísmo bandeirante

era premeditado; o artista não se interessava em retratar de outra forma. Temos

como exemplo não apenas a obra exposta no MMP, mas outras obras em que o

bandeirante é caracterizado como enfermo, velho e cansado – o que destoam

completamente da epopeia paulista.

A primeira obra com este tema de Henrique Bernardelli é produzida ainda

no período imperial. Intitulada de Os bandeirantes (1889), é um quadro

essencialmente naturalista e realista, justamente por, além da composição

imagética, tratar a humanização e o lugar dos retratados na sociedade. No centro

da tela dois bandeirantes, visivelmente cansados, deitam para tomar água em

197 GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. WMF

Martins Fontes. São Paulo, 2007. 198 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes na contramão da história: um estudo

iconográfico. Projeto História, n. 24, pp. 307-335. São Paulo, 2002.

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um lago no meio da mata, enquanto um indígena capturado observa em pé, de

maneira altiva, seus captores saciarem sua sede como animais. Esta analogia

ao selvagem é implícita; os captores eram restituídos de qualquer honra, pois,

aqui, a honra é toda direcionada ao indígena, provavelmente um pajé, que

mesmo acorrentado mantém sua honra199. Esta visão do bandeirante selvagem

é muito similar a obra já citada de Antônio Parreiras, Os invasores, reforçando a

historicidade e a cultura na qual ambas as obras estavam inseridas.

Figura 10: Henrique Bernadelli. Os bandeirantes. 1889. Óleo sob tela. 400 cm

x 290 cm. Museu Nacional de Belas Artes.

199 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São

Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p. 70

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O anti-heroísmo presente na obra acima não é apenas marcado pela sua

historicidade, já que, no momento em que foi produzida, a epopeia paulista ainda

não era amplamente discutida e nem organizada; o anti-heroísmo era uma

constante na obra do pintor carioca200. Não podemos colocar as encomendas

para o Museu Paulista, ou a criação da epopeia bandeirante, como o fim de

qualquer representação que não fosse a heroica. Muito pelo contrário, as duas

formas convivem simultaneamente e Bernadelli, mais uma vez, nos atesta que

este é um discurso de infinitos significados e interpretações. O que também não

podemos deixar de lado é o papel que o público da obra tem em defini-la201. O

público do Museu Paulista estava inserido no contexto cultural paulistano, ou

seja, ele compreendia aquilo que estava visualizando pois estava diretamente

inserido naquela mentalidade; o observador interpreta a obra de forma que ele

consiga correlacionar com aquilo que entende de seu passado e de sua

vivência202.

Explicar um fenômeno significa identificar, em seu interior, as

relações de que ele é o produto e, fora dele, as relações pelas

quais é produtivo, isto é, as que o relacionam a outros

fenômenos, a ponto de formar um campo, um sistema em que

tudo é coerente.203

As inspirações do artista para um compor uma obra podem dizer muito

sobre o seu olhar educado. O ato de beber ao chão de forma animalesca aparece

também em Um caminho perto de Flarflord (1811) e em O Trigal (1826), de John

Constable, e na obra de Eugènie Delacroix, Bandido mortalmente ferido matando

a sede (1826). Não há como afirmar se estas telas serviram de inspiração para

Os Bandeirantes, mas é quase certo que Bernardelli deve tê-las visto durante

sua formação artística, se não pessoalmente por meio de gravuras. As privações

200 Ibidem. 201 BAXANDALL, Michael. O olhar renascente, pintura e experiência social na Itália da

renascença. São Paulo: Paz e Terra, 1991 202 ARGAN, Giulio Carlo. A história da arte como história da cidade. Martins Fontes, São Paulo,

1992. p. 20 203 Idem.

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de uma caminhada longa e incerta a qual o artista retrata na obra de 1889, pode

ser mais comparada à de Delacroix.204

Aliás, também podemos afirmar que o discurso de privações relacionado

às bandeiras pelo artista é pioneiro, já que será após trinta anos que Alcântara

Machado apresentará os bandeirantes como rudes e pobres. Porém, uma

historiografia mais humanizada das bandeiras, ou seja, não-heroica, já se fez

presente no século XIX. Destacamos aqui o historiador Robert Southey (1774-

1843) abordará em sua obra geral sobre a colonização portuguesa no Brasil a

mineração, onde não omitirá a escravização indígena e as brutalidades

cometidas pelos paulistas. Henrique Bernardelli manifestará sua preferência à

Southey em detrimento dos demais relatos que apagavam as máculas paulistas,

como o de Saint-Hilaire (1779-1853) e de Varnhagen (1816-1878). Dessa forma,

o cacique na tela será retratado de forma altiva e vigorosa, limpo de máculas e

vícios vis. Apesar de sua preferência pelo discurso contrário à glória bandeirante,

Bernardelli mostrara-los carregados de fragilidade humana, à mercê da morte e

dos perigos da mata desconhecida – o que garante, aqui, a superioridade do

indígena familiarizado com os perigos da terra.205

Durante sua estada na Itália, Bernardelli absorvera muito das

características locais, tanto no estilo quanto na técnica. Vivendo em um contexto

pós-unificação italiana, vivenciou a valorização dos tipos italianos,

principalmente da figura do brigantaggio. Camponeses da Itália meridional,

lutavam contra a exploração dos proprietários de terras, sendo perseguidos e

refugiando-se nas montanhas de Ancona e Terracina. A sua visão romântica de

aventureiros e justiceiros foi formada durante a ocupação dos Bourbon em

Nápoles (1816-1870), como uma forma de resistência cultural à ocupação,

quando antes eram tidos como sanguinários marginais. Para Maraliz Christo não

é incabível a comparação direta entre os brigantaggio e o bandeirante de

Bernardelli, já que era muito difícil ao artista fugir da onda cultural e política na

204 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes ao chão. Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, nº30, 2002. 205 Idem.

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qual o meio em que vivia passava. Ainda segundo a autora, a imagem do paulista

como insubmisso à autoridade régia e como aventureiro das florestas fez com

que Bernardelli relacionasse os dois personagens.206

Outra obra de Henrique Bernardelli que atesta, ainda mais, a convivência

dos discursos no mundo artístico é Últimos momentos de um bandeirante, que é

produzida em 1932, ou seja, dez anos após as encomendas para o Museu

Paulista. Nesta obra, um homem desprovido de qualquer glória ou pompa,

assombrado pelo seu passado e engolido pelos anos de duras expedições,

encontra a morte em uma rede simples em um casebre simples. Esta

representação é a que mais destoa da epopeia bandeirante, pois a obra não trata

a empreitada do falecido como algo grandioso; aqui, o bandeirante morre

cansado, desacreditado e desprovido de qualquer reminiscência de um passado

épico. O bandeirante de Taunay, por exemplo, é morto em batalha, enquanto

luta para proteger seu povo, coberto pela pompa da morte de um herói.

Figura 11: Henrique Bernadelli. Os últimos momentos de um bandeirante.

1932. Óleo sobre papel cartão. 23 cm x 30,2 cm. Museu Paulista da USP.

206 Idem.

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Por mais que esta obra tenha sido produzida nos anos 30, ou seja, no

ápice da vanguarda modernista, ela ainda é carregada com uma estética

naturalista e realista207. Seguindo esta premissa, podemos analisa-la a partir da

simbiose ambiente/objeto, onde o ambiente guarda em si toda uma gama de

significados que está atrelado diretamente ao personagem principal da imagem.

Esta é uma imagem escura. A escuridão do ambiente é algo claramente

proposital, dando maior ênfase à claridade que recai sobre o corpo morto do

bandeirante. A escuridão também pode representar o fim e o abraço obscuro da

morte. O casebre modesto e desarranjado é a indicação de uma vida cheia de

penúrias, uma vida em que todo e qualquer luxo é negado – algo que seria

inconcebível na epopeia paulista, já que o ser bandeirante era carregado de uma

mitologia gloriosa que era permeada por uma pompa trovadora e cavalheiresca

medieval. A origem mameluca que foi negada na representação monumental, é

expressa nesta obra pela rede que serve de leito post mortem; os costumes

indígenas não eram apenas passados através da relação captor e capturado,

mas, e principalmente, de uma relação genealógica, passada de geração a

geração. Esta característica paulista, que foi apagada propositalmente na

construção do imaginário bandeirante, é relembrada e mostrada fora dos moldes

institucionais burgueses.

Para Maraliz Christo,

O vigor físico e moral não pertence aos “desbravadores do

sertão”, e, sim, aos índios. Bernadelli não os representa mortos,

espancados ou estropiados. Mesmo quando amarrados ou

carregando pesados volumes, são, em sua maioria, altivos. As

índias, presentes em O chefe bandeirante e Retirada do Cabo

de São Roque, foram retratadas carregando, uma, um grande

fardo e, outra, uma criança. São fortes elementos de

estranhamento, que sugerem a aproximação do andar

bandeirante pelo interior de outras representações de

207 COLI, Jorge. Questões sobre a arte brasileira no século XIX? XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, 2002.

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agrupamentos humanos em marcha, a exemplo de Fugitivos

(1852) de Honoré Daumier.208

Alguns anos antes da produção da obra citada, em 1929, Alcântara

Machado publica Vida e morte do bandeirante, onde o autor caracteriza São

Paulo e seus habitantes por uma pobreza e miséria extremas, onde o papel do

bandeirante, que não possuía outra escolha, era o de tentar dignificar a vida de

privações em que viviam209. Essa corrente historiográfica que dará mais

importância para a análise dos hábitos paulistas, tratará com mais afinco a

relação do paulista com o indígena, além de analisar seus costumes para

justificar seus atos. Esse princípio de revisionismo histórico da cidade de São

Paulo acarretará na reformulação da historiografia bandeirante, que terá como

marco Caminhos e fronteiras (1957) de Sérgio Buarque de Holanda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não podemos afirmar que Bernardelli retratava o bandeirante de forma

não-heroica apenas porque era carioca. Mas podemos afirmar que a corrente

monumentalista havia sido reprimida no final do século XIX e só fora resgatada

com e para as encomendas do Museu Paulista – fora dele vivia-se o fervor da

alegoria da vida privada, de obras de cunho mais intimista e subjetivas. Sendo

assim, Henrique Bernardelli não era um artista fora da curva, muito pelo

contrário, ele estava inteiramente inserido em seu contexto. Seguindo as

comparações com Benedito Calixto, que também não era alheio as

208 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes na contramão da história: um estudo iconográfico. Projeto História, n. 24, pp. 307-335. São Paulo, 2002. 209 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p. 85

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transformações culturais e estéticas, podemos separá-los e dois

enquadramentos distintos. Calixto era monumental pois, além de pintor, era

historiador; e um historiador das bandeiras, da história paulista. Pela lógica que

todo artista é um sujeito singular e que é movido por suas predileções

(BAXANDALL, 2006), Calixto não poderia ser enquadrado fora do padrão

monumental – ele contribuía de várias formas para a criação da mitologia

bandeirante.

A identidade paulista passará por diversas modificações desde o século

XVII, em uma verdadeira mudança de rumo. A valorização de sua imagem será

necessária para a consolidação de uma classe, como um meio legitimador da

opressão classista e hegemônica. A arte, portanto, como representação mais fiel

da nossa sociedade, nos ajuda a desvendar o imaginário daqueles que a

produziram ou mandaram produzir. Naqueles idos do século anterior, a carência

de uma elucidação do passado de um povo, que não se entendia como tal, era

a ordem do dia. Ser contratado para pintar uma obra que configuraria em algum

edifício público significava a ascensão imediata do artista210. Dessa forma, não

se pode ignorar as relações de patronato entre o cliente e o artista, que é

obrigado a atender as demandas que lhe são impostas para poder sobreviver.

Resgatar as particularidades do artista como individuo é entender as relações

de troca de uma sociedade que estava se estruturando em um capitalismo

industrial e comercial. A arte era o ópio do estado.

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RESUMO DA PESQUISA

A imagética bandeirante foi orquestrada por uma classe dominante, uma

elite cafeeira que precisava de justificativas do passado para um presente

hegemônico. A glória do passado, então, serviu de alicerce para a dominação

da classe subalterna. Essa dominação seria proveniente de um campo memorial

e pedagógico; a narrativa bandeirante seria posta como uma instrução

necessária para se fazer compreender as estruturas da sociedade atual. Dessa

forma, a capacidade instrutiva da iconografia foi o principal instrumento para

narrar a grande epopeia da construção nacional e, dentro do Museu Paulista,

encontra o seu palco. A iconografia posta dentro do Museu foi metodicamente

panejada por Affonso Taunay, que, encomendando as obras, resinifica a relação

artista-mecenas, em uma troca bilateral e intelectual. Apesar da forte narrativa

heroica que o bandeirante é inserido, este não é um discurso isolado, pelo

contrário, é um discurso polissêmico e histórico - tem suas particularidades

dentro do contexto cultural e regional em que se insere. Dentro desta polissemia

de significados, podemos caracteriza-lo de duas formas, monumental e não-

monumental. Assim, analisaremos dois artistas que são fundamentais para a

compreensão deste discurso dialético, Benedito Calixto e Henrique Bernardelli,

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analisando o retrato bandeirante a partir das obras produzidas por eles. O herói

poderá, enfim, encontrar o seu fim.

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