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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)
RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA 2018-2019
A CONSTRUÇÃO DE UM IMAGINÁRIO PAULISTA: AFFONSO TAUNAY
COMO UM AGENTE DE MEMÓRIA (1890-1930)
COLEGIADO: FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS
NOME: LÍVIA BARANOWSKI TIERI / RA: 00194407
CURSO: HISTÓRIA-BACHARELADO TURNO: NOITE TURMA: 6º SEM.
ORIENTADOR: PROF. DR. ALBERTO LUIZ SCHNEIDER
SÃO PAULO
2019
1
ÍNDICE
PARTE 1 – RELATÓRIO DE ATIVIDADES
Sistemática adotada pelo professor na orientação...........................................2
Os objetivos alcançados, dificuldades encontradas e as estratégias usadas
para superá-las....................................................................................................2
Atividades acadêmico-culturais.........................................................................3
PARTE 2 – RELATÓRIO CIENTÍFICO
APRESENTAÇÃO............................................................................................5
I.CONTEXTO HISTÓRICO: REPÚBLICA VELHA (1890-1930).........................8
II. O OUTONO DA IMPERIAL ACADEMIA.......................................................15
III. AURI SACRA FAMES.................................................................................24
IV. ENTRE DESBRAVAMENTOS E INVASÕES, A GLÓRIA.........................36
V. NA REDE O HERÓI ENCONTRARÁ SEU FIM
- 1. O empirismo caiçara de Benedito Calixto....................................................42
- 1.1 O mar anuncia as boas-vindas do progresso............................................47
- 1.2 Um historiador à beira-mar........................................................................51
- 2. A contradição de Henrique Bernardelli........................................................57
- 2.1 A rebeldia de um pintor andarilho..............................................................58
- 2.2 Um bandeirante à la italiana......................................................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................72
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................73
RESUMO DA PESQUISA................................................................................79
2
PARTE 1 – ATIVIDADES DESENVOLVIDAS
SISTEMÁTICA ADOTADA PELO PROFESSOR NA ORIENTAÇÃO
Ao longo da pesquisa a orientação do professor Alberto Luiz Schneider se
deu através de reuniões presenciais ou por troca de e-mails, onde foi discutido
amplamente todos aos caminhos que a pesquisa levaria, além da discussão
ampla da metodologia e da bibliografia. O orientador, desde o início da pesquisa,
estimulou a ampliação das fronteiras acadêmicas, propondo artigos e resenhas
referentes ao tema estudado. O interesse do orientador pela pesquisa foi algo
de extrema importância para a continuidade da mesma, sempre disposto a
agregar algo para nossas discussões e encontros.
Durante as férias, que englobou a maior parte do tempo de pesquisa, a
orientação se deu por meio de e-mails e encontros, onde fui estimulada a
produzir conforme a demanda cada vez maior que a pesquisa exigia.
O orientador me estimulou a projetar na presente pesquisa o meu futuro
acadêmico, visando, a partir deste tema, um mestrado. Dessa forma, fui
orientada da melhor maneira para que ampliasse o meu campo de visão,
explorando a capacidade do tema e entrando, cada vez mais, dentro de uma
sistemática que também englobava as margens do meu tema.
OS OBJETIVOS ALCANÇADOS, DIFICULDADES ENCONTRADAS E AS
ESTRATÉGIAS USADAS PARA SUPERÁ-LAS
Seguindo os objetivos propostos no projeto da pesquisa, houve um
avanço maior no que diz respeito à análise social da arte e a sua troca
cultural/pedagógica. Como será demonstrado na segunda parte do relatório,
aprofundei-me mais na relação entre Affonso Taunay, o grande responsável pela
perpetuação do mito bandeirante, e dois pintores de maior relevância para a
3
pesquisa, Benedito Calixto e Henrique Bernardelli. Além de tratar do mecenato
e das trocas intelectuais entre os artistas e Taunay, dei maior enfoque na
retratista bandeirante dos dois artistas acima citados, evidenciando o caráter
polissêmico da imagem do bandeirante – o que é palpável nas obras analisadas.
Encontrei algumas dificuldades na pesquisa, como encontrar uma
historiografia que tratasse de um público operário e local – não apenas o público
estrangeiro. A superação desta dificuldade foi conquistada através da leitura de
bibliografias que tratassem do vínculo e entre as classes sociais e a consequente
predominância de uma classe não instruída, a qual poderia ser moldada
conforme a demanda imposta pela necessidade de legitimação da elite.
Outra estratégia adotada foi entender que a elite cafeeira não se
desassociava completamente de uma elite imigrada, que a disputa entre os dois
“lados” era, principalmente, no campo imagético e memorial. Desse modo, foi-
me de grande ajuda a pesquisa em jornais locais, como O Correio Paulistano,
que durante os primeiros dez anos da República Velha fora um espelho da nova
sociedade burguesa.
A pesquisa, portanto, também buscará o olhar da imprensa local sob as
interações entre classes e a arte – já que ela é o refletor direto das relações
sociais –, além das críticas atribuídas aos dois artistas estudados, Benedito
Calixto e Henrique Bernardelli. Para que possamos compreender a iconografia
como um meio de instrução, é necessário entender que a motivação da utilização
deste instrumento permeia todas as sociedades recém-instauradas.
ATIVIDADES ACADÊMICO-CULTURAIS
Monitoria no curso de História no 1º semestre de 2018 na disciplina
Fundamentos do Sistema Colonial da América Portuguesa, ministrada pelo
professor Alberto Luiz Schneider. A monitoria foi-me de extrema importância
para compreender a sociedade brasileira desde seu cerne, além do uso da arte
como propaganda, sobretudo, no Brasil Holandês.
4
Produção e apresentação do artigo ‘Affonso Taunay como um agente de
memória’ no GT História e Memória: História dos Intelectuais coordenado pelo
professor Alberto Luiz Schneider na XVII Semana de História da PUC-SP.
Estágio no arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no 2º
semestre de 2018 que, apesar de fugir do tema da pesquisa, foi essencial para
o aprendizado no manuseio de fontes históricas, além do contato direto com
processos do século XIX, sendo muitos estritamente vinculados com a elite
cafeeira – que terá grande importância na presente pesquisa.
Idas constantes à Reserva Técnica do Museu Paulista, além de cursos
ministrados pelo Educativo do Museu, como o Encontros com o Acervo, uma
palestra sobre a tela Fundação de São Vicente de Benedito Calixto e outra sobre
a retratista bandeirante, ministrada por Paulo César Garcez Marins.
No primeiro semestre de 2019, participei – como aluna ouvinte – do curso
de pós-graduação da USP ministrado pela Prof. Dr. Lilia Moritz Schwarcz,
intitulado ‘Lendo Imagens’. Mesmo como aluna ouvinte, recebendo autorização
da própria Lilia, participei de todas as atividades do curso, como seminários,
debates e artigos. Já na PUC, fiz o curso optativo ‘A arte brasileira da “missão
francesa” ao modernismo’, ministrada pelo meu orientador Prof. Dr. Alberto Luiz
Schneider.
5
PARTE 2 – RELATÓRIO CIENTÍFICO
APRESENTAÇÃO
Foi de grande importância como instrumento de pesquisa uma bibliografia
que abordasse o cenário artístico nacional naquele momento e suas vicissitudes,
tais como Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano de Caleb
Farias Alves e o artigo de Maraliz de Castro Vieira Christo para o Projeto História,
Bandeirantes na contramão da história: um estudo iconográfico.
Como a arte iconográfica é o enfoque principal da presente pesquisa, fez-
se necessário a adoção do princípio de História Social da Arte, que compreende
a arte com a sua dialética: ela é fortemente influenciada pela sociedade e, ao
mesmo tempo, a sociedade a influencia. Para melhor compreensão de uma
história social da arte e a correlação com a mentalidade e a consequente criação
de uma memória bandeirante, baseei-me fortemente nas análises de Michael
Baxandall em Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros, que
entende a arte como um “depósito de relações sociais” (BAXANDALL, 2006, p.
21), o que elucida o papel crucial que o meio iconográfico teve na formação de
uma imaginário regional; outros historiadores da arte, como Enrico Castelnuovo
6
em Retrato e Sociedade na Arte Italiana: Ensaios de História Social da Arte, E.
H. Gombrich em Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação
pictórica e Giulio Carlo Argan em História da arte como história da cidade dão
ênfase no papel do observador na compreensão e recepção das obras, que são,
antes de tudo, o espelho do meio cultural em que está inserido. Assim como
aprofundei na História Social, também me debrucei na Escola Frankfurtiana com
Walter Benjamin.
Michael Baxandall também foi crucial para analisarmos, aqui, o papel do
mercado artístico nas encomendas das obras para o Museu Paulista, realizadas
por Affonso Taunay. O autor destaca o caráter “mecenático” do mercado
artístico, o que nos leva a situar Taunay como um grande mecenas – além de
um cliente. Na melhor acepção do mercado artístico nacional da época e,
principalmente, no mecenato estabelecido entre Taunay e os artistas
contratados, foi de grande importância os trabalhos de Michelli Monteiro, Ana
Cláudia Fonseca Brefe e Carlos Rogério Lima Júnior, que em seus trabalhos
elucidam a estruturação do Museu Paulista para as comemorações do
centenário de 1922, que movimentou a opinião pública da época, além de ser
um marco para o regionalismo paulista.
No âmbito da construção de um imaginário bandeirante, foi-me de grande
relevância a tese de mestrado de Thais Chang Waldman Entre batismos e
degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo, que, com maestria, traça
um (des)caminho da memória bandeirante e o entendimento da figura
bandeirante até os dias atuais, expondo o fato de que a história paulista (porque
não nacional?) ainda é fortemente influenciada pela noção do bandeirante herói
e como essa noção é contestada por novas mentalidades e concepções, seja no
meio artístico, literário ou informal. Outros trabalhos importantes para a
assimilação do tema foram os de Lúcia Klück Stumpf, Arthur Valle, Paulo
Cavalcante Oliveira Jr., Vera Lúcia N. Bittencourt, Cláudia Valadão de Mattos,
Lourenço Dantas Mota e Karina Anhezini. Destaco também o artigo de Paulo
Cézar Garcez Marins O museu da paz: Sobre a pintura histórica no Museu
Paulista durante a gestao Taunay e o capítulo de J. H. Rodrigues em História
7
Combatente, ambos cruciais para entender como Taunay orquestrou as
encomendas para o museu.
Como o enfoque principal da pesquisa recai em Benedito Calixto e
Henrique Meirelles e as diferentes concepções e representações dos
bandeirantes, saliento o trabalho de Caleb Farias Alves e a sua biografia de
Benedito Calixto, que afirma o início modesto de Calixto nas artes e sua
desconexão com a Academia, algo não usual entre os artistas de maior relevo
da época. Para as pesquisas sobre Henrique Bernadelli, além de utilizar
sobremaneira os artigos de Maraliz de Castro Vieira Christo, embasei-me
também nos artigos de Camila Carneiro Dazzi, sendo essas autoras as únicas a
estudar, até hoje, as obras de Henrique Bernardelli.
Para a contextualização do tema foi-me de grande valor os capítulos de
Elias Thomé Saliba e Suely Robles Reis de Queiroz em História da Cidade de
São Paulo (org. Paula Porta), além dos trabalhos de Lilia Moritz Schwarcz, Silvio
Luiz Lofego, Warren Dean, Ana Paula Cavalcanti Simioni, Nestor Goulart Reis
Filho e Roseli Maria Martins D’Elboux. Para contextualizar a questão bandeirante
e sua mentalidade, baseei-me, principalmente na obra da historiadora Adriana
Romeiro ‘Paulistas e emboabas no coraçao das minas: ideias, práticas e
imaginário político no século XVIII’, onde, em uma brilhante pesquisa, nos
elucida acerca da Guerra dos Emboabas e da lenda negra que rondava os
paulistas. Assim como sua obra, outras também foram de grande importância
para esta pesquisa como ‘Capítulos de história intelectual: racismos, identidades
e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960)’ de Alberto Luiz Schneider
e ‘Heroísmos, sedições e heresias: a construção do ufanismo e do ressentimento
nos sertões da capitania de São Paulo (1768-1774)’ de Michel Kobelinski, assim
como os escritos do jesuíta Antônio Ruiz de Montoya.
As fontes usadas para a presente pesquisa são as telas O mestre de
campo Domingos Jorge Velho e seu lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu,
de Benedito Calixto e Ciclo da caça ao índio, Os bandeirantes e Os últimos
momentos de um bandeirante, todas de Henrique Bernadelli, assim como os
periódicos Correio Paulistano e Revista Illustrada.
8
I. CONTEXTO HISTÓRICO: REPÚBLICA VELHA (1889-1930)
O progresso é uma via expressa em construção, com apenas um caminho
para um trem sem vagão para terceira classe. Para seguir seu rumo é preciso
destruir tudo aquilo que impede sua passagem, afinal, o desenvolvimento é
autodestrutivo. Porém, engana-se quem acredita que ele é repentino e inócuo.
Este conceito ilustrado não desabrocha em terras tupiniquins apenas no final do
século XIX, mas nos acompanha desde o início do Império, dando tema para as
discussões entre liberais e conservadores no Parlamento.1 O progresso, que
1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. História do Brasil Nação: 1808-2010. Vol.3. A construção nacional:
1830-1889. Rio de Janeiro. Objetiva. 2013. Parte 2: A vida política, por José Murilo de Carvalho. P. 83-129.
9
antes tinha como maior significado a substituição da escravidão pelo trabalho
assalariado2 agora era sinônimo de um novo regime, moderno, descentralizado,
que refletia a ascensão econômica de uma elite empreendedora. Esta elite
empreendedora, a elite cafeeira, estava concentrada em uma região que tomava
o protagonismo para si: São Paulo.
A pequena vila paulista despontou seu caminho para a metrópole ainda
no século XVIII, quando, finalmente, se insere no mercado nacional e, apesar
das dificuldades de um clima não favorável e a muralha natural que era a serra
do mar, produz-se cana e exporta-se açúcar.3 Contudo, essa inserção no
mercado nacional não será de grande vulto, mas servirá para preparar o terreno
para o plantio do café, que já nesta época era plantado em terras fluminenses.
A medida em que a demanda pelo café aumenta na Europa, o café vai se
tornando um dos meios mais eficazes para se alcançar a riqueza; do Vale do
Paraíba fluminense ele segue para Minas Gerais e, finalmente, para o Oeste
Paulista a partir de 18504. No Vale do Paraíba paulista o café encontra o seu
auge, em um solo fértil com um clima apropriado.
O aumento do consumo do café possibilitou o investimento de capital
estrangeiro no país, principalmente britânico, que, interessado nas exportações,
financia uma estrada de ferro que facilitaria o transporte e a exportação do café
para o porto de Santos, agilizando, desse modo, o comércio internacional.5 A
estrada de ferro Santos-Jundiaí principiou a mudança tecnológica em que São
Paulo passaria a partir deste momento. Sendo assim, a modernização da cidade
teve seu ponto de partida no governo de João Teodoro Xavier de Matos (1872-
1875), que modernizou a cidade conforme os moldes europeus, alargando ruas,
instalando iluminações a gás, pavimentando ruas e calçadas, demolindo ruínas,
2 O fim da escravidão foi tema para disputas entre liberais e conservadores até o final do Império.
Para os liberais, a escravidão significa o atraso do Brasil em relação ao cenário econômico mundial. Para saber mais sobre a questão ver: ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 3 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 1889-1954. In: PORTA, P. (org.). História da cidade de São Paulo. 3 v. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (terceiro volume), p. 15. 4DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo: 1880-1945. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1971, pag. 9. 5 Idem, pag. 10.
10
etc. A cidade enfim tentava se desvencilhar dos ares de vila, que era apenas
marcada pela estadia dos alunos da Faculdade de Direito, e vislumbrava a
Metrópole, ainda longínqua, mas cada vez mais tangível graças às riquezas que
a indústria cafeeira proporcionava para a elite paulista.6
Contudo, se a possibilidade da transformação de São Paulo em metrópole
ocorreu, sobretudo, a partir de 1870, a realização deste intento ocorreu
efetivamente após a Proclamação da República. Inúmeros motivos deram força
a cidade nesta época, mas talvez a principal fora a fragmentação do polo político
e econômico, que antes era situado na Corte, ou seja, o Rio de Janeiro, que se
torna apenas o polo político, deixando o econômico quase exclusivamente à São
Paulo. Desta forma, os principais agentes do "Progresso da Nação" eram
paulistas e atuaram em prol do principal motriz do progresso, a República — que,
aliás, nasceu em solo paulista7. Estes agentes faziam parte da elite paulistana,
elite essa que detinha parte considerável dos meios econômicos e comerciais
do país, quase inteiramente dependente do café.
Se o advento da estrada de ferro possibilitou o aumento do comércio
cafeeiro e, consequentemente, a urbanização proveniente de seu capital, com a
queda do Império a ascensão paulista se deu de forma mais acentuada e
hegemônica. A medida em que São Paulo ia se tornando um polo econômico, a
região nordeste ia entrando, cada vez mais, em acentuada decadência, assim
como o Vale do Paraíba fluminense. Porém, o poder econômico da elite paulista
cafeeira ainda não era um poder político, já que, mesmo decadente, a capital
imperial ainda era a mandante política, com seu caráter centralizador, o que
impedia a autonomia da região paulista. Esta era uma das causas da
insatisfação da elite paulista, que acarretou em um forte desejo de mudança, de
progresso, que era representado por um regime que daria fim à centralização
governamental e possibilitaria a maior participação de São Paulo no cenário
econômico e político do Brasil. Assim sendo, essa elite insatisfeita, junto com um
6 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 1889-1954. In: PORTA, P. (org.). História da cidade de São Paulo. 3 v. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (terceiro volume), p. 15. 7 A criação do primeiro partido republicano, o PRP, se deu na Convenção de Itu, em 18 de abril de 1873.
11
Exército também insatisfeito, foi a grande responsável pela queda do Império na
madrugada do dia 15 de novembro de 1889.8
Segundo Warren Dean, com a queda do Império e a consequente
descentralização, o Estado paulista foi capaz de reter para si os lucros
provenientes de um comércio que, a partir daquele momento, não possuía mais
o entrave rígido da coroa. Ainda segundo o autor, outros fatores possibilitaram o
crescimento da economia cafeeira em São Paulo a partir de 1890, como a
abolição da escravidão em 1888, que permitiu uma mão-de-obra mais eficiente
e produtiva, e uma praga que atingiu o Ceilão, principal concorrente de São
Paulo, e destruiu quase que totalmente a produção cafeeira.9 A prosperidade
econômica de São Paulo refletiu diretamente na política. Após o governo militar
de transição, os três próximos presidentes civis do Brasil foram paulistas,
alternando, depois, com políticos mineiros, caracterizando a política “café com
leite”.10
As mudanças que ocorreram na cidade a partir deste momento, buscaram
refletir o novo status de metrópole. Mesmo com as reformas de urbanização da
década de 1870, São Paulo ainda possuía ares de vila colonial; é apenas a partir
das décadas de 1880 e 1890 que a cidade passa por uma intensa transformação,
em vias de, cada vez mais, se europeizar11. As construções de taipa e pilão, tão
características do Brasil colônia, são demolidas e dão lugar aos modernos
arranha-céus, em uma velocidade espantosa. Os imigrantes, que já nessa época
representavam a metade da população paulista, trouxeram para cá métodos de
construção e estilo arquitetônico europeu, sendo os maiores responsáveis pela
nova feição da cidade.12
8 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 1889-1954. In: PORTA, P. (org.). História da cidade de São Paulo. 3 v. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (terceiro volume), p. 15. 9 DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo: 1880-1945. Tradução de Octavio Mendes
Cajado. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1971, pag. 10. 10 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na Cidade de São Paulo: 1889-1954.
In: PORTA, P. (org.). História da cidade de São Paulo. 3 v. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (terceiro volume), p. 17 11REIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo e outras cidades: produção social e degradação dos
espaços urbanos. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1994, p. 23 12 Ibidem, p. 22
12
Segundo Nestor Goulart Reis Filho,
As mudanças vividas no Estado, ao longo do último século,
podem ser bem exemplificadas pelo que se passou na Capital.
Cada cidade tem a sua fisionomia, a sua feição, como as
pessoas tem um conjunto de traços com os quais se constrói a
sua identidade, o seu caráter. Mas uma fisionomia se transforma
com o tempo. Em São Paulo, esse caráter se perde com
facilidade e as novas gerações se perguntam qual é a nova
fisionomia, qual é o caráter da cidade.13
A facilidade com que a cidade se reconstrói causa a sensação de
progresso e a descaracterização da cidade oitocentista, que é profundamente
modificada, afim de se encaixar nos moldes europeus. Ruas foram alargadas e
pavimentadas, avenidas foram criadas, bairros foram planejados, e, assim, a
cidade se expandia cada vez mais – porém, se dividindo. Com a chegada de
imigrantes, a expulsão de trabalhadores do centro e a construção de vilas
operárias, a periferia foi tomando forma. Bairros como o Brás e a Freguesia do
Ó são tomados por cortiços e casebres pobres, que abrigam, muitas vezes, mais
de uma família em um cômodo, em um rico contraste com bairros planejados
como Higienópolis e Campos Elíseos, famosos por suas mansões.14
Apenas o prestígio econômico e a reestruturação urbana não eram o
suficiente para a cidade, e muito menos para a elite. Era preciso algo mais sólido,
concreto e mítico. O papel dos paulistas na memória coletiva antes do século XX
sempre fora o de coadjuvante; eles nunca foram uns grandes senhores de
engenho, por isso nunca foram de grande importância no cenário político e
social. Consequentemente, eram vistos como simplórios, rudes, mamelucos e
distante de qualquer ditame metropolitano. Estas alcunhas jamais poderiam ser
o significado de progresso e muito menos poderiam ser atreladas aos grandes
Barões do Café. Os paulistas precisavam de um começo épico que justificasse
o presente glorioso.
13 Ibidem, p. 17 14 Ibidem, p. 27
13
A identidade de São Paulo se fez, então, a partir desse
ofuscamento da memória que, senão eliminou, turvou bastante
a transparência do passado, selecionando imagens consensuais
que foram se tornando cada vez mais opacas à percepção
social.15
Sendo assim, a construção de um passado glorioso estava na ordem do
dia. Logo após a Guerra do Paraguai (1864-1870) o país entra em uma profunda
crise econômica e política – que será uma das causas da queda do Império em
1889 –, que resultará, também, em uma crise de identidade. O país clamará pela
autonomia cultural regional e esse fenômeno possibilitará uma mudança de olhar
historiográfico, desviando do litoral e focando no sertão inóspito e, até então,
pouco explorado.16 Desse modo, essa nova manifestação historiográfica e o
crescimento do prestígio paulista acarretou na valorização da nobiliarquia
paulistana, como a republicação da obra de Pedro Taques de Almeida
Nobiliarquia Paulistana Historica e Genealogica, que tivera Affonso d'E. Taunay
como grande responsável. Taunay, filho do Visconde de Taunay e um historiador
devotado, não fora unicamente responsável pela revalorização da nobiliarquia
paulistana, mas também fora o grande responsável pela criação e,
principalmente, pela evocação do mito bandeirante, o que mais tarde se tornaria
sinônimo de paulista.17
O mito se valia a partir de que se tornava razão de ser do paulista
moderno, uma justificativa que englobava não apenas um passado regional, mas
também um passado nacional, já que "a história de São Paulo é a História do
Brasil"18. Quando antes ser paulista era ser bárbaro, agora era ser herói. O papel
de coadjuvante fora deixado para trás, dando lugar ao protagonismo bandeirista;
o papel de São Paulo no cenário nacional não apenas se restringia ao presente,
15 SALIBA, Elias Thomé. História, memorias, tramas e dramas da identidade paulistana. In: História da cidade de São Paulo, vol. 3. Paz e Terra, São Paulo, 2004 p.570 16 Este fenômeno tem como grande responsável Capistrano de Abreu (1853-1927). O
revisionismo representava o enfoque do povoamento e das bases econômicas e sociais para a compreensão da história nacional, possuindo base positivista e regionalista. 17 Affonso D’Escragnolle Taunay foi um importante historiador das bandeiras paulista e filho do
Visconde de Taunay. 18 Lema do IHGSP.
14
mas se estabelecia no passado. O paulista só dava impulso a modernização no
país pois no passado fora ele que expandira as fronteiras e criara a Nação de
fato, pois enquanto o Nordeste açucareiro se limitava a abastecer o comércio de
Portugal, os bandeirantes, ou seja, os paulistas, criavam geograficamente o
Brasil.19
Para a nova elite dirigente – antes de tudo, uma elite cafeeira e, grosso
modo, “quatrocentona” – era necessário criar barreiras e distinções
paulatinamente maiores com a elite imigrante que crescia na cidade, uma elite
que se diferenciava dos trabalhadores também imigrantes pela riqueza que, na
maioria das vezes, provinha do comércio. Esta elite imigrada – como Francisco
Matarazzo e Rodolfo Crespi – foi responsável pelas primeiras grandes indústrias
nacionais que, por sua vez, foram as responsáveis diretas pela criação da classe
operária brasileira.20 Com a criação das grandes indústrias e com a vinda de
mais trabalhadores para as fábricas, a hegemonia da elite cafeeira foi perdendo
força a medida em que seu capital foi perdendo espaço para os novos
empreendimentos capitalistas. É neste âmbito que a narrativa bandeirante é
inserida: ela não servia apenas para evocar uma memória perdida – ela era um
poderoso instrumento de instrução e de perpetuação do domínio de uma
classe.21 A constituição imperial, após a Reforma Pedreira, garantia o ensino
primário público, porém, este ensino era restringido à uma parcela pequena da
população, ou seja, à elite22. A verve positivista do novo regime, porém,
impulsionava a atuação exclusiva do governo na educação e a sua maior
inclusão, desse modo, escolas públicas foram abertas e a instrução foi cada vez
mais valorizada – mas, apesar da maior inclusão em comparação à dados
19 MOTA, Lourenço Dantas. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. Vol.2. São Paulo, Senac, 2002. Afonso d'Escragnolle Taunay - História geral das bandeiras paulistas, por Wilma Peres Costa, p. 97-121 20 DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo: 1880-1945. Tradução de Octavio Mendes
Cajado. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1971, pag. 19. 21 LOFEGO, Silvio Luiz. IV Centenário da Cidade de São Paulo: uma cidade entre o passado e
o futuro. São Paulo: Annablume, 2004, p.26 22 SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857): e a
constituição do espaço social do artista. Cadernos Cedes, ano XX, no 51, novembro/2000, p. 103-118.
15
imperiais, o ensino primário, médio e, sobretudo, superior, ainda eram restritos
a condições de classe social.23
A instrução não se faz somente nas escolas ou nos livros didáticos, ainda
mais quando é preciso alastrar este conhecimento não só para a parcela
alfabetizada dos habitantes. Durante a construção da identidade nacional no
Segundo Reinado (1840-1889) um dos instrumentos mais eficazes para a
criação de uma memória foi a iconografia.24 Por meio dela um passado é criado,
reivindicado e alastrado. Para este fim instituições, como a Academia Imperial
de Belas Artes (AIBA) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
serviram de base para tal intento, formando e financiando os agentes
necessários. Artistas como Victor Meirelles e Pedro Américo ajudaram a criar a
épica nacional com os seus grandes quadros históricos, principalmente após a
Guerra do Paraguai, que evidenciavam e propagandeavam as glórias do
Império.25 Isto não se daria de outra forma com São Paulo. Não mais a nação
precisava ser construída, mas, sim, os agentes que de fato a construíram. Deste
modo, as elites paulistas utilizarão a iconografia como, antes de tudo, um meio
de representação, onde, segundo Roger Chartier, a realidade social é construída
e orquestrada.26 Os bandeirantes, ou seja, os grandes construtores da nação,
serão os antepassados diretos desta elite cafeeira, que, a partir daquele
momento, terá uma justificativa heroica para governar não só a cidade, mas o
país.
De acordo com Michelli Monteiro,
A pintura histórica tornava-se, assim, um poderoso instrumento
capaz de legitimar a posição ocupada por essas elites,
constituindo-se como “lugar de memória”, já que tinha o poder
23 Ibidem, p. 21. 24 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos naturais.
Sociol. Antropol. (online). Vol. 4, n.2, pp. 391-431 25 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:
EDUSC, 2003, p. 120 26 CHARTIER, Roger. O mundo como representaçao. Estudos Avançados, 11 (5), 1991.
16
de idealizar cenas do passado, de modo a poderem ser
consideradas dignas de compor o imaginário da sociedade.27
Foi em 1922 que o bandeirismo tomou mais força. Com o centenário da
Independência — e antes com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) —, a
necessidade do fortalecimento da identidade cultural ficara mais forte e mais
precisa. Era preciso separar e institucionalizar o regionalismo, deixar explícito o
papel de cada região para a criação da Nação, deixando claro, assim, que o
Brasil se libertara da metrópole portuguesa unicamente por causa de seu povo.
Contudo, apenas um território poderia se sair soberano; e, se libertando das
amarras da Corte, o Rio de Janeiro perdia o posto para São Paulo, que agora
representava o progresso que regia o país. O impacto da urbanização e do
desenvolvimento econômico da cidade gerou na elite política um orgulho
regional, que rapidamente se transformara em identificação coletiva.28
Se a classe dirigente já possuía o seu meio de dominação, era preciso um
lugar que o divulgasse e o perpetuasse. Este lugar era um velho conhecido da
cidade. O Museu Paulista que, desde 1895, funcionava como um museu de
história nacional passava por uma profunda reestruturação com a nomeação de
Affonso d'E. Taunay em 1917 para diretor do museu, escolhendo-o para narrar
a história da cidade que, antes de tudo, era o elo da história nacional. Afinal, o
Brasil era aquilo que havia se tornado pois São Paulo, com suas bandeiras e
próceres, possibilitou tal futuro.29 Com as comemorações da Independência em
1922, Taunay cria uma narrativa dentro do Museu que, até os dias atuais, é
reivindicada e revisitada. A epopeia bandeirante caracterizará uma população
que, a partir da Revolução de 1932, será inteiramente descendente dos
sertanistas. A épica, enfim, estava criada e enraizada.
27 MONTEIRO, Michelli. Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva: trajetórias de uma imagem urbana. Dissertação de mestrado defendida na FAU/USP – 2013, p. 5 28 OLIVEIRA JR, Paulo Cavalcante. Affonso d'E. Taunay e a construção da memória bandeirante. IHGB, Rio de Janeiro, junho 1995. pag. 15 29 ABUD, Katia Maria. O Sangue Intimorato e as Nobilíssimas Tradições (a construção de um
símbolo paulista: o bandeirante), São Paulo: Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP, 1985. P. 132
17
II. O OUTONO DA IMPERIAL ACADEMIA
Antes de tudo, a Nação é um projeto. Um projeto que demandou a
submissão de artistas à um tema recém-explorado naqueles meados de
oitocentos: o indianismo30. Da literatura para as artes plásticas, a temática foi
altamente popularizada com o intuito de vangloriar a verve guerreira e egrégia
do indígena, buscando avidamente um passado nacional autêntico que
distinguisse e dignificasse a história do Brasil31.
O projeto foi amplamente financiado pelo governo imperial e o instrumento
mais eficaz da produção dessa memória foi a Academia Imperial de Belas-Artes
(AIBA). A seleta Academia, decretada ainda por D. João VI em 1816, desde seu
início conturbado teve a missão de tornar a ex-colônia civilizada32. As artes
plásticas, além de ser um meio pedagógico eficaz, era um poderoso símbolo da
nobreza.33 Artistas eram contratados por toda a corte europeia para fazerem
parte do staff real, popularizando a imagem de um monarca e de sua família,
fazendo com que a arte se tornasse, também, um instrumento diplomático. Por
este motivo, o ofício era amplamente incentivado pela coroa, que fundava e
mantinha academias de pintura oficiais, além de Salões de Exposição e Galerias
Reais. Os Bragança não eram alheios a este costume; em 1816 desembarca no
Rio de Janeiro a Missão Artística Francesa, responsável por inserir a educação
artística nessas terras, administrando e moldando a Academia.34
30 O movimento caracterizado como indianismo tinha como pressuposto a revalorização da
origem indígena da recém-criada Nação. Este novo olhar sobre o passado nacional teve como estopim com a publicação de Primeiros Cantos (1846) de Gonçalves Dias. Sobre indianismo, ver: PADILHA, Solange. O imaginário da nação nas alegorias e indianismo romântico no Brasil do século XIX. II Congresso de Patrimônio Histórico, 2002. 31 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos naturais. Sociol. Antropol. (online). Vol. 4, n.2, pp. 391-431 32 SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857): e a
constituição do espaço social do artista. Cadernos Cedes, ano XX, no 51, novembro/2000, p. 103-118. 33 SCHLICHTA, Consuelo Alcione Borba Duarte. A pintura histórica e a elaboração de uma
certidão visual para a nação no século XIX. Tese de doutorado. 34 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível sob o olhar do "outro": Jean Baptiste Debret e o Rio de Janeiro (1816-1831). Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, Vol.4, 2007.
18
Apesar da tentativa de uma legitimação da coroa portuguesa no Brasil
através das artes é apenas no Segundo Reinado, mais especificadamente com
a Reforma Pedreira e com a gestão de Araújo Porto Alegre (1854-1857), quando
o governo central reestrutura a formação pública, que a Academia de Belas-
Artes vai se moldar a estrutura clássica e se tornará um apêndice da propaganda
imperial35. Os alunos, então, seguiam o molde; aprendiam a desenhar de forma
geométrica, estrutural e matemática – costumes não esquecidos de uma
inclinação neoclássica. Ingressavam prematuramente nos estudos e eram
preparados para o grande triunfo da carreira: uma obra vencedora do Salão
Anual que lhes conferiria, além do prestígio, o financiamento dos estudos na
Europa – pagos, com muito prazer, aliás, pelo Imperador36.
(...) a despeito do desejo de se igualar as nações “cultas” da
Europa, como a França, as elites do período não estavam
acostumadas a admirar, ou comprar, obras de artes. Restava
aos artistas e alunos da Aiba a esperança de que suas obras
agradassem a D. Pedro II, praticamente o unico comprador das
produções da Academia. A raridade das encomendas e a falta
de publico tornavam imperioso que alunos, ex-alunos e até
professores da Academia realizassem outras atividades,
alternativas a atividade artística, para sobreviver.37
Não possuindo um mercado ativo, os pintores eram reféns da Academia
e do Império. Destacavam-se aqueles que ganhavam o prêmio, com o destino
para a Académie Julian38, em Paris, onde aprendiam as melhores técnicas
francesas. Quando retornavam ao Brasil, os que davam sorte, viravam retratistas
de uma nobreza fissurada na cultura europeia, ou, recebiam encomendas do
35 Idem. 36 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:
EDUSC, 2003, p. 85. 37 SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857): e a
constituição do espaço social do artista. Cadernos Cedes, ano XX, no 51, novembro/2000, p. 103-118. 38 Para ver mais sobre a Académie Julian, ver: SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão: pintora – a Académie Julian e a formação das artistas nos finais do século XIX em Paris. Caderno Pagu, nº 15, 2000.
19
governo central – retratos ou pinturas históricas39. Desta forma, o mercado
artístico germinava; utilizando o conceito de troc, de Michael Baxandall,
podemos caracterizar a AIBA como um mercado intelectual e o governo central
como um mecenas, onde as trocas eram bilaterais e, sobretudo, intelectuais. O
mercado faz parte do contexto cultural do artista, assim como do mecenas40.
Uma crise atingiu a Academia nas décadas de 1870 e 1880. Esta crise foi
fortemente marcada pelo debate da Exposição Geral de 1879, onde a crítica se
dividiu entre Victor Meirelles e sua Batalha dos Guararapes e a Batalha do Avaí,
de Pedro Américo41. Uma parte da crítica ficou ao lado de Meirelles, que era a
fidedigna projeção da Academia, com seu traçado neoclássico e estático, e a
outra, com uma inclinação mais moderna (não podendo, ainda, enquadrar em
uma visão naturalista) que priorizava a cor e o movimento42. Era o início da
decadência da instituição e, a posteriori, do regime imperial.
Por conseguinte, a crise da AIBA seguiu à do Império, e, após as grandes
encomendas sobre a Guerra do Paraguai, feitas à Meirelles e Américo, o
mecenato do governo central diminui drasticamente, assim como o seu
financiamento43. Com a Proclamação da República, não se sabe o destino da
Academia. O maior propósito da instituição de perpetuar a imagem do Império já
não mais existia; qual a importância, então, ela teria sob o novo regime? Esta
foi, sem dúvida, a principal indagação da época – o destino não apenas da
Academia, mas, também, do mercado artístico. Com a mudança de Academia
para Escola, há uma fragmentação entre instituto e mercado. A ENBA não deixa
de cumprir seu papel como formadora artística, porém, é desassociada ao
mundo mercadológico. A função que antes era ocupada pelo Estado passar a
ser ocupada por instituições burguesas, que estavam, de fato, no poder.
39 SCHLICHTA, Consuelo Alcione Borba Duarte. A pintura histórica e a elaboração de uma
certidão visual para a nação no século XIX. Tese de doutorado. 40 BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. Companhia
das Letras, São Paulo, 2006, p. 89 41 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:
EDUSC, 2003, p. 135. 42 Idem, p. 148 43 MIGLIACCIO, Gustavo Barreto de. “Arte no Brasil entre o Segundo Reinado e a Belle époque”.
In: BARCINSKI, Fabiana (org.). Sobre Arte Brasileira: da pré-história aos anos 60. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 174-230.
20
Com a desfragmentação do poder central, o Estado virou federativo; as
antigas províncias, agora cidades que demandavam uma memória, viraram, por
si só, mercados ativos que disputavam o imaginário nacional. Após os primeiros
anos de instabilidade, cresce a demanda artística, consequência da construção
em massa pelo Brasil de edifícios públicos que seguiam uma tendência
decorativa importada da França e da Alemanha, onde a decoração interna era
composta de grandes painéis e obras que relatavam a história da cidade,
principalmente de sua fundação44. Paralelamente, cresce o mercado informal,
que é acompanhado da abertura de Galerias de Exposição, no Rio de Janeiro e
em São Paulo. Este mercado informal é o fruto da maior concentração de renda
de uma burguesia cafeeira, que passou a tratar a arte não apenas como um
produto de permuta, mas, principalmente, passou a vê-la como uma
demonstração de riqueza e poder45.
Apesar do crescimento das incumbências privadas, as maiores
aquisições ocorrerão na esfera pública, com o objetivo maior da criação da
epopeia bandeirante.46 Não há como separar totalmente, porém, as duas
esferas, pública e privada, pois os interesses eram mútuos e os objetivos
intrinsecamente ligados. A aristocracia paulista, cafeeira, era a gestora, de fato,
da grande metrópole; sendo uma classe dominante, em todo seu sentido, ela
possuía todos os meios para se perpetuar e conseguir aquilo que mais almejava:
respeito e prestígio. Desse modo, trabalhou para construir uma imagem que
pudesse evocar o paulista como construtor empírico do Brasil, e nada mais
acertado do que o papel do paulista do século XVI, aquele que de fato aumentou
as fronteiras do domínio português. Este paulista ancestral fora inventado e
reinventado, dando forma ao destemido e bravo Bandeirante, que com sua
coragem e destreza representava tão bem o paulista moderno.
44 VALLE, Arthur. “Pintura decorativa na 1a Republica: Formas e Funções”. In: 19&20. Rio de
Janeiro, vol. II, no 4, outubro de 2007. 45 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:
EDUSC, 2003, p. 150. 46 OLIVEIRA JR, Paulo Cavalcante. Affonso d'E. Taunay e a construção da memória bandeirante. Rio de Janeiro, 1995, p. 131
21
Já criada na historiografia, o mito bandeirante precisava de um palco tão
glorioso quanto seu pretexto. O palco já estava montado nas colinas do Ipiranga
e já abrigava, desde sua inauguração em 1895, uma grande pintura histórica –
Independência ou Morte!, de Pedro Américo – e outras obras históricas, de
menor porte, como pinturas de Benedito Calixto, que tratarei mais adiante.
Porém, a gestão de Hermann Von Ihering (1894-1916) não serviria para o
intento: apesar de aceitar obras de valor histórico, a sua gestão era pautada,
sobremaneira, em história natural. Com a sua demissão, o Museu Paulista se
tornará, além de um museu histórico, uma prova do passado glorioso paulista,
onde telas encomendadas representavam o mito bandeirante, narrando seus
grandes feitos e dispostos de modo que conseguissem passar a informação
necessária para o grande público47. O grande responsável pela encomenda
destas obras e seu arranjo no espaço do museu foi Affonso d'E. Taunay que,
eleito diretor do Museu Paulista em 1917, assumiu o cargo com um objetivo
definido, que era o de decorar e rearranjar o museu para as comemorações do
centenário da Independência em 1922.
A invenção do passado nacional, com uma origem determinada,
marcos históricos precisos, heróis e símbolos memoráveis se
apresenta como poderoso instrumento pedagógico capaz de
forjar uma identidade nacional intrinsecamente comprometida
com os interesses das elites políticas e intelectuais paulistas.
Deste modo, as camadas dirigentes de São Paulo vislumbram,
no universo cultural a ser representado no Monumento do
Ipiranga, a possibilidade de se auto afirmarem através da
construção de um campo simbólico.48
Affonso Taunay fora indicado para o cargo de diretor do Museu por
Washington Luís, um político que estava ligado diretamente à oligarquia
cafeeira49. Com sua nomeação ao cargo, Taunay ficara diretamente incumbido
47 BREFE, A.C. Um lugar de memória para a nação: o Museu Paulista reinventado por Affonso d'Escragnolle Taunay. São Paulo, 1999, p. 67 48 Idem, p. 101. 49 OLIVEIRA JR, Paulo Cavalcante. Affonso d'E. Taunay e a construção da memória bandeirante.
IHGB, Rio de Janeiro, junho 1995, p. 17
22
da tarefa de reorganizar o museu para o Centenário da Independência, que havia
muito estava sendo planejado por todo país. Apesar de ser uma comemoração
nacional, esta era a oportunidade de ascender São Paulo aos olhares da nação:
a comemoração perfeita para demonstrar, de fato, que a cidade fora central para
todos os acontecimentos que levaram a expansão geográfica e a emancipação
nacional. Em suma, o Brasil apenas era o Brasil de fato porque os bandeirantes
– diga-se, os paulistas – possibilitaram sua construção empírica50. Este discurso
foi o pilar da nova organização do “novo” Museu Paulista, que seguirá uma
narrativa através do novo acervo histórico, que será guiado pela iconografia.
Dessa forma, o Museu será fechado para a preparação da comemoração
e, durante este tempo, o governo disponibilizará uma verba para que a nova
direção dispusesse o novo arranjo museológico. Taunay que, segundo J. H.
Rodrigues, seguia “a corrente do revisionismo factual, mais especificamente,
factualismo apaixonado e factualismo ideológico” (RODRIGUES, p. 241), além
de, intrinsecamente, seguir um factualismo religioso, provinha de uma linha
metódica e usava o documento como fonte primária e fundamental para a
validação da “verdade”; o seu método positivista refletiu na encomenda e na
produção das obras que fariam parte do novo acervo. Consequentemente, tratou
a imagem como um documento51. Em sua organização, escolheu os
personagens da gloriosa narrativa – sempre prezando pela veracidade dos
personagens, que eram frutos, boa parte, de uma pesquisa genealógica e de
documentos que podiam ser retirados de atas da Câmara, de documentos régios
e de fotografias52.
Escolhido os personagens, inicia-se a construção da imagética popular.
Taunay atua como um mecenas moderno, seguindo a mesma relação de troc,
defendida por Baxandall: seleciona os artistas aos quais negociar as obras e
influencia diretamente na produção das imagens como um veículo de troca
50 Ibidem, p. 67. 51 ANHEZINI, Karina. Um Metódico a Brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay
(1911-1939). São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 31 52 Idem.
23
intelectual53. A iconografia, consequentemente, se tornou um meio de resgate
de memória que “quando não era achada era encomendada”54, de forma que a
imagem encomendada seguisse o padrão determinado para a caracterização do
bandeirante, ou seja, a representação de um paulista europeizado. Portanto, o
bandeirante era um molde; a sua caracterização seguia uma historiografia
advinda do final do século XIX e que transpassava o milênio, sendo fortemente
desenvolvida pelo IHGSP, ao qual Taunay era membro e fiel “seguidor”55. Como
falaremos mais adiante, a primeira representação do bandeirante no Museu
Paulista foi com a obra O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu lugar-
tenente Antônio Fernandes de Abreu de Benedito Calixto, adquirida pelo museu
em 1903 ainda na gestão Ihering. Esta será a representação perpetuada, o
bandeirante como um homem branco europeu (ignorando as origens indígenas),
com trajes cosmopolitas e guerreiros, portanto sua arma e seu elmo56.
Os artistas determinados por Taunay eram, em sua maioria, advindos da
Academia – agora, Escola Nacional de Belas-Artes (ENBA). Eram estudantes
advindos da transição de gestão, provenientes da onda modernizadora, que
seguia as estéticas naturalistas e realistas57. Consequentemente, a estética
utilizada nas encomendas também era a naturalista. Um dos fatores da escolha
da estética naturalista, era que ela era uma via direta de comunicação entre as
elites e outros grupos sociais, pois ela usa a experiência cotidiana e o repertório
pictórico tradicional na compreensão mais abrangente da obra58. Ou seja, a
forma pedagógica do quadro fica mais evidente, podendo ser compreendida
universalmente por meio de características próprias da cidade colonial, não
restando dúvidas daquilo que está retratado. Outro fator para a escolha da
53 BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. Companhia
das Letras, São Paulo, 2006, p. 90 54 OLIVEIRA, P.C. Op. Cit., p.43 55 ANHEZINI, Karina. Um Metódico a Brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 111 56 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p.41 57 JÚNIOR, Carlos Rogerio Lima. Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, o Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 2015, p.120 58 ibid, pp. 155
24
estética naturalista era o crescente mercado artístico de São Paulo e do Rio de
Janeiro que tinham grandes instituições burguesas, como o Museu Paulista,
como gestoras do lucro proveniente de tais obras59. Sendo assim, a
comercialização estava amparada financeiramente por representantes da elite e
da política, que facilitariam o trabalho de Taunay na composição do novo acervo
iconográfico do Museu, que, como aponta Vera Lucia N. Bittencourt, era o “(...)
espaço expositivo organizado para "aprisionar" o olhar, seduzi-lo e provocar no
expectador a sensação de ser capaz de reencontrar, em imagens e objetos, os
sinais e traços de uma identidade, que se supunha perdida, mas que é dado a
ele "encontrar de novo" (...)60. Os representantes das famílias paulistas de maior
vulto estavam, em sua maioria, inseridos na política do estado. Isso quer dizer
que as encomendas feitas por Taunay passam pelo crivo dessas famílias, que
selecionavam aquilo que mais os convinha, já que os retratados eram os seus
antepassados diretos e legítimos61. Eles utilizam o poder que a encomenda e o
mecenato possuem de dominação e legitimação política62.
As encomendas para o Museu foi a maior já feita por um museu brasileiro,
onde as expedições para o Oeste eram reproduzidas de forma que o público a
entendesse como uma marcha pacífica e gloriosa, ignorando propositalmente a
violência implícita nas bandeiras e em suas máquinas de guerra63.
Segundo Paulo César Garcez Marins,
Seu programa decorativo e suas exposições voltavam-se não
para os eruditos de seus círculos político literário e
historiográfico, mas para o visitante comum. Para eles, Taunay
optou pela narrativa consensual e, em todos os longos anos de
59 LIMA, S. F. de; CARVALHO, V.C. de. São Paulo Antigo, uma encomenda da modernidade: as fotografias de Militão nas pinturas do Museu Paulista. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, n.1, 1993., p. 154 60 BITTENCOURT, Vera Lucia N. Affonso d'Escragnolle Taunay: a musealização de acervos e práticas historiográficas. Museu Paulista-USP. São Paulo, 2017. p. 105 61 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:
EDUSC, 2003, p. 248 62 CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na arte italiana: ensaios de história social da
arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 175 63 Até o século XVIII, os paulistas eram denominados de ‘máquina de guerra’ da coroa
portuguesa, pois ofereciam seus serviços bélicos aos empreendimentos reais, como a tomada do Quilombo de Palmares em 1695.
25
sua gestão, jamais houve oscilação significativa nesse seu
projeto visual, de dar a ver uma história do Brasil como uma
história de paz64.
O “visitante comum” não é apenas uma generalização. O novo arranjo do
museu quis, justamente, atrair a camada mais baixa da população – a classe
que seria dominada. Esta camada não era apenas representada por uma
população local, também ela era fortemente representada por imigrantes, que
foram os grandes responsáveis pela consolidação dos museus históricos
nacionais, os principais meios de contar a história do país que os acolhia. Deste
modo, o discurso pacifista adotado por Taunay foi uma estratégia de
conformidade e acomodação entre a classe dominante e a subalterna65. A saga
heroica da elite cafeeira (os descendentes diretos dos bandeirantes, até o
momento) não era o único instrumento de dominação. O instrumento mais eficaz
se fez na iconografia, quando a imagem evocada era atrelada ao guerreiro
protetor, que no passado protegeram as fronteiras do país e seus habitantes e,
agora, encarnados nos quatrocentões, protegiam a população subalterna dos
perigos trazidos, a priori, pela elite imigrante que não vinha como mão-de-obra.
A iconografia, portanto, era a melhor maneira de se expor a ideia central.
Podemos entender iconografia, aqui, como o retrato, personificação do state
portrait do século XVII, como definiria Enrico Castelnuovo. O state portrait não
mais representaria os caracteres individuais do retratado, mas, sim,
representariam os caracteres de uma classe social66. Por este motivo analisarei
nesta pesquisa mais especificadamente o retrato bandeirante e suas
vicissitudes, que foram a encarnação dos desejos monárquicos de uma elite
republicana, que possuía os meios propagandísticos através de uma instituição
burguesa a qual se pretendia o Museu Paulista.
64 MARINS, Paulo César Garcez. O museu da paz: Sobre a pintura histórica no Museu Paulista durante a gestão Taunay. Museu Paulista-USP. São Paulo, 2017. p. 178 65 Idem, p. 186-187 66 CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na arte italiana: ensaios de história social da
arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 56
26
Contudo, para melhor analisarmos a mítica paulista do século XX,
precisamos voltar as inóspitas minas coloniais, onde o discurso “paulistinizante”
das bandeiras tem a sua matriz, mesmo sendo carregado de julgamentos
morais, políticos e religiosos produzidos não por eles próprios, mas, sim, em sua
maioria, por reinóis e jesuítas – forasteiros e distantes da realidade própria e
isolada em que viviam os habitantes da Vila de São Paulo de Piratininga.
III. AURI SACRA FAMES
A maldita fome de ouro que Virgílio, em seus poemas épicos,
amaldiçoava, volta a caçoar dos homens que, sedentos, são capazes de abrir
fronteiras em sua busca. O ouro, assim como as demais pedras preciosas, move
ambições, sendo a maior delas a da própria coroa portuguesa que, para chegar
no seu objetivo e reproduzir o feito da descoberta da montanha de prata feita
pelos espanhóis em Potosí, usa os serviços dos destemidos paulistas – bárbaros
que não se curvam ao poder régio, mas, quando bem recompensados, são
verdadeiras máquinas de guerra.67
Os habitantes de Piratininga se mantiveram fechados em si mesmos por
muitos séculos.68 A muralha natural que era a Serra do Mar, além do solo
desfavorável para as plantações de cana, impediram que a economia tomasse
maior vulto, ficando os paulistas, assim, isolados e afastados da cultura
metropolitana e europeia que nesse momento efervescia o nordeste açucareiro.
Desse modo, impedidos economicamente de escravizar os africanos, os
paulistas saíam mata a dentro em busca de uma espécie distinta de ouro, porém,
tão valioso quanto o dourado flamejante: o ouro marrom, o indígena.69 As
técnicas e os costumes aprendidos com os gentis são incorporados nos hábitos
locais, favorecendo a entrada dos paulistas nas matas.
67 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário
político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 234 68 SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra
à lenda áurea. Revista de História, 2000, p. 261-276. 69 MONTEIRO, John Manoel. Negros da terra – índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 62
27
A entrada das matas é sinônimo não apenas de escravização indígena,
mas, sobretudo, de descobertas. Logo a reputação paulista de grandes
descobridores foi alastrada por eles próprios até, rapidamente, chegar além-mar.
Porém, por causa de seu isolamento estratégico, não se viam como súditos do
rei, muito menos como vassalos; eram arrendatários da terra autônomos e
independentes, que prestavam serviços à coroa em troca de mercês.70 As
máquinas de guerra foram úteis para o mantimento da ordem portuguesa na
colônia, principalmente após a Restauração, quando a coroa necessitava
mostrar a sua força e seu poder, garantindo suas terras e a vassalagem
obediente.71 A insubordinação dos paulistas, no momento, era vantajosa para a
coroa, que soube usar adequadamente de sua força mameluca e rebelde.
Contudo, a subversão não agradava um estrato igualmente poderoso: os
jesuítas.
A escravização indígena não agradava em nada aos seguidores de
Loyola. Os indígenas escravizados eram, muitas vezes, capturados nos próprios
aldeamentos jesuíticos, sendo privados dos ensinamentos católicos e da
salvação de suas almas. A animosidade entre os locais e os religiosos
aumentará drasticamente após a expulsão dos mesmos do território paulista em
1640.72 No entanto, a poderosa arma dos jesuítas – a verdadeira antítese da
arma bélica dos paulistas – será a escrita e os sermões, propagados sem limites
de fronteiras e mares. Em 1628, em passagem pela Vila de São Paulo de
Piratininga, Dom Luís Céspedes Xería escreverá enfurecido sobre os paulistas,
os quais considerará ladrões e cruéis, capazes de horrendos crimes contra o
cristianismo e capazes de horrendas traições e infâmias.73
70 Ibidem, p. 235 71 O maior exemplo da prestação de “serviço” dos paulistas a coroa é a tomada de Palmares
liderada por Domingos Jorge Velho, que, em troca, recebeu diversas mercês, como terras e direitos sobre os negros do antigo quilombo. Para ver mais sobre a Guerra dos Palmares, ver: FREITAS, Décio. República de Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII. Alagoas: EdUfal, 2004. 72 SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra
à lenda áurea. Revista de História, 2000, p. 261-276. 73 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 187
28
Assim como Xería, o padre Antônio Ruiz de Montoya (1585-1652), jesuíta
influente na Bacia do Prata, protestará enfurecidamente contra a invasão
paulista ao Prata em seu livro Conquista espiritual feita pelos religiosos da
Companhia de Jesus nas províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape de
1639.74 A sua fúria é, ao mesmo tempo, um pedido de ajuda à coroa espanhola
já que os religiosos e nem os indígenas conseguiam se proteger dos ataques
paulistas. Montoya os descreve como portadores de todo o mal, missionários do
sobrenatural, cujo intuito é destruir a obra divina das missões. A reprovação não
é apenas direcionada aos paulistas que, segundo ele, são “lobos vestidos de
ovejas”75, mas também aos seus vizinhos e aos próprios portugueses.
(...) castellanos, portugueses e italianos y de outras naciones,
que el deseo de vivir com libertad y desahogo y sin apremio de
justicia los ha congregado. Su instituto es destruir el genero
humano matando hombres, si por huir la miserable esclavitud en
que los ponen se le huyen...76
A lenda negra dos paulistas é, então, difundida por demais religiosos,
como Francisco Jarque e Nicolau del Techo.77 Desse modo, a pequena vila se
torna um couto de fugitivos que vivem longe da civilização como nômades e
bárbaros.78 A sua diferenciação que pode ser, inclusive, considerada étnica, os
coloca em uma fronteira cultural que os distingue sobremaneira dos demais
colonos, dos emboabas, que não falam a mesma língua geral e não possuem a
mesma cultura material fruto da simbiose do indígena e do português.79
Até o começo do século XVIII, a lenda negra não afetava a relação dos
paulistas com el-rei. Contudo, esta relação sofrerá uma drástica ruptura quando
os interesses econômicos da metrópole forem colocados em risco pelos próprios
paulistas nas recém descobertas Minas. O território do ouro, descoberto pelos
74Ibidem, p. 188. 75 MONTOYA, Antônio Ruiz de. Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus
nas províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Capítulo XXXV. 76 Idem. 77 Idem. 78 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário
político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 245 79 Idem.
29
ávidos sertanistas, era um território fora da jurisdição real, dentro do sertão
inóspito e selvagem. Segundo Laura de Mello e Souza, a descoberta das minas
pelas bandeiras complicou, ainda mais, o papel dos paulistas na colônia.80 De
máquinas de guerra e descobridores a serviço do rei, passaram a detentores de
um território e de sua riqueza. Passam, desse modo, a ocupar importantes
cargos dentro das minas, possuindo ali maior força e riqueza. Porém, o poder
que possuíam nas minas era derivado de um descaso da coroa com tal
empreendimento, considerado um risco para a economia colonial, já que a
extensão de seus achados auríferos eram uma incógnita; ademais, o risco se
continha também no possível deslocamento de mão-de-obra para essa região,
desfalcando o real alicerce econômico colonial, que era a região açucareira do
nordeste. Era preciso acabar com esta arriscada empreitada.81
A região mineradora dividia-se em diversos potentados, que consistiam
em pequenos ou grandes poderes atribuídos a um homem ou a uma família, em
sua maioria paulistas. Estes potentados adquiririam em sua volta uma rede de
submissão, garantida pela sua proteção à conflitos diversos, já que a violência
era uma constante, sendo uma forma não apenas de retaliação, mas de ato
político e atestado de poder. Porém, a riqueza era medida muito mais pelo
número de escravizados, já que quanto maior a mão-de-obra, maior o ouro
retirado das minas.82 A relação dos paulistas com os emboabas, ou seja, com os
forasteiros, era plausível de conflitos relacionados à medição de força, e,
conforme a riqueza das minas se tornava notória em toda a colônia, essa
medição de força passa a se dar com a própria lenda negra.83
Segundo o Padre Antonil, em seu livro Cultura e opulência do Brasil por
suas drogas e minas de 1711, o ouro das minas não era repassado
adequadamente à coroa por causa da lacuna da administração local, causada
pelos vícios morais, éticos e religiosos não só dos paulistas, mas de todos os
80 Ibidem. 81 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 36 82 Ibidem, p. 88. 83 SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra à lenda áurea. Revista de História, 2000, p. 261-276.
30
locais. Com isso, favorecendo os senhores de engenho, defende as plantações
do litoral contra o “vício do ouro”.84 Dessa forma, as minas passaram a ser vistas
como uma terra sem lei, onde crimes horrendos aconteciam diariamente.
A imagem de uma terra sem lei dominou os relatos coevos e a
correspondência dos agentes coloniais. Estupefatos, cronistas e
autoridades retrataram um quadro assustador da vida nas Minas
nos primeiros anos do século XVIII, comparando a região a um
verdadeiro atalho, onde todos os dias muitos perdiam a vida em
circunstâncias extremamente violentas. Ao lado do enxame dos
pobres e vadios, que viviam de faiscar nas lavras abandonadas,
cometendo aqui e ali pequenos e grandes delitos, havia ainda a
sanha dos potentados, homens enriquecidos que se entregavam
a grandes demonstrações de poder, perseguindo e justiçando os
inimigos.85
Não há consenso em como teria se iniciado o conflito entre paulistas e
emboabas, provavelmente por causa do crescimento dos forasteiros na região
que passaram a pleitear cargos e postos, colocando em cheque a hegemonia
paulista86. Podemos afirmar que o conflito ocorreu em um momento de
desinteresse da coroa pelos serviços das bandeiras e de um recrudescimento
da lenda negra. Os paulistas passaram a serem vistos cada vez mais como
incapazes de administrar os interesses reais, já que eram, como sua própria
propaganda, autônomos e independentes. Os emboabas, em contrapartida,
eram fiéis vassalos do rei, sendo assim, apenas eles capazes de aplicar a lei da
coroa nas terras inóspitas e selvagens das minas. A coroa, enfim, se interessava
em colonizar a região, exigindo, assim, povos sedentários e obedientes.87
Ao narrar o conflito, o cronista e historiador Sebastião da Rocha Pitta
(1660-1738) não escondeu de que lado estava. Caracterizava o conflito como
84 Ibidem. 85 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 84. 86 Há também a teoria de que o conflito teria se iniciado devido uma querela entre dois
potentados, paulista e emboaba, causada pela proteção de seus respectivos protegidos. 87 Ibidem, p. 265
31
“um delito contra el-rei” praticado, apenas, pelos “selvagens” paulistas, que
usavam de sua crueldade para cometer os mais bárbaros delitos nas minas.88
A lenda negra, dessa forma, foi uma poderosa arma ideológica, mais forte
do que qualquer tática de guerrilha indígena. Os paulistas são vistos como
tiranos que querem destruir a liberdade representada pelos emboabas, vítimas
dos terríveis bárbaros intrépidos. Perdedores não só politicamente, mas,
principalmente, ideologicamente, se isolam ainda mais na Vila de Piratininga,
contudo, a verve de sua rebeldia é deixada nas minas, que, conforme Adriana
Romeiro aponta, germinará nas rebeliões contra o quinto no final deste mesmo
século, onde o direito de conquista se tornará a resistência dos inconfidentes.89
O estigma atribuído aos paulistas precisava ser superado para a própria
manutenção do Império ultramarino. No século XVIII, anos após a perda do
território das minas, a Vila de Piratininga cresce economicamente, atraindo para
si reinóis, colonos e espanhóis. É nos últimos quartéis do século que a questão
territorial e a segurança de sua manutenção pela coroa portuguesa entram em
crise. Os tratados territoriais com a coroa espanhola, como os tratados de Madri
(1750) e o de Ildefonso (1777) passam a ser a principal preocupação do governo
ultramarino; era necessário, antes de tudo, assegurar política e economicamente
o interior da colônia. Estratégias políticas foram adotadas, como a restauração
da Capitania de São Paulo – anexada à Capitania do Rio de Janeiro após a
Guerra dos Emboabas – e a construção de fortes na região do Prata comandada
pelo quarto morgado de Mateus (1722-1798).90
Com a restauração da capitania e o consequente crescimento de sua
importância econômica, dava-se a deixa para que a reputação paulista fosse
também restaurada; a sua restauração seria uma faca de dois gumes:
fortaleceria os laços com a coroa portuguesa criando uma muralha moral contra
88 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e
alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 196, 197. 89 Ibidem, p. 276. 90 DERNTL, Maria Fernanda. Entre a coesão e a dispersão: a política urbanizadora pombalina e
a criação de Guaratuba, na capitania de São Paulo sob o morgado de Mateus (1765-1775). URBANA: Revista Eletrônica Do Centro Interdisciplinar De Estudos Sobre a Cidade, 2(1), 1-13.
32
os invasores espanhóis ao mesmo tempo que serviria para lembrar os forasteiros
recém-chegados na capitania – reinóis que competiam com os paulistas os
cargos e honras na vila – a importância e a honra das famílias antigas de São
Paulo.91 Esta honra seria resgatada por meio de uma literatura linhagística que,
pela primeira vez, faria o esforço de retirar de dentro dos vícios as virtudes.92
A bravura e a coragem dos velhos paulistas que alargaram as fronteiras
foi veementemente lembrada por Frei Gaspar da Madre de Deus (1715-1800).
Na sua obra Memorias para a historia da capitania de S. Vicente, hoje chamada
de S. Paulo, do estado do Brazil (1797) reuniu testemunhos de diversas famílias
vicentinas, patrícias ou não, elaborando o primeiro discurso heroico acerca dos
paulistas, os verdadeiros “heróis luso-americanos”.93 Empenha-se sobremaneira
em apagar o estigma de selvagem e violento que o paulista carregava,
substituindo-os por fortes e bravos conquistadores, transformando a lenda negra
em motor para a expansão do Império luso, construindo uma ligação com a coroa
e, assim, fazendo-os cair novamente nas graças do el-rei. O alargamento das
fronteiras e a descoberta de riquezas foi um serviço prestado à metrópole, que
podia contar com a lealdade absoluta dos velhos paulistas, que, em
consequência, para garantir que tais serviços fossem executados corretamente,
caçavam e escravizavam indígenas. Tudo por amor ao rei. Desse modo, além
de Madre de Deus admitir a caça ilegal dos gentis admite a miscigenação dos
primeiros paulistas com os filhos da terra; a coragem e a bravura dos indígenas
e a inteligência dos portugueses resultaram em mamelucos fortes e capazes de
expandir o grande império luso.94
Madre de Deus atacava diretamente a credibilidade dos jesuítas,
principalmente dos estrangeiros como Charlevoix95, afirmando que eles serviam
91 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e
alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 209. 92 SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da lenda negra à lenda áurea. Revista de História, 2000, p. 261-276. 93 Idem, p. 203. 94 KOBELINSKI, Michel. Heroísmos, sedições e heresias: a construção do ufanismo e do
ressentimento nos sertões da capitania de São Paulo (1768-1774). 2008. 250 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2008. 95 Jesuíta, Pierre-François-Xavier de Charlevoix também denuncia as práticas dos paulistas em sua obra monumental Historia do Paraguai, publicada em 1757.
33
diretamente à corte espanhola, sendo os ataques feitos aos paulistas uma
estratégia para enfraquecer a coroa portuguesa.96
Como aponta Michel Kobelinski,
Sistematicamente, frei Gaspar desconstruiu não apenas os
textos de historiadores que invocam um conjunto de imagens
histórias e pessoais para São Paulo, mas também essas outras
experiências pela América que são diferentes das suas, em que
as interpretações do passado não tinham comprovação e eram,
portanto, mais ficção do que realidade, pela ausência da análise
documental. É uma contestação bem dirigida que refuta a versão
estrangeira sobre a capitania de São Paulo e sobre os
paulistas.97
Frei Gaspar, numa tentativa de diferenciar a capitania de sua faixa
litorânea, destaca os prazeres em que a faixa campestre proporciona para seus
habitantes. É importante destacar que as impressões contidas na obra são frutos
não apenas de testemunhos, mas, principalmente, das impressões pessoais do
próprio autor, que não escapa do tom imaginário de suas alusões.98
Descendente de Brás Cubas e de Fernão Dias Paes, Pedro Taques de
Almeida (1714-1798), ao contrário de Madre de Deus que admite a origem
mameluca do paulista, enfatiza a origem nobre dos mesmos, descendentes
diretos de cristãos-velhos de Portugal, fiéis súditos da coroa.99 A alusão a uma
linhagem nobre europeia era uma importante ferramenta de retórica à lenda
negra, já que ia contra todo o estereótipo de selvageria imposto aos paulistas.
Considerado o primeiro historiador das “bandeiras paulistas”, Taques
realizou um influente estudo da genealogia das velhas famílias locais com a
ajuda de seu padrinho, o frei carmelita Luís dos Anjos, em sua obra Nobiliarquia
paulistana histórica e genealógica, de 1772. O ufanismo, presente também em
Madre de Deus, fica evidente em seu ressentimento com o passado colonial
96 Ibidem, p. 80. 97 Ibidem, p. 79. 98 Ibidem, p. 76. 99 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 206
34
português – realçando o português –, que, antes mesmo do descobrimento
destas ermas terras, já praticava a miscigenação (algo fortemente
menosprezado pelo genealogista), além dos embates de poder que causaram
conflitos e matanças.100
Assim como Frei Gaspar, heroiciza as bandeiras, afirmando que a
expansão pelos sertões só poderia ser realizada com muito suor e que o
descobrimento das pedras preciosas foi fruto direto dos esforços dos paulistas,
sempre subservientes ao poder metropolitano.101 Para Taques, trazer o passado
de volta significava mudá-lo, dando aos seus antepassados a chance de saírem
vitoriosos contra as situações desventurosas colocadas pelos cronistas
emboabas e jesuítas.102 Devido ao seu bom relacionamento com o governo de
morgado de Mateus, prestando, aliás, diversos serviços ao governo, o historiador
justifica a ação dos paulistas na relação respeitosa que os mesmos sempre
possuíram com seus governadores e ministros.103
Toda a obra é baseada em exemplos de superação dos atuais paulistas
aos insucessos das minas e das descobertas de pedras preciosas, assim como
hostilização bárbara dos índios carijós e das políticas contra Salvador Corrêa de
Sá e Benevides, nomeado pela coroa à administrador e governador das Minas
de São Paulo.104
Ainda segundo Kobelinski,
Tanto Frei Gaspar quanto Pedro Taques compartilharam alguns
preconceitos porque eram descendentes de uma pequena
nobreza portuguesa que havia enriquecido na colônia. Assim,
ambos foram condescendentes com o sistema colonial,
preocupando-se “com a limpeza de sangue dos cristãos velhos,
judeus, índios e negros” e, principalmente, levando em conta sua
100 KOBELINSKI, Michel. Heroísmos, sedições e heresias: a construção do ufanismo e do
ressentimento nos sertões da capitania de São Paulo (1768-1774). 2008. 250 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2008, p. 67. 101 Ibidem, p. 67. 102 Ibidem, p. 68. 103 Idem. 104 Ibidem, p. 70.
35
origem social, e acima de tudo seus desafetos. Enquanto Pedro
Taques privilegiou os “indivíduos” integrantes das camadas
superiores, promovendo-lhe uma blindagem, Frei Gaspar
considera a miscigenação e a capacidade adquirida dos
indígenas como o sentido de liberdade, coragem e rebeldia.105
O paulista, podemos concluir, já se via como um exemplo de virtude, em
um contraste visível em como era visto nas outras regiões da colônia e
metrópole: um habitante de um lugar distante e inóspito, com hábitos simplórios
que refletiam suas moradias e vestimentas. Em outras palavras, bárbaro.
A defesa que Frei Gaspar e Pedro Taques fazem aos paulistas é, durante
mais de um século, quase esquecida. O século XIX será marcado pela
construção de uma história nacional, numa tentativa de desvincular o passado
do Brasil colonial de Portugal, priorizando a gênese indígena – o guerreiro e
bravo gentil que possibilitou a transformação do Brasil em uma nação, mas, que,
ainda assim, não poderia coexistir com a civilização.106 O indianismo, desse
modo, pautado em um idílico passado que não poderia retornar, se dividia entre
denunciar a ambição da coroa portuguesa e aclamar a conversão civilizadora
jesuítica. Desse modo, os paulistas serão vistos como aliados da coroa no
extermínio indígena e na repulsa à Companhia de Jesus, sendo os responsáveis
pelos males do Brasil atrelados ao escravismo, que exterminou tribos inteiras,
além de introduzir a mão-de-obra africana. A solução, portanto, seria a
integração dos índios a sociedade – porém não os capacitando de serem
“civilizados” como os brancos – e a promoção da imigração europeia, sobretudo
a latina, feita pelos liberais.107
A história de cunho indianista que buscava criar um topos nacionalista e
autêntico à origem da nação – no sentido, obviamente, metódico da palavra –
era, assim como todas as narrativas históricas nacionais do século XIX, pautada
na ocupação do litoral. Será o cearense João Capistrano de Abreu que primeiro
105 Ibidem, p. 73. 106 SCHWARCZ, Lilia Moritz. História do Brasil Naçao, vol. 2. Objetiva. São Paulo, 2011. 107 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 140.
36
defenderá a necessidade de voltar o olhar historiográfico aos sertões e pela sua
ocupação feita, em sua maioria, por gente mestiça e seus descendentes –
caboclos, sertanejos e caipiras. Para o historiador, falar sobre o interior era falar
sobre as sesmarias, as descobertas das minas, os caminhos antigos, a criação
de gado no interior da Bahia e, especialmente, das bandeiras paulistas.108
É em 1899 que Capistrano publica seus dois primeiros artigos sobre os
sertões no prestigiado Jornal do Commercio, intitulados Caminhos antigos e
Povoamento do Brasil. Estes textos configurarão, mais tarde em 1907, a base
para o capítulo O Sertão em sua aclamada obra Capítulos da História Colonial.
Em sua obra ele defende a tese de um Brasil fragmentado, sendo dividido em
quatro núcleos de povoamento: Grão-Pará e Maranhão, Pernambuco, Bahia e
São Paulo. Era a primeira vez que São Paulo aparecia como um dos
protagonistas da história nacional sem ser narrado por seus conterrâneos.
Contudo, para Capistrano, as bandeiras e a consequente conquista do sertão
não eram uma exclusividade paulista, mas, sim, a todos os núcleos povoadores,
tanto do litoral quando do interior. As bandeiras paulistas foram mais destacadas
por terem sido mais numerosas e terem chegado à lugares mais distantes.109
É importante salientar que o tema das bandeiras já interessava Capistrano
muito antes de concluir sua grande obra em 1907. Quando, em 1878, o aclamado
historiador Francisco Adolfo de Varnhagen falece, Capistrano é encarregado de
escrever o seu obituário. Começa o Necrológio com uma recapitulação da vida
e da obra de Varnhagen, dando ênfase em sua contribuição para o IHGB e para
a construção da historiografia nacional. Coloca-o com um descobridor da
história, possuindo a “a flama sombria do Anhanguera”.110 A comparação direta
com o bandeirante, para Maria da Glória de Oliveira, incitava a Capistrano “a um
só tempo, reconhece-lo como “mestre” e submetê-lo ao escrutínio crítico por sua
condição de predecessor”.111
108 Ibidem, p. 137. 109 Idem. 110 ABREU, João Capistrano de. Necrológio. Op. Cit. p. 83. 111 OLIVEIRA, Maria da Glória de. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853-1927). Dissertação (mestrado), UFRGS, Porto Alegre, 2006, p. 70.
37
Com uma matriz territorialista, a história produzida por Capistrano não
redireciona o foco historiográfico apenas para os limites políticos do território,
tratando a centralidade da ocupação do sertão, o que, de fato, constituiu as
fronteiras coloniais do Brasil e não a sua criação política. A ocupação do sertão
seria, antes de tudo, a vitória do colonizador perante o meio físico e os
indígenas.112 Este discurso, então, conferiu legitimidade ao futuro discurso
bandeirante quando centrou a sua historiografia na importância da ocupação do
sertão; o historiador, porém, defenderá em sua obra a diversidade cultural na
expansão do território colonial e na consequente formação do Brasil
contemporâneo, urgindo a visão de uma suposta unidade cultural brasileira.113
Como destaca Alberto Luiz Schneider,
Para ele “os caminhos antigos” levariam ao povoamento e a
consequente integração dos diferentes núcleos de ocupação
herdados do período colonial. Daí o caráter integrador das
velhas sendas coloniais e do próprio movimento dos sertanistas
paulistas ao longo da Colônia. Esse tema reaparece no capítulo
“O sertão”. Logo, as bandeiras se tornam fundamentais para o
imaginário nacional (e nacionalista). Ele entendia a unidade
brasileira como uma circunstância precária e incompleta
herdada do passado, bem como projeto de futuro, mas nunca
como uma essência original, muito menos como uma criação
paulista.114
Pupilo de Capistrano, Affonso Taunay teria sido incumbido pelo mesmo a
continuar a história das bandeiras. Tendo trocados inúmeras cartas, além de ter
tido aulas particulares com o historiador, Taunay alegará que seu ensejo de
escrever sobre as bandeiras teria partido de Capistrano em uma visita que lhe
fez em São Paulo em 1902, tendo-lhe rogado para desviar a atenção dos
governadores-gerais, o que pretendia enfocar, e dar vistas às bandeiras
112 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e
alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 141 113 Ibidem, p. 142. 114 Idem.
38
paulistas.115 Surgia, então um longo casamento entre Taunay e as bandeiras,
dando vazão a onze volumes de História Geral das Bandeiras Paulistas, de
1911, e a posterior reformulação do acervo do Museu Paulista.
Esquecidos pela historiografia do XIX, Madre de Deus e Taques são
revividos por Taunay e usados como documentos fiéis e verídicos na elaboração
de sua obra. Ao contrário de Capistrano, adotará um discurso completamente
“paulicêntrico”, colocando as bandeiras paulistas como as unicas responsáveis
pela expansão territorial, construindo, em cima das genealogias de Taques,
histórias individuais de cada bandeirante, conferindo, assim, um sentido heroico
e pessoal a história paulista, incapaz de ser contestada, já que era diretamente
ligada as famílias ainda dominantes do velho planalto; a alcunha de documento
histórico dada às obras dos antigos historiadores paulistas reforçavam a sua
veracidade.116
O contexto em que escreve Taunay de ameaça interna – como a greve
de 1917, a organização do movimento operário, o tenentismo e a revolta militar
de 1924 – e de ameaça externa – a presença imigrante e de suas respectivas
fortunas – que rondava a elite paulistana117, é, se não idêntica, muito similar ao
contexto em que escrevia Madre de Deus e Pedro Taques no final do século
XVIII. Em ambos os casos, a história, sempre vinculada à elite, foi um poderoso
meio de legitimação de poder.
O paulista, ou seja, o bandeirante, de Taunay se diferenciará apenas em
um aspecto: ele será, inegavelmente, branco. O que, em tempos de discursos e
práticas eugênicas, servirá, ainda mais, para validar e destacar a ação dos
“bravos heróis”. A elite cafeeira branca precisava estreitar seus laços com a
Europa, em ampla concorrência com uma recém-formada elite imigrante. Não
poderia uma “macula de sangue” ser tolerada, buscando se diferenciar da matriz
afrolusoameríndia do caipira que, no final do século XIX, ganhou amplo destaque
tanto na historiografia quanto na arte, em destaque nas produções de Almeida
115 Ibidem, p. 172. 116 ANHEZINI, Karina. Um Metódico a Brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay
(1911-1939). São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 60. 117 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 174
39
Júnior.118 A visão do bandeirante europeu presente das obras de Taunay e
demais autores, como Washington Luís, é transplantada para as telas e reinará
hegemônica por muito tempo.
IV. ENTRE DESBRAVAMENTOS E INVASÕES, A GLÓRIA
Ao visitar o Museu Paulista, somos levados pelas grandes escadarias de
mármore até o Salão Nobre. Em um salão de estruturas magnificentes está a
chave para o surgimento de um sentimento regionalista que será, por muitos
anos, a razão de ser do prédio monumento. Com uma dimensão monumental, a
obra Independência ou Morte! (1888) de Pedro Américo ocupa toda a parede
central do grande salão. Para observar a obra é preciso se distanciar vários
passos, porém, a medida em que se distancia o observador é atraído
exatamente para o ponto da obra em que o artista quer que recaia a maior
atenção. Geralmente esta função fica concentrada na parte central da pintura,
onde a luz é mais forte e nítida, contrastando com uma parte mais escura e,
portanto, mais irrelevante. Isto não ocorre com esta obra, apesar do ponto
principal da narrativa exposta estar centralizada, quase geometricamente, no
centro, onde um D. Pedro I napoleônico119 ergue sua espada e, bravamente,
exclama e exige o desejo mais íntimo do povo: “independência ou morte”. A
esquadra do futuro imperador rodeia a cena, como peões em um grande jogo
político, obedecendo e servindo aos desejos do monarca no centro da tela120.
Por mais que a explicação do título da obra se encontre na posição mais
central do quadro, Américo não faz a subordinação entre os elementos que a
compõem. A técnica, usada sobremaneira nas pinturas históricas, usa as cores
e as dimensões como fator de diferenciação de relevância – o que precisa de
118 Ibidem, p. 155. 119 A pose de D. Pedro I na obra, em cima de um cavalo e bradando sua espada, é um molde de representações napoleônicas. Para mais informações ver: OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles; MATTOS, Claudia Valadão de. O brado do Ipiranga. Edusp: São Paulo, 1999. 120 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 137.
40
maior atenção vai, consequentemente, ter cores mais atrativas cognitivamente,
como o vermelho e o azul, responsáveis pela ilusão de maior aproximação do
objeto121. Na obra em questão, essa técnica é ignorada. Isso torna os elementos
confusos e ambíguos; o olhar, então, é redirecionado ao canto esquerdo da tela,
onde um trabalhador “da terra” puxa um carro de bois ao mesmo tempo que
passa de forma alheia pelo ocorrido122.
Figura 1: Pedro Américo. Independência ou Morte!. 1888. Óleo sob tela. 415
cm x 760 cm. Museu Paulista da USP.
Esse trabalhador é a primeira representação de maior vulto do paulista123.
Ele está representado em cores terrenas, como se isso atestasse a sua ligação
direta com o solo, como um agente da paisagem histórica. Não é mais um
caipira, mas, sim, um trabalhador heroico e livre dos vícios da corte portuguesa,
que trabalha para a construção de um ambiente também “puro”.
Ele fica num meio-termo indeciso e desconcertante, mas que,
por isso mesmo, parece ter correspondido perfeitamente às
121 GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. WMF
Martins Fontes. São Paulo, 2007, p. 87. 122 Ibidem, p. 137 123 Idem.
41
expectativas dos paulistas. Finalmente ele era visível, não mais
no documento. Apresenta-se submetido ao Imperador de forma
ambígua, mas, nem por isso, deixa de estar inserido no contexto
da historicidade dos eventos, não mais no registro da
estagnação, do atraso típico do interior brasileiro. Ele e a sua
obra, o seu trânsito pelo país e o ambiente que ele criou nessas
viagens, são a inspiração para o grito da independência.124
Dessa forma, o paulista começa a ser moldado. Por mais que a épica
bandeirante ainda não estivesse consolidada, o carroceiro é identificado já como
um herói. Por este motivo, esta obra é o elemento-chave para a compreensão
da estética figurativa que comporia a retratista bandeirante. Por outro lado, a
figura bandeirante que se busca criar não pode ser totalmente vinculada à terra,
ao trabalho; ela precisa de ares aristocráticos e embranquecidos125. A tela que
inaugura esta narrativa no museu é a já citada O mestre de campo Domingos
Jorge Velho e seu lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu de Benedito
Calixto, onde o bandeirante destruidor de Palmares – como popularmente era
conhecido Domingos Jorge Velho – se figura em uma posição majestosa e
monumental, em comparação direta com os state portraits de Luís XIV e outros
monarcas (MARINS, 2007).
124 Idem, p. 191 125 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p. 48
42
Figura 2: Benedito Calixto. O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu
lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu. 1903. Óleo sob tela. 140 cm x 100.
Museu Paulista da USP.
Esta pose aristocrática era o que garantia a heroicidade do objeto central,
evidenciando a pureza da “raça paulista” e ignorando a sua origem indígena e
negra, colocando-o, assim, como superior antropologicamente e apto ao intento
proposto126. A obra é inserida em sua historicidade, já que quando foi produzida,
no começo do século XX, as discussões eugênicas acerca da pureza da raça
estavam em seu auge. Portanto, para que ocorra a associação da elite com a
“superioridade da raça branca”127, é fundamental que o bandeirante seja
associado a esta mesma raça. O herói é branco e europeu.
126 Idem 127 No final do século XIX teorias científicas que “comprovavam” superioridade da raça branca tomaram o meio social e intelectual, dando início a um racismo científico. Para mais informações ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racional no Brasil do século XIX. Companhia das Letras: São Paulo, 1993.
43
Como fundamenta Thais Chang Waldman,
Ao ser exibido no Museu Paulista, o retrato do “conquistador do
Piauí e derrubador da Troia Negra”, nos termos de Afonso
Taunay, dá o pontapé inicial para a transformação do local em
uma “galeria em que todos têm atitudes heroicas”. Exposta com
uma finalidade pedagógica, extrapolando os circuitos
intelectuais a acadêmicos frequentados pelo então diretor do
Museu Paulista, a obra irá também estampar diversos livros
didáticos, que ajudarão a imagem do “vencedor dos Palmares”
a transpor a colina do Ipiranga.128
Adquirida pelo Museu na gestão Ihering, esta tela será a maior fonte de
inspiração para a retratista bandeirante. Toda a composição da obra, além da
figuração do bandeirante, será usada na maioria das obras encomendadas129.
A escolha pelos artistas também influenciará a estética e a visualização
das obras. Taunay busca os artistas mais renomados para o seu
empreendimento iconográfico, tais como Henrique Bernadelli, Rodolpho
Amoedo, Fernandes Machado, entre outros130. Coincidência ou não, a maioria
era carioca, evidenciando a importância que o renome destes artistas, tidos
como os melhores no cenário artístico nacional, tinham para o sucesso da
hegemonia da memória paulista. Porém, a figura do bandeirante não era apenas
um discurso paulista. Ao mesmo tempo em que essa memória heroica era
produzida em São Paulo, ela também era contestada em outras esferas.
Pintada por Antônio Parreiras em 1936, portanto após as encomendas
para o MP, a tela Os Invasores já em seu título mostra seu caráter não-heróico
ao bandeirante, pelo contrário, evidencia um caráter violento e invasor. Na tela
há cinco personagens, sendo quatro deles bandeirantes e uma indígena. Os
bandeirantes aparecem destituídos de qualquer figuração monárquica ou
128 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São
Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p. 52 129 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 251 130 JÚNIOR, Carlos Rogerio Lima. Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, o
Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 2015, p.120
44
heroica, são retratados rudemente como selvagens, com longas barbas e longos
cabelos. Contudo, o que chama mais atenção é a forma com que os
bandeirantes seguram, ou melhor, capturam, a índia. Há uma evidente inversão
de valores: a indígena é que possui o caráter virtuoso, resistindo a selvageria
dos seus algozes. Parreiras, assim, coloca o bandeirante como um covarde
selvagem, que é impossibilitado de controlar seus impulsos131.
Figura 3: Antônio Parreiras. Os invasores. 1936. Óleo sob tela. 194, 5 cm x
281 cm. Museu Antônio Parreiras.
Portanto, para que possamos entender a disputa de memória que envolvia
a nação no começo do século passado, temos que também analisar a obra
bandeirante fora do Museu Paulista e fora de São Paulo e entender que o que
motivou a heroicidade bandeirante foi, em grande parte, o projeto aplicado por
Taunay. Fora da instituição o discurso era livre.
131 STUMPF, Lúcia Klück. A terceira margem do rio: mercado e sujeitos na pintura de história de
Antônio Parreiras. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 2014, p. 141
45
Temos que o tratar, então, como um discurso polissêmico, ou seja,
composto por sua historicidade e multiplicidade de significados, que, inserido em
um contexto cultural, é um instrumento mental do observador. Desta forma, o
público visualizará a obra sempre dentro do contexto cultural em que ela está
inserida e na qual ele vive132. Portanto, também podemos definir a narrativa
bandeirante de duas formas, como monumental e não-monumental, sendo que
ambas serão inseridas em um contexto cultural regional diferentes, servindo,
sempre, a sua historicidade. Dessa maneira, atestaremos está hipótese no
próximo capítulo, abordando os eixos centrais da pesquisa nos dois artistas
representantes da confluência de discurso: Benedito Calixto e Henrique
Bernadelli.
V. NA REDE O HERÓI ENCONTRARÁ O SEU FIM
1. O empirismo caiçara de Benedito Calixto
Benedito Calixto não escondia a sua origem caiçara. Nascido em Santos,
a sua escola foi a praia, sem a expressão do sentido figurado. Advindo de uma
família de artesões, cresceu na oficina em que o pai era ferreiro e, por seu talento
para as artes, passou a pintar ex-votos na Igreja Matriz Sant’Anna,
aperfeiçoando, assim, suas habilidades. Segundo Caleb Alves, a tradição
portuguesa dos ex-votos consistia na produção de pequenos quadros sobre
acontecimentos históricos, podendo configurar-se, desta maneira, em pequenas
pinturas históricas. 133
Devido a proeminência de seu talento, vai morar com seu tio em Brotas,
afim de alcançar um público maior para o seu trabalho134. O reconhecimento de
seu trabalho se dará gradualmente enquanto conquista um público seleto
através de encomendas de cunho propagandísticos para comerciantes e
132 BAXANDALL, Michael. O olhar renascente, pintura e experiência social na Itália da renascença. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 48. 133 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:
EDUSC, 2003, p. 45 134 Idem.
46
políticos, instalando-se, assim, na cidade santista, onde a demanda artística
crescia a passos largos. Além destes trabalhos, as obras de sua juventude são,
em sua maioria d’aprés nature; isso atesta as múltiplas habilidades do artista,
que mostra os seus talentos paisagistas e históricos, retratando Santos e suas
particularidades. Ao mesmo tempo em que Calixto passa a realizar pequenas
encomendas, a cidade Santista recebia o primeiro surto de modernização,
proveniente da construção da linha-férrea Santos-Jundiaí. Levando em conta
que a elite cafeeira paulista era, grosso modo, a mesma elite santista, nessa
época ela ganha prestígio econômico e sente a necessidade da valorização do
espaço em que vive, o que já foi abordado nos capítulos anteriores. Então,
analogamente, desperta-se, também, o desejo de produção de artistas regionais
renomados e Calixto estava pronto para ser notado135.
Seu primeiro grande trabalho foi na ornamentação dos novos edifícios
construídos durante a modernização da cidade. Por este motivo, consegue ser
descoberto pela elite local, como o visconde de Vergueiro, que será um dos
responsáveis pela ascensão de Calixto. É preciso lembrar que a trajetória do
artista difere da do costume da época: não estudou na Academia e nem
frequentou Liceu, fez de sua vida e de seu cotidiano a sua grande escola. A sua
origem humilde impossibilitou a sua ida à capital, onde teria que arranjar um
padrinho que lhe pusesse no liceu carioca. Contudo, o apadrinhamento foi
conquistado mais tarde.
Trabalhar com arte no Brasil até meados do século XX significava
diversas complicações. A primeira, e talvez a mais difícil, era ser aceito na
prestigiada Academia de Belas-Artes. O ensino acadêmico era extremamente
restrito, o que era natural à uma instituição de elite; o jovem que tivesse interesse
nos estudos oficiais deveria vincular-se a um artista de renome que lhe ensinaria
particularmente os aprendizados básicos do ensino, lhe guiando em alguma
encomenda local. Logo, este artista e os demais mestres da cidade deveriam
indicar o pupilo a algum padrinho, sendo este da elite; obviamente, a
recomendação viria se o jovem conseguisse impressionar suficientemente os
135 Ibidem, p. 59
47
seus mestres. Nota-se que grifei as palavras jovem e oficiais – não foi por acaso.
O limite para o ingresso na Academia era de apenas dezesseis anos, isso
significava que o descobrimento do jovem pelas artes teria que ser
extremamente prematuro e exclusivo, não possibilitando outra ocupação.
Quanto ao padrinho, ao apresentar a carta de recomendação à Academia,
deveria especificar que o interessado não era oriundo e muito menos desejava
dedicar-se as artes decorativas. A distinção entre a “arte oficial”, representada
pela AIBA, e a arte aplicada servia, entre outras coisas, para distinguir o local da
classe dominante e da classe dominada no mundo artístico.136
Benedito Calixto, portanto, foi uma curva fora do caminho. A sua formação
se deu, justamente, dentro da oficina, não recebendo a instrução “oficial” da
Academia. Contudo, teve seus estudos na França financiados por Afonso
Vergueiro, seguindo uma recomendação do dr. Garcia Redondo após a
realização do trabalho de Calixto no Teatro Guarany. As pinturas feitas no teto
do teatro e no pano de boca do palco renderam-lhe prestígio entre os pares da
cidade, prestígio este, aliás, que já havia sendo alcançado com seus pequenos
trabalhos propagandísticos e com sua exposição em São Paulo, em 1881.137
É importante ressaltar a importância da figura do visconde de Vergueiro
na Santos do começo do século. Primeiro presidente da Associação Comercial,
ocupando o cargo de 1870 a 1878, dividia-se entre realizar as ocupações
específicas de seu cargo e de ser o principal benfeitor público da cidade –
ressaltando o seu combate às epidemias que assolaram a baixada santista no
começo do século XX.138 Dessa forma, o mecenato de Vergueiro foi, além de
único possível, já que era o único que possuía o status e o capital para tal
financiamento, extremamente estratégico. O financiamento dos estudos de
136 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:
EDUSC, 2003, p. 65. 137 Por mais que a exposição de 1881 tenha rendido certo prestígio ao artista, não lhe rendeu
muitos frutos materiais. O polo artístico, até aquele momento, era o Rio de Janeiro. Isso significava um maior investimento nos artistas cariocas e, consequentemente, uma centralização do mercado artístico nacional. 138 BANAT, Ana Kalassa el. A cidade pelos olhos do pintor: memória e representação de Santos
em Benedito Calixto entre 1890 e 1927. ANPUH, 2014.
48
Calixto se deu em um contexto de valorização de artistas locais em todo o Brasil.
A arte nacional, em fins do XIX, passa a estar cada vez mais ligada a
proeminente burguesia, sendo sinônimo não apenas de erudição e requinte,
mas, sobretudo, de modernidade. Portanto, para uma cidade em ascensão como
São Paulo e Santos, a promoção de um artista local e que encarnasse o “espírito”
da cidade, como Calixto, representava elevar a cidade a um status quo
moderno.139
A sua ida à Paris, em 1883 ou 1884140, durou cerca de um ano. Durante
os primeiros meses de sua estada aproximou-se de Victor Meirelles que lhe
indicou os estudos na Académie Julian – a mesma em que eram enviados os
vencedores do Salão Anual da AIBA. A Academia, que se diferenciava da École
de Beaux-Arts por seu caráter liberal, foi marcada pelo ingresso de alunos e
tendências pouco valorizadas no mercado artístico parisiense, cabendo ressaltar
que foi a primeira a aceitar mulheres como alunas. Por mais que se diferenciasse
da École em seu sentido rígido e conservador artístico, o ensino na Julian
também atendia as formas clássicas, valorizando o desenho e o traçado.
Contudo, os seus alunos possuíam uma liberdade artística maior do que
qualquer outra academia, sendo palco de confluências de estilos, como o
impressionismo.141 Deste modo, Calixto entrou em contato com as novas
tendências artísticas e com as velhas técnicas neoclássicas do desenho, onde
copiava pinturas históricas renomadas, como era de praxe142.
Durante todo o tempo de seu estudo no estrangeiro, Calixto sentia-se
nostálgico de suas raízes. Era um artista do mar, das coisas simples. E foi o jeito
simples, caiçara e livre do artista que lhe rendeu a primeira admiração de seus
benfeitores; o surgimento do sentimento anti-academicista mudou radicalmente
a visão de como ser artista. O tópos artístico a ser valorizado, então,
transcenderia a obra e o estilo – a vida do artista, sua moradia, seus gostos e
139 Ibidem, p. 59. 140 Não há consenso entre os historiadores sobre a data de partida do artista à França. 141 VALLE, Arthur. Pensionistas da Escola Nacional de Belas-Artes na Academia Julian (Paris)
durante a 1ª República (1890-1930). 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 3, novembro/2006. 142 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003.
49
até o modo de se portar seriam fundamentais na apreciação de sua obra. O
pintor intelectual dava lugar ao pintor empírico e aventureiro, dono de sua própria
arte e, antes de tudo, livre das amarras acadêmicas.143
Podemos notar esta nova visão atribuída aos artistas em uma crítica feita
à Calixto no Correio Paulistano, em 1890:
Benedicto Calixto, um belo typo de homem, figura alourada, de
cabeleira meio cahida sobre os hombros, é também um pintor
de grande talento.
Encafuado n’um pittoresco retiro, no caminho da Barra, de
Santos, vive o artista com os seus quadros e os seus filhos, uma
vida affectiva, perto do mar, com toda a vegetação uberrina
daquela cidade, em derredor.144
Na sua volta ao Brasil no final da década de 1880, as portas estavam
abertas, porém, mesmo inserindo-se na capital paulista, nunca abandonou suas
raízes caiçaras. Mesmo antes de sua ida à França já era reconhecido pelas suas
pinturas históricas e de paisagem de São Paulo e Santos, dessa forma, o
mercado paulista que nesta mesma época estava tomando fôlego, notou e deu
chances ao trabalho de Calixto. Sendo assim, realiza diversas pinturas de cunho
histórico, destacando as obras adquiridas pelo Museu Paulista durante a gestão
Ihering, como a já citada O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu lugar-
tenente Antônio Fernandes de Abreu (1903), o retrato de D. Pedro I (1902), entre
outros.145
A destreza de Calixto nas pinturas históricas se deve, também, ao fato do
pintor ser um grande entusiasta da história paulista. Membro do IHGSP, publicou
trabalhos sobre Martin Affonso de Souza, trocando, aliás, inúmeras
correspondências com Taunay146. Por esta razão, podemos concluir que Calixto
estava de acordo com a representação heroica do bandeirante, pois também a
defendia intelectualmente; sua interação com Taunay não era apenas restringida
143 Ibidem, p. 127. 144 A. C. S., Correio Paulistano (1890). 145 Ibid. 146 Ibid.
50
ao campo intelectual, já que ambos compactuavam do mesmo discurso, era,
também, uma amizade nutrida pelos mesmos interesses.
Como atesta Caleb Alves,
Benedito Calixto esteve presente de forma acentuada no Museu.
Não iniciou seu contato com Taunay em virtude de seu cargo,
como a maioria. Ambos eram amigos antes disso e se
conheciam muito bem, provavelmente do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, frequentado por ambos. A
correspondência entre eles inclui trocas de informações
históricas, de documentos e crítica mútua de trabalhos
desenvolvidos.147
Sua obra, então, não provinha de um mecenato direto e impositivo, ao
contrário dos outros artistas encomendados por Taunay, como Bernadelli. O seu
bandeirante, dessa forma, pôde servir de inspiração aos demais pois, além de
compor um acervo já existente, ele compactuava com a ideia dominante. Apesar
de ser plenamente interessado na história local e de participar ativamente de sua
formulação, Benedito Calixto não fora escolhido por Taunay para realizar as
novas obras retratistas para o centenário, sendo relegado, somente, para as
pinturas históricas.148 Apesar de o maior número de suas encomendas serem de
cunho histórico, encontrava maior realização na produção de paisagens,
sobretudo nas marinhas de sua amada Santos.
1.1. O mar anuncia as boas-vindas do progresso
Como poucos artistas, Calixto terá o dom do olhar. A sua visão será revestida
de uma capa romântica, não do estilo, mas o do sentir. Os seus mares são
carregados de pertencimento, de afirmação de seu próprio lar; como se, por
conhecer tão bem a sua natureza, a pintasse de olhos fechados. O seu
romantismo será, portanto, de ordem pessoal, seguindo, porém, o seu
147 Ibidem, p. 231 148 Idem.
51
movimento estilístico. No romantismo, a natureza é incorporada a sensibilidade
do artista e de sua percepção, impregnada de nostalgia e de um valor
sentimental às suas ruínas, transformando o território em uma suspensão do
tempo.149 E é como se o tempo estivesse congelado nas baías vicentinas.
O artista realizará seus painéis paisagísticos em um momento de
urbanização da cidade, onde retratar a harmonia da natureza seria retratar a
própria harmonia da cidade. É neste período que Santos toma vulto
economicamente, tornando-se a porta de entrada para o capital proveniente das
exportações do café. Era necessário, portanto, que o responsável físico por
estas exportações fosse exaltado; a paisagem, portanto, é o fator fundamental
para sua propaganda. Como já abordado anteriormente, Calixto receberá
diversas encomendas propagandísticas, sendo elas, em sua maioria, cenas do
Porto recém-construído, dando ênfase para os armazéns comercias ao seu
redor. Muitas destas paisagens enfeitarão os cartões-postais em voga no XX.150
A cidade deveria seguir a ordem da natureza; nas obras de Calixto os dois
elementos são tratados não como espaços distintos, mas, sim, como um
complemento histórico, em plena sintonia com a materialidade humana. A
natureza santista seria uma das razões do progresso urbano e econômico da
cidade.151 O que não podemos deixar de lado é o contexto histórico no qual as
obras foram produzidas. As ciências ditas deterministas ainda estavam em voga
no Brasil e situar a ordem da modernização na ordem da natureza era colocar o
presente como algo já pré-determinado pelo ambiente.
As paisagens de Calixto são todas voltadas para a direção oeste, de costas
para a Serra do Mar. Esta perspectiva não foi escolhida ao acaso; o artista, ao
retratar o mar, privilegiava não a fonte da riqueza – o café produzido no Leste –
mas o seu meio de realização concreta. Ou seja, ele privilegiava o Porto
149 BANAT, Ana Kalassa el. A cidade pelos olhos do pintor: memória e representação de Santos em Benedito Calixto entre 1890 e 1927. ANPUH, 2014. 150 Idem. 151 ALVES, Caleb Farias. A fundação de São Vicente na ótica de Benedito Calixto. REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 120-133, março/maio 1999.
52
exportador, o mar que possibilitava o progresso cafeeiro.152 A importância do
Porto também residia no seu potencial de desenvolvimento para São Paulo,
tendo superado o entrave que a Serra do Mar representava para o escoamento
das produções do planalto, e não esquecendo do seu caráter de gênese do
Estado, tendo sido o lugar pelo qual os primeiros colonizadores
desembarcaram.153
Figura 4: Porto de Santos. Benedito Calixto. 1890. Óleo sobre tela. 1134x535
cm. Sérgio Guerini/Divulgação Itaú Cultural.
Em um caos completamente ordenado, a cidade é projetada sobre o ritmo
do trabalho. A paisagem e os navios opulentes engolem a presença humana –
figuras diminutas de trabalhadores que apenas são usados como elementos
ornamentais. E por mais que os navios ocupem parte considerável da tela, eles
são ofuscados pela grandiosidade do mar, que também contrasteia
enormemente com o tom avermelhado da terra firme. O azul turquesa do mar e
o marrom-terra do porto e dos armazéns servirão para diferenciar os dois
152 ALVES, Caleb Farias. A fundação de São Vicente na ótica de Benedito Calixto. REVISTA
USP, São Paulo, n.41, p. 120-133, março/maio 1999. 153 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 42.
53
elementos e, ao mesmo tempo, ligá-los por meio de elementos indissociáveis na
natureza, como o mar e a terra. Outro elemento fundamental na tela é a luz, o
que será uma recorrente nas obras de Calixto. A ênfase em que o artista dá a
luminosidade pode ser entendida como sua visão subjetiva ao objeto retratado,
como se o ambiente representasse um “Porto de luz”, de esperança.154
Todos os panoramas e os cartões-postais da esplendorosa natureza
vicentina ignoravam as reais mazelas da cidade. Longe de ser ordenada e
urbanizada, a cidade de Santos passava por uma epidemia catastrófica, causada
pela falta de saneamento básico público, onde o esgoto a céu aberto causava
os males que a civilização tentava, em vão, esconder. As telas retratam o visível,
colocando o resto na categoria marginalizada do não-visível, desumanizando a
miséria e a doença causada pelo mesmo progresso que trazia a civilização pelos
mares. Aquilo que não era retratado não existia, abarcando um projeto de
higienização classista, étnica e territorial; o projeto de um futuro valia mais que
o presente.155
Como ressalta Ana Kalassa el Banat,
Nessas superfícies podemos ver muitas cidades, algumas
contraditórias, umas gloriosas, outras nem tanto, expressões de
tempos em suspensão... O que parece permanecer entre os
vazios de umas e outras são certas ausências. Aquilo que está
sendo eliminado pelo processo de urbanização e saneamento
parece não causar interesse. As doenças e o movimento sujo do
porto, a miséria dos imigrantes, a escravidão e os forros que não
encontraram espaço na cidade urbanizada, os cortiços e outros
aspectos da degradação da cidade estão distantes.156
Calixto, então, passará a comparar o suposto progresso (representado
como verdade incontestável do presente) em comparação direta com o passado.
Se a cidade é ordenada em 1922 ela também a era em 1822. Os três painéis
154 BANAT, Ana Kalassa el. A cidade pelos olhos do pintor: memória e representação de Santos
em Benedito Calixto entre 1890 e 1927. ANPUH, 2014. 155 Idem. 156 Idem.
54
feitos para a o majestoso prédio da Bolsa do Café, elucidam este discurso. Nos
painéis, aliás, podemos inserir a lógica da natureza determinante e da história
também determinante. No meio das duas paisagens marinhas, uma de 1822 e
outra de 1922, está retratada a fundação de São Vicente. Ora, se o presente é
moderno é devido aos ilustres que aqui aportaram, deixando os frutos de seus
empenhos civilizacionais.157
Figura 5: Santos em 1922. Benedito Calixto. 1922. Óleo sobre tela.
550x820 cm. Bolsa Official do Café, Santos.
Assim como a pintura histórica, a paisagem também servirá a um projeto
de legitimação da ordem dominante em ascensão. Funcionando como fortes
meios propagandísticos a uma cidade que queria atrair mais investimentos sobre
si, alterava o seu presente concreto, forjando uma ordem e apegando a
realidade. O projeto de reurbanização planejada, nos moldes parisienses, nunca
157 ALVES, Caleb Farias. A fundação de São Vicente na ótica de Benedito Calixto. REVISTA
USP, São Paulo, n.41, p. 120-133, março/maio 1999.
55
saiu do papel; só foi vivo enquanto tinta, estático na paralização do tempo
abstrato, que só existiu enquanto delírio de uma elite iludida com as benesses
de um fruto que julgavam eterno. A ganância é subvertida e subverte até a
natureza incapaz de lhe ser eternamente fiel.
1.2. Um historiador à beira-mar
Em 1885, Joaquim de Paula Souza publica o seu romance Palmares. Nele,
a vitória dos paulistas no quilombo de Palmares é rudemente exaltada,
colocando o seu mandante, Domingos Jorge Velho, em um verdadeiro altar dos
benfeitores da nação. O velho sertanista é retratado imponentemente, possuidor
de uma bravura que não altera a sua civilidade e a sua característica branca,
portanto, europeia, é ressaltada. O livro, apesar de sua qualidade literária parca,
obtém bastante prestígio entre os círculos sociais e intelectuais, além de
instituições como o IHGSP e, consequentemente, ao próprio Benedito Calixto
que retratará em sua obra O mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu
lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu (figura 2) a exata personificação do
bandeirante de Joaquim de Paula Souza.158
A imagem de um sertanista branco surge em um contexto onde a eugenia
tomava conta dos meios intelectuais. Retratar um paulista branco e dos olhos
verdes, em um contraste evidente com o mameluco de outrora, era um recado
direto às demais elites, principalmente para a imigrante; a superioridade dos
paulistas não adivinha somente das riquezas do café e da expansão territorial,
mas, também, pela sua superioridade genética, sem máculas de sangue. O
bandeirante branco, porém, não será uma particularidade sua. O será também
para Taunay, para Henrique Bernardelli e demais artistas contemporâneos
seus.159
Conhecemos Benedito Calixto como um pintor muito renomado em sua
época, mas, o que poucos sabem, é que também era um exímio historiador.
158 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e
alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 151 159 Ibidem, p. 156.
56
Membro do IHGB e membro-fundador do IHG de Santos, Calixto dedicou parte
de sua vida para a estudar sobre a colonização portuguesa em São Vicente,
focando seus estudos na figura de Martim Afonso de Souza. Em 1895 publica A
Villa de Itanhaém segunda povoação fundada por Martim Affonso de Souza,
estudos históricos sobre sua fundação, seu desenvolvimento, sua decadência e
estado atual, onde, em um intenso debate acadêmico, defende a tese de que
Martim teria desembarcado na baía de São Vicente, tomando o partido da
tradição oral dos próprios vicentinos.160 Como um bom pintor, transpassou a sua
teoria histórica para as telas, retratando o desembarque de Martim Afonso em
São Vicente. Aliás, Calixto soube unir estes seus dois lados muito bem: foi um
exímio pintor de pinturas históricas – não à toa a sua íntima aproximação com
Victor Meirelles quando em Paris.
Figura 6: Fundação de São Vicente. Benedito Calixto. 1900. 192x385 cm.
Museu Paulista da USP.
Em sua obra Fundação de São Vicente, encerra o seu discurso quanto ao
local de desembarque de Martim. Durante esta presente pesquisa o fator
pedagógico e absoluto da imagem foi abordado muitas vezes, portanto, sabemos
que a iconografia possuía, nos séculos XIX e XX, o incontestável poder da
160 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 42.
57
verdade – ainda mais sob o jugo documental do positivismo. Calixto, ao contrário
dos demais artistas da época, não pintava quadros históricos apenas pela força
da encomenda. Primeiro de tudo, ele as pintava pois realmente acreditava
naquilo em que estava retratando e na necessidade urgente de levar a história
para o máximo de pessoas possíveis, sendo o meio iconográfico o meio mais
eficaz. Quando projeta Martim como propagador da civilização europeia no
Estado, ele, automaticamente, compra o discurso bandeirante.
Dessa forma, o artista possuirá um caráter e um estilo mais atrelados ao
conservadorismo acadêmico, por mais que não tenha estudado na instituição.
Os seus traços precisos serão comparados ao de Bouguereau que, à época,
fugia do gosto artístico.161 O desenho de Calixto será, por vezes, quase estático,
em contraste com a pintura em movimento, em voga no começo do século.
O seu estilo lhe renderia críticas, como a do pintor Almeida Júnior para o
Correio Paulistano, em 1890:
(...) – o desenho é em geral bom, e me parece em certos pontos
os mais francos elogios dos entendidos na difícil arte da qual
afirmava Ingres, neste conceito que na sala hoje se vê gravado
na Academia das Bellas Artes de Paris: - Le dessin c’est la
probité de l’art.
A restrição única dos meus elogios á bondade do desenho
consistiria em dizer:
- há nos primeiros planos uma certa dureza nas linhas em que o
artista procura obter a energia que deve salientar estes planos e
que a meu vêr conseguiria com muito mais propriedade artística
pela maneira de modelar.
E’proprio de um jovem artista talentoso e inexperto
impressionar-se com o seu trabalho e procurar dar-lhe relevo
pela energia de certas expressões; no caso de Benedicto Calixto
161 Ao final do século XIX, o desenho dará lugar à luz e ao seu movimento. Os críticos se voltarão
contra os traços duros do desenho clássico, como, por exemplo, a Revista Illustrada, que defenderá o realismo/naturalismo como o único estilo capaz de transmitir o espírito nacional.
58
é uma exagerada nitidez das linhas dos primeiros planos,
degeneram em seguidão.
Quanto ao colorido, possuem as telas do meu collega certos
trechos muito louvaveis; mas noto em geral a crueza dos tons.
Este é defeito de muitos mestres, sendo que outros incidem no
defeito opposto, de pintarem em tons neutros (...).162
O estilo do artista, portanto, é marcado pelo volume dos corpos,
possuindo caráter escultórico e por vezes dando a impressão de descolamento
da tela. A composição é sempre muito bem estruturada e equilibrada, contudo,
tendem a desaparecer em comparação à figura humana representada. As cores
são pouco saturadas, dando maior ênfase à luz, que constituirá a característica
mais marcante de todas suas obras, levando-nos a uma contemplação serena
da pintura, feita propositalmente pelo artista.163
162 Correio Paulistano, ano 1890/edição 10173. 163 POLETINI, Moisés. Um estudo das obras sacras de Benedito Calixto. Dissertação de
mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP. 2003, p. 22
59
Figura 7: D. Pedro I. Benedito Calixto. 1902. Óleo sobre tela. 140x100 cm.
Museu Paulista da USP.
O retrato, adquirido pelo Museu Paulista, situa D. Pedro I como foco
central da tela. Porém, com forte precisão geográfica – aliás, outra característica
de suas obras –, situa a várzea do Carmo paulista atrás do imperador, já
adotando, antes mesmo de Taunay, o discurso da centralidade de São Paulo.
De costas para a cidade e de frente para o antigo caminho do Rio de Janeiro,
recebe o viajante como um anfitrião e habitante local. A paisagem atrás não
apenas indica uma localização geográfica, indica também o percurso pelo qual
o anfitrião trilhou. O ponto de vista pelo qual o artista recorre na tela é o mesmo
usado nas aquarelas dos viajantes que, em sua maioria, vinham à São Paulo
pelo caminho do Rio de Janeiro.164
A claridade da paisagem paulista obriga o observador a focalizar na
feição do jovem imperador, gerando uma simbiose entre a serenidade de seu
rosto e o ambiente calmo em que está inserido. A serenidade dá tom à
informalidade na qual D. Pedro é retratado. Trajado de forma elegante, porém
164 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003, p. 197.
60
informal, difere dos uniformes militares ao qual era costumeiramente retratado.
Ao que tudo indica, a obra é uma inspiração direta de um medalhão pertencente
à Marquesa de Santos.165
Assim como esta obra, muitas telas de Calixto se encontrarão no Museu
Paulista, algumas adquiridas ainda na gestão Hermann Von Ihering (1850-1930)
e outras encomendadas na gestão de Affonso Taunay (1917-1945). Ao contrário
do que muitos pensam, o retrato de Domingos Jorge Velho não fora
encomendado para as comemorações do centenário da independência;
adquirido pelo juiz de direito ituano José de Mesquita Barros e doado ao Museu
Paulista na gestão Ihering junto do retrato do último capitão-mor de itu, Vicente
da Costa Taques Góes e Aranha, a obra servirá de inspiração direta ao
estereótipo inventado do paulista nas obras encomendadas por Taunay.166 Mas,
se o retrato do bandeirante feito por Benedito Calixto inventara a personificação
iconográfica bandeirante, por que não fora contratado para pintar outros retratos
bandeirantes em 1922? Antes de respondermos à questão, é interessante
adentrar mais fundo na percepção do artista acerca das bandeiras.
Benedito Calixto, assim como os intelectuais da virada do século,
acreditava na necessidade de a história possuir personagens-mitos e tradições
para de fato se instituir como ciência.167 De fato, encontra na figura do
bandeirante a personificação do personagem-mito, o que fica evidente no retrato
de Domingos. Em seu livro Capitanias Paulistas168, de 1924, empenha-se em
tornar o paulista neste personagem mítico, no fundador da história nacional,
justificando os atos considerados como bárbaros, como a escravização indígena,
em um lado humano: “Podiam os paulistas ser qualificados de violentos, as
vezes até cruéis em suas acções, mas eram, entretanto, francos, honestos e
sinceros e isto constituía uma das principais qualidades da nobreza e da firmeza
165 Idem. 166 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e
alteridades na reflexão sobre o Brasil (1880-1960). São Paulo: Editora Alameda, 2019, p. 152. 167 OLIVEIRA, Emerson Dionisio G. de. Instituições, arte e o mito bandeirante: uma contribuição de Benedito Calixto. sÆculum - REVISTA DE HISTORIA [19]; João Pessoa, jul/ dez. 2008. 168 O livro aborda a colonização da capitania paulista e seus desdobramentos por meio das
disputas entre as famílias herdeiras dos irmãos Martim Affonso de Souza e pero Affonso de Souza.
61
de seu caráter” (CALIXTO, 1924, p. 131). Dessa forma, o artista considera
Domingos a prova da veracidade das pesquisas históricas acerca o
bandeirantismo, como atesta uma carta trocada com Taunay em 1919.169 A obra
de 1903 seria, então, o fiel espelho das instituições na qual Calixto estava
inserido, onde, aliás, estreitou suas relações com Affonso Taunay.
Voltamos para a questão proposta acima. Calixto possuía todos os meios
para fazer parte do rol dos pintores contratados para os retratos bandeirantes
em 1922; não apenas era conivente com o discurso paulista, mas ajudava a cria-
lo, fazendo parte das instituições e mantendo uma relação muito próxima à
Taunay, além de ter se especializado em pintura histórica – o que conferia
erudição ao artista, possuindo um forte sentido pedagógico – e paisagem – o
que conferia virtuosismo para com a compreensão da natureza, da luz e suas
formas.170 Contudo, era considerado um artista ligado aos moldes acadêmicos,
mesmo não tendo frequentado a Academia, antiquado em detrimento dos
artistas cariocas, como Oscar Pereira da Silva e Henrique Bernardelli. Foi
contratado, ainda assim, para passar às telas as fotografias de São Paulo de
Militão Augusto de Azevedo, junto de Wasth Rodrigues.171
O artista não ficou contente com o seu esquecimento por Taunay, pois,
mesmo tendo se consagrado no MP, não alcançou o prestígio de Oscar Pereira
da Silva e Henrique Bernardelli.172 Logo após, passou a se dedicar às pinturas
sacras, também reflexo de sua religiosidade. Igrejas como a da Consolação e da
Santa Cecília, em São Paulo, recebem seus afrescos de temáticas bíblicas.173
Viveu uma vida mansa em Santos, junto de seus filhos e netos, possuindo uma
história que andou junto da história da criação da mitologia paulista.
169 apud ALVES, op.cit, p.235-236. 170 OLIVEIRA, Emerson Dionisio G. de. Instituições, arte e o mito bandeirante: uma contribuição de Benedito Calixto. sÆculum - REVISTA DE HISTORIA [19]; João Pessoa, jul/ dez. 2008. 171 ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru:
EDUSC, 2003, p. 271. 172 Ibidem, p. 303. 173 POLETINI, Moisés. Um estudo das obras sacras de Benedito Calixto. Dissertação de
mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP. 2003, p. 20
62
2. A contradição de Henrique Bernardelli
Na contramão de Calixto, que, como dito acima, concordava com a
narrativa imposta pelo museu, estava o carioca Henrique Bernardelli.
Proveniente de uma formação acadêmica, não ganhou o Prêmio de Viagem
financiado pelo governo, porém, concluirá seus estudos na Itália com a ajuda da
instituição. Posteriormente, se tornará um dos professores mais renomados da
ENBA em sua fase transitória, que terá seu irmão, Rodolpho, como diretor174.
Participará, dessa forma, ativamente na produção oficial para o regime
republicano. Um anti-academicismo que ignorará o papel da ENBA na
construção da República rondará uma historiografia artística que, até a segunda
metade do século passado foi suprema. Este anti-academicismo aprisionará a
produção artística da virada do milênio em um termo pré-moderno, intitulando-
as como retrógadas e não autênticas. Esse pré-conceito que teve origem com o
movimento modernista – que, aliás, conviveram no meu espaço-tempo-cultural
– será um dos responsáveis pela atribuição negativa que darão para ENBA e,
consequentemente, para os artistas provenientes dela, como no caso de
Bernardelli, que mesmo inserido em um repertório distinto do molde academista
– vide, pinturas e paisagens históricas monumentais – é entendido como fruto
direto desta “corrente”175. Portanto, na presente pesquisa, desmitificaremos esta
alcunha dada ao artista através da retratista bandeirante e a sua dualidade, aqui,
a chave para o entendimento dos discursos convergentes. Abordaremos
também a aura de encanto que cercava o artista e como isso influenciou
diretamente nas suas obras, já que sua “liberdade a la italiana” era o que mais
lhe rendia o status de pintor rebelde.
2.1. A rebeldia de um pintor andarilho
174 DAZZI, Camila Carneiro. Relações Brasil-Itália na arte do Segundo Oitocentos: estudo sobre
Henrique Bernadelli (1880-1890). Dissertação de mestrado apresentada para o departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, 2006, p. 34 175 COLI, Jorge. Questões sobre a arte brasileira no século XIX? XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, 2002.
63
Em 1886, Henrique Bernardelli expunha suas obras no Rio de Janeiro,
juntamente do pintor italiano Nicolau Facchinetti. A exposição, de caráter
particular, foi um estrondoso sucesso. Com a irregularidade a qual as
Exposições Gerais da AIBA ocorriam – ainda mais após as divergências da
Exposição de 1879 –, as exposições particulares aumentaram, especialmente
no Rio de Janeiro. O motivo do aumento dessas exposições também pode ser
justificado pelo crescente mercado artístico privado, juntamente do colecionismo
de uma nova elite burguesa proveniente das riquezas do café e da borracha. O
principal mercado para esses pintores, a partir da década de 1880, passará a
ser o privado, visando os artistas à não apenas uma encomenda do governo,
mas a atender o gosto dos colecionadores.176
O jovem Bernardelli, residente na Itália, foi só elogios perante a crítica. Foi
apontado como a vanguarda de uma possível escola moderna brasileira, com
suas obras inovadoras e sensíveis ao belo e a natureza. A sua pincelada rápida,
livre das amarras rígidas do desenho, suas cores saturadas e vibrantes e o modo
único no qual manejava a luz em suas telas renderam-lhe a admiração da crítica
e do público. Foi comparado a tudo o que havia de moderno na arte finessecular.
As críticas não foram apenas dirigidas ao seu trabalho, mas, principalmente a
persona do artista. O seu vestir e portar eram a exata personificação do artista
que não se curvava perante os ditames sociais; era, antes de tudo, um artista
livre e independente, que pintava de acordo com sua essência artística. Um
artista, de fato, deveria ser um rebelde.177
Em 1884 manda algumas obras para a Exposição Geral da Academia, não
fora muito notado, embora dois de seus quadros tivessem sido adquiridos pela
própria Academia.178 Um ano depois, porém, Bernardelli já passa a ser notado
positivamente pela crítica – mesmo que ainda na alcunha de irmão de Rodolpho
Bernardelli –, como neste artigo de Angelo Agostini para a Revista Illustrada:
176 DAZZI, Camila; VALLE, Arthur. Modernidade na obra e na autoimagem de Henrique
Bernardelli. Bahia: ANPAP, agosto/2010, pp. 133-147. 177 DAZZI, Camila; VALLE, Arthur. Modernidade na obra e na autoimagem de Henrique
Bernardelli. Bahia: ANPAP, agosto/2010, pp. 133-147. 178 DAZZI, Camila. A recepção do meio artístico carioca à exposição de Henrique Bernardelli em
1886 – A apreciação da imprensa. I Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2005.
64
(...) Esse distincto artista acha-se em Roma, em companhia de
seu irmão e tem feito notáveis progressos; os seus quadros são
bem aceitos nas exposições, onde, só por empenho, se recebem
os dos srs. Pedro Américo e Victor Meirelles.179
Já em 1886, as críticas serão muito mais calorosas, colocando-o no rol
dos grandes pintores nacionais, graças à exposição:
N’uma das salas do pavimento terreo da Typographia Nacional
expos o Sr. Rodolpho Bernardelli, grande quantidade de quadros
a oleo e a pastel feitos pelo seu irmão Henrique Bernardelli.
De todos os artistas brazileiros modernos que foram para a
Europa aperfeiçoar-se na arte da pintura, este parece ser o que
mais tem aperfeiçoado.
Ao longo do artigo, Agostini exalta o fato de Bernardelli ter escolhido a
Itália como país de estudo, enfatizando que Roma será sempre a capital da arte
e “quem quer aprender vá a Roma; quem quer vêr ou expôr, vae a Paris”, e
continua:
Henrique Bernardelli foi para a capital da Itália; ele queria
estudar e não podia escolher melhor.
Eis ahi a vantagem que vemos na sua pintura sobre a dos outros
seus collegas da Academia, que estão na Europa.
Os seus quadros já são bem aceitos nas exposições da Itália e
de Paris e o mais brilhante futuro espera o jovem pintor que
muito honra nossa Academia das Belas Artes, apezar desta ter
sido algum tanto injusta para com elle.180
Alega a injustiça da Academia com Bernardelli por não ter lhe dado o
prêmio de viagem e adiante compara o artista a uma empresa a qual os lucros
tendem a aumentar com o passar do tempo, imputando à Bernardelli um sucesso
ainda maior no futuro após o término de seus estudos na Itália. O fato de Agostini
179 Angelo Agostini, Revista Illustrada. Ano 1885/Edição 406. 180 Angelo Agostini, Revista Illustrada. Ano 1885/Edição 441.
65
ser italiano pode ser decisivo para o seu favorecimento da Itália em relação à
França, contudo, mais adiante ao tratar de Facchinetti, seu conterrâneo, não usa
do mesmo tom elogioso com o qual empregou a Bernardelli. Não lhe atribui
críticas negativas, porém, atribuiu suas obras a um imobilismo estilístico, “aquilo
é um Fachinetti”.181
A personalidade de Bernardelli era construída minuciosamente por ele
próprio, como um artista andarilho que saía para pintar nas campagnas italianas
munido de cavalete e caixas de tinta. Com uma boina na cabeça e um cão ao
seu lado, pintava ao ar livre, correspondendo a idealização do artista errante.
Passa, então, a ser comparado com Courbet: um artista que não se curva a uma
academia, que pinta a partir de seus próprios gostos, possuindo uma ética e um
valor próprios. Um artista marginal. Era vinculado, também, ao pintor italiano
Francesco Paolo Michetti, que, de fato, serviu de inspiração direta ao jovem
artista, sendo sua imagem muito similar aos auto-retratos de Michetti.182
Na exposição de 1886, Bernardelli chega a expor pinturas históricas, mas
estas foram esquecidas pelo público e pela crítica, e, os poucos comentários que
obtiveram, foram negativos. Os quadros históricos escolhidos por ele –
Bachanal, Depois da Bachanal, Banhos Romanos, Profano e Sacro e Valeria
Messalina – estavam em voga na Itália, seguindo um modelo específico de
retrato de personagens da Roma antiga, seguindo o estilo naturalista. A crítica e
o público, que buscavam obras de pequeno formato e de temas aprazíveis para
enfeitar suas casas, não perceberam o tom inovador destas pinturas.183
Junto das obras históricas, se encontravam as obras com a temática
camponesa. Representou os camponeses em seu cotidiano, na lida, no trato
com a terra, em suas casas, unindo a miséria e a alegria em um típico arranjo
naturalista.184 É importante destacar que a temática camponesa entrara em voga
na Europa com o surgimento dos estudos antropológicos e sociais, assim como
181 Idem. 182 DAZZI, Camila; VALLE, Arthur. Modernidade na obra e na autoimagem de Henrique
Bernardelli. Bahia: ANPAP, agosto/2010, pp. 133-147. 183 DAZZI, Camila. A recepção do meio artístico carioca à exposição de Henrique Bernardelli em
1886 – A apreciação da imprensa. I Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2005. 184 Idem.
66
e do realismo, em um verdadeiro contraponto à realidade industrial burguesa das
grandes cidades, tornando a pobreza e o sofrimento do trabalho duro aceitáveis
perante à obediência fiel dos mais pobres, como exemplo a obra Angelus de J.
F. Millet. O naturalismo, ou verismo, veio, então, fazer um contraponto a esta
realidade “sentimentalizada” e maquiada que o realismo atribuía ao
campesinato, não fugindo de retratar o que era desconfortável à realidade
burguesa das cidades.185
Figura 8: Cabeça de Cicioro. Henrique Bernardelli. c. 1884. Óleo sob tela.
O camponês de Bernardelli seguia a tradição naturalista, com forte
inspiração italiana, sofrendo influências de artistas contemporâneos seus, como
Vincenzo Caprile, Vincenzo Irolli e Giuseppe Costantini.186 As rugas e a
expressão cansada causadas pelo trabalho intenso marcam a obra Cabeça de
Cicioro (figura 8), que, juntamente da obra Cabeça de Carroceiro, foi
apresentada na exposição de 1886. Por mais que o trabalho tenha causado
185 HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 295. 186 DAZZI, Camila. A recepção do meio artístico carioca à exposição de Henrique Bernardelli em
1886 – A apreciação da imprensa. I Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2005
67
danos ao velho camponês, um tipo regional italiano187, ele é retratado com um
sorriso faceiro. É interessante notar que ao mesmo tempo que a burguesia é
retratada de forma melancólica, sobretudo as mulheres, os camponeses são
retratados de forma alegre e bucólica, como em sua obra Tarantela (1886).
Podemos atribuir este fato a mentalidade da burguesia oitocentista, a qual
negava valor a qualquer coisa que não fosse o trabalho e, para as mulheres, o
lar.188 A diversão, como a dança popular, seria considerada vulgar e de pouco
tom.
As telas com temática camponesa atraíram os olhares durante a
exposição, contudo, as que mais fizeram sucesso foram as paisagens. Em um
contexto nacional de apreciação das paisagens, consideradas os únicos meios
reais de retratar o espírito brasileiro, em contraposição ao estilo acadêmico,
Bernardelli fora considerado moderno, um artista que conseguia transmitir a
essência da natureza brasileira, sabendo usar apropriadamente as cores e a luz.
Contudo, o que mais chamava atenção era sua técnica.189 Segundo a
historiadora Camila Dazzi, suas paisagens napolitanas “revelavam um novo e
vibrante cromatismo, advindo de uma atitude de pesquisa e renovação da gama
cromática revitalizada pela abordagem ao ar livre” (DAZZI, 2005).
É na exposição de 1886, portanto, que Henrique Bernardelli será
consagrado como um artista moderno na vanguarda de uma nova escola
artística. As suas obras se diferirão das de Benedito Calixto no que concerne à
forma e à luz; seus traços não serão duros, suas pinceladas serão rápidas e
marcadas – enfim, representava o rompimento total dos moldes clássicos e
austeros acadêmicos. Ainda assim, será privilegiado nas escolhas dos artistas
encarregados nas encomendas do MP que exigia as formas acadêmicas as
quais a crítica e o próprio artista rechaçava. Porém, um artista receber uma
187 Com o incremento dos estudos antropológicos, crescem os retratos de tipos regionais. 188 HOBSBAWN, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 2012, p. 265. 189 DAZZI, Camila. A recepção do meio artístico carioca à exposição de Henrique Bernardelli em
1886 – A apreciação da imprensa. I Encontro de História da Arte, UNICAMP, 2005.
68
encomenda do governo significava maior reconhecimento artístico190, e, já que,
segundo Walter Benjamin, é necessário inserir o artista e sua obra dentro dos
meios de produção191, não podemos negligenciar o fator mercadológico da arte
e não levar em conta às necessidades materiais do artista. Receber uma
encomenda, na maioria das vezes, garantia uma renda muito maior do que
qualquer outro mercado. Henrique Bernardelli, então, conseguirá produzir um
bandeirante à altura das rédeas de Affonso Taunay?
2.2 um bandeirante à la italiana
Como já citado anteriormente, as pinturas expostas no Museu não eram
a livre expressão do artista192. Taunay, nas centenas de correspondências
trocadas com os pintores contratados, comandará o arranjo pictórico das
imagens, aprovando aquelas que condiziam com a abordagem heroica
escolhida. Acreditava que, para a maior veracidade da obra, ela precisava de um
desenho preciso e realista, justamente o que será criticado pelos modernistas.
Dessa forma, Taunay comanda os trabalhos expostos, visitando os ateliês dos
artistas e compartilhando inspirações iconográficas (muitas delas aquarelas de
viajantes, como Debret e Saint Hilaire). Não seria diferente com Bernardelli.
O controle que tentaria exercer sobre o artista fica evidente nas
correspondências trocadas para a produção das obras Ciclo da caça ao índio
(figura 9) e Retirada do Cabo de São Roque, que configurariam dois dos painéis
expostos no museu. A questão relevante é o embate de discursos entre
Bernardelli e Taunay, onde o diretor do Museu sente dificuldade em fazer com
que o artista represente o bandeirante de maneira intrépida, como no quadro de
Calixto. Para a Retirada, falta, segundo Washington Luís, ressaltar o vigor e a
resistência da tropa que havia ganhado contra os holandeses, fazendo com que
190 STUMPF, Lúcia Klück. A terceira margem do rio: mercado e sujeitos na pintura de história de
Antônio Parreiras. Dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. 2014 191 BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. São Paulo: Autêntica editora, 2017, p. 105. 192 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes na contramão da história: um estudo iconográfico. Projeto História, n. 24, pp. 307-335. São Paulo, 2002.
69
Bernardelli os coloque em armaduras enquanto são seguidos pelos servos
indígenas e pelos prisioneiros de batalha.193 Já na segunda obra, a forma com
que constitui o bandeirante é em uma posição relaxada, fumando um cigarro de
palha e acompanhado de um cão. Esta obra, se exposta no museu, destoaria
das demais, justamente por retratar um bandeirante completamente diferente de
Domingos Jorge Velho, que seria o modelo para os demais retratos.194
A importância que o controle daquilo que seria representado possui para
Taunay pode ser justificado não apenas pela necessidade de criar um passado
e um presente, mas, também, para planejar um futuro.
Como aborda Giulio Carlo Argan,
Uma ação que determina um valor é uma ação dotada de uma
finalidade e cujo processo se controla: realiza-se no presente,
mas pressupõe a experiência do passado e um projeto de futuro.
A ação artística é uma ação que pressupõe um projeto –
portanto, o procedimento da cópia, que substitui a experiência e
o projeto pelo modelo, não é artístico. E o projeto é uma
finalidade que, realizando-se no presente, assegura à ação um
valor permanente, histórico... A relação experiência-projeto
reflete a relação em que se fundamenta a ideia da ação histórica
e, por conseguinte, da sua representação, a história falada ou
escrita.195
Dessa forma, Taunay compele Henrique Bernardelli a mudar a
composição do quadro e a obra que será exposta mostrará um bandeirante mais
vigoroso, rejuvenescido e intrépido, portando uma arma de cano longo, que,
segundo Maraliz Christo, “remete a impotente figura esculpida por Brizzolara
para o hall, representando Fernão Dias, que a segura da mesma maneira. Essa
pose, própria de um soldado em guarda, está presente na maioria dos
bandeirantes retratados no Museu Paulista. Se o bandeirante ganhou em força,
193 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p.82 194 Idem. 195 ARGAN, Giulio Carlo. A história da arte como história da cidade. Martins Fontes, São Paulo, 1992. p. 23
70
a composição tornou-se dura, perdendo a sua antiga poética” (CHRISTO, 2002).
Assim, a composição se aproxima das demais, em uma estética parecida com
as esculturas de Fernão Dias Paes Leme e Raposo Tavares, porém só após
diversas modificações. Levando em conta que a história da arte também deve
se ater para as expectativas do público, levando em consideração a sua classe
social (CASTELNUOVO, 2006), Bernardelli soube se condizer a tais
expectativas que eram pressupostas no projeto, mas, do mesmo modo, também
soube convergir o discurso imposto, em uma relação direta de artista-público196.
Figura 9: Henrique Bernadelli. Ciclo da caça ao índio. 1922. Óleo sob tela. 222
cm x 152 cm. Museu Paulista da USP.
196 Idem.
71
As cores terrosas usadas pelo artista na composição imagética do quadro
poderiam configurar um desejo de atrair os olhares a Cardoso de Almeida,
porém, essa paleta de cor é usada não somente na figura central do bandeirante,
mas, também, no fundo da obra, mais especificadamente, nos indígenas197. Não
podemos afirmar que a intenção de Bernadelli fosse necessariamente esta,
porém, esta composição nos leva a acreditar que o artista quis fazer uma
comparação direta com os dois polos do quadro. A cor pode representar, aqui,
uma certa igualdade entre o bandeirante e os indígenas que trabalham ao fundo,
como se ele quisesse nos passar a impressão de que o indígena não era um ser
subjugado à maestria do bandeirante, mas que era um adversário a sua altura.
Isso também pode ser atestado no fato de que Bernardelli, apesar das
modificações feitas a pedido de Taunay, mantém a composição que usaria no
Ciclo da caça ao índio em outra obra intitulada O chefe dos bandeirantes que faz
parte do acervo do Museu Mariano Procópio (MMP)198. O artista, portanto,
consegue, em duas obras extremamente similares – sendo que uma é fruto da
outra –, transitar pelas duas representações bandeirantes, a monumental e a
não-monumental. Porém, não podemos incluir Henrique Bernardelli nos dois
polos opostos, pois ele pertencia mais ao polo não-monumental do que ao
contrário. Conforme Maraliz Christo defende, o seu anti-heroísmo bandeirante
era premeditado; o artista não se interessava em retratar de outra forma. Temos
como exemplo não apenas a obra exposta no MMP, mas outras obras em que o
bandeirante é caracterizado como enfermo, velho e cansado – o que destoam
completamente da epopeia paulista.
A primeira obra com este tema de Henrique Bernardelli é produzida ainda
no período imperial. Intitulada de Os bandeirantes (1889), é um quadro
essencialmente naturalista e realista, justamente por, além da composição
imagética, tratar a humanização e o lugar dos retratados na sociedade. No centro
da tela dois bandeirantes, visivelmente cansados, deitam para tomar água em
197 GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. WMF
Martins Fontes. São Paulo, 2007. 198 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes na contramão da história: um estudo
iconográfico. Projeto História, n. 24, pp. 307-335. São Paulo, 2002.
72
um lago no meio da mata, enquanto um indígena capturado observa em pé, de
maneira altiva, seus captores saciarem sua sede como animais. Esta analogia
ao selvagem é implícita; os captores eram restituídos de qualquer honra, pois,
aqui, a honra é toda direcionada ao indígena, provavelmente um pajé, que
mesmo acorrentado mantém sua honra199. Esta visão do bandeirante selvagem
é muito similar a obra já citada de Antônio Parreiras, Os invasores, reforçando a
historicidade e a cultura na qual ambas as obras estavam inseridas.
Figura 10: Henrique Bernadelli. Os bandeirantes. 1889. Óleo sob tela. 400 cm
x 290 cm. Museu Nacional de Belas Artes.
199 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São
Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p. 70
73
O anti-heroísmo presente na obra acima não é apenas marcado pela sua
historicidade, já que, no momento em que foi produzida, a epopeia paulista ainda
não era amplamente discutida e nem organizada; o anti-heroísmo era uma
constante na obra do pintor carioca200. Não podemos colocar as encomendas
para o Museu Paulista, ou a criação da epopeia bandeirante, como o fim de
qualquer representação que não fosse a heroica. Muito pelo contrário, as duas
formas convivem simultaneamente e Bernadelli, mais uma vez, nos atesta que
este é um discurso de infinitos significados e interpretações. O que também não
podemos deixar de lado é o papel que o público da obra tem em defini-la201. O
público do Museu Paulista estava inserido no contexto cultural paulistano, ou
seja, ele compreendia aquilo que estava visualizando pois estava diretamente
inserido naquela mentalidade; o observador interpreta a obra de forma que ele
consiga correlacionar com aquilo que entende de seu passado e de sua
vivência202.
Explicar um fenômeno significa identificar, em seu interior, as
relações de que ele é o produto e, fora dele, as relações pelas
quais é produtivo, isto é, as que o relacionam a outros
fenômenos, a ponto de formar um campo, um sistema em que
tudo é coerente.203
As inspirações do artista para um compor uma obra podem dizer muito
sobre o seu olhar educado. O ato de beber ao chão de forma animalesca aparece
também em Um caminho perto de Flarflord (1811) e em O Trigal (1826), de John
Constable, e na obra de Eugènie Delacroix, Bandido mortalmente ferido matando
a sede (1826). Não há como afirmar se estas telas serviram de inspiração para
Os Bandeirantes, mas é quase certo que Bernardelli deve tê-las visto durante
sua formação artística, se não pessoalmente por meio de gravuras. As privações
200 Ibidem. 201 BAXANDALL, Michael. O olhar renascente, pintura e experiência social na Itália da
renascença. São Paulo: Paz e Terra, 1991 202 ARGAN, Giulio Carlo. A história da arte como história da cidade. Martins Fontes, São Paulo,
1992. p. 20 203 Idem.
74
de uma caminhada longa e incerta a qual o artista retrata na obra de 1889, pode
ser mais comparada à de Delacroix.204
Aliás, também podemos afirmar que o discurso de privações relacionado
às bandeiras pelo artista é pioneiro, já que será após trinta anos que Alcântara
Machado apresentará os bandeirantes como rudes e pobres. Porém, uma
historiografia mais humanizada das bandeiras, ou seja, não-heroica, já se fez
presente no século XIX. Destacamos aqui o historiador Robert Southey (1774-
1843) abordará em sua obra geral sobre a colonização portuguesa no Brasil a
mineração, onde não omitirá a escravização indígena e as brutalidades
cometidas pelos paulistas. Henrique Bernardelli manifestará sua preferência à
Southey em detrimento dos demais relatos que apagavam as máculas paulistas,
como o de Saint-Hilaire (1779-1853) e de Varnhagen (1816-1878). Dessa forma,
o cacique na tela será retratado de forma altiva e vigorosa, limpo de máculas e
vícios vis. Apesar de sua preferência pelo discurso contrário à glória bandeirante,
Bernardelli mostrara-los carregados de fragilidade humana, à mercê da morte e
dos perigos da mata desconhecida – o que garante, aqui, a superioridade do
indígena familiarizado com os perigos da terra.205
Durante sua estada na Itália, Bernardelli absorvera muito das
características locais, tanto no estilo quanto na técnica. Vivendo em um contexto
pós-unificação italiana, vivenciou a valorização dos tipos italianos,
principalmente da figura do brigantaggio. Camponeses da Itália meridional,
lutavam contra a exploração dos proprietários de terras, sendo perseguidos e
refugiando-se nas montanhas de Ancona e Terracina. A sua visão romântica de
aventureiros e justiceiros foi formada durante a ocupação dos Bourbon em
Nápoles (1816-1870), como uma forma de resistência cultural à ocupação,
quando antes eram tidos como sanguinários marginais. Para Maraliz Christo não
é incabível a comparação direta entre os brigantaggio e o bandeirante de
Bernardelli, já que era muito difícil ao artista fugir da onda cultural e política na
204 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes ao chão. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, nº30, 2002. 205 Idem.
75
qual o meio em que vivia passava. Ainda segundo a autora, a imagem do paulista
como insubmisso à autoridade régia e como aventureiro das florestas fez com
que Bernardelli relacionasse os dois personagens.206
Outra obra de Henrique Bernardelli que atesta, ainda mais, a convivência
dos discursos no mundo artístico é Últimos momentos de um bandeirante, que é
produzida em 1932, ou seja, dez anos após as encomendas para o Museu
Paulista. Nesta obra, um homem desprovido de qualquer glória ou pompa,
assombrado pelo seu passado e engolido pelos anos de duras expedições,
encontra a morte em uma rede simples em um casebre simples. Esta
representação é a que mais destoa da epopeia bandeirante, pois a obra não trata
a empreitada do falecido como algo grandioso; aqui, o bandeirante morre
cansado, desacreditado e desprovido de qualquer reminiscência de um passado
épico. O bandeirante de Taunay, por exemplo, é morto em batalha, enquanto
luta para proteger seu povo, coberto pela pompa da morte de um herói.
Figura 11: Henrique Bernadelli. Os últimos momentos de um bandeirante.
1932. Óleo sobre papel cartão. 23 cm x 30,2 cm. Museu Paulista da USP.
206 Idem.
76
Por mais que esta obra tenha sido produzida nos anos 30, ou seja, no
ápice da vanguarda modernista, ela ainda é carregada com uma estética
naturalista e realista207. Seguindo esta premissa, podemos analisa-la a partir da
simbiose ambiente/objeto, onde o ambiente guarda em si toda uma gama de
significados que está atrelado diretamente ao personagem principal da imagem.
Esta é uma imagem escura. A escuridão do ambiente é algo claramente
proposital, dando maior ênfase à claridade que recai sobre o corpo morto do
bandeirante. A escuridão também pode representar o fim e o abraço obscuro da
morte. O casebre modesto e desarranjado é a indicação de uma vida cheia de
penúrias, uma vida em que todo e qualquer luxo é negado – algo que seria
inconcebível na epopeia paulista, já que o ser bandeirante era carregado de uma
mitologia gloriosa que era permeada por uma pompa trovadora e cavalheiresca
medieval. A origem mameluca que foi negada na representação monumental, é
expressa nesta obra pela rede que serve de leito post mortem; os costumes
indígenas não eram apenas passados através da relação captor e capturado,
mas, e principalmente, de uma relação genealógica, passada de geração a
geração. Esta característica paulista, que foi apagada propositalmente na
construção do imaginário bandeirante, é relembrada e mostrada fora dos moldes
institucionais burgueses.
Para Maraliz Christo,
O vigor físico e moral não pertence aos “desbravadores do
sertão”, e, sim, aos índios. Bernadelli não os representa mortos,
espancados ou estropiados. Mesmo quando amarrados ou
carregando pesados volumes, são, em sua maioria, altivos. As
índias, presentes em O chefe bandeirante e Retirada do Cabo
de São Roque, foram retratadas carregando, uma, um grande
fardo e, outra, uma criança. São fortes elementos de
estranhamento, que sugerem a aproximação do andar
bandeirante pelo interior de outras representações de
207 COLI, Jorge. Questões sobre a arte brasileira no século XIX? XXII Colóquio Brasileiro de História da Arte, 2002.
77
agrupamentos humanos em marcha, a exemplo de Fugitivos
(1852) de Honoré Daumier.208
Alguns anos antes da produção da obra citada, em 1929, Alcântara
Machado publica Vida e morte do bandeirante, onde o autor caracteriza São
Paulo e seus habitantes por uma pobreza e miséria extremas, onde o papel do
bandeirante, que não possuía outra escolha, era o de tentar dignificar a vida de
privações em que viviam209. Essa corrente historiográfica que dará mais
importância para a análise dos hábitos paulistas, tratará com mais afinco a
relação do paulista com o indígena, além de analisar seus costumes para
justificar seus atos. Esse princípio de revisionismo histórico da cidade de São
Paulo acarretará na reformulação da historiografia bandeirante, que terá como
marco Caminhos e fronteiras (1957) de Sérgio Buarque de Holanda.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não podemos afirmar que Bernardelli retratava o bandeirante de forma
não-heroica apenas porque era carioca. Mas podemos afirmar que a corrente
monumentalista havia sido reprimida no final do século XIX e só fora resgatada
com e para as encomendas do Museu Paulista – fora dele vivia-se o fervor da
alegoria da vida privada, de obras de cunho mais intimista e subjetivas. Sendo
assim, Henrique Bernardelli não era um artista fora da curva, muito pelo
contrário, ele estava inteiramente inserido em seu contexto. Seguindo as
comparações com Benedito Calixto, que também não era alheio as
208 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes na contramão da história: um estudo iconográfico. Projeto História, n. 24, pp. 307-335. São Paulo, 2002. 209 WALDMAN, Thais Chang. Entre batismos e degolas: (des)caminhos bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de Antropologia da USP. 2018, p. 85
78
transformações culturais e estéticas, podemos separá-los e dois
enquadramentos distintos. Calixto era monumental pois, além de pintor, era
historiador; e um historiador das bandeiras, da história paulista. Pela lógica que
todo artista é um sujeito singular e que é movido por suas predileções
(BAXANDALL, 2006), Calixto não poderia ser enquadrado fora do padrão
monumental – ele contribuía de várias formas para a criação da mitologia
bandeirante.
A identidade paulista passará por diversas modificações desde o século
XVII, em uma verdadeira mudança de rumo. A valorização de sua imagem será
necessária para a consolidação de uma classe, como um meio legitimador da
opressão classista e hegemônica. A arte, portanto, como representação mais fiel
da nossa sociedade, nos ajuda a desvendar o imaginário daqueles que a
produziram ou mandaram produzir. Naqueles idos do século anterior, a carência
de uma elucidação do passado de um povo, que não se entendia como tal, era
a ordem do dia. Ser contratado para pintar uma obra que configuraria em algum
edifício público significava a ascensão imediata do artista210. Dessa forma, não
se pode ignorar as relações de patronato entre o cliente e o artista, que é
obrigado a atender as demandas que lhe são impostas para poder sobreviver.
Resgatar as particularidades do artista como individuo é entender as relações
de troca de uma sociedade que estava se estruturando em um capitalismo
industrial e comercial. A arte era o ópio do estado.
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bandeirantes em São Paulo. Tese apresentada no departamento de
Antropologia da USP, 2018.
85
RESUMO DA PESQUISA
A imagética bandeirante foi orquestrada por uma classe dominante, uma
elite cafeeira que precisava de justificativas do passado para um presente
hegemônico. A glória do passado, então, serviu de alicerce para a dominação
da classe subalterna. Essa dominação seria proveniente de um campo memorial
e pedagógico; a narrativa bandeirante seria posta como uma instrução
necessária para se fazer compreender as estruturas da sociedade atual. Dessa
forma, a capacidade instrutiva da iconografia foi o principal instrumento para
narrar a grande epopeia da construção nacional e, dentro do Museu Paulista,
encontra o seu palco. A iconografia posta dentro do Museu foi metodicamente
panejada por Affonso Taunay, que, encomendando as obras, resinifica a relação
artista-mecenas, em uma troca bilateral e intelectual. Apesar da forte narrativa
heroica que o bandeirante é inserido, este não é um discurso isolado, pelo
contrário, é um discurso polissêmico e histórico - tem suas particularidades
dentro do contexto cultural e regional em que se insere. Dentro desta polissemia
de significados, podemos caracteriza-lo de duas formas, monumental e não-
monumental. Assim, analisaremos dois artistas que são fundamentais para a
compreensão deste discurso dialético, Benedito Calixto e Henrique Bernardelli,
86
analisando o retrato bandeirante a partir das obras produzidas por eles. O herói
poderá, enfim, encontrar o seu fim.
87