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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Beatriz Ferrara Carunchio Busca de sentido para a existência em peregrinos a Santiago de Compostela MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO São Paulo 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Beatriz Ferrara Carunchio

Busca de sentido para a existência

em peregrinos a Santiago de Compostela

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

São Paulo

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Beatriz Ferrara Carunchio

Busca de sentido para a existência

em peregrinos a Santiago de Compostela

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção

do título de MESTRE em Ciências da

Religião, sob a orientação do Prof. Dr.

João Edênio Reis Valle.

São Paulo

2011

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Banca Examinadora

____________________________________________

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Dedico este trabalho a todo aquele que

tem a coragem de peregrinar por sua

vida, com a ousadia necessária para

construir e trilhar seu próprio Caminho.

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha família. É por vocês

que tudo faz sentido!

Aos meus pais, Raffaele e Laura, pela torcida, incentivo e pelo interesse

em conversar sobre minha dissertação.

Ao meu irmão André pela ajuda vital com os gráficos (valeu, Dedo!) e à

minha irmã Claudia por sempre me ouvir e ter as palavras certas nos

momentos necessários (irmã, você sabe que é uma das minhas pessoas

preferidas!).

Ao Julio, Angelo e Rosa, amigos muito especiais, pela compreensão e

paciência com as minhas ausências e angústias, e pela certeza de que no final

as coisas iriam terminar bem.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Edênio Valle, por guiar-me com sabedoria e

competência ao longo deste Caminho de pesquisa.

Aos professores do Programa de Ciências da Religião, em especial ao

Prof. Dr. Enio Brito e Prof. Dr. Edin Abumanssur, pelas contribuições em minha

banca de qualificação.

À Andréia, sempre solícita e simpática com todos.

Aos meus colegas da PUC-SP, por percorrerem comigo este Caminho,

com bom humor e risadas entre uma leitura e uma discussão.

Aos peregrinos que generosamente dividiram comigo aquilo que têm de

mais valioso: suas histórias. Nada teria sido possível sem isso!

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A todos os meus amigos. Temo citar nomes e esquecer alguém

importante neste momento tão especial para mim. Sei como às vezes é difícil e

chatinho agüentar uma mestranda cheia de leituras para fazer e coisas para

escrever. Muito obrigada por todo o apoio, incentivo e paciência que tiveram

comigo (e depois que a defesa passar, não percam por esperar!!).

À Maria José, pelas conversas atentas e pelas trocas de experiências,

das quais sempre saio transformada.

À Franci, sempre minha mestra, por me apoiar e por acreditar em mim

em todos os momentos em que eu mesma não acreditei.

À Bete, por ter visto sempre o melhor que havia em mim, ainda que às

vezes precisasse cavar bastante...

Aos professores Ricardo, Marisa, Ciampa e Heloani. Vocês sempre

terão meu profundo respeito e admiração!

Aos meus pacientes, peregrinos pela vida, exemplos vivos da coragem

para enfrentar desafios e da persistência necessária a todo peregrino.

À CAPES, por haver financiado esta pesquisa.

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RESUMO

A presente dissertação de mestrado teve por objetivo pesquisar a busca por

sentido para a própria existência em pessoas que tenham feito uma

peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela. Para isso, além da

pesquisa bibliográfica, recorremos à pesquisa empírica. Desenvolvemos um

questionário com base nas entrevistas e depoimentos recolhidos por nós, e o

aplicamos a 20 peregrinos. Posteriormente os questionários foram tabulados e

analisados. Concluímos que o Caminho de Santiago já não é uma rota apenas

católica, nem uma rota apenas religiosa; engloba inúmeros discursos e valores

religiosos e laicos. Isso permite que o peregrino entre em contato consigo

mesmo, possibilitando reflexões e questionamentos acerca de si mesmo, de

sua vida e da realidade da qual faz parte, o que permite que construa um novo

sentido para sua vida.

Palavras-chave: busca de sentido, peregrinação, Caminho de Santiago.

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ABSTRACT

This master study aimed to investigate the search for meaning in people who

had made a pilgrimage on the Way of St. James. For this, beside literature

research, we also made an empiric research. We developed a questionnaire

based on interviews and testimonies collected by us. Subsequently, the

questionnaires were tabulated and analyzed. We concluded that the Way of St.

James is not only a Catholic route, not just a religious route. It includes

numerous speeches and values, religious and secular. This allows the pilgrim to

contact himself, enabling considerations and questions about himself, his life

and the reality which the pilgrim belongs to. So it makes possible the

construction of a new meaning for his own life.

Key-words: search for meaning, pilgrimage, Way of St. James.

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Sumário

Introdução..........................................................................................................11

PARTE 1

Capítulo I: Antes de partir, cheque o seu mapa.................................................21

1.1- Peregrinos de ontem: significados e dados históricos..................21

1.2- Peregrinos de hoje: entre a espiritualidade e consumo................27

Capítulo II: O Caminho de Santiago de Compostela.........................................42

2.1- A história do Caminho e a história de Tiago....................................44

2.2- Caminho físico ou caminho espiritual?............................................52

Capítulo III: Busca de sentido: o que se encontra no percurso vai além do

caminho em si....................................................................................................66

PARTE 2

Capítulo IV: Todo caminho começa com um passo..........................................82

4.1- Método: o caminho da pesquisa......................................................82

4.1.1- Procedimentos....................................................................82

4.1.2- Amostragem.......................................................................83

4.2- Análise dos dados coletados...........................................................85

4.2.1- Os dados............................................................................85

4.2.2- Leitura dos dados...............................................................99

Considerações Finais: a chegada....................................................................111

Referências......................................................................................................115

Anexos: dados coletados.................................................................................120

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Caso 1- R.M. ........................................................................................121

Caso 2 – V.S. .......................................................................................124

Caso 3 – L.B.G. ....................................................................................127

Questionários respondidos....................................................................165

Tabelas e gráficos referentes aos questionários...................................223

Apêndice..........................................................................................................235

Modelo de questionário.........................................................................236

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1

Introdução

“Cada pessoa deve seguir seu próprio caminho com

coragem, pois ninguém jamais escapará impunemente

se não atravessá-lo. Ao mesmo tempo que ninguém

jamais sairá ileso de sua caminhada pela vida.” (M.L.F.)

Esta dissertação de mestrado tem por objetivo pesquisar a busca por

sentido para a própria existência em pessoas que tenham feito uma

peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela.

A busca humana por sentido é uma motivação primária, afirma Frankl1.

Quem não encontra sentido para a própria existência perde a dimensão

histórica de seu passado, cujas vivências são reduzidas a acasos. Assim,

torna-se difícil que alguém nessa situação estruture planos para o futuro,

restando-lhe apenas um presente vazio e ameaçador. Além de inúmeras

patologias (depressão, síndrome do pânico doenças psicossomáticas, etc.), a

ausência de sentido pode se refletir socialmente na forma de individualismo,

consumismo, grupos que não se unem em prol de objetivos comuns,

dificuldade de perceber a dimensão social de certas situações. Essas

decorrências da falta de sentido tornam o tema de sua busca não apenas

relevante, mas também necessário, pois no mundo contemporâneo, como

afirma Bauman2, essa é uma busca cada vez mais complexa e essencial para

que o sujeito esteja saudável e saiba lidar com esta realidade. E a figura do

peregrino, em suas viagens, parece ser a de alguém que empreende

(literalmente) esse tipo de busca.

Dentre as diversas rotas de peregrinação, optamos por Santiago de

Compostela, pois como afirma Steil3, esta é uma das rotas que mais atrai

pessoas atualmente, depois que celebridades da mídia a percorreram e

1 Cf. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 2009,

p. 92. 2 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.

3 Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e

interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 32.

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divulgaram suas experiências. Além disso, afirma Carneiro4, o Brasil é o

terceiro país mais presente nessa rota, atrás apenas da França e Alemanha. A

autora menciona que apenas entre 1990 e o início da década de 2000, cerca

de 10 mil brasileiros fizeram o Caminho de Santiago de Compostela. Isso se

deve à visibilidade do Caminho de Santiago na mídia, mas também à sua

capacidade de absorver múltiplos discursos e universos simbólicos, como

lembra Carneiro5. Isso é crucial no mundo contemporâneo, pois para Bauman6,

vivemos o “multiculturalismo”, ou seja, a sociedade é formada por múltiplos

discursos e culturas, porém estes não dialogam, o que gera certa cacofonia.

Isso transmite ao ser humano muita ansiedade e insegurança. Tudo que seja

diferente é visto como ameaçador, o que aumenta ainda mais a insegurança,

ansiedade, o isolamento (e com ele, o individualismo), etc. Vivemos um tempo

que clama por sentido!

Com isso em mente, percebemos que a figura do peregrino é bastante

simbólica no contexto da busca de sentido para a existência. Vilhena7 lembra

que é muito freqüente que as pessoas se refiram à vida em termos de uma

caminhada ou um caminho a ser trilhado. Da mesma forma, acontecimentos

relevantes são referidos como “um grande passo”. É interessante lembrar que,

para Berger e Luckmann8, a linguagem é o veículo da cultura, o que nos

mostra a relevância da utilização dos termos citados por Vilhena9, bem como a

relevância da delimitação formal do objeto ser baseada na busca de sentido

para a existência ao se estudar peregrinos. Fechando essa linha de

pensamento, Carneiro10 afirma que a peregrinação implica em que a pessoa se

insira num novo universo discursivo, o que lhe permite testar seus antigos

valores, crenças e discursos, possibilitando confirmá-los ou transformá-los.

4 Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso,

identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 260. 5 Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso,

identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 280. 6 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. pp. 112-113.

7 Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin

Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 12. 8 Cf. BERGER, Peter. L. e LUCKMANN, Thomas, A construção social da realidade, passim.

9 Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin

Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 12. 10

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 272.

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Refletindo sobre o sentido de ser peregrino hoje, Steil e Carneiro11

definem como ponto crucial a popular metáfora de percorrer um caminho

interno e individual em busca do “verdadeiro eu”. Diferentemente da

modernidade, quando a relação entre religião e mercado, bem como colocar a

religião como uma questão particular eram vistas de forma problemática, no

mundo contemporâneo isso cada vez mais passa a ser visto como um direito.

Devido a tais fatores, Steil e Carneiro12 defendem que atualmente a

peregrinação é uma prática típica de movimentos Nova Era. Os caminhos

unem valores tradicionais e contemporâneos, religiosos e turísticos. Outro

ponto que levam os autores a esta conclusão são certas características da

Nova Era muito presentes nos peregrinos: busca espiritual contínua, que se

expressa em um estilo de vida no qual predomina uma visão holística, mística,

ética e estética da realidade e da vida. Outro aspecto bastante freqüente é o

desejo de uma nova consciência religiosa e a busca por desenvolver uma

espiritualidade livre e criativa. As peregrinações respondem a estes anseios

contemporâneos, pois podem proporcionar experiências religiosas individuais,

incentivando a busca por um ideal de si mesmo e o culto à subjetividade, tão

freqüente no mundo contemporâneo e em manifestações da religiosidade

associada à Nova Era.

Para compreender o peregrino contemporâneo e as implicações de suas

experiências de peregrinação na forma como ele atribui sentido à sua

existência, é imprescindível refletir sobre as transformações trazidas pela

modernidade, como a crescente industrialização, o individualismo (e, com ele,

o afastamento das relações), a velocidade da informação e o pluralismo de

discursos. De acordo com Hervieu-Léger13 as transformações trazidas pela

modernidade se deram de forma rápida demais, além de terem sido drásticas,

mudando radicalmente o mundo tradicional, o que deixou nos sujeitos e nos

grupos um sentimento de vazio, que se busca preencher. A autora14 prossegue

11

Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:

Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28

(1), 2008, p. 112. 12

Ibidem, p. 121. 13

Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, pp. 40 – 41. 14

Ibidem, pp. 60 – 61.

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afirmando que deixar de ter uma identidade religiosa herdada e passar a ter de

escolher a própria identidade é um processo viável apenas quando existe a

“modernidade psicológica”, isto é, quando o sujeito passa a ser capaz de

pensar a si mesmo como individualidade e, aí sim, a buscar para si uma

identidade que transcenda as identidades herdadas ou pré-determinadas. Em

decorrência destas transformações na sociedade e nos próprios sujeitos,

entram em evidência os novos movimentos religiosos, as correntes

carismáticas, a literatura que busca inspiração no esoterismo e o retorno das

peregrinações.

Um aspecto digno de destaque quanto à peregrinação contemporânea à

Santiago de Compostela, mencionado por Carneiro15, é que esta não envolve

apenas elementos católicos, e nem se mantém dentro dos limites da Igreja.

Quem vai até lá não visa agradecer a um milagre, nem alcançar uma graça

específica, nem mesmo (apenas) prestar homenagens ao apóstolo de Jesus. O

objetivo não é o fim, mas o caminho em si. Ao nosso entender, este pode ser

um dos fatores cruciais para que o Caminho de Santiago fosse adotado tão

facilmente por pessoas que não seguem o catolicismo.

Isso abre uma discussão relevante no mundo contemporâneo, a respeito

do pluralismo religioso. Carneiro16 afirma que a peregrinação envolve questões

que transcendem a linguagem do catolicismo, por isso atrai pessoas de

diversas religiões ao resgatar valores associados ao sentimento de pertencer a

uma comunidade (solidariedade, respeito, companheirismo e crítica à violência

e ao consumismo das sociedades contemporâneas). Com isso, diz a autora, a

pessoa passa a se guiar por valores que lhe dão referências para sobreviver no

mundo contemporâneo, onde parece predominar uma crise dos sistemas,

agencias e instituições tradicionalmente produtoras de sentido. Assim, conclui

Carneiro17, o ser humano, ao guiar-se por novos valores (decorrentes de uma

experiência com fortes implicações emocionais, como a peregrinação),

encontra novo sentido para sua existência.

15

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 265. 16

Ibidem, pp. 265-266. 17

Ibidem, p. 280.

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5

A questão principal que norteia esta pesquisa é a seguinte: como ocorre

a busca por sentido em pessoas que tenham feito uma peregrinação a

Santiago de Compostela?

Para isso, é preciso investigar que tipos de transformações ocorrem com

os peregrinos (nos valores, na identidade, na visão de mundo, etc.), e com isso

será possível identificar como se processou a busca da pessoa em questão por

sentido para sua existência. Frankl considera que a busca por sentido é a

maior busca que o ser humano pode empreender. Desta maneira, é presumível

que as vivências e reflexões de cada um sejam muito relevantes neste

processo. Assim, continua o autor, o sentido é algo diferente para cada pessoa,

e sofre influência dos ideais e valores do sujeito, que funcionam como a base

que permitirá a existência de algum sentido.

Observamos que a experiência da peregrinação permite sair da rotina

usual do sujeito, afastando-se das vivências e relacionamentos interpessoais

costumeiros. Isso permite que o sujeito possa olhar a si e a sua vida de fora de

sua posição usual, a partir de outro ângulo. Com isso é possível refletir sobre si

e sobre a própria existência com mais facilidade do que estando envolvido

pelas situações sobre as quais se está refletindo.

Logo, voltamos a questionar: o que se passa ao longo do Caminho,

fazendo com que as pessoas voltem mudadas? Isto é: como ocorre a busca

por sentido em pessoas que tenham feito uma peregrinação a Santiago de

Compostela?

A primeira hipótese que temos, sem a qual não haveria motivação

alguma para realização desta pesquisa, é que as peregrinações propiciam um

tempo e um contexto favoráveis para refletir sobre si mesmo e sobre a

realidade da qual o sujeito faz parte. Outra hipótese, e que pode ser

considerada a continuação desta, é que apenas através da reflexão e do auto-

questionamento (e para isso é necessário ver-se de fora, ver-se como outro)

que se pode transformar e ter consciência dos valores e ideais, para, com base

neles, atribuir algum sentido à própria vida.

Outra hipótese, que surgiu enquanto escrevíamos os esboços dos

capítulos teóricos da dissertação é que o sentido que se atribui à vida é uma

construção. Não basta atribuir algum sentido à vida, essa busca deve ser ativa

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e intensa, para que o sentido não seja meramente atribuído, e sim construído

pelo sujeito. A construção de um sentido permitiria uma vida mais autônoma do

que a mera atribuição de algum sentido “pronto para o consumo”.

Assim, o objetivo desta pesquisa é verificar de que maneira se processa

a busca por sentido em pessoas que realizaram a peregrinação a Santiago de

Compostela, acompanhando através do discurso dos participantes a forma

como se deu a motivação para a peregrinação, as reflexões ao longo do

percurso e a “aplicação” do novo sentido com o retorno.

Como já mencionamos anteriormente, pessoas que não conseguem

atribuir sentido para a própria existência tendem a apresentar maiores

dificuldades em localizar-se no tempo (por exemplo, em apropriar-se da história

de vida ou em estabelecer planos para o futuro), além de apresentarem

maiores probabilidades de desenvolver patologias como depressão e síndrome

do pânico, bem como patologias de ordem psicossomática. Assim, este nos

parece ser um tema de pesquisa relevante para a área da psicologia.

Steil18 considera, como já afirmamos anteriormente, que Santiago de

Compostela é um dos principais centros de peregrinação dos dias de hoje.

Além disso, como também já mencionamos anteriormente, o Caminho de

Santiago de Compostela, por estar constantemente na mídia, é uma das rotas

de peregrinação que mais vem atraindo pessoas atualmente, sendo que o

Brasil é o terceiro país em número de peregrinos no Caminho. Esses dados

mostram a importância da delimitação desta dissertação a peregrinos dessa

rota específica.

Não bastando ser uma das rotas mais escolhidas pelos peregrinos, o

Caminho de Santiago de Compostela é marcado e reconhecido pelo pluralismo

de religiões e discursos formadores de sentido, pois não recebe apenas

pessoas de origem católica, o que o leva a inserir-se no campo da Nova Era e,

com isso, a englobar as características, desafios e anseios da

contemporaneidade.

Afinal, por que tantas pessoas saem de suas casas e cruzam o Atlântico

para caminhar em média durante um mês numa antiga rota de peregrinação

18

Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo.

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7

católica? E o que acontece ao longo do percurso que faz com que esses

peregrinos retornem transformados?

Além da pesquisa teórica abrangendo o fenômeno das peregrinações e,

mais especificamente, informações a respeito do Caminho de Santiago de

Compostela, esta dissertação de mestrado se propõe a analisar dados

empíricos de pessoas que fizeram a peregrinação a Santiago de Compostela.

Os dados foram coletados através de entrevista semi-estruturada e

depoimentos, a partir dos quais formulamos um questionário abordando temas

como a motivação e expectativas sobre a peregrinação; a razão da escolha por

Santiago de Compostela; como foi afastar-se da rotina usual durante o período

da peregrinação (trabalho, família, amigos, tempo livre, etc.); os principais

conflitos, pensamentos, sentimentos e lembranças que a pessoa teve no

decorrer do caminho; e uma breve narrativa da história de vida que deixasse

claro como era a vida do participante antes da peregrinação e como ele

percebe sua vida após o retorno (valores, comportamentos, forma como vê/dá

sentido à vida e a si mesmo). Os participantes foram contatados através de

comunidades da rede social Orkut, e os dados foram coletados através de

depoimentos, trocas de e-mails e entrevistas. Deixamos claro que a identidade

dos participantes não seria divulgada e que a participação na pesquisa seria

voluntária.

Na exploração inicial do perfil dos peregrinos, chamou nossa atenção o

fato de muitos deles, não sendo católicos, optarem por esta rota de

peregrinação. Ainda assim, independente da religião, normalmente os

peregrinos afirmam que, para eles, a religião institucionalizada (independente

de qual seja) é um fator secundário. Afirmam ter crenças que percebemos

como típicas do movimento Nova Era, tais como o poder do pensamento,

“energias”, a natureza, etc.

A seguir, os dados coletados serão analisados à luz das teorias

utilizadas, visando explicitar como se formou sua identidade para, a partir daí,

poder pensar a forma como atribuem sentido às suas existências.

A dissertação se organiza em duas partes, sendo na primeira

apresentado o cenário das peregrinações e na segunda os peregrinos

participantes desta pesquisa, os dados coletados e a análise.

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8

O primeiro capítulo terá por função abordar a questão das

peregrinações, situando o leitor no contexto mais amplo da pesquisa, ou seja,

pretendemos que ele atue como um mapa que auxiliará o leitor na

compreensão do fenômeno das peregrinações. No primeiro subcapítulo

abordaremos definições e passagens históricas sobre as peregrinações, com

dados sobre a origem de termos mais utilizados e a diferenciação entre termos

como “romeiro” e “peregrino”. O texto seguinte tratará do fenômeno das

peregrinações nos dias atuais, discutindo inclusive a questão do turismo

religioso, do consumo e da peregrinação enquanto um caminho interior de

autoconhecimento.

O segundo capítulo fechará mais o foco de nossa pesquisa numa rota de

peregrinação específica: o Caminho de Santiago de Compostela. Inicialmente

faremos uma breve apresentação desta rota e dos vários caminhos de

Santiago. A seguir, abordamos quem foi Tiago, contaremos como se formou a

cidade de Santiago de Compostela e esta rota de peregrinação, chegando aos

dias de hoje, quando nos concentramos especialmente nos peregrinos

brasileiros, já que a pesquisa é sobre eles. No que se refere aos brasileiros no

Caminho de Santiago, abordaremos a influência de Paulo Coelho, a forma

como o estrangeiro vê o peregrino brasileiro e algumas estatísticas da ACACS

(Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago) colhidas entre o

ano 2000 e 2010 quanto ao perfil dos peregrinos. No item seguinte, abordamos

a questão da espiritualidade relativa ao Caminho de Santiago, o que envolve

temas como Nova Era, pluralismo religioso, e a formação da identidade

religiosa no mundo contemporâneo.

No terceiro capítulo abordamos a questão do sentido, inicialmente

procurando explicar o termo e, posteriormente, abordando a importância da

busca por sentido. Nesta passagem do texto, acrescentamos detalhes sobre a

forma como isso se dá no mundo contemporâneo (e que é bastante diferente

da maneira como ocorria na modernidade e na pré-modernidade).

A seguir, começaremos a segunda parte desta dissertação. No capítulo

4, referente ao método, abordaremos o caminho feito para a realização desta

pesquisa de mestrado. Inicialmente, descreveremos os procedimentos

seguidos, a saber, pesquisa bibliográfica e coleta de dados empíricos por meio

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de entrevistas, depoimentos e trocas de e-mails com pessoas que tenham feito

a peregrinação a Santiago de Compostela, dados a partir dos quais

elaboramos um breve questionário, aplicado em 20 peregrinos. No item

seguinte, os participantes da pesquisa são apresentados ao leitor. Por fim,

apresentaremos os dados coletados e os analisaremos a luz das teorias

apresentadas nos capítulos teóricos. Faremos isso com três divisões principais

de análise. A primeira representaria o passado, e se refere às motivações e à

preparação para a peregrinação. A segunda, que identificamos como o

presente, está relacionada à peregrinação em si, ao percurso. Este sempre foi

o trecho narrado com mais detalhes pelos participantes, e pensamos que é a

parte do discurso em que se poderá observar o momento da mudança dos

valores, das identificações (ao tornar-se “peregrino”) e, portanto do início da

construção de um novo sentido para a vida (idéia que explicamos com maiores

detalhes ao longo da análise). Por fim, a última parte, referente ao futuro, é o

retorno, que geralmente é narrado em tom esperançoso de expectativa e de

planos para o futuro, destacando como aquilo que eles se tornaram

(identidade), os novos valores e o sentido encontrado mudou/mudará a forma

como eles percebem a vida e a si mesmos, bem como suas ações.

Por fim, constam as considerações finais da pesquisa. Este item trará o

fechamento da dissertação, com as conclusões acerca da parte teórica exposta

nos capítulos e da análise realizada a partir dos dados coletados

empiricamente.

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PARTE I

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Capítulo I:

Antes de partir, cheque o seu mapa

“Eu não deixei nada porque eu já não tinha nada. Eu fui

buscar alguma coisa que eu nem saberia, e acho que

ainda não sei, explicar o que.” (B.D.T.)

Este capítulo inicial tem a pretensão de atuar como uma base para

aqueles que o seguirão. Da mesma forma que todo peregrino precisa de um

bom mapa, o presente capítulo é nosso “mapa” para a compreensão do

fenômeno pesquisado. Um pressuposto básico de toda ciência é que nada

pode surgir do nada. E, portanto, fenômeno algum é da forma que é a toa.

Segue um processo em que se constrói e se transforma ao longo de sua

história, até que se torne o que é no presente. Portanto, ao pensarmos no

fenômeno das peregrinações, devemos percebê-lo como algo que tem uma

história e um contexto sócio-cultural específicos, que o tornaram da maneira

como é hoje. Este capítulo nos guiará através desse processo de

transformação.

Visando explorar com maior eficiência o tema a que se propõe este

capítulo, optamos por dividi-lo em dois subcapítulos, sendo que o primeiro

abordará o significado de termos como “peregrinação”, “peregrino”, “romaria”,

etc., bem como a contextualização social e histórica desse fenômeno religioso.

Já no segundo subcapítulo, traçamos um panorama geral das peregrinações

no mundo contemporâneo, com destaque para suas relações com o turismo (e,

portanto, com o mercado e o consumo).

1.1- Peregrinos de ontem: significados e dados históricos:

Começaremos este texto com uma questão: por que unir significado e

história no mesmo texto? A idéia inicial era escrever dois textos: uma breve

introdução a respeito do significado e da diferenciação de termos como

“peregrino”, “romeiro”, etc., seguido de um segundo texto que abordasse a

história das peregrinações para, por fim, fecharmos este primeiro capítulo com

um texto abordando o fenômeno da peregrinação na contemporaneidade.

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Entretanto, ao iniciar o processo de pesquisa dos termos, notamos que

significado e história são inseparáveis, e este é um exemplo bastante concreto

disso, pois muitas vezes a explicação etimológica de um termo traz consigo

dados históricos cruciais.

Iniciamos então estas explicações histórico-lingüísticas pelo termo

“peregrino”, já que esta é a personagem central de nossa pesquisa. Steil19

explica que o termo “peregrino” vem do latim peregrinus que significa

estrangeiro. Pereira20 afirma que “peregrinar” deriva dos termos latinos per, que

significa através, e ager, que significa campo, território, país. Assim, num

contexto romano, o peregrino é associado ao estrangeiro, isto é, aquele que

não é cidadão, não tendo os direitos deste. No Império Romano, contexto

social, histórico e lingüístico em que o termo surgiu, os peregrinos eram as

pessoas que estavam de passagem pelo território romano, não visando fixar-se

a ele, apenas viajando com o objetivo de chegar a algum outro lugar (com ou

sem conotações religiosas), qualquer que fosse a razão dessa jornada.

Quanto à diferenciação dos termos “peregrino” e “romeiro”, Valle21 afirma

que apesar de existirem ambas no idioma português e espanhol, no inglês e

francês só se usa o termo “peregrino”. Peregrino também é um termo usado

para se referir a quem se encontra com um outro após ter percorrido um

caminho, associando a idéia de caminho ao encontro com o outro (físico ou

espiritual). A partir desse encontro, o peregrino sairia profundamente

transformado.

De todo modo, voltando aos termos “peregrino” e “romeiro”, Valle22

explica que enquanto o termo “peregrinação” se refere ao estrangeiro, a quem

percorre terras desconhecidas enfrentando o desconhecido, “romaria” refere-se

a caminhos mais curtos, com características festivas e participação comunitária

marcante.

19

Cf. STEIL, Carlos Alberto. Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 30. 20

Cf. PEREIRA, Pedro, Peregrinos: um estudo antropológico das peregrinações a pé em Fátima, p. 34. 21

Cf. VALLE, Edênio. Santuários romarias e discipulado cristão. In: Revista Horizonte –

Faculdade de Teologia - PUC-MG. Belo Horizonte, vol 4, n 8, jun/2006, p. 39. 22

Ibidem, pp. 39-40.

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De acordo com Pereira23 apenas no século XI é que o termo

“peregrinação” passa a se referir a uma viagem de cunho sagrado, e é essa

conotação sagrada que a diferencia de outros tipos de viagem. Diferenciando

peregrinação de procissão, Vilhena24 afirma que na procissão, o sagrado sai

pelas ruas da cidade ou povoado, encontrando-se com o povo, sacralizando as

ruas e casas por onde passa, bem como o povo. Já na peregrinação, que

acontece fora dos limites da cidade, é o povo que vai a busca do sagrado.

Talvez por isso Steil25 afirme que a peregrinação se diferencia de outros rituais

religiosos por não ter a comunidade como referência. O autor também

diferencia peregrinação de romaria, sendo a peregrinação uma viagem mais

longa, rumo aos santuários mais importantes. Por outro lado, a romaria envolve

deslocamentos mais curtos, participação comunitária e aspectos festivos e

devocionais. Por fim, o autor sugere que ambos diferem do turismo religioso

porque, para o peregrino e o romeiro, a viagem tem conotação sagrada, já o

turismo está mais associado ao espetáculo.

De todo modo, independente dos termos utilizados, afirma Westwood26,

sempre está presente no fenômeno das peregrinações a idéia de movimento

rumo a algum lugar considerado sagrado, o que cria uma “coreografia

sagrada”. Portanto, antes prosseguirmos na abordagem das peregrinações, é

viável discutir como se constrói culturalmente um local sagrado.

De acordo com Rosendhal27, para o religioso, o mundo e a vida são

vistos de maneira sagrada. Esta visão permite viver numa realidade plena de

valores religiosos, e assim identificar locais qualitativamente diferentes uns dos

outros de acordo com esses valores e essa visão de mundo. Um lugar é

sagrado na medida em que lhe é atribuída a capacidade de colocar o ser

humano em contato com o transcendente, tendo símbolos, mitos e ritos como

mediadores desse contato. Assim, a construção do espaço sagrado é a

23

Cf. PEREIRA, Pedro, Peregrinos: um estudo antropológico das peregrinações a pé em Fátima, p. 34. 24

Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 21. 25

Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, pp. 33-35. 26

Cf. WESTWOOD, Jennifer. On pilgrimage: sacred journeys around the world, p. 66. 27

Cf. ROSENDHAL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica, p. 30.

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reprodução da obra divina, tendo grande valor existencial para os membros do

grupo em questão, pois é sua referência.

A autora28 menciona ainda que os espaços sagrados e profanos estão

sempre sujeitos ao espaço social, sendo que na organização espacial, é o

sagrado que delimita e viabiliza o profano. Para que se passe de um plano para

o outro (do profano ao sagrado), é necessário um sacrifício, termo vindo do

latim sacra facere, isto é, tornar sagrado, o que demanda ritos em que o sujeito

ou o objeto se submetem a um ser superior. Os caminhos que levam aos

lugares sagrados (por exemplo, as rotas de peregrinação) são plenos de

sacrifícios. Por isso o caminho em si é visto como um rito de passagem. Uma

vez no espaço sagrado, o mundo profano é transcendido, possibilitando que o

ser humano se comunique com realidades que considera sagradas. Logo,

construir o espaço sagrado é uma forma de ordenar o mundo e, assim,

preenchê-lo de significados.

Para Vilhena29, o local para onde ruma o peregrino pode ser sagrado

(devido a acontecimentos históricos ligados à religião ou devido a

manifestações sobrenaturais) ou pode até mesmo ser a terra natal do

peregrino, o local de suas origens e que, por isso, é tornado sagrado para ele,

pois lá encontra suas raízes, reafirma suas pertenças, reforça laços, ou seja,

confirma a própria identidade.

O retorno ao local de origem, também marcado pelo encontro com Deus

e por uma nova visão de si mesmo (uma nova identidade) e da própria vida,

afirma Valle30, este é um aspecto muito relevante nas romarias e

peregrinações.

Dias considera que a peregrinação é a antecessora do turismo. De

acordo com o autor, séculos antes de Cristo, já havia entre os gregos

peregrinações a templos conhecidos, como o Oráculo de Delfos, vindas de

todo o mundo helênico.

28

Ibidem, pp. 32-34. 29

Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, pp. 19-20. 30

Cf. VALLE, Edênio. Santuários romarias e discipulado cristão. In: Revista Horizonte – Faculdade de Teologia - PUC-MG. Belo Horizonte, vol 4, n 8, jun/2006, p. 33.

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Na Idade Média, prossegue Dias31, houve uma grande alta nas viagens

de motivação religiosa, sendo que no ocidente cristão os principais destinos

eram Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela. Assim, de acordo com o

autor:

A popularização dessas viagens, principalmente no

Ocidente, fez com que se estabelecessem rotas e caminhos,

nos quais se dispunha de toda uma ampla infra-estrutura

com pousadas e hospedarias e inclusive hospitais para

oferecer refúgio e cuidados aos peregrinos, ao mesmo

tempo em que as ordens militares, particularmente os

templários, tinham suas casas ao longo das rotas para

defendê-los.

Alem disso, Gazoni32 acrescenta que durante a Idade Média as

peregrinações eram estratégias políticas para ocupar e defender territórios

distantes. Para o autor33, “as peregrinações e as cruzadas foram os principais

motivos das viagens medievais”. Com isso, o culto a diferentes santos foi

ampliado.

No século XVI, com a Reforma Protestante, muitas das rotas medievais

de peregrinação tiveram seu fluxo diminuído e terminaram inativadas, conforme

Westwood34, especialmente no norte da Europa. Isso provavelmente se deu,

pois na visão protestante, destaca Turner35, as peregrinações desperdiçariam o

tempo e a energia que poderiam ser colocados a serviço da divindade através

da adoção de um estilo de vida produtivo e “puro”.

31

Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 19. 32

Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 100. 33

Ibidem, p. 101. 34

Cf. WESTWOOD, Jennifer. On pilgrimage: sacred journeys around the world, p. 77. 35

Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, 1975, p. 188.

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Nesse mesmo século e no seguinte, informa Gazoni36, o aumento de

áreas urbanas acabou por criar um ambiente que favorecia comportamentos

inadequados ao cristianismo. Com isso, passaram a ser incentivadas

peregrinações a locais sagrados fora de cidades maiores.

Posteriormente, no século XIX, a falta de tempo decorrente da

reestruturação do trabalho levou as pessoas a usarem o período de férias não

apenas para o lazer, mas também para atividades religiosas. Com isso, até

hoje as peregrinações atraem as pessoas, afirma Gazoni37, porem agora

unindo à espiritualidade aspectos do lazer (diversão, recreação) e cultura. Hoje,

diz o autor38, a religião sai dos templos e se torna mais uma entre tantas as

opções de lazer, cultura e diversão. Dias39 vai mais além ao afirmar que se o

tempo gasto com a peregrinação é o tempo do lazer (em oposição ao tempo de

trabalho), então esta seria uma atividade de lazer, termo compreendido pelo

autor40 como “bem estar físico, intelectual e espiritual dos indivíduos”. Assim,

existem hoje em dia duas tendências: a de que aumente o tempo livre, bem

como a transferência das práticas espirituais cada vez mais para os momentos

de lazer. Com isso, conclui o autor41, cada vez mais o ser humano terá

possibilidade de dedicar-se às horas de lazer e bem estar, incluindo a

espiritualidade. Logo, para este Dias42, “os limites entre peregrinação e turismo

não são muito claros.

Entretanto, Steil e Carneiro43 definem que turista, peregrino e viajante

são categorias diferentes, pois vivenciam de maneiras diversas um mesmo tipo

de experiência, evento ou local, já que têm percepções diferentes dos mesmos

fenômenos. Assim, podemos pensar que o sentido atribuído aos fenômenos

por cada um a dessas personagens também será muito diferente. Significados

36

Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 100. 37

Ibidem, pp. 100-101. 38

Ibidem, p. 124. 39

Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 25. 40

Ibidem, p. 26. 41

Ibidem, p. 34. 42

Ibidem, p. 21. 43

Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:

Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28

(1), 2008. Pp. 105-107.

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históricos, religiosos e turísticos dialogam e se cruzam, viabilizando a

construção dessas peregrinações contemporâneas, como discutiremos no texto

que segue a este.

1.2- Peregrinos de hoje: entre a espiritualidade e o consumo:

Hoje a peregrinação se tornou um produto oferecido pelo mercado,

conforme Steil e Carneiro44. As transformações nas peregrinações começam a

acontecer quando pessoas religiosas passam a incorporar o turismo enquanto

experiência religiosa, colocando no campo do sagrado experiências relativas

ao lazer, ao consumo e ao marketing.

Steil e Carneiro45 também afirmam que desde o ano 2000, aumentou

drasticamente o número de pessoas que se deslocam para fazer

peregrinações, atraídos pelas idéias de transformação interior e de

aperfeiçoamento pessoal comumente atribuído a elas. Nesse contexto,

significados religiosos e turísticos dialogam e se cruzam, viabilizando a

construção desse modelo contemporâneo de peregrinação.

A fim de contextualizar o leitor nas transformações pelas quais as

peregrinações passaram no mundo contemporâneo, discutiremos agora

questões referentes à peregrinação relacionada ao turismo, ao mercado e ao

consumo.

Para Steil e Carneiro46, se antes o peregrino assumia os sacrifícios

ligados à peregrinação, enquanto a instituição religiosa o reforçava; atualmente

o peregrino confia na mediação da agência turística, pois é, antes de tudo, um

consumidor. Cabe apenas aos novos mediadores garantir recursos simbólicos

para que cada um percorra seu próprio caminho, concluem os autores.

Silveira47 afirma que a relação entre turismo e religião intensificou-se nas

últimas décadas do século XX e início do XXI. As fronteiras entre os dois

44

Ibidem, pp. 113-115. 45

Ibidem, pp. 106-107. 46

Ibidem, p. 116. 47

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 39.

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conceitos são tão tênues que o termo “turismo religioso” transcendeu a esfera

do marketing, onde se originou, e passou a permear os discursos teóricos.

De acordo com Dias48, “turismo religioso” é o termo usado quando

pessoas se deslocam no espaço com motivações religiosas. Isso inclui

peregrinações, romarias, visitas a locais sagrados, festas, ou qualquer outro

tipo de atividade religiosa. Entretanto, o turismo religioso está sempre ligado a

outras formas de turismo, sobretudo o cultural.

Ainda assim, Dias49 prossegue em seu texto dizendo que “o peregrino (o

romeiro) não se sente como um turista e, embora utilize as instalações

turísticas, na realidade não apresenta o mesmo comportamento”. O autor50

explica que para o turista religioso, a motivação religiosa é um pretexto para

realizar a viagem, em que também se aproveita para visitar lugares de cultura e

recreação. Já a peregrinação está profundamente ligada a experiência

individual, vivências comunitárias e reflexões acerca da identidade.

Dias51 sugere ainda que haverá um grande crescimento do turismo

religioso, pois o ser humano sente cada vez mais a necessidade de ampliar

seus conhecimentos sobre o mundo e sobre si mesmo em sua condição

existencial.

Também Oliveira52 prevê que o turismo religioso estará cada vez mais

em evidência, destacando algumas características contemporâneas que

incentivam seu crescimento. O primeiro fator é a concepção holística de Deus,

ou seja, a noção de que Deus é um só e assim se pode usar qualquer nome e

imagem para se referir à divindade sem que isso configure uma heresia (com

isso, o turismo religioso poderia ser uma das faces desse encontro com a

divindade). O segundo fator é o destaque dado às práticas terapêuticas, o que

o autor compara a uma busca pelo “elixir da longa vida”, valendo-se disso para

sua divulgação. Por fim, é mencionada a religiosidade voltada para o feminino,

o que enfatiza a uma deusa e não a um deus, o que traz a “valorização da

48

Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 17-18. 49

Ibidem, p. 22. 50

Ibidem, pp. 22-23. 51

Ibidem, p. 34. 52

Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, pp. 75-77.

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natureza, da terra, das festas e das identidades culturais dos povos”53. O

autor54 cita alguns fatores globais da contemporaneidade que evocam a deusa:

(...) a crise ecológica, a luta pela paz e pela tolerância, a

aliança de Estados em blocos internacionais e,

principalmente, a crescente presença da mulher nos

diferentes setores da economia e da política.

Ao mesmo tempo em que o ser humano é aparentemente colocado em

evidência pelas características que acabamos de citar, vivemos uma época em

que o mercado parece vir antes dos seres humanos. E, como afirma Gazoni55,

o turismo é um dos fenômenos mais expressivos de sociedades pós-industriais.

Em decorrência disso, afirma Dias56, locais de grande afluxo de turismo

religioso “apresentam dimensões motivadas pela propaganda e marketing, que

superam as manifestações de fé e as próprias motivações religiosas”.

Com isso, explica Silveira57, a religião e os lugares são transformados

em imagens (que são veiculadas em diferentes mídias) e, com isso, tornam-se

produtos que podem ser consumidos. Além disso, quando a religião passa a

ser imagem, é oferecida como um espetáculo, que pode ser visto/consumido,

sem que a pessoa precise se comprometer com seu conteúdo, consome sem

envolvimento.

Silveira58 prossegue afirmando que no turismo religioso os símbolos

sagrados são resignificados pelo mercado e pelo consumo. O turista é externo

à experiência religiosa, a vivencia como um fator cultural; enquanto o peregrino

é interno a essas experiências, vivenciando-as como fenômenos religiosos.

53

Ibidem, p. 77. 54

Ibidem, p. 77. 55

Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 95. 56

Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 35. 57

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 46-47. 58

Ibidem, p. 58.

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20

Logo, peregrinos tradicionais e peregrinos turistas diferem, de acordo

com Germiniani59, não apenas na motivação, mas na mediação do sagrado por

elementos mercadológicos. E quando o mercado se torna mediador do

sagrado, continua a autora60, passa a selecionar através das condições

financeiras quem pode ou não ter acesso à determinada experiência religiosa.

Germiniani ressalta que a forma de exercer a fé entra cada vez mais em

sintonia com as ideologias individualistas que permeiam o mundo

contemporâneo.

Silveira61 explica que antes da Revolução industrial, viajar era distanciar-

se das relações estáveis da vida cotidiana e lançar-se ao desconhecido. O

próprio viajante organizava o roteiro e os procedimentos de sua viagem. Com a

industrialização e urbanização, o viajante perdeu essas funções, agora ele

apenas viaja. A organização ficou a cargo das agências turísticas, que

oferecem pacotes com rotas padronizadas aos viajantes (agora consumidores).

Pensando nisso, não podemos deixar de mencionar os roteiros de fé,

definidos por Dias62 como “caminhadas de cunho espiritual, pré-organizadas

num itinerário turístico-religioso”. A seguir, apresentaremos alguns desses

roteiros mais conhecidos no Brasil.

Steil e Carneiro63 destacam que:

Desde a virada do ano 2000, podemos perceber um número

significativo de pessoas que têm se deslocado de diferentes

pontos do país para realizar as peregrinações conhecidas

como Caminho da Luz (Minas Gerais), do Sol (São Paulo),

da Fé (São Paulo), das Missões (Rio Grande do Sul) e

Passos de Anchieta (Espírito Santo), atraídos, entre outros

59

Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 127. 60

Ibidem, p. 132. 61

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 46-47. 61

Ibidem, p. 63. 62

Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 33. 63

Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:

Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, p. 107.

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21

motivos, pelo ideário de transformação interior e

aperfeiçoamento pessoal que normalmente é atribuído a

esse tipo de peregrinação, assim como pela possibilidade de

refazer, em terras brasileiras, a experiência vivida por muitos

de seus idealizadores ao fazerem a peregrinação a Santiago

de Compostela, na Espanha, ou como um treinamento para

sua posterior realização.

O Caminho do Sol, que vai de Santana do Parnaíba a Águas de São

Pedro, no interior paulista, foi abertamente inspirado no Caminho de Santiago

de Compostela. Dias64 afirma que o caminho, que tem o apoio da Igreja

Católica, termina em um altar a Santiago de Compostela, o primeiro feito fora

da Espanha. Steil e Carneiro65 explicam que, de acordo com os idealizadores

do caminho, o altar se justifica porque a cidade de Águas de São Pedro foi

fundada no dia 25 de julho, mesmo dia em que se comemora o nascimento de

Santiago. A imagem de Santiago foi doada por um hospitaleiro emblemático de

um dos albergues do Caminho de Santiago em 2001, quando o Caminho do

Sol foi iniciado.

De acordo com o site Caminho do Sol66, para percorrer o caminho, que

possui cerca de 240 quilômetros, leva-se em torno de 12 dias a pé ou 3,5 dias

de bicicleta. É preciso antes assistir a uma palestra de orientação, e então

efetuar a inscrição, que inclui pernoites e refeições. Na maioria dos casos, o

caminho é realizado em grupos. Existe ainda a opção de realizar o Caminho do

Sol apenas aos finais de semana, de modo que durante a semana a pessoa

pode retornar ao seu local de moradia e ter suas atividades cotidianas,

retornando no início do final de semana ao ponto onde o caminho fora

interrompido na semana anterior. Assim como no Caminho de Santiago de

Compostela, as direções do percurso são indicadas por setas amarelas e o

64

Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS,

Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 33. 65

Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:

Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, p. 114. 66

Cf. Caminho do Sol. Disponível em: (http://www.caminhodosol.org).

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22

peregrino tem uma credencial que é carimbada ao longo do Caminho e que lhe

possibilita receber, ao final, um certificado da peregrinação.

Também o Caminho da Fé, que percorre cerca de 497 quilômetros entre

Tambaú e Aparecida do Norte, foi inspirado no Caminho de Santiago, de

acordo com o site67 que faz sua divulgação. Este caminho, que também conta

com o apoio da Igreja Católica, foi criado não apenas como tentativa de

reproduzir no Brasil algo semelhante ao Caminho de Santiago, mas também

com a finalidade de dar alguma estrutura à caminhada das pessoas que já

peregrinavam a Aparecida. O certificado da peregrinação pode ser recebido

mediante a apresentação da credencial com os carimbos recebidos ao longo

do percurso. A sinalização também é feita por setas amarelas. As partidas são

diárias, e os peregrinos são livres para caminhar como quiserem (sozinhos ou

em grupos). A pé, o caminho leva entre 17 e 20 dias, e de bicicleta, entre 8 e

10.

O Caminho da Luz, localizado em Minas Gerais, tem como início a

cidade de Tombos e termina no Pico da Bandeira, atravessando

aproximadamente 200 quilômetros, de acordo com o site Caminho da Luz68. A

caminhada leva em torno de 7 dias. O tempo diminui se o percurso for feito de

bicicleta (4 dias) ou a cavalo (4 ou 5 dias). O discurso relativo a Nova Era é

bastante evidente nos ideais do Caminho da Luz, como se pode observar no

mesmo site:

A rota é carregada de um magnetismo que fascina a todos

aqueles que têm uma sensibilidade aguçada, pois sua força

telúrica abre inúmeros portais energéticos, os quais atiram

os caminhantes numa viagem que ultrapassa a barreira do

tempo.

No início do Caminho da Luz o peregrino também recebe uma credencial

a ser carimbada nos locais de pernoite. A credencial lhe garante passe livre

pelas propriedades privadas cortadas pelo caminho, bem como o certificado ao

fim da peregrinação. Também esta rota é sinalizada por setas amarelas. Para

67

Cf. Caminho da Fé. Disponível em: (http://www.caminhodafe.com.br) 68

Cf. Caminho da Luz. Disponível em: (http://www.caminhodaluz.org.br)

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percorrê-lo, é necessário efetuar a inscrição e pagar a uma taxa (como nas

outras rotas brasileiras anteriormente abordadas). Pode ser percorrido sozinho

ou em grupos. O Caminho da Luz foi declarado Patrimônio Cultural do Estado

de Minas Gerais em 2009.

O caminho conhecido como Passos de Anchieta, que vai de Vitória a

Anchieta percorrendo 100 quilômetros começou a ser utilizado como rota de

peregrinação em 1998 (ano em que se comemorou o quarto centenário da

morte de Anchieta), ao ser idealizado por um empresário e um jornalista após

haverem percorrido o Caminho de Santiago. Especulações sobre a possível

canonização do Padre José de Anchieta contribuíram para que esse projeto

fosse concretizado, de acordo com Gazoni69.

De acordo com o site da Associação Brasileira dos Amigos dos Passos

de Anchieta70 (ABAPA), a trilha compreende o percurso de 100 quilômetros que

o jesuíta percorria quinzenalmente. Pode ser percorrida em qualquer época do

ano, entretanto, os idealizadores a conceberam como uma caminhada anual, a

ser percorrida no feriado de Corpus Christi, compreendendo que, sendo um

feriado nacional de 4 dias (tempo gasto no percurso), haveria maior demanda

para percorrê-lo.

De acordo com o mesmo site, a peregrinação pode ser feita a pé, de

bicicleta, a cavalo ou navegando (margeando a orla de caiaque, Wind surf,

barco a vela ou a remo, entre outras embarcações). A própria orla serve de

sinalização ao caminho, que também conta com placas de sinalização. É

necessário fazer inscrição para percorrer os Passos de Anchieta, e a ABAPA

vende pacotes turísticos com a finalidade de “resguardar o conceito do projeto”,

bem como por razões de segurança aos peregrinos.

Quanto ao Caminho das Missões, de acordo com Steil e Carneiro71, o

trajeto é feito através de antigas estradas que conectavam as missões

jesuíticas. Ao longo do trajeto encontram-se três patrimônios culturais (sítios

69

Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 97-98. 70

Cf. Associação Brasileira dos Amigos dos Passos de Anchieta (ABAPA). Disponível em: (http://www.abapa.org.br) 71

Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:

Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, p. 115.

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arqueológicos de São Nicolau, São Lourenço e São João Batista) e um

patrimônio da humanidade (São Miguel Arcanjo). Esses lugares são com muita

freqüência descritos como “sagrados” e “cheios de energia”, sendo que o guia

geralmente convida as pessoas a colocarem as mãos nas ruínas para receber

bons fluídos. A peregrinação é realizada conforme a pessoa adquire um pacote

turístico.

De acordo com o site Caminho das Missões72, as estradas conectam 30

antigas missões, e existe o projeto de ampliar o caminho para que englobe a

todos eles, passando pelo Brasil, Argentina e Paraguai. Atualmente, o caminho

engloba 7 missões, e podem ser feitos trajetos de 3, 7 ou 13 dias a pé,

percorrendo respectivamente 72, 170 ou 325 quilômetros. Há também opções

para realizar o percurso de bicicleta. Cada peregrino recebe uma credencial

onde são colados adesivos que confirmam a passagem pelos locais de

pernoite, quem passar pelo menos pelos três últimos locais tem direito ao

certificado, em português e guarani.

Como demonstramos, próximo ao ano 2000 surgiram inúmeros

caminhos pelo país (além dos citados, existem outros, como o a rota do

imigrante e a estrada real), bastando que cada peregrino escolha e percorra o

seu caminho.

Afirma Oliveira73 que a escolha de um caminho, literal ou discursivo, “é

absolutamente mediada pela eficiência simbólica dos meios de comunicação, e

não pela liberdade ou pela autonomia de consumidor”.

Steil e Carneiro74 ainda chamam a atenção para o fato de que a

peregrinação é também física, e não apenas espiritual. Desta maneira, o

pacote turístico, a infra-estruturara e os grupos que atendem os peregrinos ao

longo do caminho são elementos que trazem segurança ao sujeito

contemporâneo, o qual notamos ser acostumado a agir no mundo como um

consumidor, e não como alguém que precisa se sacrificar em prol da elevação

espiritual, da maneira como acreditava o ser humano pré-moderno. Entre os

72

Cf. Caminho das Missões. Disponível em: (http://www.caminhodasmissoes.com.br) 73

Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, p. 72. 74

Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era: Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, pp. 116-117.

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peregrinos, o que legitima a peregrinação é o grau de imersão na experiência,

desprezando o que possa se associar ao mercado e vendo a peregrinação

como uma experiência de despojamento.

Ainda assim, os autores consideram a peregrinação e o turismo não

como opostos, mas como modalidades de movimento que proporcionam aos

sujeitos contemporâneos um momento de reflexão sobre suas experiências e a

construção de sentido para a existência.

Gostaríamos de interromper a crítica na qual vínhamos trabalhando para

fazer uma breve reflexão. O sentido não é meramente atribuído, antes, deve

ser construído (pelo próprio sujeito) para que seja algo realmente duradouro,

para que possa ser encarnado, “vestido” pelo sujeito em questão. E ainda, o

ser humano só se tornaria um sujeito a partir do momento em que houvesse a

ação primordial de construir sentidos (para o mundo, para si mesmo e para sua

existência).

Quanto ao sentido de ser peregrino hoje, Steil e Carneiro75 definem

como ponto crucial a popular metáfora de percorrer um caminho interno e

individual em busca do “verdadeiro eu”. Além disso, afirmam os mesmos

autores76 as motivações dos peregrinos contemporâneos unem interesses

turísticos, místicos, culturais, históricos e ecológicos. Isso não é visto com

estranheza pelos peregrinos, pois as fronteiras desses campos são, na

contemporaneidade, bastante tênues. Se na modernidade a relação entre

religião e mercado, bem como colocar a religião como uma questão particular

eram vistas de forma problemática, hoje isso cada vez mais passa a ser visto

como um direito.

Assim, como afirma Silveira77, só existe turismo religioso porque o ser

humano, enquanto ser religioso, tornou-se um turista a passear por diferentes

religiões e movimentos de expressão espiritual.

Devido a tais fatores, Steil e Carneiro78 defendem que atualmente a

peregrinação é uma prática típica de movimentos Nova Era. Os caminhos são

75

Ibidem, p. 112. 76

Ibidem, p. 116. 77

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 85.

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marcados por características ecológicas, históricas, religiosas e culturais, unem

valores tradicionais e contemporâneos, religiosos e turísticos. Outro ponto que

levam os autores a esta conclusão são certas características da Nova Era

muito presentes nos peregrinos: busca espiritual contínua, que se expressa em

um estilo de vida no qual predomina uma visão holística, mística, ética e

estética da realidade e da vida. Há também o desejo de uma nova consciência

religiosa e a busca por desenvolver uma espiritualidade livre e criativa, um

espaço sagrado subjetivo (ou, podemos questionar, seria esta a sacralização

da subjetividade?). As peregrinações podem proporcionar experiências

religiosas individuais, incentivando a busca por um ideal de si mesmo e o culto

à subjetividade, tão freqüente no mundo contemporâneo e em manifestações

da religiosidade associada à Nova Era.

Hoje, independente da crença ou pertença religiosa, os caminhos em si

(e não o local de chegada ou os objetos de culto) são preenchidos pelos

peregrinos de sentido mágico, sobrenatural e transcendente, e que, ao mesmo

tempo, permitiriam um encontro consigo mesmo. O sagrado está no caminho,

no movimento, na ação. Além disso, no contexto atual, a religião é comumente

vista como uma experiência mística particular, assim, seus elementos

mediadores não são necessariamente preenchidos pelo sagrado institucional

adquirido numa comunidade de crenças e valores partilhados.

Ainda assim, Steil e Carneiro79 dizem que:

(...) a presença da Igreja Católica, com seus padres

abençoando os peregrinos no início ou no fim do caminho, é

um ponto de referência sólido.

Outro tópico que precisa ser abordado ao discutir as peregrinações é o

da mobilidade, o que discutiremos com base em Bauman80. Entretanto, a

noção de mobilidade no mundo contemporâneo só pode fazer sentido quando

78

Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era: Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (1), 2008, p. 121. 79

Ibidem, p. 116. 80

Cf. BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da pós-modernidade. In: Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 110.

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se compreende o que torna possível o movimento. A resposta, para o autor,

está no tempo. Atualmente ocorre a destemporalização do espaço social, ou

seja, não existe tempo algum além de um longuíssimo presente. Na

modernidade, o espaço foi projetado no tempo, que ganhou direção, tornando-

se um itinerário. O tempo ganhou, assim, a noção de progresso, corre do

obsoleto ao atual, rumo ao desenvolvimento. Hoje, entretanto, o tempo vem

cada vez mais perdendo suas características de espaço, e para Bauman81 isso

faz com que a mobilidade entre em evidência. Portanto, o desafio do sujeito

contemporâneo deixa de ser formar uma identidade (desafio do sujeito

moderno), mas sim impedir que a identidade se fixe, não permitir a ela aderir

ao corpo depressa demais. “O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é

fazer a identidade deter-se, mas evitar que ela se fixe”, afirma o autor82.

Após essa explicação sobre a noção de tempo e a mobilidade no mundo

contemporâneo, Bauman83 se dedica a explicar as formas de mover-se por

este cenário, isto é, as personagens emblemáticas deste contexto social.

Assim, o autor estabelece o turista e o vagabundo como metáfora das posturas

contemporâneas.

Turistas e vagabundos são as metáforas da vida

contemporânea. Uma pessoa pode ser (e freqüentemente o

é) um turista ou um vagabundo sem jamais viajar

fisicamente para longe. (...) sugiro-lhes que a oposição entre

turistas e vagabundos é maior, a principal divisão da

sociedade pós-moderna.

Para Bauman84, o turista é o sujeito pós-moderno idealizado: nunca se

fixa a nada, sua mobilidade o protege das dificuldades de estar fixo a um lugar,

pois não é preciso que ele se engaje ou se envolva com nada, está fora e

dentro ao mesmo tempo (presente). Para o turista, o mundo é dócil e flexível,

sem traços permanentes. O tempo se torna uma sucessão de presentes,

muitas vezes desvinculados uns dos outros, e que trazem consigo suas

81

Ibidem, pp. 113-114. 82

Ibidem, p. 114. 83

Ibidem, p. 118. 84

Ibidem, pp. 114-117.

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próprias chaves de interpretação. Ele está sempre em movimento e sua viagem

não tem um rumo certo ou um ponto de chegada: o turista muda de lugar

sempre que há desejo ou necessidade de fazer isso. Assim, nenhuma

configuração se mantém por muito tempo, o que lhe dá um sentimento se

segurança, de estar no controle, identificada (na opinião deles!) como liberdade

e autonomia. Entretanto, diz o autor, ao deixar as incertezas de uma vida fixa

para trás, o turista acaba criando ainda mais incertezas. Quando trancada pelo

lado de fora, a casa é um sonho (ter um lugar acolhedor para retornar), porém

quando trancada por dentro, aos olhos do turista, a casa se transforma numa

prisão.

A outra postura metafórica do sujeito contemporâneo é o vagabundo,

oposto ao turista. De acordo com Bauman85, o vagabundo não gosta de vagar

e não desejava isso para si, o faz apenas por falta de opções. Assim, se para o

turista o mundo é atraente, para o vagabundo é um local inóspito. Para ele, a

liberdade significa não precisar viajar, ter um lar e poder estar nele, pois ser

turista e viajar é uma escolha, já ser um vagabundo é a ausência de poder de

escolha, um acaso quase que imposto. Bauman86 explica que:

(...) pode-se viver com as ambigüidades da incerteza que

satura a vida do turista só porque a certezas da

vagabundagem são tão inequivocamente asquerosas e

repugnantes.

Além disso, é preciso acrescentar que o peregrino e o vagabundo são de

mundos diferentes, pois o peregrino tende a se remeter ao mundo moderno,

enquanto o vagabundo é a outra face do turista. Para Bauman, na

contemporaneidade, todos estão em algum lugar entre o turista e o vagabundo,

sendo que nosso lugar no mundo é dado pelo grau de liberdade do qual

gozamos (ou não) para escolher nossos caminhos. A mobilidade é, hoje, uma

realidade que afeta a vida das pessoas de forma drástica e permanente.

85

Ibidem, pp. 117-118. 86

Ibidem, p. 119.

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Apenas com esta compreensão ela pode ser interpretada como metáfora da

vida.

Vilhena87 compara o peregrino ao imigrante, ambos motivam sua

caminhada em fatores como problemas no local de origem (conflitos, falta de

trabalho, disputas por poder, epidemias, perseguições, etc.), desejo de

aventura e busca pelo novo, curiosidade pelo desconhecido, sonhos e

esperanças de uma vida melhor. Tanto as peregrinações quanto as migrações

trazem ao caminho por onde passam e ao lugar aonde chegam influencias

culturais, lingüísticas, tradições e miscigenação.

Steil88 diz algo semelhante ao comparar as peregrinações ao texto

bíblico do Êxodo, que narra a experiência da saída dos hebreus do Egito rumo

à Terra Prometida.

Valle89 explica que as peregrinações estão presentes em todas as

religiões. No catolicismo latino americano, elas se tornaram junto com as festas

uma das maiores expressões da religiosidade popular. Já as igrejas

protestantes se adaptaram às sociedades urbanas contemporâneas

organizando peregrinações à Terra Santa e marchas com imensas

concentrações de pessoas, afirma o mesmo autor90. Isso demonstra a grande

importância desse tipo de manifestação para a consolidação da fé, mesmo no

contexto atual.

Vilhena91 destaca três fases da peregrinação/migração: a saída

(preparação, o início da peregrinação se dá bem antes da partida propriamente

dita, em seu anúncio, preparo e planejamento), o deslocamento (ação,

comparada pela autora a uma grande e arriscada busca, pois embora a meta

seja desejável, o caminho até ela é cheio de perigos e conflitos – fome,

cansaço, solidão, perigos da natureza, demônios...) e a chegada (alcance da

87

Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, pp. 13-17. 88

Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 48. 89

Cf. VALLE, Edênio. Santuários romarias e discipulado cristão. In: Revista Horizonte –

Faculdade de Teologia - PUC-MG. Belo Horizonte, vol 4, n 8, jun/2006, p. 38. 90

Ibidem, p. 32. 91

Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, pp. 16-17.

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meta, superação). Também Valle92 afirma que o planejamento da peregrinação

deve começar antes da saída, prolongando-se ao longo do percurso, para que

o local de chegada seja também um novo local de partida em direção ao

aprofundamento na comunidade de origem.

O peregrino experimenta três tempos: situa-se no presente, mas revive o

passado e mantém seu foco no porvir (futuro). Para Vilhena93, o peregrino, ao ir

ao encontro do sagrado, vive em constante mudança temporal, espacial e

mesmo mudanças em seu interior, resultando em algo que “confere e comunica

sentido à vida” (p. 26).

Steil e Carneiro94 afirmam que rituais como as peregrinações entram em

conflito constante com o cotidiano dos grupos sociais, construindo “valores que

dão algum sentido às práticas mundanas e sistemas estabelecidos” (p.118)

Steil95 afirma que a peregrinação é uma experiência com grande

capacidade de gerar transformações (pessoais e sociais). De forma

semelhante, Carneiro96 equipara a peregrinação a uma jornada que é

simultaneamente interior e exterior, um rito que envolve comportamento,

sentimento e o discurso da pessoa, promovendo transformações. Também

Germiniani97 afirma que a peregrinação leva o sujeito a, através do encontro

com o outro, refletir sobre os valores, idéias e instituições que direcionam sua

vida.

Steil98 cita Eade e Sallnow, para quem a peregrinação pressupõe um

“vácuo religioso”, que pode envolver diferentes sentidos, práticas, discursos

92

Cf. VALLE, Edênio. Santuários romarias e discipulado cristão. In: Revista Horizonte – Faculdade de Teologia - PUC-MG. Belo Horizonte, vol 4, n 8, jun/2006, p. 44. 93

Cf. VILHENA, Maria Ângela, O peregrinar: caminhada para a vida. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 26. 94

Cf. STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era:

Caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28

(1), 2008. P. 118. 95

Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 30. 96

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 260. 97

Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 125. 98

Cf. EADE, John e SALLNOW, Michael J, Contesting the sacred: the anthropology of Christian pilgrimage, apud STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes

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religiosos e políticos, preenchendo a demanda por sentido do peregrino. Além

disso, de acordo com esses autores, a peregrinação é uma prática religiosa

que tem facilidade em incorporar a diversidade de cultos e discursos

acomodando práticas e perspectivas diferentes, sentidos diferentes, podemos

dizer, num mesmo símbolo/espaço.

De acordo com Germiniani99, quando feita à maneira tradicional, a

peregrinação pode ser interpretada como uma crítica ao modo de vida

contemporâneo, não pelos dogmas religiosos ou morais que talvez estejam

presentes, mas sim pela performance dos corpos, emoções e afetos. Já o

turismo, ao contrário, sutilmente busca reintegrar a pessoa ao modo de vida

contemporâneo, através de valores como higiene, “bom comportamento”,

condições materiais, consumo, etc.

Citaremos Oliveira100 para concluir este capítulo. Ele menciona que

quando o devoto se torna um viajante, o que só é percebido quando o viajante

se torna um turista, “os caminhos tornam-se tão fundamentais quanto os

destinos”. Este breve trecho descreve bem o que discutiremos nos capítulos

que seguem.

etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo, p. 34. 99

Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 126. 100

Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, 2004, p. 21.

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Capítulo II

O Caminho de Santiago de Compostela

“E assim, o Caminho é um mar de encontros e

desencontros, reencontros...” (L.)

O ato de peregrinar, como já dissemos anteriormente, é uma forma

muito antiga de expressão religiosa, e está presente nas mais diversas culturas

e religiões. Após tratar das peregrinações de maneira generalizada no capítulo

anterior, neste será focado especificamente a peregrinação a Santiago de

Compostela.

De acordo com Carneiro101 cristianismo possui três rotas principais de

peregrinação: o Caminho de Roma, percorrido por romeiros e que leva até o

mausoléu de São Pedro; o Caminho de Jerusalém, percorrido por palmeiros e

que leva a locais considerados sagrados por terem uma participação

importante na história de Jesus; e o Caminho de Santiago de Compostela,

percorrido por concheiros ou peregrinos, e que leva ao túmulo de São Tiago, o

Maior, apóstolo de Jesus, primeiro a levar o cristianismo à Europa e padroeiro

da Espanha. De acordo com Westwood102, os peregrinos eram também

chamados de concheiros por terem uma concha como símbolo, devido aos

primeiros peregrinos se desviarem do Caminho pelo litoral da Espanha, pleno

de conchas, a fim de escaparem de bandidos e ladrões.

É interessante destacar que o Caminho de Santiago de Compostela não

é uma rota única, mas sim uma malha de caminhos. Alguns, por serem mais

famosos e receberem maior número de peregrinos, oferecem melhor estrutura

(por exemplo, albergues), enquanto outros, menos conhecidos, são mais

pobres de recursos. Em certos pontos do trajeto, os caminhos se unem uns aos

outros, até que na cidade de Puente La Reina, o que é sinalizado por uma

placa e uma estátua de bronze representando um peregrino. Com base em

Nogueira103, podemos descrever os diversos caminhos:

101

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 261. 102

Cf. WESTWOOD, Jennifer. On pilgrimage: sacred journeys around the world, p. 69. 103

Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. pp. 24-29.

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Caminho Francês: também conhecido como Caminho Real. Esta é a rota

em que a maioria das pessoas pensa ao ser mencionado o Caminho de

Santiago de Compostela, já que é o mais divulgado na mídia. É formado

pela união de três rotas que se unem a 50 quilômetros da fronteira com

a Espanha, e que dão acesso a peregrinos de diversas partes da

Europa. Entretanto, geralmente os peregrinos iniciam esta rota na

fronteira entre os dois países, seja do lado espanhol, em Roncesvalles,

seja do lado francês, em San Jean Pied Du Port, o que dá ao peregrino

um dia extra de caminhada através dos Pirineus. Além de ser o caminho

mais conhecido, este também é o mais movimentado e o com maiores

estruturas para os peregrinos.

Caminho Aragonês: recebe este nome porque os peregrinos que

seguem este caminho chegam à Espanha pela província de Aragon,

fronteiriça com a França. Parte de Arles, cidade do sul da França, e se

une aos demais caminhos em Puente La Reina. Ao todo, de Arles a

Santiago de Compostela, percorre-se mais de 800 quilômetros.

Caminho do Norte: este caminho só passou a ser utilizado no século

XIII, e até hoje é pouco conhecido. Sua infra-estrutura é precária e o

terreno é extremamente montanhoso, tornando o caminho muito difícil.

Este caminho acompanha o Mar Cantábrico, no norte da Espanha. Tem

por volta de 765 quilômetros contando a partir de San Sebastián, onde

entra em território espanhol; e se une ao Caminho Francês em Palas de

Rei.

Via da Prata: é o caminho que vem do sul da Espanha, partindo de

Sevilha e percorrendo em torno de 1000 quilômetros até Santiago de

Compostela. Este caminho vem sendo muito procurado por pessoas que

preferem evitar o Caminho Francês, já saturado de peregrinos. O

peregrino pode optar por encontrar o Caminho Francês em Astorga ou

caminhar em direção ao oeste, rumo a Ourense.

Caminho Português: atravessa Portugal de um extremo a outro. É mais

usado por peregrinos portugueses do que pelos de outras

nacionalidades. Uma peculiaridade é que na cidade de Porto, o caminho

se ramifica em dois: um segue pelo interior e outro pelo litoral, tornando-

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se um só novamente na fronteira com a Espanha. Da fronteira entre os

dois países até Santiago de Compostela, o Caminho Português percorre

pouco mais de 100 quilômetros.

Por fim, tendo sido apresentada a malha viária que forma o Caminho de

Santiago (ou os Caminhos de Santiago), passaremos a abordar sua história,

pois compreendemos que não se pode ter uma percepção clara de um

fenômeno social (no caso, as peregrinações a Santiago de Compostela) sem

que se conheça o contexto em que tal fenômeno surgiu e se desenvolveu.

2.1- A história do Caminho e a história de Tiago:

Steil104 considera, como já afirmamos anteriormente, que Santiago de

Compostela é um dos principais centros de peregrinação dos dias de hoje.

Quanto a sua importância histórica, Franco Junior105 menciona que a Península

Ibérica esteve isolada do contato com o restante da Europa pelos Pirineus,

cadeia montanhosa que separa a Espanha da França. Assim, complementa

Pereira106, a trilha de peregrinação a Santiago de Compostela foi uma

importante forma de contato com outros povos, contribuindo com o intercâmbio

de conhecimentos, técnicas e bens.

Apesar de se saber pouco sobre a história dos apóstolos após a

crucificação de Jesus, Carneiro107 cita tradições orais da Alta Idade Média,

segundo as quais Tiago, o Maior, teria desembarcado na Galícia e seguido

através de estradas romanas até Zaragosa. Sete anos depois, não tendo

conseguido converter muitas pessoas ao cristianismo, voltou à Terra Santa em

companhia de dois discípulos: Teodoro e Atanásio. De acordo com o site da

Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de Compostela

104

Cf. STEIL, Carlos Alberto, Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued, Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo. 105

Cf. FRANCO JUNIOR, Hilário, Peregrinos, monges e guerreiros: feudo-clericalismo e religiosidade em Castela medieval, passim. 106

Cf. PEREIRA, Pedro, Peregrinos: um estudo antropológico das peregrinações a pé em Fátima, p. 42. 107

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, pp. 261 – 262.

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(ACACS)108, ao chegar à Terra Santa, o apóstolo Tiago foi preso e condenado

à morte por decapitação a mando do rei Herodes Agripa, após um curto

período de pregação. Cumprida a sentença, seu corpo foi jogado fora dos

limites da cidade, e então Teodoro e Atanásio conseguiram resgatá-lo e o

levaram a um bosque próximo a Finisterra (local mais ocidental da Península

Ibérica, onde, na época, se acreditava ser o fim do mundo, daí o nome), pois

naquela região não havia perseguição aos cristãos, e lá o enterraram.

Carneiro109 conta que na década de 820, um eremita chamado Pelayo

encontrou o sepulcro de Tiago. Ele relatou ter visto uma intensa “chuva de

estrelas” por diversas noites seguidas, guiando-o até lá. Isso já havia sido

profetizado por um clérigo inglês do século VIII. Quando Afonso II, rei de

Astúrias soube do achado de Pelayo, imediatamente foi até lá, ordenando que

naquele local se construísse uma capela de pedras e um mosteiro que

abrigasse doze monges agostinos. O nome Compostela vem daí, e significa

“campo de estrelas”, em alusão ao que viu Pelayo. De acordo com o site da

ACACS110, quando a notícia chegou ao rei Afonso II, este mandou que

construíssem no local uma capela e um mosteiro, e logo se tornou o primeiro

peregrino a ir até lá.

Neste ponto, cabe abordar a questão do surgimento das cidades, para

que o leitor compreenda melhor o que vínhamos dizendo a respeito da

construção da cidade de Santiago de Compostela. Neste aspecto, nos

valeremos do texto de Rosendahl111, que defende que o templo é um dos mais

poderosos elementos que une cidade e religião, tanto que, em núcleos de

povoamento mais antigos, ocupava o lugar central.

Rosendahl112 afirma que o surgimento das cidades viabilizou que

diversas funções até então dispersas se concentrassem num espaço

delimitado, no interior de muralhas. Logo, as cidades não eram apenas um

108

Cf. O Caminho de Santiago: a história. In: Associação de Amigos e Confrades do Caminho de Santiago de Compostela, disponível em (http://www.santiago.org.br/historia.htm). 109

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 262. 110

Cf. O Caminho de Santiago: a história. In: Associação de Amigos e Confrades do Caminho de Santiago de Compostela, disponível em (http://www.santiago.org.br/historia.htm). 111

Cf. ROSENDAHL, Zeny. O sagrado e o urbano: gênese e função das cidades. In: Espaço e cultura, Rio de Janeiro, UERJ, n. 2, 1996. p. 26. 112

Ibidem, pp.28 – 29.

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meio de expressar a ampliação do poder religioso e laico (as cidades eram

erguidas pela vontade divina de do rei/sacerdote, seus representantes oficiais),

mas também expressava a ampliação de todas as dimensões da vida, que se

tornava cada vez mais complexa. Além disso, a função das muralhas não era

apenas de defender de ataques de povos inimigos, mas também dos demônios

e dos espíritos dos mortos, que trariam consigo pragas e doenças, tanto que a

altura e a espessura das muralhas eram muito mais poderosas do que a

tecnologia de ataque de quaisquer povos da época. Na Idade Média essa

crença era muito forte, visto que os sacerdotes consagravam as muralhas para

que afastassem o que a autora chama como “os perigos do caos”, ou seja, os

demônios, as doenças e a morte, tornando a cidade por trás da muralha um

local sagrado.

Há diferentes tipos de cidades, como explica a autora113. Desde cidades

centrais, de distribuição de produtos ou voltadas para a prestação de serviços

até cidades especializadas, como as cidades portuárias, cidades universitárias,

cidades de recreação, cidades religiosas, etc. As cidades religiosas são

aquelas nas quais predomina a ordem espiritual, e geralmente são centros de

peregrinação ou de romaria.

A autora114 também afirma que em cidades-santuário, como é o caso de

Santiago de Compostela, muitos seres humanos são atraídos para lá não

motivados para estabelecer residência, mas por razões espirituais. Isso é o que

define as cidades-santuário, diferenciando-as das demais. Também é usual

que este tipo de cidade se torne foco de peregrinações, o que faz com que toda

a vida urbana se organize e se planeje visando promover funções relacionadas

aos peregrinos (templo, hospedagem, alimentação, etc.).

Rosendahl115 conclui o artigo afirmando que a religião tem um papel

fundamental no surgimento, desenvolvimento, transformação e declínio de

cidades.

Retornando à temática central desta dissertação, após a construção da

capela e do mosteiro, vieram os primeiros peregrinos, que chegaram a

113

Ibidem, p. 32. 114

Ibidem, p. 27. 115

Ibidem, p. 39.

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Santiago de Compostela em 845, e em 862 o fluxo de peregrinos já era tão

intenso que o local já não comportava tantas pessoas.

Carneiro116 explica ainda que a descoberta do túmulo de São Tiago

também teve implicações políticas. No século IX, época da descoberta,

Astúrias era o último reino cristão da Península Ibérica. O sepulcro logo foi

transformado num símbolo de resistência e de luta contra os muçulmanos. No

mesmo período, surgiram inúmeras lendas a respeito disso, como na batalha

entre Astúrias e Córdoba (tomada pelos árabes), em que uma notícia

inesperada fez com que os cristãos recuperassem o ânimo: o próprio Santiago,

trajado como um cavaleiro medieval, estaria nas frentes de batalha lutando ao

lado dos cristãos. A partir daí criou-se a imagem de Santiago Matamoros,

venerada nas igrejas católicas e padroeiro da Espanha, passando a ser um

símbolo de resistência católica e defensor de seu povo contra os inimigos

(fossem os árabes na Idade Média ou os protestantes europeus no século XVI).

Com isso, o mito espalhou-se por todo o ocidente, atraindo devotos e

peregrinos de diversas regiões.

Coleman e Elsner117 relatam algo semelhante. De acordo com os

autores, Santiago de Compostela foi um dos principais centros de peregrinação

cristã da Idade Média. O fato de se localizar numa área de difícil acesso e do

caminho ser cheio de perigos apenas aumentava a atenção dada a esta rota,

bem como os méritos daqueles que a percorriam. Entretanto, a importância

atribuída ao Caminho de Santiago teve implicações políticas e militares.

Segundo os autores, a impressão que se tem é que a jornada dos restos

mortais de Tiago da Terra Santa a Compostela transformou sua imagem. O

gentil pescador se torna Santiago Matamoros, que é símbolo nacional espanhol

da oposição e resistência cristã à expansão islâmica. Enquanto na maior parte

do mundo cristão Tiago é representado pela imagem de um humilde peregrino

trazendo um cajado e uma concha, na Espanha ele é um bravo cavaleiro

medieval, com a espada numa mão e a cruz na outra. E isso certamente dava

coesão e confiança aos soldados cristãos que acreditavam que Tiago estaria

116

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, pp. 262 – 263. 117

Cf. COLEMAN, Simon e ELSNER, John. Pilgrimage: past and present in the world religion, p. 106.

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lutando as mesmas batalhas que eles, ao lado deles, investido do poder de

Deus.

De fato, Oliveira118 afirma algo semelhante: “a presença mística do

apóstolo Tiago Maior na região teria dado a força decisiva para evitar a

conquista muçulmana em toda a península”.

Essa alteração na imagem de Tiago certamente não foi obra do acaso.

Imaginamos que certamente uma grande demanda por segurança seja uma

das mais prováveis razoes para que um pescador tranqüilo se transforme num

soldado. Dias119 confirma essa necessidade de segurança ao explicar que na

Idade Média as viagens eram dificultadas, pois se vivia uma realidade plena de

riscos (tantos riscos que, no século XII foi fundada a Ordem Militar de Santiago,

a fim de defender os peregrinos). Também Westwood120 afirma que esta era a

peregrinação mais árdua de toda a Europa e, para garantir sua segurança, os

peregrinos viajavam em grupos. Assim, pensamos que os perigos potenciais

colocavam o viajante numa condição de vulnerabilidade, em que ele precisaria

gerenciar satisfatoriamente os riscos aos quais estaria sujeito para que

pudesse resistir a eles. E, para isso, toda ajuda (divina e terrena) seria bem

vinda. Entre outras coisas, começaram a surgir guias sobre o Caminho. O

primeiro guia para o Caminho de Santiago de Compostela foi redigido em 1135,

pelo padre francês Aymeric Picaud, o que atraiu ainda mais peregrinos, relata

Carneiro121. Logo, em 1075 iniciou-se a construção da catedral que existe lá

até o presente.

Nessa mesma época, século XI e XII, afirma Gazoni122, se deu o auge

das peregrinações a Santiago de Compostela, que começou a declinas nos

séculos XIV e XV, devido à epidemia de peste negra, e guerras religiosas.

Assim, o túmulo de Tiago foi escondido e ficou perdido por 300 anos, entre os

séculos XVI e XVIII. No século XIX, quase não houve trânsito de peregrinos.

118

Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, 2004, p. 22. 119

Cf. DIAS, Reinaldo. O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 19-20. 120

Cf. WESTWOOD, Jennifer. On pilgrimage: sacred journeys around the world, p. 69. 121

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 263. 122

Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, pp. 101-102.

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Apenas em 1884 o Papa Leão XIII reconheceu os restos do apóstolo como

legítimos, após quatro anos de pesquisas científicas. Entretanto, foi a partir da

década de 1980 que as peregrinações a Santiago de Compostela voltaram com

grande força, devido ao contexto sócio-histórico que se vive, bem como à

grande divulgação do Caminho em diversas mídias.

Hoje em dia, afirma Oliveira123, Santiago de Compostela pode ser

considerado o mais famoso “complexo turístico-religioso do mundo cristão”. O

autor124 prossegue dizendo que este é um caso exemplar de turismo religioso,

pois possui uma grande infra-estrutura envolvendo hospedagem e a rede de

informações vai da Catalunha à costa atlântica, no norte, integrando

(...) diferentes culturas em um mesmo propósito simbólico:

saudar o santo responsável pela maior cruzada do ocidente.

Além disso, mobiliza um marketing internacional capaz de

promover este destino turístico em todas as frentes de

motivações possíveis: cultural, ecológica, mística, étnica,

etc.

Quanto aos peregrinos brasileiros, Nogueira125 afirma que Paulo Coelho,

com seu livro O diário de um mago, publicado em 1987, foi um dos primeiros a

divulgar o Caminho de Santiago de Compostela no país. Até então, a presença

de brasileiros era muito rara, causando estranheza aos espanhóis. Até então,

praticamente apenas europeus percorriam esses caminhos, os brasileiros

foram os primeiros a cruzar um oceano para fazer uma peregrinação.

Nogueira não tem dúvidas ao afirmar que algo muito forte deve motivar a

peregrinação dos brasileiros, visto que os custos, as distâncias, e a própria

burocracia de uma viagem internacional é maior. O autor pensa que as

experiências narradas por Paulo Coelho poderiam estar por trás dessa

motivação. A nós, parece que as experiências narradas por Paulo Coelho

poderiam agir como uma representação simbólica daquilo que muitos desses

123

Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, 2004, p. 21. 124

Ibidem, p. 23. 125

Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. p. 57.

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peregrinos esperam encontrar ao longo do Caminho: a magia. Ou melhor, a

solução mágica que mude suas vidas e os torne pessoas confiantes, dando-

lhes recursos simbólicos para lidar com os desafios e situações limite de suas

vidas, tornando-os capazes de preencher essas situações com sentido e

assim, superá-las ou legitimá-las.

Nogueira126 ressalta que a maioria dos leitores de Paulo Coelho

interpreta suas obras de maneira literal. Ainda assim, diz o autor, mesmo que

se questione o valor literário das obras de Paulo Coelho, não se pode negar a

grande contribuição para divulgar o Caminho entre brasileiros e estrangeiros, o

que foi reconhecido pelo governo da Galícia127, que em 25 de julho de 1997

ofereceu uma medalha ao escritor numa cerimônia em Santiago de

Compostela. Quatro anos após a publicação do livro, o número anual de

peregrinos brasileiros subiu de 12 para 900.

Apesar disso, continua Nogueira128, os peregrinos brasileiros ainda são

muito criticados na Espanha, pois são vistos sob o estereótipo da pessoa que

foi ao Caminho de Santiago unicamente motivado pelo livro de Paulo Coelho.

Seriam, nesta concepção, pessoas que associam o Caminho e a peregrinação

ao universo místico/esotérico, consumidores ávidos destas ofertas. Outro

motivo para as críticas é a popularização da imagem de Paulo Coelho como

mago. Porém isso não abala a busca pelo Caminho entre brasileiros e

estrangeiros, é bom ressaltar que as críticas não se referem ao Caminho de

Santiago de Compostela, nem às peregrinações de forma geral, mas sim ao

sentido que os peregrinos brasileiros dariam a esta peregrinação (no ponto de

vista espanhol, cabe destacar). A influência de Paulo Coelho é percebida no

discurso dos peregrinos mesmo quando ele não é mencionado (vários dos

participantes desta pesquisa, inclusive foram bastante categóricos ao afirmar

não haverem lido O diário de um mago), em termos como “ir atrás dos meus

sonhos”, “minha lenda pessoal” ou “buscar minha espada”.

126

Ibidem, p. 61. 127

Província espanhola onde se localiza a cidade de Santiago de Compostela. 128

Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. p.64.

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De toda maneira, hoje o Caminho de Santiago de Compostela está

saturado de peregrinos e de praticantes de esportes como o trekking, tal como

uma rota turística.

Carneiro129 afirma que em 1993, a UNESCO declarou Santiago de

Compostela patrimônio da humanidade. Isso foi parte do projeto de

revitalização da Galícia através do incentivo do turismo e da peregrinação a

Santiago de Compostela. Com isso, diz a autora, o número de peregrinos

aumentou de 4918 no ano de 1990 para 61418 no ano de 2001.

Quanto ao perfil desses peregrinos contemporâneos, o site da ACACS130

divulgou recentemente algumas estatísticas que apresentaremos agora,

baseadas nos peregrinos que retiraram suas credenciais nesta associação do

período entre os anos 2000 e 2010, num total de 7323 peregrinos. É importante

ressaltar que este não é o número total de peregrinos brasileiros nesse

período, visto que muitos outros tiraram suas credenciais em outros estados ou

mesmo na Espanha.

Quanto ao gênero, 42,8% eram mulheres e 57,2% homens.

Quanto ao meio de peregrinação, a maioria optou por fazer o percurso a

pé (87,2%). As credenciais são concedidas apenas a peregrinos que fazem o

Caminho a pé, de bicicleta ou a cavalo. Nesse período, nenhum dos peregrinos

computados nas estatísticas optou por realizar a peregrinação a cavalo.

Quanto à idade, 75% estão entre os 30 e os 60 anos, sendo que, dentro

dessa faixa etária, o grupo entre 41 e 50 anos é majoritário. Não pudemos

deixar de notar que o grupo com mais de 60 anos representa apenas 09% dos

peregrinos, o que nos chamou a atenção, visto que segundo uma das

participantes desta dissertação, é muito freqüente ver pessoas deste grupo

etário ao longo do Caminho, que, fora do Brasil, é conhecido por este aspecto.

O grupo com menos de 30 anos, do qual fazem parte os participantes desta

dissertação, somam 16,1%, sendo que os com menos de 20 anos não chegam

a somar 2%.

129

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 263. 130

Cf. Estatísticas. In: Associação de Amigos e Confrades do Caminho de Santiago de Compostela, disponível em (http://www.santiago.org.br/a-associacao-estatisticas.asp).

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Ao contabilizar a rota percorrida, não foi surpresa constatar que 85%

fizeram o Caminho Francês, o mais divulgado na mídia e, portanto, o mais

famoso. O segundo mais percorrido foi o Caminho Português, com 08% dos

peregrinos. O Caminho Aragonês teve 03%, e os Caminhos do Norte e da

Prata contabilizaram 01% cada um. Os 02% restantes dos peregrinos

percorreram outras rotas não especificadas pela ACACS.

Por fim, a última estatística se refere ao fluxo de peregrinos por mês. Os

meses de maior movimento são os de primavera na Europa: abril (16,3%),

seguido por março (14,4%) e maio (13,3%). A seguir vêm agosto (12,7%), julho

(11,7%), setembro (9,9%) e junho (9,1%). Por fim, os meses menos escolhidos

pelos peregrinos que retiraram suas credenciais na ACACS foram fevereiro

(5,2%), outubro (2,6%), janeiro (2,8%), novembro (1,3%) e dezembro (1,1%),

os meses mais frios.

Outro aspecto interessante, ressaltado por Nogueira131 é quanto a

separação do cotidiano, da família, dos amigos, etc. ser muito marcante,

especialmente para os brasileiros. Termos como “abandonar” ou “largar tudo”

revelam o quanto essa separação foi penosa, bem como dá aos relatos certo

tom de aventura heróica. Frente a isso, podemos pensar que o “abandono” se

refere a deixar para trás uma vida conhecida e estável para deparar-se com

outra realidade, em que os medos, as inseguranças e o desconhecido

precisará ser o tempo todo enfrentado e domado.

2.2- Caminho físico ou caminho espiritual?

Nesta parte da presente dissertação, nos propomos a discursar não

apenas sobre o pluralismo religioso no Caminho de Santiago de Compostela,

no sentido de refletir sobre a mistura entre componentes (motivações,

emoções, experiências, etc.) laicas e espirituais.

131

Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. pp.95 – 97.

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Rosendahl132 explica que algumas religiões, como o catolicismo, o

budismo e o islamismo incentivam as peregrinações como parte da prática

religiosa. Já outras, entre elas o protestantismo, as peregrinações não fazem

parte da vida religiosa. Logo, Carneiro133 questiona o que leva tantos

brasileiros, não necessariamente católicos (e, acrescentamos, não

necessariamente membros de alguma religião), a realizar esta antiga

peregrinação. O momento em que a peregrinação a Santiago de Compostela

retorna à cena, por volta da década de 1980, é marcado por outros dois

acontecimentos: a Nova Era e a formação da Nova Europa. A Nova Era foi a

responsável por inserir no Caminho a conotação de “um percurso literal e

metafórico (enquanto processo de „transformação pessoal e social‟), de „busca‟

de um novo sentido para a vida”, esclarece a autora134.

Assim, ao contrário dos principais locais de peregrinação católica, que

têm como centro a devoção às aparições de Maria, o culto à virgem e os

milagres, a peregrinação contemporânea à Santiago de Compostela além de

não ter tais pilares, não envolvem apenas elementos católicos, e nem se

mantém dentro dos limites da Igreja. Quem vai até lá não visa agradecer a um

milagre, nem alcançar uma graça específica, nem mesmo (apenas) prestar

homenagens ao apóstolo de Jesus. O objetivo não é o fim, mas o caminho em

si. Ao nosso entender, este pode ser um dos fatores cruciais para que o

Caminho de Santiago fosse adotado tão facilmente por pessoas que não

seguem o catolicismo.

Nogueira135 afirma algo semelhante no trecho que segue:

(...) nem todos os peregrinos possuem uma ligação religiosa

com a peregrinação jacobea, mas isso não indica que suas

experiências estejam isentas de uma atitude espiritual.

132

Cf. ROSENDAHL, Zeny. O sagrado e o urbano: gênese e função das cidades. In: Espaço e cultura, Rio de Janeiro, UERJ, n. 2, 1996. p. 33. 133

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 260. 134

Ibidem, p. 265. 135

Cf. NOGUEIRA, Paulo César Giordano. A literatura odepórica e a peregrinação jacobea: um estudo sobre a espiritualidade nos relatos de viagem dos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago. p.95.

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Tais aspectos são muito bem descritos e explicados por Hervieu-

Léger136, que em seu texto visa esclarecer a recomposição do universo

religioso num mundo em que as instituições tradicionais estão em crise. Assim,

diz a autora137:

(...) o que caracteriza o tempo atual não é a mera

indiferença com relação à crença, mas a perda de sua

„regulamentação‟ por parte das instituições tradicionais

produtoras de sentido.

Com isso, a identidade religiosa já não é mais herdada, transmitida de

geração em geração, é uma questão de escolha individual. Tal situação

favorece que as pessoas façam uma bricolagem de crenças.

Ao abordar questões relativas a sociedades contemporâneas, Hervieu-

Léger disserta sobre sociedades tradicionais, o que ao nosso entender tornou

possível compreender como a história se desenrolou trazendo à tona as

situações sobre as quais estamos discutindo. Julgamos conveniente fazer o

mesmo. A autora138 conta que na pré-modernidade as igrejas eram os centros

de referência de uma comunidade. Não apenas um local voltado para o culto,

mas para tudo o que se referisse à comunidade, de maneira prática ou

simbólica. Portanto, as identidades religiosas eram herdadas. Hervieu-Léger139

destaca que esse movimento de transmissão de uma geração à seguinte faz

com que as crenças se fixem ao tempo, o que cria tradições. Hoje, isso

acontece cada vez menos, o que é um dos principais fatores que contribuem

para o enfraquecimento das instituições tradicionais. Ainda assim, a autora140

chama a atenção para o fato de que toda sociedade de alguma maneira tem

suas tradições, por mais adiantado que seja o processo de modernização, caso

contrário o tempo e a história não teriam um sentido de continuidade, seriam

apenas um grande e obscuro vazio. Além disso, mais a frente a autora141

136

Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, p. 08. 137

Ibidem, p. 09. 138

Ibidem, p. 15. 139

Ibidem, pp. 09 – 10. 140

Ibidem, p. 27. 141

Ibidem, pp. 38 – 40.

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afirma que certas características das sociedades tradicionais se mantêm no

mundo contemporâneo num contexto não religioso. O exemplo citado é o da

esperança trazida pelo reino de Deus, que hoje é bastante forte na esperança

de uma sociedade igualitária. Com isso surgem as religiões seculares, sejam

elas a política, a ciência, a técnica, a arte, etc.

Outra transformação que se deu com a modernidade é a mudança nas

personagens referentes às identidades religiosas. Hervieu-Léger142 menciona

que a figura pré-moderna do praticante, que no cristianismo tradicional ocupava

um local de destaque, foi substituída por outras duas, sempre considerando a

questão da mobilidade: o peregrino e o convertido. Entretanto, segundo a

autora143, essas novas formas de identidade religiosa de maneira alguma

implicam necessariamente no desaparecimento, nem mesmo no

enfraquecimento de formas comunitárias da vida religiosa.

O mundo contemporâneo tal como o mundo tradicional, também tem

utopias e ideais. Só que hoje, o ideal é “um mundo inteiramente racionalizado

pela ação humana”, afirma Hervieu-Léger144, em que cada um cria a própria

realidade e as significações que darão sentido a si e à existência. A quebra

com a tradição e o advento da modernidade ocorre justamente com a

afirmação de que a vida de cada um é uma escolha individual. Ainda assim,

apesar de toda a racionalidade que permeia a condição moderna, no início da

década de 1970 fica claro que a modernidade secular era, na realidade, “uma

nuvem de crenças”145. Ou seja, com isso a autora146 quer dizer que a

modernidade não apenas não é desencantada, como a religião retorna à cena

pública nas sociedades ocidentais sob a forma da mobilização política e social

de crentes, movimentos sociais, aumento de formas de espiritualidades

paralelas e de novos movimentos religiosos. Isso é algo bastante significativo

frente ao panorama de racionalidade que a modernidade trouxe, pois as

crenças, ao contrário de teorias, não implicam em verificação e

142

Ibidem, p. 10. 143

Ibidem, p. 28. 144

Ibidem, p. 32. 145

Ibidem, p. 17. 146

Ibidem, pp. 21 – 22.

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experimentação, elas são aceitas e mantidas de acordo com sua capacidade

de dar sentido à vida e às vivencias do sujeito que crê.

Hervieu-Léger147 afirma ainda que transformações drásticas deixam nos

sujeitos e nos grupos um sentimento de vazio, que se busca preencher. Com

isso entram em evidência os novos movimentos religiosos, as correntes

carismáticas, a literatura que busca inspiração no esoterismo e o retorno das

peregrinações. Outro aspecto moderno que contribui para isso, de acordo com

a autora148, é o individualismo, que paradoxalmente, produz pequenas

comunidades em que os membros se unem por afinidades sociais, culturais,

espirituais, etc.

Ao explicar esse processo de intensa transformação pela qual passou a

sociedade, Hervieu-Léger149 deixa claro que continuidade não é o mesmo que

imutabilidade. Ou seja, ao serem transmitidas de uma geração a outra, as

crenças e tradições podem ser questionadas e reinterpretadas, o que gera

mudanças na religião e, podemos acrescentar, na própria sociedade e nas

formas de vida dos sujeitos. Entretanto, hoje as lacunas entre uma geração e

outra já não são apenas decorrentes de tais ajustamentos feitos pela geração

mais nova. São rupturas culturais, que podem afetar a identidade, as relações

entre sujeitos e com o mundo. A autora150 prossegue afirmando que deixar de

ter uma identidade religiosa herdada e passar a ter de escolher a própria

identidade é um processo que só pode se concretizar quando há o que a

autora chama de “modernidade psicológica”, isto é, o sujeito passa a ser capaz

de pensar a si mesmo como individualidade e, aí sim, a buscar para si uma

identidade que transcenda as identidades herdadas ou pré-determinadas.

Feitas essas reflexões acerca das sociedades tradicionais e modernas,

Hervieu-Léger passa a apresentar três figuras representantes das identidades

religiosas, sendo a do praticante a forma tradicional e as do peregrino e do

convertido, modernas. Antes de apresentá-las, porém, acreditamos ser crucial

mencionar aquilo que a autora151 compreende por “identidade religiosa”.

147

Ibidem, pp. 40 – 41. 148

Ibidem, p. 51. 149

Ibidem, pp. 57 – 58. 150

Ibidem, pp. 60 – 61. 151

Ibidem, p. 89.

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47

Identidade religiosa é aquilo que acontece no momento em que a subjetividade

se encontra com a objetividade de uma crença que faz parte de uma

comunidade na qual a pessoa se reconhece, se “identifica”. Isso não implica

necessariamente na adesão total a uma doutrina, ou em estar sob uma

instituição. Aliás, na condição moderna, geralmente a identidade religiosa está

vinculada à bricolagem, que permite que cada um molde as crenças a si

mesmo, da forma como achar mais conveniente.

Oliveira152 explica essa bricolagem de crenças feita hoje em dia

comparando-a a “religião do indivíduo”. Se na modernidade havia religiões

enquanto sistemas aos quais a pessoa aderia, hoje ocorre o oposto: são os

sistemas que se curvam às pessoas. A religião do indivíduo é um sistema

aberto, sempre em construção e em transformação, formulado e reformulado

de acordo com as escolhas e preferências de cada um. Silveira153 explica que

isso é possível pois no mundo contemporâneo as identidades são

desvinculadas da origem territorial ou cultural. Para o autor154 as religiões

produzem um espaço simbólico que com a globalização, vai muito além da

comunidade de origem, unindo-se a outras religiões e a outros fenômenos não

religiosos. Assim, para que se compreenda como é formada a identidade

religiosa no mundo contemporâneo, é preciso ter em mente esse contexto

social e ter a consciência de que nele, como afirma Germiniani155, passar por

diversas religiões, bem como sincretizá-las, são caminhos legítimos e

habituais.

Hervieu-Léger156 explica primeiramente a identidade religiosa à qual

chama de praticante. O praticante é por excelência a figura da pessoa religiosa,

conforme. Ainda é para muitos (e para as próprias instituições religiosas,

ressalta a autora157), o modelo de participação na religião através do qual os

152

Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, p. 75. 153

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 43. 154

Ibidem, p. 71. 155

Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 122. 156

Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, p. 81. 157

Ibidem, p. 85.

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fiéis podem ser identificados. Neste modelo identitário, afirma a autora158, as

práticas são vistas como obrigatórias, fixas, rígidas, regidas pela instituição e

repetida com freqüência regular. Além disso, a comunidade desempenha um

papel muito relevante, e as práticas são territorializadas (templos e paróquias,

por exemplo, são fundamentais nesta forma de viver a espiritualidade).

Quanto às identidades religiosas modernas, o primeiro modelo

apresentado por Hervieu-Léger é o peregrino. Este é o “substituto” moderno do

praticante e, ao mesmo tempo, se opõe a ele. Sendo a peregrinação mais

antiga que a visão cristã de praticante, este termo sugere a idéia de uma forma

antiga e perene de perceber e viver a espiritualidade159. Valendo-se deste

termo, a autora160 quer dar a entender que na condição moderna, cabe apenas

ao individuo construir as significações para sua existência, o que o peregrino

faz acumulando o máximo possível de experiências diversificadas (e, algumas

vezes, contraditórias), interpretando-as como parte de um “caminho”, que tem

algum sentido, nem sempre muito claro. Logo, as características do peregrino

descritas pela autora161 são opostas às do praticante: a prática é vista e vivida

como algo voluntário, variável, autônoma (não pressupõe a presença de

alguma instituição), individual (quando há uma comunidade envolvida, não é no

mesmo sentido de pertença do praticante), móvel (percorrer um “caminho”

metafórico, traçado por si mesmo) e excepcional (a prática não pressupõe

necessariamente uma rotina, não se insere no tempo da vida diária).

Com isso, afirma Oliveira162, cada vez mais a religião tende a ser vista

como uma escolha que varia ao longo da vida. O fiel pode ser transformado em

consumidor e, assim, é disputado entre as religiões que, por sua vez, buscam

aprender estratégias com o marketing para lidar com este novo fenômeno,

conseguindo o máximo possível de adeptos e fazendo com que seu discurso

vá mais longe. De acordo com Silveira163, a religião é transformada em produto

quando se torna um espetáculo, e quando isso ocorre, os ritos são

158

Ibidem, p. 98. 159

Ibidem, p. 87. 160

Ibidem, p. 89. 161

Ibidem, p. 98. 162

Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, p. 73. 163

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 68.

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“desterritorializados”, reinseridos em novos conjuntos de valores e significados,

o que mescla sentidos tradicionais e novos. Logo, afirma o mesmo autor164,

vivemos uma época de nomadismo espiritual, em que não há fixação nem

identidades estáveis. Cabe apenas a cada um construir sua própria religião,

sempre em movimento.

Este contexto contemporâneo é muito bem explicado por Bauman165

quanto o autor afirma que hoje, seja por preferência ou por necessidade, o ser

humano tende a se comportar como um selecionador. Selecionar é quase uma

arte, uma ação em torno de evitar perigos (e não de gerenciá-los, podemos

acrescentar, o que faz com que hoje se tenha poucos recursos para tolerar

frustrações comuns na vida), sobretudo o maior dos perigos: perder

oportunidades (sejam elas quais forem)! Logo a maior preparação que o sujeito

recebe na vida é a de assumir o papel de alguém que busca prazeres bem

como coleciona sensações. É alguém que adere a religiões, modos de vida,

cargos, etc. apenas de maneira muito superficial, pois ao menor sinal de uma

nova experiência, lá estará ele a persegui-la, antes que perca essa

oportunidade.

Por fim, a última forma de identidade religiosa descrita por Hervieu-

Léger166 é a do convertido. Diferente do peregrino, esta figura permite

acompanhar o processo de formação das identidades religiosas no contexto

moderno de mobilidade. O fim do século XX foi marcado pelo enfraquecimento

de instituições religiosas e, ao mesmo tempo, por uma grande onda de

conversões. Isso não é tão paradoxal quanto parece, pois ao mesmo tempo em

que as identidades religiosas herdadas entram em crise, a mobilidade pela

busca de uma identidade religiosa que o indivíduo julgue adequada para si é

motivada pelo contexto. Outros fatores que motivam as conversões são: o

anonimato urbano, o encolhimento das comunidades “naturais” de pertença e o

aumento crescente do individualismo nas relações.

164

Ibidem, p. 69. 165

Cf. BAUMAN, Zygmunt. Religião pós-moderna? In: BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, pp. 221-222. 166

Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, pp. 107 – 108.

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Uma peculiaridade do convertido é o fato de ser plural. Hervieu-Léger167

estabelece três tipos de convertidos, curiosamente definidos por sua história de

vida pré-conversão.

O primeiro tipo é a pessoa que “muda de religião”. Geralmente este tipo

afirma que a antiga religião não supria os problemas enfrentados pelo sujeito

de hoje, não respondia às suas questões e nem lhe dava o apoio de uma

comunidade.

O segundo tipo de convertido representa as pessoas sem religião que,

em dado momento de sua “peregrinação” encontra uma crença em que se

sente acolhido e acaba por converter-se. Este tipo é cada vez mais freqüente

hoje, pois a transmissão de identidade religiosa entre gerações é precária (o

que faz com que aumente o número de pessoas sem religião e, em

decorrência, a porcentagem de convertidos deste tipo em relação aos demais).

Neste caso especificamente, a conversão marca não só o ingresso numa nova

religião, e sim no mundo religioso, ao qual até então a pessoa era alheia.

Por fim, o terceiro tipo de convertido é o “convertido de dentro”, aquele

que redescobre uma identidade religiosa dentro da sua própria religião, que até

então era vivida apenas de maneira formal, sem envolvimento. Entre católicos

e protestantes, este terceiro tipo de conversão é freqüente nos movimentos

carismáticos e neopentecostais, que oferecem ao crente a presença marcante

de uma comunidade e experiências religiosas de forte cunho emocional.

Entretanto, esta forma de conversão também é freqüente no islamismo e no

judaísmo, na forma de um “retorno à religião”, sobretudo entre jovens (muitas

vezes acabando por envolver o restante da família), que até então viviam a

religião apenas no plano ético e então passam a vivê-la de maneira mais

próxima às tradições.

Refletindo sobre o processo de formação da identidade religiosa do

convertido, Hervieu-Léger168 afirma que o convertido segue à risca a ideologia

moderna segundo a qual para uma identidade religiosa ser autêntica, ela deve

ser fruto de uma escolha individual. Ou seja, podemos pensar que é o ato da

escolha, e não mais o reconhecimento do outro, que legitima a identidade.

167

Ibidem, pp. 109 – 112. 168

Ibidem, p. 116.

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Sendo uma escolha, continua a autora169, a conversão é freqüentemente

associada a um engajamento religioso intenso e autêntico. Isso remete ao que

afirma Silveira170. Se no mundo contemporâneo o indivíduo tem a autonomia ou

o poder de optar pelas idéias, valores e comportamentos que preferir, ele

mesmo passa a ser o critério de adesão. Isto é, suas emoções é que legitimam

as experiências pelas quais passa. Assim, para o autor171, “o mundo segue

uma lógica de consumo que cria colecionadores de sensações/atrações”.

Além disso, Hervieu-Léger172 ressalta que a conversão reorganiza

totalmente a vida do indivíduo de acordo com as normas da nova comunidade

da qual ele participa. A conversão também forma (ou transforma?) o indivíduo,

que até então vivia em um contexto no qual não existia um valor central que

organizasse suas experiências e sua identidade. Alem, disso, afirma Hervieu-

Léger173, o desejo de uma vida organizada muitas vezes está por trás das

conversões, bem como um protesto contra a desordem do mundo. Esse

protesto expressa uma utopia de participar de uma comunidade ideal e oposta

à sociedade mais ampla.

Carneiro174 diz algo semelhante ao abordar novos movimentos

religiosos, explicando que a noção de transformação pessoal e social da Nova

Era transcende a ela mesma, tornando-se um recurso simbólico

freqüentemente adotado para enfrentar os desafios da modernidade,

especialmente os relacionados à crise de sistemas, instituições e agências

tradicionais produtoras de sentido.

Germiniani175 sugere que, em reação a essa crise, hoje se faz presente

uma lógica religiosa que tende a ritualizar a vida cotidiana e suas diferentes

esferas, abrangendo inclusive áreas como o lazer e o consumo.

Tradicionalmente, o consumo é visto como algo profano/secular, o que leva a

169

Ibidem, p. 131. 170

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 44. 171

Ibidem, p. 45. 172

Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, p. 116. 173

Ibidem, p. 125. 174

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 266. 175

Cf. GERMINIANI, Haudrey. “Turismo religioso”: a relação entre religião e consumo na sociedade contemporânea. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 123.

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autora a questionar se ele poderia ter a função de produzir e transmitir

significados espirituais e, se assim for, seria o fim do monopólio de tais funções

por parte das religiões. Com essa expansão da religiosidade para além da

religião, a ética religiosa (seus valores) tendem a se fazer presentes em boa

parte das esferas sociais.

De maneira semelhante, Silveira176, a Nova Era está muito ligada ao

turismo, sobretudo por três características em comum: ambos são

desenraizados; são fruto da escolha pessoal, cujo critério de legitimidade

seriam as próprias emoções; e por fim, ambos pregam que as experiências e

afetos pelos quais cada um passa são os critérios mais válidos para o

desenvolvimento (pessoal, espiritual, etc.).

Carneiro177 menciona ainda um aspecto político a respeito da presença

de valores defendido pelo cristianismo, pela Nova Era e por inúmeras religiões

e formas de espiritualidade, que são constantemente associados à

peregrinação a Santiago de Compostela: a viabilização de uma identidade da

União Européia. A associação entre o Caminho de Santiago e a União

Européia baseia-se nesses valores atualmente ligados ao Caminho, como a

solidariedade, o companheirismo e a fraternidade, bem como na visão do

peregrino como um “cidadão do mundo”, que tem a “missão” de propagar tais

valores e formas de ser adquiridos na peregrinação ao retornar ao seu

cotidiano em seu país. A Igreja Católica e o governo espanhol esperam que a

propagação desses valores por parte dos peregrinos contribua para que se

forme uma nova Europa, retomando o que a autora chama de “Europa mítica”,

cuja identidade (valores morais, sociais, cultura, arte, etc.) estaria

estruturalmente atrelada ao cristianismo. Tais planos estão fortemente

relacionados ao desejo utópico de uma Europa sem grandes conflitos entre

nações. Além disso, seguir esse ethos peregrino é a condição básica para

reconhecer-se e ser reconhecido como peregrino, mais do que a religião

seguida ou os motivos que levaram cada um a realizar a peregrinação.

176

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 69. 177

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, pp. 267 – 270.

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Na visão de Carneiro178, os peregrinos estariam aptos para essa tarefa

pois a autora equipara a peregrinação a um ritual (de transformação), como

uma linguagem que permite conhecer o entendimento de processos amplos da

vida, pois as emoções são orientadas em direção a algum propósito,

literalmente, ganhando algum sentido. Além disso, ao vivenciar uma outra

rotina muito diferente da cotidiana, os peregrinos passam a compreender

diferenças entre o natural e o cultural; entre o natural, o social e o sobrenatural;

e mesmo entre as hierarquias sociais, entre outros fatores.

Neste ponto do texto cabe uma breve discussão a respeito dos ritos de

passagem. De acordo com Van Gennep179, ritos de passagem são marcados

pela dramatização da morte e do renascimento, seja na natureza (fases da lua;

a vegetação que “morre” no inverno e “renasce” na primavera, etc.), seja entre

sujeitos (seres humanos, ou mesmo deuses). Assim, ocasiões como gravidez,

parto, puberdade, iniciações (na fase adulta, em ordens espirituais, em

profissões, etc.), casamentos, sacrifícios, funerais, etc. são marcados por ritos

de passagem, pois são ocasiões em que o sujeito passa de um estado a outro.

Durante a passagem, a pessoa momentaneamente deixa de ser quem era para

que possa ser transformado, moldando uma nova identidade com a qual será

reinserido no grupo. A peregrinação é considerada um rito de passagem, pois

nela, ao se defrontar com perigos, com o outro diferente de si (alteridade) e ao

ter contato com o transcendente, o sujeito retorna ao grupo de origem

transformado.

A maioria dos peregrinos segue o seguinte ritual: primeiramente ocorre a

decisão de fazer o Caminho, ou nas palavras deles, o “recebimento de um

chamado”. A seguir, vem uma preparação. Na Idade Média, afirma a mesma

Carneiro180, essa preparação significava confessar-se, fazer um testamento e

reconciliar-se com os inimigos, já que ninguém sabia se iria retornar. Hoje, pelo

que notamos nos discursos dos participantes da pesquisa e de depoimentos

com os quais tomamos contato, a preparação geralmente envolve praticar

caminhada para acostumar-se a percorrer a pé grandes distâncias, juntar

178

Ibidem, pp. 270 – 271. 179

Cf. VAN GENNEP, Arnold. Ritos de Passagem, pp. 154-155. 180

Cf. CARNEIRO, Sandra M. C. de Sá, Caminho de Santiago de Compostela: percurso, identidades e passagens. In: BIRMAN, Patrícia, Religião e espaço público, p. 272.

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dinheiro, comprar itens que se julgam necessários, etc. Muito raramente, pelo

que temos observado, a preparação dos peregrinos contemporâneos envolve

aspectos religiosos ou espirituais. A seguir, continua a autora, vem a partida, e

com ela, o abandono do cotidiano e do conhecido. Por fim, vem a chegada à

catedral de Santiago de Compostela, trazendo a esperança de um

renascimento, um novo início numa etapa muito melhor da vida. A

peregrinação coloca o sujeito em contato com outro universo discursivo, o que

lhe permite testar valores e crenças, confirmando, (re)inventando e

(re)construindo sua realidade.

O percurso, conforme permite a compreensão de si mesmo, permite

também que o peregrino compreenda e se conecte ao outro e ao todo. Para

Carneiro181 isso ocorre pelo fato de que na peregrinação, todos estão passando

pelas mesmas experiências, independente do lugar de origem, classe social, e

mesmo dos motivos que as trouxeram ao Caminho. Ou seja, com isso

podemos compreender que, ao longo de toda a peregrinação, apenas um

aspecto da identidade fica em destaque: o peregrino. E perceber isso, faz com

que as pessoas se unam, criando entre si laços de solidariedade e

fraternidade.

Carneiro182 ressalta que os peregrinos deixam seu cotidiano, em que

geralmente há pouco espaço para a espiritualidade para ingressar numa

realidade em que todos os aspectos laicos da vida são dados por

determinantes sagrados. Entretanto, a autora183 também afirma que ao longo

da peregrinação ritualizada, sagrado e profano não são opostos, são categorias

diferentes, porém simultâneas. Ver a peregrinação como um ritual permite que

o sujeito experimente um sentimento de comunhão com o todo, e com a

natureza, não nas tradições em si, mas através da apropriação com crítica (e,

portanto, podemos acrescentar, com sentido) de tais tradições.

Assim, quando se dá o devido valor ao discurso dos peregrinos,

observando bem aquilo que eles afirmam haverem sentido e vivenciado, é

possível notar que eles vivenciam a peregrinação como um processo de

181

Ibidem, p. 275. 182

Ibidem, pp. 271 – 272. 183

Ibidem, pp. 277 – 278.

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grandes transformações interiores, um ritual, como sugere Carneiro184, pois a

maior parte dos peregrinos lida com a espiritualidade ao “estilo Nova Era”,

fazem uma bricolagem, compondo elementos de diversas tradições religiosas e

culturais, algumas vezes discrepantes entre si e mesmo em relação ao

discurso da Nova Era. O Caminho de Santiago é marcado pela diversidade, em

especial a mescla do catolicismo com mitos e lendas, abundantes ao longo do

Caminho. É uma experiência que propicia aos peregrinos reconstruir símbolos,

crenças e sentidos, segundo afirma Carneiro185. A plasticidade da Nova Era

permite que se façam combinações às vezes bastante inusitadas, pios o critério

de adesão está no sentido que cada um busca para/por si mesmo.

O pluralismo de crenças, culturas, tradições e formas de expressar a

espiritualidade é, portanto, bastante valorizado pelos peregrinos. A autora186

explica que podendo vivenciar contradições, o sujeito experimenta viver de um

modo que desafia o sentido usual presente em seu cotidiano. São valorizados,

sobretudo, os intercâmbios entre o catolicismo e a magia, que por serem de

universos tão diferentes, abrem inúmeras possibilidades de combinações,

trazendo à prova diversos campos de sentido.

O que mais chama a atenção no Caminho de Santiago é a multiplicidade

de discursos e universos simbólicos, não só no sentido de ser

multidimensional, mas também de acolher, acomodar e responder a demandas

muito distintas, religiosas ou não. Carneiro187 o considera “uma excelente

metáfora de uma das novas condições de experiência espiritual” em que “se

busca sempre, ao invés de uma síntese, novos arranjos que possibilitam tornar,

a juízo do „buscador‟, „a vida digna de ser vivida‟”, conferindo-lhe sentido.

Finalizamos este capítulo com uma questão que nos ocorreu após estas

reflexões: um peregrino (literal) inicia o Caminho de Santiago como “peregrino”

e, ao encontrar algo que organize e dê algum sentido à sua vida e a ele

próprio, o finalizaria como “convertido”188?

184

Ibidem, p. 260. 185

Ibidem, pp. 278 – 279. 186

Ibidem, p. 279. 187

Ibidem, p. 280. 188

Termos “peregrino” e “convertido” utilizados segundo a concepção de Hervieu-Léger, conforme já explicamos anteriormente neste mesmo capítulo.

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Capítulo III

Busca de sentido:

O que se encontra no percurso vai além do caminho em si

“Às vezes é melhor apenas se entregar à vida e deixar

que ela faça de nós aquilo que precisamos ser, ou

aquilo que já somos nos nossos corações.” (M.L.F.)

Antes de prosseguir com esta dissertação e poder analisar a forma como

os peregrinos participantes desta pesquisa atribuem sentido à suas vidas, é

preciso que se saiba o que compreendemos por “sentido”. Para Geertz189, esta

é uma temática presentes em discussões acerca do ser humano desde o

século XVIII, época em que começou a ser abordado em termos

científicos/empíricos peça antropologia, sociologia, etc., e não mais apenas de

maneira religiosa. Inicialmente, é preciso definir este termo para que o leitor

compreenda sobre o que dialogamos, visto que o termo “sentido” tem múltiplas

possibilidades de definição e interpretação.

Rezende190 estabeleceu três definições para o termo “sentido”:

1. Os cinco sentidos do ser humano e aquilo que pode ser percebido

através dos mesmos.

2. Interpretação de um fenômeno utilizando a cognição, através da

linguagem, o que pressupõe o estabelecimento de relações entre

diferentes idéias, fatos e conceitos.

3. União das definições anteriores: interpretamos, atribuímos sentido ao

que percebemos, ao que sentimos, utilizando para isso a linguagem e

nossas estruturas cognitivas. Este processo mostra a forma como nos

posicionamos frente à realidade.

Para Berger e Luckmann191, o sentido se forma na consciência de cada

um, sendo que para isso são relevantes os processos corporais e sociais pelos

quais a pessoa em questão passou. Os autores192 definem sentido como “uma

forma complexa de consciência: não existe em si, mas sempre possui um

189

Cf. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia, pp. 152-153. 190

Cf. REZENDE, Antonio Muniz de. Concepção fenomenológica da educação, passim. 191

Cf. BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido, passim. 192

Ibidem, p. 15.

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objeto de referência”. Além disso, é o sentido que nos dá a consciência de que

nossas experiências têm relação umas com as outras. Assim, podemos pensar

que é graças ao sentido que percebemos uma continuidade em nossa vida,

com a função (metafórica) do que, na física, seria um vetor (algo que

pressupõe uma “direção”, um sentido); mas sentido é, também, um fio de

contato entre as experiências pelas quais passamos. A partir disso é que

ocorrerá a formação da identidade de cada um, dependendo de como nos

posicionamos frente às reservas de sentido da sociedade.

A busca pela identidade é, portanto, a busca pelo que compreendemos

aqui como a representação de si mesmo. Geertz193 sugere que isso pode

incluir além do plano pessoal, também as esferas sócio-culturais e até mesmo

políticas. Como um exemplo disso, o autor ressalta que formas de identificação

religiosa (seja considerar-se membro de determinada religião ou, pensamos,

meramente considerar-se um ser religioso, ou seja, dotado de religiosidade)

vêm ganhando cada vez mais espaço não apenas nos discursos, mas em toda

a realidade dita secular. Para Gil Filho e Gil194, toda identidade religiosa é uma

construção sócio-histórica. Ou seja, é suposto que o sujeito esteja inserido em

alguma realidade, havendo um contexto espaço-temporal permeado por

alguma cultura. O contato com o transcendente expresso nas diversas formas

de religiosidade é um elemento central nas sociedades, mesmo que seculares.

Segundo os autores195, “o sistema de práticas e o discurso religioso, ao

atribuírem um princípio norteador transcendental da vida, imprimem uma nova

lógica à realidade”.

Outro aspecto sobre como ocorrem hoje as identificações, é o destaque

dado ao plano pessoal, afirma Geertz196. Com o final da Guerra Fria, as

fronteiras territoriais se modificaram muito. Com isso, se valorizaram as

identidades culturais dos povos, pois um mundo sem fronteiras viabiliza a

coexistência de múltiplos discursos, cada vez mais variados e personalizados.

193

Cf. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia, p. 156. 194

Cf. GIL FILHO, Sylvio Fausto e GIL, Ana Helena. Identidade religiosa e territorialidade do sagrado: notas para uma teoria do fato religioso. In: ROSENDHAL, Zeni e CORRÊA, Roberto Lobato. Religião, identidade e território, pp. 39-48. 195

Ibidem, pp. 40-41. 196

Cf. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia, p. 157

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Devemos acrescentar que o discurso aplicado pelo sujeito em sua auto-

identificação é, certamente, aquele que faz sentido para ele. Logo, a busca

pela identidade e a busca por um sentido de vida são processos que caminham

atados e não devem se separar.

Frankl197 desenvolveu uma teoria que denominou “logoterapia” (do grego

logos, sentido), que se concentra na busca humana por sentido,

compreendendo-se tal busca como a maior motivadora do ser humano. Assim,

esta é uma motivação primária, e não uma racionalização secundária. O

sentido é exclusivo e específico para cada um, pois apenas desta maneira ele

será capaz de preencher o que o autor198 denomina “vontade de sentido”.

Neste processo de busca de sentido, Frankl199 destaca o papel crucial

dos ideais e valores, que são os sustentáculos dos sentidos, e não meros

mecanismos de defesa, sublimações ou formações reativas. “O ser humano é

capaz de viver e morrer por seus ideais e valores!”, afirma o autor200, coisa que,

certamente, não se faz por sublimações ou mecanismos de defesa e, muito

menos, por formações reativas. Compreendemos com isso que ideais e valores

são os fundamentos que permitem a construção de sentidos e, como em toda

construção, os fundamentos devem ser sólidos e seguros para que a

construção não apresente falhas e possa se sustentar. Isso organiza e orienta

a vida, fazendo com que ela não seja apenas um agrupamento de vivências

aleatórias.

Frankl201 destaca ainda que podem existir casos em que a busca por

sentido revele a existência de conflitos interiores ocultos, embora para o autor

tais casos sejam exceções, e os “falsos valores” logo seriam desmascarados.

Em outros casos, a vontade de sentido é frustrada, o que Frankl202 chama de

“frustração existencial”, e que resulta em neuroses noogênicas, ou seja, cuja

origem está em conflitos existenciais, e não nos processos psíquicos, tendo

grande destaque para sua origem a frustração existencial. Entretanto, nem todo

197

Cf. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 2009, p. 91. 198

Ibidem, p. 92. 199

Ibidem, p.92. 200

Ibidem, p. 92. 201

Ibidem, p. 93. 202

Ibidem, pp. 93-96.

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conflito é neurótico. Certa parcela de conflito é normal, e até saudável, a

angústia existencial existe sempre que há consciência de que existimos, não é

necessariamente patológica e nem patogênica. “A busca por sentido

certamente pode causar tensão interior em vez de equilíbrio interior. Entretanto,

justamente esta tensão é um pré-requisito indispensável para a saúde mental”,

diz Frankl203, assim, a saúde mental pressupõe certa tensão entre o que somos

e o que queremos ser, entre o passado, presente e futuro. Ter um sentido é ter

uma meta de vida que vale a pena ser vivida e buscada. Uma vida com sentido

obviamente não estará livre de conflitos e de sofrimento, mas estes não são

aleatórios e nem vazios, têm um papel a desempenhar, um porquê de existirem

em certo momento da vida do sujeito.

Frankl204 aborda ainda a questão do vazio existencial, ou seja, a pessoa

sente um vazio interior, uma imensa ausência de sentido em sua vida. Para o

autor, a tendência é que esse sentimento de vazio apenas aumente cada vez

mais. Ele explica que duas perdas da humanidade contribuíram para isso. A

primeira é, talvez, tão antiga quanto a própria condição humana: a perda dos

instintos que regulavam o comportamento animal e garantiam a continuidade

da existência. “Tal segurança, assim como o paraíso, está cerrada ao ser

humano para todo o sempre. Ele precisa fazer opções”, diz o autor205. A

segunda, muito mais recente, se refere à perda das tradições, que costumavam

orientar as escolhas e o comportamento humano. Para o autor, o maior risco

dessa ausência de instintos e de tradições é que não tendo nada que oriente

suas ações e (em muitos casos) não conhecendo seus próprios anseios, a

pessoa passa a agir pelo conformismo (fazendo aquilo que lhe parece que

“todos” fazem) ou então pelo totalitarismo (obedecendo cegamente a algum

outro que, supostamente, sabe o que se deve fazer).

Continuando suas reflexões acerca do vazio existencial, Frankl206 cita

algumas de suas manifestações mais comuns: o tédio, a depressão, a

agressão, os vícios, as crises de aposentados e idosos (crises estas que,

podemos acrescentar, nos dias de hoje já não se reservam apenas a pessoas

203

Ibidem, p. 95. 204

Ibidem, pp. 96-97. 205

Ibidem, p. 97. 206

Ibidem, p. 97.

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de idade mais avançada, manifestando-se em adultos jovens, adolescentes e

até em crianças), bem como os casos de suicídio. A tendência é que estes

problemas se agravem cada vez mais, de acordo com o autor. Em

contrapartida, Frankl ainda menciona duas máscaras comuns do vazio

existencial: a vontade de poder (freqüentemente expressa na vontade de

dinheiro e bens materiais) e a vontade de prazer (cuja compensação através da

sexualidade é bastante corriqueira).

Sobre essas manifestações e máscaras do vazio, Bauman207 menciona

algo semelhante ao descrever o mundo contemporâneo como um mundo em

que predomina “a ideologia do fim da ideologia”, que o autor denomina

“multiculturalismo”. Esta ideologia admite que múltiplos valores, sentidos e

visões de mundo, mas depende de cada pessoa encontrar e percorrer seu

caminho, bem como lidar com as conseqüências disso. O autor compara a

situação a uma cacofonia, como se cada um cantasse uma canção. Sem

uníssonos, sem garantias sobre qual é melhor e sem que se saiba o que será

cantado depois. O multiculturalismo tem duas estratégias de dominação: o

desengajamento (o que entendemos como o ato de nunca se envolver com

nada e nem com ninguém, não existem pessoas, apenas indivíduos – unidades

autônomas) e o excesso (substituto da regulação normativa, que podemos

compreender como a ausência total de limites, excesso significa dizer que algo

nunca é o suficiente e é preciso buscar mais e mais...).

Assim, Bauman208 prossegue, se no mundo pré-moderno as lealdades

eram vinculadas às tradições (por exemplo, a paróquia, a vizinhança, etc.) e no

mundo moderno tais lealdades foram gradativamente se tornando mais

complexas (lealdade de cidadão, que era muito mais complexa e abstrata que

a nação ou as leis da terra, demandando um planejamento cuidadoso, que

envolvesse a educação e a organização das massas); no mundo

contemporâneo o que se passa é que o desengajamento traz a ilusão de

liberdade. Ninguém controla os indivíduos, apenas o ambiente, de modo que,

sem se dar conta, o indivíduo por si só é levado a agir da maneira como se

espera. “Quem quiser manter o enxame na direção correta deve se ocupar das

207

Cf. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. pp. 112-113. 208

Ibidem, pp. 114-116.

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flores, e não de uma a uma das abelhas”, exemplifica o autor209. Neste

enxame, entretanto, não há um líder claro, cada unidade “voluntariamente” age

como deve agir. Um exemplo mais prático desta situação citado pelo autor (e

que, a nosso ver, acabaria com qualquer centelha de sentido que por ventura

tenha restado) é o mundo do trabalho. Hoje o empregador já não tem a

necessidade de exercer grandes controles. Espera-se que o funcionário prove

seu valor constantemente caso tenha a intenção de manter seu emprego. A

empresa paga as horas trabalhadas, mas em troca exige toda a vida, o

pensamento e a devoção de seus funcionários.

Para Bauman210, este é um mundo em que predomina o jogo entre a

tentação e a sedução (o que nos remete outra vez ao que Frankl vinha dizendo

quanto às vontades de poder e de prazer) em lugar do controle. Tem valor

aquilo que é desejado (cujo desejo fora criado). “Na ausência da norma, o

excesso é a única esperança de vida”, afirma Bauman211 e, como já

mencionamos, nada nunca será excessivo, pois nada nunca será o suficiente.

O fim das normas não é algo formal, e só surgiu no momento do capitalismo

em que a sociedade de produtores de transforma na sociedade de

consumidores. O excesso e o desengajamento são as únicas esperanças que

restaram aos olhos da humanidade. Em decorrência disso, diz o autor212,

Se a seqüência dos passos não está predeterminada por

uma norma (...), só a experiência contínua poderá sustentar

a esperança de vir a encontrar o alvo, e essa

experimentação exige grande quantidade de caminhos

alternativos.

Entretanto, afirma Bauman213, prosseguindo com sua detalhada

descrição das sociedades contemporâneas (é fundamental que as entendamos

bem para que se compreenda a relevância da busca por sentido nestes dias),

ao mesmo tempo em que o indivíduo se orgulha da suposta liberdade que tem,

209

Ibidem, p. 115. 210

Ibidem, pp. 117-118. 211

Ibidem, p. 118. 212

Ibidem, p. 119. 213

Ibidem, p. 118.

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sonha o tempo todo em recuperar a segurança que este novo estilo de vida já

não pode mais lhe oferecer, pois “são construídos novos caminhos e o acesso

aos antigos é bloqueado”, afirma Bauman214.

Em nossa visão, isso significa dizer que o tempo é uma variável que

caminha em apenas uma direção, o futuro, e se em outros tempos a busca

humana por sentido era menos complexa, tudo que resta deles nestes tempos

atuais é a memória – ou, quem sabe, nem isso, já que quando aliamos o

excesso ao desengajamento, ou a vontade de prazer à vontade de poder,

acaba-se os planejamentos, sonhos e utopias sobre o futuro, reduzindo o

tempo a um presente contínuo (sem futuro, mas também sem um passado

explícito que nos esclareça como chegamos ao ponto em que estamos). E

viver apenas o presente é, talvez, uma das maiores ameaças à busca por

sentido. Se não conhecemos o nosso passado ou nossas tradições, e somos

impedidos/desencorajados a planejar e sonhar com o futuro, toda e qualquer

vivência presente é reduzida à aleatoriedade. Existem inúmeros caminhos

viáveis, mas qual percorrer? Se não sabemos nem ao menos de onde partimos

ou de onde estamos vindo, o local de chegada ainda tem alguma importância?

As referências das sociedades contemporâneas, afirma Bauman215, não

são feitas para durar. Não há como saber o que apontarão a seguir. O autor

compara esta situação à idéia de Deus medieval como um ser indiferente ao

bem e ao mal. Apenas com isso em mente é possível compreender

satisfatoriamente a idéia do multiculturalismo. Neste contexto, diferentes

culturas coexistem, mas isso não significa que compartilhem suas existências

tirando algum proveito de um suposto diálogo (talvez, pensamos, porque o

diálogo aberto e respeitoso não exista, o que faz com que essas culturas ao

invés de coexistirem, apenas ocupem o mesmo lugar no espaço, ou melhor, no

contexto social).

Diante disso, o sujeito contemporâneo deixa de lutar pelo direito a

expressar-se, passando a manter seu foco de interesse no direito a indiferença,

abstendo-se de julgar, ou de ter que refletir sobre valores pouco claros e

conscientes, questionamos, pois todo julgamento se faz com base em valores.

214

Ibidem, p. 118. 215

Ibidem, pp. 121-122.

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Com isso, pensamos, o sujeito contemporâneo estaria se defendendo de ter

que lidar com um pluralismo de discursos que lhe soa ameaçador, o que

revelaria não somente a óbvia ausência de algo que dê segurança e ajude

esses sujeitos a atribuir sentido às suas existências e vivências, mas também,

um grande pavor de deparar-se com o vazio existencial, tendo que encará-lo

sem saber ao certo de que maneira preenchê-lo.

Para Bauman216, portanto, a segurança é o fator primordial para que

haja diálogo entre diferentes culturas, pois apenas assim as comunidades se

abrem umas as outras, mantendo trocas enriquecedoras e estimulando a união

de forma humanitária. Na guerra entre nós e eles, ninguém ganha, todos se

tornam alvos fáceis para aquilo que Bauman chama “forças globalizantes”, que

seriam definidas pelo autor217 como “as únicas que se beneficiam com a

suspensão da procura por uma humanidade comum e com o controle conjunto

sobre a condição humana”. O indivíduo sente falta da comunidade porque ela

lhe dá a segurança necessária para uma vida satisfatória e feliz, coisa que o

mundo contemporâneo cada vez menos oferece e promete. Quando alguém

busca segurança, sempre esbarra na autopreservação, na integridade do corpo

e de suas extensões (a casa, o bairro, as propriedades, etc.). Daí, refletimos,

faz sentido que esteja em grande evidência os produtos e serviços destinados

a cuidar do corpo, seja no plano da estética, do bem estar e mesmo da saúde.

Em decorrência desse anseio por segurança, continua o autor, se passa a

suspeitar de tudo e de todos. Neste ponto, todos são ameaças em potencial, e

são muitas, se nos recordarmos da questão do desengajamento (se pouco me

envolvo com os outros, todos eles me são desconhecidos – e ameaçadores) e

do excesso. O outro se torna a encarnação do imprevisto e do imprevisível,

reforçando o desengajamento, a busca por segurança e, acrescentamos, toda

a ansiedade gerada (e suas decorrências, que podem ser terríveis para a

saúde mental). As ameaças são muitas e inomináveis, diz Bauman218, o que

aumenta a angústia e o desconforto que geram, pois, acrescentamos mais uma

vez, sendo inomináveis, tais ameaças não tem significado, o que impede que o

sujeito encontre nelas algum tipo de sentido ou explicação (pois significar e

216

Ibidem, pp. 128-130. 217

Ibidem, p. 128. 218

Ibidem, p. 130.

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atribuir sentido são, antes de tudo, processos lingüísticos, já que são viáveis

apenas através da linguagem).

Diante de tal panorama do mundo contemporâneo, o sentido da vida

varia conforme a pessoa e o momento vivido, explica Frankl219. Logo, não há

uma maneira geral de abordá-lo, só se pode pensar no sentido da vida de cada

pessoa em determinado momento. Não há sentidos gerais ou abstratos, assim,

ninguém pode ser substituído e nenhuma história de vida pode ser repetida.

Apenas o próprio sujeito pode agir por si e realizar seu sentido. Neste ponto da

discussão o autor220 levanta a questão da responsabilidade (no sentido de dar

uma resposta). Todos nós somos questionados pela vida e cada um deve

responder por si sobre o sentido de sua vida. Essa responsabilidade é a

essência da vida humana.

Partindo deste pensamento, gostaríamos de propor uma discussão. Ao

narrar sua história, o indivíduo se apropria dela e pode interiorizá-la (pois os

fatos e vivências são transformados em discurso através da linguagem). Assim,

o sujeito torna-se responsável por ela. Porém, ao mesmo tempo em que a

interioriza, enquanto narra tem a oportunidade de vê-la através de algum ponto

do espaço psíquico localizado externamente a si. Temporariamente, torna-se

outro para si mesmo, ocupando o lugar e a função de outro com relação a si (e

todo outro é parte do mundo externo). Isso nos recorda uma frase de

Bakhtin221, que diz: “eu não estou só quando me contemplo no espelho, estou

possuído por uma alma alheia”. Logo, para que seja possível a construção de

um sentido (e não a mera atribuição de algum sentido pré-existente), é

necessário ver-se a partir de fora como outro, encontrando-se “possuído por

uma alma alheia”.

Frankl222 diz algo semelhante ao abordar a “autotranscendência da

existência humana”: o sentido deve ser buscado e encontrado no mundo

externo, e não dentro de si, na psique, visto que não é algo fechado e imutável.

“A auto-realização só é possível como um efeito colateral da

219

Cf. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. p. 98. 220

Ibidem, pp. 98-99. 221

Cf. BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. p. 31 222

Cf. FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. pp. 99-100.

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autotranscendência”, diz o autor223. O indivíduo não pode ser uma unidade

auto-suficiente! Precisa do outro e do mundo externo (e, voltamos a

acrescentar, precisa saber ver-se como outro).

Transcender a si mesmo é ir além de si em direção ao outro ou ao

mundo em diversos sentidos: nos discursos, nas vivências, mas também no

corpo. Pensando que esta pesquisa foi realizada com peregrinos, não podemos

deixar de abordar a questão corporal, já que o corpo é um instrumento

essencial na peregrinação. Além disso, Gazoni224 explica que ao deixar o

profano para trás e rumar em direção ao sagrado, geralmente se passa por

sacrifícios, sobretudo físicos, que ganham para o peregrino um sentido de

purificação. Para Oliveira225, essa noção de martírio (sobretudo corporal) como

uma das principais formas de sacrifício (ato sagrado) cristão foi popularizada

com as Cruzadas, na Baixa Idade Média (séculos XI a XV).

Para Dahlberg226, uma característica do catolicismo no que se refere ao

corpo é que o sofrimento é visto como uma ponte que encurta a distância entre

o ser humano e o transcendente. A autora menciona que a oposição da Igreja

aos métodos contraceptivos denota o empreendimento de esforços para

dominar as forças da natureza, organizando-as de maneira racional. A

sexualidade passa a ser racionalizada, logo, a transmissão da vida deve ser

também regulada pela razão, assim como os ritmos corporais. Outro ponto

sobre a relação do catolicismo com o corpo mencionado pela autora é a hóstia

consagrada como a presença real de Cristo. O fiel consome o corpo e o

sangue de cristo na missa. Assim, conclui a autora, existe a crença de que o

divino pode ser encarnado, incorporado; e o corpo pode ser visto por

excelência como um veículo do divino na matéria.

223

Ibidem, p. 100. 224

Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 104. 225

Cf. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Turismo religioso, 2004, p. 22. 226

Cf. DAHLBERG, Andrea. The body as a principle of holism: three pilgrimages to Lourdes. In: EADE, John e SALLNOW, Michael J. Contesting the sacred: the anthropology of Christian pilgrimage, pp. 46-48.

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Quanto aos movimentos religiosos do século XXI, destaca Silveira227, a

ênfase está no corpo e saúde perfeitos. Com isso, como destaca Turner228, no

mundo contemporâneo as peregrinações muitas vezes estão relacionadas à

busca por efeitos terapêuticos.

De acordo com Turner229, o peregrino anseia por transformações, sejam

elas do espírito ou do corpo. O mundo do peregrino é ampliado, afirma o

autor230, pois ao longo da peregrinação ele terá contato com o transcendente,

mas também com necessidades e perigos terrenos com os quais terá de lidar

sozinho, pois está fora da estrutura social. O autor231 explica que a estrutura

social é um conjunto composto por unidades, que seriam as relações entre

cargos, papéis e funções sociais de maneira geral.

Logo, a peregrinação é vista pelo autor232 como um período em que se

está fora da estrutura social, ou um intervalo entre duas épocas em que se faz

parte da estrutura de maneiras distintas. A peregrinação é, portanto, um rito de

passagem o que, compreendemos nós, faz com que ela tenha a capacidade de

viabilizar mudanças no sujeito.

Turner233 considera os ritos de passagem como ritos que legitimam uma

transição, em três fases: a primeira seria a separação, quando o sujeito é

afastado do grupo. A seguir, viria a liminaridade, momento em que a pessoa

vive fora da estrutura social. Por fim, ocorre a agregação, quando a passagem

é consumada e o sujeito é reintegrado à estrutura, já transformado. Para refletir

sobre a peregrinação, é necessário dar atenção ao segundo momento dos ritos

de passagem. A liminaridade, muitas vezes comparada à morte, ao estar no

útero, a um eclipse, etc., é uma fase em que a pessoa é “reduzida” a uma

condição básica, pois assim poderá ser remodelada, imbuída de novos poderes

e capacitada a enfrentar uma nova realidade. Assim, afirma Turner234, “os

227

Cf. SILVEIRA, Emerson J. S. “Turismo religioso”, mercado e pós-modernidade. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 43. 228

Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 227. 229

Ibidem, p. 197. 230

Ibidem, pp. 182-183. 231

Cf. TURNER, Victor. O processo ritual, p. 160. 232

Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 175. 233

Cf. TURNER, Victor. O processo ritual, pp. 116-118. 234

Ibidem, p. 118.

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neófitos tendem a criar entre si uma intensa camaradagem e igualitarismo”.

Isso ocorre porque “a passagem de uma situação mais baixa para outra mais

alta é feita através de um limbo de ausência de „status‟”235. Assim, prossegue

Turner236, o iniciando vive um estado de anonimato, é um ser em transição e,

portanto não tem lugar nem posição dentro da estrutura social, tudo o que lhe

cabe é o silêncio e a submissão. “A sabedoria transmitida na liminaridade

sagrada não consiste somente num aglomerado de palavras e de sentenças;

tem valor ontológico, remodela o ser do neófito”, explica o autor237. Turner238

ainda afirma que ser afastado da família e do grupo social durante o rito de

passagem pode ter aspectos ou funções de “punição, purificação, expiação,

cognição, instrução, terapêutica, de transformação”, entre outros.

Gazoni239 está de acordo com tais afirmações quando menciona que

“(...) muitos visitantes de Santiago de Compostela, durante um prolongado rito

de passagem, tiveram questionamentos acerca do significado espiritual do

mundo. Durante o trajeto, eles se transformaram em peregrinos”. Turner240

complementa que o local da peregrinação está “dentro e fora do tempo”, o que

viabiliza o contato direto com o transcendente, através de experiências místico-

religiosas que tendem a transformar o sujeito.

Esse tempo vivido “dentro e fora do tempo” favorece o surgimento de

relações sociais distintas daquelas que surgem na estrutura social, à qual

Turner241 denomina communitas. Enquanto a estrutura é caracterizada pelo

caráter jurídico e político das relações, a communitas é permeada pela

espontaneidade. Assim, a communitas é um modo de relacionamento entre

“indivíduos concretos, históricos e idiossincráticos”242.

235

Ibidem, p. 120. 236

Ibidem, p. 126. 237

Ibidem, p. 127. 238

Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 196. 239

Cf. GAZONI, Jefferson L. Aproveitamento turístico de recursos mítico-religiosos: os Passos de Anchieta. In: DIAS, Reinaldo e SILVEIRA, Emerson J. S. da. Turismo religioso: ensaios e reflexões, p. 106. 240

Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 197. 241

Cf. TURNER, Victor. O processo ritual, p. 161. 242

Ibidem, p. 161.

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Para melhor compreensão do termo, Turner243 cita algumas

características da communitas, que achamos por bem mencionar antes de

prosseguir com a discussão. A communitas é permeada pela homogeneidade e

igualdade de seus membros, ausência de propriedade, mínima distinção entre

os sexos, em alguns casos se usa um “uniforme” ou vestimentas de mesmo

estilo, todos os membros passam a ser do mesmo nível/condição social. Pode

haver continência ou completa liberdade sexual, acabando com a noção

tradicional de casamento e de família. Também não há direitos ou obrigações

de parentesco, pois na communitas todos são iguais, todos são irmãos. Além

disso há ênfase na humildade, simplicidade de fala e de maneiras, descuido da

aparência pessoal, altruísmo, obediência total ao líder (quando há um líder). O

comportamento religioso é incentivado, com instrução sagrada e em alguns

casos até mesmo a “loucura sagrada” é vista com bons olhos. Também está

presente a aceitação do sofrimento e da dor. O autor244 ainda afirma que na

communitas toda ação é tomada em favor de toda a comunidade, há uma

relação mística com a terra, não há vinculo a nenhum segmento político

específico; e a paz é enfatizada, pois o conceito de conflito pressupõe que haja

uma estrutura social, ao passo que “a communitas surge onde não existe

estrutura social”245.

Por outro lado, Turner246 afirma que a communitas só surge porque

existe alguma estrutura da qual se libertar. Assim, só é possível compreender a

communitas quando se pensa em sua relação com a estrutura. A communitas

tem qualidade existencial, englobando a totalidade do ser humano e sua

relação com o outro. Essa relação entre seres totais gera símbolos e metáforas

como a arte e a religião (mais do que leis e políticas, típicas da estrutura). Já a

estrutura se apresenta como um conjunto de classificações, um modelo que

possibilita tentar compreender o mundo e ordenar a vida pública. A communitas

é sagrada, pois transcende as leis que regem as relações

estruturadas/institucionalizadas. Entretanto, o autor247 ressalta que o que se

243

Ibidem, p. 136. 244

Ibidem, pp. 146-154. 245

Ibidem, p. 154. 246

Ibidem, pp. 154-156. 247

Ibidem, p. 167.

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busca na communitas não é a camaradagem ou a amizade que podem surgir

entre colegas de um grupo qualquer, mas sim uma experiência profundamente

transformadora. Ou seja, “a imediatidade da communitas abre caminho para a

mediação da estrutura”, afirma Turner248, pois quando num rito de passagem

alguém se liberta da estrutura e passa e fazer parte da communitas, o faz

apenas para retornar à estrutura profundamente transformado por esta

experiência. Com isso, Turner249 ressalta que a communitas nunca dura por

muito tempo, pois logo as relações livres passam a ter normas, tornando-se

estruturadas. Afirma Turner250:

(...) a estrutura social está intimamente relacionada com a

história, porque é este o modo pelo qual um grupo mantém

sua forma através dos tempos. A communitas sem estrutura

pode unir e manter as pessoas juntas apenas

momentaneamente.

Para o autor251, considera-se que aquele que vive na communitas, livre

do sistema normativo da estrutura, tem como sistema de valores a “inocência e

pureza daqueles que vivem sem o domínio de um soberano”, assemelhando-se

à bondade proposta por Rousseau daqueles que vivem em estado de natureza.

Turner252 ainda diferencia três tipos distintos de communitas:

1- Existencial/espontânea: não tem estrutura, é homogênea e totalmente

livre. Turner253 explica que este tipo pode surgir em qualquer tempo,

lugar ou situação. Entretanto, se é suposto que ela permaneça para

além de seu surgimento, seus símbolos precisam ser codificados e, com

isso, normatizados.

2- Normativa: conforme o tempo passa, surge na communitas espontânea

a necessidade de organizar os recursos para que o grupo se mantenha

de maneira funcional. Nesse momento a communitas se torna um

248

Ibidem, p. 157. 249

Ibidem, p. 161. 250

Ibidem, p. 186. 251

Ibidem, p. 166. 252

Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, p. 169. 253

Ibidem, p. 172.

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sistema social menos rígido que a estrutura que motivou seu

surgimento. Apesar de ser um sistema social, visa manter algumas

características da communitas, preservando relações não utilitárias entre

seus membros.

3- Ideológica: communitas utópica, pautada em princípios ideológicos.

Turner254 afirma que as relações sociais entre os peregrinos têm a

qualidade de communitas, sobretudo nas peregrinações mais longas.

Inicialmente, surge a communitas espontânea, que logo se torna normativa.

Como veremos a seguir, na segunda parte desta dissertação, o impacto

transformador da vida na communitas é muito intenso e presente no discurso

dos peregrinos que participaram desta pesquisa.

254

Ibidem, pp. 166-169.

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PARTE II

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Capítulo IV:

Todo caminho começa com um passo

“É o caminho que importa. Chegar é chegar a um

objetivo.” (L.)

Nesta segunda parte da presente dissertação, pretendemos apresentar

e discutir os dados empíricos recolhidos por nós para a realização desta

pesquisa de mestrado.

Inicialmente, apresentaremos os procedimentos para a realização da

pesquisa e, a seguir, a amostragem dos participantes. Por fim, no

apresentaremos os dados coletados e, no texto que segue, faremos a leitura do

material coletado.

4.1 – Método: um caminho de pesquisa

4.1.1- Procedimentos:

Além da pesquisa teórica abrangendo o fenômeno das peregrinações e,

mais especificamente, informações a respeito do Caminho de Santiago de

Compostela, esta dissertação de mestrado se propõe a analisar dados

empíricos de pessoas que fizeram a peregrinação a Santiago de Compostela.

Os dados foram coletados inicialmente através de entrevistas semi-

estruturada, trocas de e-mails e de depoimentos recebidos, cujos pontos

abordados foram, sobretudo, a motivação para realizar a peregrinação e as

transformações que ocorreram na vida da pessoa e se ela atribui ao fato de

haver percorrido o Caminho de Santiago.

Para chegar aos peregrinos e realizar a coleta de dados, nos utilizamos

da rede social Orkut. Entramos em comunidades referentes ao Caminho de

Santiago de Compostela e deixamos a seguinte mensagem:

Mestrado sobre o Caminho de Santiago Olá amigos, Sou psicóloga e estou fazendo uma pesquisa de mestrado na PUC-SP. Gostaria de conversar com pessoas que já tenham feito o Caminho de Santiago e estejam dispostas a dividir essa experiência contando suas histórias, seja qual for a motivação que as levaram ao Caminho. Se alguém puder ajudar, pode deixar um recado aqui no tópico ou então no meu perfil, como

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preferirem. Desde já, muito obrigada!!

Quando possíveis participantes entraram em contato, deixamos claro

que a participação seria voluntária e que informações que pudessem

identificar-los não seriam apresentadas.

A partir desses dados iniciais, formulamos um breve questionário (o

modelo do questionário consta no Apêndice), com questões relativas à vida do

participantes antes da peregrinação, visando verificar possíveis conflitos; às

motivações para realizar o Caminho; aos momentos de maior emoção, bem

como aos pensamentos, sentimentos ou valores adquiridos no que Caminho

ainda permanecem na vida da pessoa; como foi a partida e a volta; e por fim,

as mudanças que o participante percebe em si/em sua vida após ter feito a

peregrinação.

O questionário foi enviado por e-mail a pessoas que previamente haviam

manifestado o interesse em participar da pesquisa. Enviamos 25 questionários,

e recebemos 20 de volta, sendo que alguns dos questionários que retornaram

não foram enviados por nós. Alguns dos participantes da pesquisa, que

viajaram na companhia de outras pessoas, tomaram a iniciativa de enviar o

questionário a seus acompanhantes, que também nos enviaram suas

respostas. Todos os questionários respondidos constam no Anexo.

4.1.2 – Amostragem:

Como já mencionamos, os participantes desta pesquisa foram

contatados através da internet.

Dentre todos os interessados em participar desta pesquisa, mantivemos

um contato maior com 8 pessoas. Dentre as histórias, selecionamos 3

peregrinos que demonstraram haver tido maiores transformações nos valores e

na forma de se identificarem (e, por conseguinte, no sentido percebido na

própria existência). Destes 3 participantes, uma do sexo feminino (L.) e dois do

masculino (V. e R.) e com idades variando entre 25 e 30 anos.

Quanto à crença religiosa, dois são de origem familiar católica (V. e L.) e

um de origem luterana (R.). Entretanto, os três (tal como a maioria dos

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peregrinos com quem mantivemos contato) deixam claro em seus relatos que

possuem crenças relativas à Nova Era, tais como “energias” que regem o

mundo e a vida, a força do pensamento, ou o poder da natureza, como pode

ser observado nos trechos que seguem:

“Quanto à religião, sou batizado em igreja luterana, mas me considero

espiritualizado acima de tudo. Acredito em Deus de uma forma que, para mim,

se encontra acima das religiões. Por isso, não gosto muito de freqüentar as

missas, nunca gostei, tenho o que imagino ser uma espiritualidade bastante

reservada (mas aberta a qualquer tipo de filosofia).” (R.)

“Vivo um dilema quanto à religião. Não pratico nenhuma, já fui católico,

porém tenho fé em Deus. Minha consciência tranqüila é minha filosofia de vida

(...)” (V.)

“Sabe que depois do Caminho eu sinto mais necessidade de encontrar

uma religião? Mas uma religião que tenha a minha cara. E eu não sei bem

ainda, vou continuar em busca, não me considero cristã, mas acredito em

muitas coisas. Acredito nas energias, nas energias que as pessoas passam,

acho isso muito importante. E acredito que tudo tem um porquê, tudo na vida

tem a hora e o motivo pra acontecer...” (L.)

Todos são de classe sócio-econômica média. Um é formado em

administração e cuida dos negócios da família (V.), um é web assistant (R.) e

uma é pedagoga e, atualmente, tem uma pequena empresa (L.).

Optamos por estes peregrinos pelo fato de que, dentre os que se

interessaram em contribuir com a pesquisa, são os que apresentaram maior

reflexão acerca das experiências que passaram ao longo do Caminho, bem

como motivações mais claras (para si mesmos) para iniciar a peregrinação.

Como já mencionamos, esses dados possibilitaram a formulação de um

questionário aplicado a outros 20 peregrinos, 10 do sexo feminino e 10 do

masculino, cujas idades variam entre 18 e 54 anos, sendo que a maioria (8)

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tem até 29 anos, 6 tem entre 30 e 39 anos, 4 estão na faixa dos 40 aos 49 e

apenas 2 têm 50 anos ou mais.

Quanto à escolaridade, a maioria do grupo (9) possui ensino superior

completo, seguido daqueles com pós-graduação (6). 2 possuem ensino

superior incompleto ou em curso, 2 têm Ensino Médio completo e 1 fez curso

técnico.

Sobre o estado civil, o grupo se mostra equilibrado. 9 são solteiros, 9

são casados ou têm uma relação estável e 2 afirmam que são divorciados. 11

dos participantes não têm filhos e 9 têm.

Um aspecto interessante sobre esses dados iniciais é que todos os

participantes desta pesquisa, incluindo os que responderam ao questionário e

os que contribuíram com entrevistas ou depoimentos, fizeram o Caminho de

Santiago do ano 2000 em diante. Incluindo todos os participantes da pesquisa,

1 fez a peregrinação no ano 2000; 1 em 2004; 2 em 2005; 1 em 2007; 5 em

2008; 3 em 2009; 8 em 2010; e 2 em 2011.

Quanto à identificação religiosa dos peregrinos que responderam ao

questionário, 1 se diz kardecista; 2 afirmam ser convertido ou simpatizante do

budismo; 1 afirma seguir a wicca; 1 se diz pagão; 5 são católicos não

praticantes; 3 afirmam apenas crer em Deus; e 5 se dizem agnósticos ou sem

religião. Levantamos ainda a crenças em elementos típicos da Nova Era, sejam

eles especificados como religião, sejam eles mencionados ao longo do

questionário. A crença no poder do pensamento de interagir com a nossa

realidade atraindo ou repelindo situações foi mencionada por 4 pessoas. Já a

crença em energias está presente em 6 dos participantes.

Em anexo constam os gráficos referentes a esses dados. Conhecidos os

participantes, passaremos agora a apresentar e discutir os dados coletados.

4.2- Análise dos dados coletados

4.2.1- Os dados:

Nesta parte da presente dissertação, nos dedicaremos a apresentar ao

leitor os dados obtidos nas perguntas do questionário. É interessante ressaltar

que as perguntas do questionário eram abertas, a fim de possibilitar que os

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participantes se expressassem mais livremente sobre como se sentiam e se

percebiam antes, durante e após o Caminho de Santiago, inclusive relatando

experiências mais marcantes. Logo, para apresentar estes dados

categorizamos as respostas a cada questão para que fosse possível identificar

as mais freqüentes; ou seja, a divisão que apresentamos aqui foi realizada

após os questionários serem respondidos, e não antes. A apresentação dos

dados será dividida em sete partes, uma para cada questão. A representação

gráfica dos dados aqui apresentados se encontra em anexo.

A primeira questão se refere à vida do participante antes da

peregrinação a Santiago de Compostela, em especial aos conflitos com que a

pessoa lidava em sua vida. Algumas pessoas mencionaram conflitos em mais

de uma das áreas que mencionaremos abaixo.

A maior parte dos participantes descreveu conflitos ligados à vida

familiar (5) e ao trabalho (5).

Não era bem um conflito. Eu trabalhava na diretoria de uma grande

empresa, me dedicava demais ao trabalho, e para mim estava tudo bem. Era

uma dessas pessoas viciadas em trabalho, para você entender, eu chegava a

tomar remédios para não dormir e poder trabalhar mais. Até que um dia fui

demitido. (...) De repente me vi desempregado e foi quando percebi que fora o

trabalho, eu não tinha exatamente uma vida. E é bem difícil quando você

percebe isso. (B.D.T.)

De problemas a gente tinha mais é de brigar muito na família, qualquer

coisinha que a gente não concordava já era motivo para discutir. (R.A.)

A seguir vem o grupo de pessoas (3) que relatam problemas de saúde,

sejam eles físicos ou psicológicos.

Minha vida era corrida. Eu trabalhava demais, comia errado e era um

homem muito sedentário. Eu brinco sempre que o esporte que eu praticava era

levantamento de garfo. E por conta da vida que eu vinha levando comecei a

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ficar doente. Colesterol alto, stress e eu tinha também um problema no joelho

que eu precisei operar. Se não fosse a boa vontade da minha esposa tenho

certeza que nossa família ia ter se desmantelado, porque eu era um homem

muito ranzinza! (V.M.A.)

Algumas vezes me dava um medo muito grande que me paralisava!

Assim, sem nenhum motivo. Eu ficava muito mal, tinha crises de choro, não

dormia de jeito nenhum, sentia como se alguém me observasse. (L.N.)

Com 2 relatos em cada categoria, vêm a seguir os problemas de

relacionamento entre casal, os conflitos ligados à religiosidade e os

decorrentes da baixa autoconfiança.

(...) comecei a buscar respostas em religiões, conheci várias como o

cristianismo (...), o kardecismo, a umbanda... e nada funcionava para mim.

Conheci então o esoterismo e no começo era legal, mas também acabei me

decepcionando. Porque no fundo essas crenças todas me traziam dogmas e

não me respondiam a sério o que estava acontecendo (...) (M.L.F.)

(...) Essa parte da religião também era meio que um problema para mim.

Eu ia na igreja com a minha família desde criancinha, e sempre achava chato.

Daí fui ficando mais velha e comecei a questionar as coisas para mim mesma,

não era uma coisa que me deixava bem. (L.A.H.W.)

Uma pessoa relata conflito ligado à sexualidade.

Um conflito que eu tinha é que eu sou homossexual e era bem difícil

assumir isso até para mim mesma. Eu escondia! E mesmo quando não

consegui mais esconder de mim, escondia dos outros. Eu achava que ninguém

entenderia (...) (L.A.H.W.)

Houve um relato de problemas financeiros.

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(...) eu tinha muitos problemas financeiros. Eu tinha um emprego e

ganhava um salário muito bom, até acima do valor do mercado (...) Mas eu era

bem impulsiva na hora de gastar e acabava me endividando. Não entrava na

minha cabeça por exemplo eu sair e não comprar nada. (...) eu fazia

malabarismos com o dinheiro pra poder pagar todos os gastos que fazia,

pegava emprestado com a família e com amigos e até já perdi amigos por isso.

(P.G.)

Uma participante relatou que vinha passando por um processo de luto

muito doloroso em decorrência da morte prematura e repentina do sobrinho.

Eu estava muito deprimida porque eu tinha perdido meu sobrinho quase

um ano atrás. Esse sobrinho era muito especial para mim, porque fui eu que

criei ele, era como um filho para mim. E ele morreu atropelado. Foi horrível, eu

não tinha força nem para sair da cama, não comia, não cuidava da casa, não

fazia nada. Foi muito de repente, eu não estava preparada. (N.L.H.)

Houve ainda um relato de conflitos decorrentes de experiências ligadas

à paranormalidade.

(...) tenho habilidades que a maioria das pessoas não tem. Eu vejo e

converso com seres espirituais e também tenho sonhos e visões sobre coisas

que vão acontecer. Por vários anos eu freqüentei um psicólogo para tentar

conviver com isso, mas ele me tratava como se essas coisas fossem sintomas

de que algo está errado comigo. (...) não tem nada de errado com a minha

mente. (M.L.F.)

Uma pessoa relatou estar frustrada com a vida que vinha levando.

Eu tinha muita dificuldade de me assumir como sou. E acho que por

causa disso, era bem insatisfeita com a minha vida, parecia que nada nunca ia

para frente! (...) o caminho que minha vida estava tomando acabava me

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frustrando, porque era como se eu não fosse a pessoa que na verdade sou.

(L.A.H.W.)

Houve também um grupo de 3 pessoas que afirmaram terem apenas

conflitos “comuns”, “do dia a dia”, com os quais podiam lidar com relativa

tranqüilidade sem que fossem vistos como problemáticos ou disparadores de

tensão.

Por fim, 5 dos participantes mencionam que não tinham nenhum conflito

em suas vidas.

A segunda questão se destina a investigar quais as motivações que

levaram os participantes a percorrer o Caminho de Santiago. Inicialmente, um

dado interessante é que as motivações podem ser basicamente divididas entre

religiosas ou não religiosas. De todos os 20 participantes, apenas um deles

mencionou um motivo diretamente religioso (“ampliação da consciência

espiritual”) para a peregrinação.

Quanto às motivações (houve pessoas que mencionaram mais de um

motivo), constam: turismo/viagem de férias (5).

Outras 5 pessoas, por outro lado, mencionam que a maior motivação foi

algum dos conflitos citados.

Eu queria muito ganhar confiança pra ser eu mesma porque eu estava

vivendo uma mentira, eu não era aquela moça que eu mostrava pra todo

mundo que eu era. Mas não fique achando que foi uma coisa assim consciente.

O que eu sentia era uma grande insatisfação. (...) mas naquela época para

mim era como se minha insatisfação e o interesse pelo caminho fossem coisas

separadas, só hoje eu consigo perceber que na vida da gente nada é

separado, tudo é parte do mesmo todo e dança conforme a harmonia da

Deusa. (L.A.H.W.)

3 pessoas mencionaram que o que mais lhes motivou foi a aventura que

envolveria a situação de liberdade do peregrino.

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Mas não tinha nenhum motivo religioso não, ate porque naquela época

eu era ateu. A gente ia pela aventura, pelo sentimento de liberdade. (H.C.M.)

Também 3 pessoas mencionaram haverem sido atraídas pelo aspecto

cultural e/ou histórico ligado ao Caminho de Santiago.

Eu sou apaixonada por história medieval! Uma das motivações foi essa, ver

tudo aquilo de perto. (M.L.F.)

A mística do caminho foi mencionada como aspecto motivador por 2

participantes, sendo que uma pessoa mencionou haver percorrido o Caminho

de Santiago em busca de uma ampliação da consciência espiritual.

Quando eu tinha uns 16 anos ou coisa assim eu li O diário de um mago,

do Paulo Coelho. Na época eu achei que o Caminho e a história toda era uma

ficção. Mas olhando na internet eu descobri que existia mesmo e a partir daí eu

sempre ficava pensando em ir algum dia. É uma experiência muito boa e que

recomendo muito, em especial para pessoas que buscam uma ampliação da

consciência como eu sempre busquei. (A.Y.A.)

Duas pessoas mencionaram outras motivações.

Sou descendente de espanhóis e queria muito conhecer a região de

onde vieram meus avós. (D.N.)

Houve ainda um grupo de 4 participantes que afirmaram que não tiveram

um motivo para fazer a peregrinação, ou que não sabem explicar o que lhes

atraiu.

Dentre as 20 pessoas, 4 afirmam que percorrer o Caminho de Santiago

era um sonho antigo, com freqüência adiado, e que, por fim, puderam colocar

em prática.

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A terceira questão se refere aos momentos mais marcantes ao longo da

peregrinação. Surpreendentemente para nós, 25% da amostra não conseguiu

especificar um momento de maior intensidade emocional.

4 pessoas relatam que a chegada Compostela, ao fim do Caminho, foi

um momento de muita emoção.

A seguir, 3 peregrinos mencionam a passagem pelo pueblo abandonado

de Foncebadón como uma experiência marcante, suscitando reflexões e

reações emocionais intensas.

(...) Não sei se você conhece a história de uma cidade fantasma que

existe no caminho. Foi um cigano que antes de morrer rogou uma praga e aí

desde então não tem mais ninguém que vive lá. Passar por lá me deu uma

emoção muito grande, não sei nem dizer bem o que. (...) Acho que reconheci

na cidade fantasma a vida que eu estava levando até então. (L.A.H.W.)

Outras 3 pessoas mencionam que a experiência mais marcante que

tiveram ao longo do caminho foi o encontro com o outro, seja este outro

conhecido como um filho, um desconhecido que o Caminho lhe trouxe ou um

outro espiritual.

Teve um dia, a gente já estava quase chegando no albergue e eu torci

meu pé. Fiquei bastante inseguro sobre o que fazer naquela situação em uma

estradinha no meio do nada! E então meu filho carregou minha mochila por

todos os quilômetros que faltavam. Sem ninguém pedir, foi uma atitude dele

mesmo. Foi quando eu parei de ver ele como um moleque irresponsável, ele

não era isso, ele era um homem! E merecia todo o meu respeito. (R.A.)

(...) quando paramos para comer numa vilinha que eu não lembro o

nome, acabei conversando com um cara que era espanhol e que sabia muito

dos cavaleiros templários. E ele falou pra mim que mais do que proteger o

caminho ou buscar tesouros, como eu achava, o que todo cavaleiro deveria

fazer era lutar por honra e justiça, e que só assim ele ia conquistar os maiores

tesouros, que estavam dentro dele mesmo. E eu acho que foi aí que entrei

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mesmo na idéia da peregrinação. Lutar por justiça e honra me pareceu uma

luta que valia a pena. (G.S.A.)

Duas pessoas relataram a missa dos peregrinos como um momento

especialmente emocionante; e outras duas mencionaram que o que mais lhes

emocionou no Caminho foi a relação estabelecida com o tempo, muito distinta

com a forma como usualmente se lida com o tempo “aqui”.

Houve ainda dois peregrinos que mencionaram nesta questão a subida

do Cebreiro, uma montanha muito alta e íngreme, de difícil acesso.

(...) me emocionou subir o Cebreiro, que é uma subida muito grande e

difícil, que olhando de baixo você acha que não vai conseguir e olhando de

cima você nem acredita que conseguiu. (K.S.P.D.)

Uma pessoa relatou que o momento mais emocionante foi a partida.

Outra pessoa relatou ter uma grande comoção emocional ao passar pela

Ermida de Santa Maria de Arnotegui, palco da história de Santa Felícia.

(...) me fez pensar muito sobre a caridade, não no sentido de sair por aí

dando o peixe, mas ensinando a pescar. O mundo tem tanta gente que precisa

de ajuda e poderia ser um lugar melhor se todos tivessem boas oportunidades.

(A.Y.A.)

Houve ainda um participante que citou o momento de depositar uma

pedrinha na Cruz de Ferro como um momento muito marcante.

(...) quando coloquei uma pedrinha no pé da cruz, parece que tirei uma

tonelada das costas! Nunca mais tive aquelas crises de medo, acho que

descarreguei tudo lá. (L.N.)

Uma pessoa mencionou outro motivo:

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Eu sempre quis emagrecer, porque sempre fui gordinha. Sempre tive

muitos problemas com meu peso e com comida, desde bem novinha. (...) E

depois de mais alguns anos você passa dos 30, tem filhos e o problema não é

mais só de estética, você começa a ter problemas de saúde. Eu tentava de

tudo para emagrecer: dieta da sopa, da salada, da lua, mas nunca funcionava.

Tentava tomar remédios e eu até emagrecia, mas logo que parava voltava tudo

outra vez. Eu sentia um vazio tão grande, sentia que precisava ter alguma

coisa dentro de mim e comia mais e mais... O caminho foi uma tentativa de

emagrecer também. Até hoje eu nunca conversei com mais ninguém que fez

para emagrecer, mas antes eu ouvia muitas pessoas falarem que andaram

muito e acabavam emagrecendo um pouco. (M.M.Z.S.)

Dentre todos os participantes que responderam ao questionário, 20%

afirmou haver vivenciado algum tipo de experiência mística ao longo do

Caminho.

Passando por Foncebadón, se não me falha o nome. Era uma cidade

abandonada. Não sei te dizer o que rolou, mas foi muito louco! Me deu uma

emoção diferente, me fez ter certeza pela primeira vez na minha vida de que

existe algo maior que nós, e que esse ser, Deus, deve ter poder sobre a gente.

E o mais engraçado é que a gente só parou para explorar essa cidade porque

ouvimos um pessoal dizendo que ela era cheia de demônios e pareceu uma

boa aventura. Não que eu acreditasse, se eu acreditasse eu nem ia, mas me

deu vontade de ficar um tempo lá, dar uma boa olhada. Eu estava lá, sozinho

em silencio e eu sentia uma presença que logo me pareceu ser muitas

presenças diferentes. Eu sei que tinha coisa lá, e eles (as presenças) eu tinha

a sensação que vinham pra cima de mim, que iam me fazer mal e eu não vou

mentir, me deu muito medo (...) eu tinha que fazer alguma coisa e não sabia o

que. Peguei a concha que eu usava na mochila, como a maioria dos peregrinos

e me concentrei em Santiago. Eu precisava de ajuda lá, e se tanta gente

acredita nele, tem que ter algum poder né. E logo as presenças sumiram e tudo

que restou era uma paz muito grande em mim. Me deu uma crise de choro

muito forte. Não sou de ficar por aí chorando, não pense isso de mim! Mas a

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emoção foi muito grande, eu sei que era Deus. Maior adrenalina, fui procurar

demônios e encontrei deus. (H.C.M.)

(...) Teve uma noite que eu não conseguia dormir de jeito nenhum. E

deitada na cama ouvi a voz do meu sobrinho, como se ele estivesse lá do meu

lado dizendo “tia, não chora. Eu estou bem e quero que a senhora volte a

sorrir”. Chorei muito depois disso, mas de alegria, por saber que ele estava

bem onde quer que ele estava. Eu tive certeza na mesma hora que era ele.

(N.L.H.)

A quarta questão é referente aos valores, sentimentos, idéias, emoções,

etc. que a pessoa adquiriu na peregrinação e que a acompanha até o presente.

Novamente, algumas pessoas mencionaram respostas em mais de uma

categoria.

Esta é uma das questões mais relevantes do nosso questionário, pois

como já afirmamos anteriormente na presente dissertação, são os valores do

sujeito que lhe possibilitam atribuir/perceber/construir/transformar algum

sentido em suas vidas.

Seis dos participantes citam a persistência, também descrita como

superação, coragem ou “posso fazer qualquer coisa!”. Três peregrinos

descreveram algo parecido, um sentimento de sucesso, de “ser vitorioso”.

Cinco pessoas mencionam a autonomia como algo que as acompanha desde

então.

Pude me ver como uma pessoa que tem tudo nas mãos para viver a vida

que quiser. (B.D.T.)

Outras seis pessoas afirmam que se tornaram mais espiritualizados ou

mais humanizados ao longo da peregrinação.

A certeza de que Deus é bom e sabe o que faz. Que nada é por acaso e

que um dia todos vamos nos encontrar outra vez. (N.L.H.)

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Três pessoas afirmam terem adquirido um forte sentimento de justiça, ou

um desejo intenso de lutar por um mundo melhor.

Ajudar o próximo é uma coisa muito boa, que me faz um homem melhor

e faz do mundo um lugar melhor. Eu fui para lá querendo ampliar minha

consciência num sentido espiritual, e não é que isso não aconteceu, mas

comecei a ter mais consciência da vida material. Ajudar alguém em dificuldade

a ter uma vida mais digna, sentir e respeitar as dores do outro é uma coisa que

me dá força para levar a minha vida de um jeito melhor. Percebi que para eu

estar bem, as outras pessoas precisam ficar bem também, eu seria um

hipócrita tendo uma vida legal e deixando todos a minha volta sofrendo quando

muitas vezes eu tenho o poder de dar oportunidades para essas pessoas terem

uma vida melhor. (A.Y.A.)

Quatro pessoas citam outro tipo de valores, dentre os quais destacamos:

Era uma paz muito grande como eu nunca tinha sentido. (P.G.)

Um sentimento que eu não saberia que nome dar. Algo como ter entrado

em contato com as minhas origens e me sentir protegido por causa disso, me

sinto mais forte. (D.N.)

Na quinta questão, investigamos como foi a partida. Para a maior parte

dos participantes (14), a partida foi um momento “normal”, sem maiores

conflitos ou emoções.

(...) quando parti eu estava muito seguro do que ia fazer, não foi uma

loucura, estava tudo acertado. E sentir esse apoio da minha família foi muito

bom para mim. (V.M.A.)

Quatro pessoas afirmam que partir para a peregrinação foi sentido como

um alívio, justificando que precisavam de algum tempo só consigo mesmas.

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Eu não deixei nada porque eu já não tinha nada. Eu fui buscar alguma

coisa que eu nem saberia, e acho que ainda não sei, explicar o que. (B.D.T.)

Cara, para ser bem sincero, tudo o que eu deixei para trás foram minhas

dúvidas. (D.B.)

No meu caso foi um grande alívio, vendo a coisa hoje. Na época fiquei

muito de saco cheio de ter que ir, mas logo que entrei no espírito da coisa,

fiquei muito grato pelos meus pais terem me levado mesmo que a força.

(G.S.A.)

Apenas uma pessoa mencionou o momento de partir como muito

conflitante, mencionando choro e reação emocional bastante intensa.

Foi muito difícil, se meu irmão não estivesse comigo eu não iria. Difícil

deixar meus pais, nossa casa, a rotina que eu tinha todos os dias... eu pensava

que o dia da viagem estava chegando e já me dava uma ansiedade muito

grande, medo do avião, de estar longe, de me machucar, de estar por tanto

tempo num lugar aberto, de não conseguir andar tanto... Chorei muito,

principalmente no aeroporto me despedindo dos meus pais. (L.N.)

Algo que não esperávamos nesta questão é que alguns dos

participantes (9) acabaram por descrever a preparação que tiveram para partir.

8 pessoas descreveram como manejaram a vida cotidiana para que pudessem

se ausentar durante em média um mês para fazer a peregrinação. Relatam

negociação de férias, como organizariam a rotina da casa e da família sem a

presença deles, quem cuidaria dos filhos, o que precisaram comprar, entre

outros. Uma pessoa relatou a preparação espiritual que fez antes da

peregrinação.

Não é como partir para uma viagem turística. A partir do momento que

eu fechei a viagem eu já comecei a me preparar. Eu tinha um bom

condicionamento físico, então não estava preocupada com a caminhada como

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muita gente que eu encontrei me dizia que estava. Todas as noites antes de

dormir e todas as manhãs antes de tocar meus pés no chão eu meditava e

fazia uma visualização para que tudo fosse bem no caminho. (L.A.H.W.)

A sexta questão foi referente à volta para casa. De maneira geral, este

momento foi considerado mais emocionante do que a partida.

Sete pessoas afirmam que estavam com saudades de casa e da família,

ficando felizes em estar de volta.

A volta foi mais emocionante que a ida. Reencontrar meus pais, meus

avós, depois de ter visto onde eles viviam, me senti mais próximo deles e da

nossa história. Antes a história da nossa família era só algo que se passou,

hoje não, é algo concreto e que faz parte de quem eu sou. (D.N.)

Seis pessoas relatam que gostariam que o Caminho pudesse durar mais

tempo; e outras seis afirmam que, ao retornar, sentiram a necessidade de fazer

mudanças em suas rotinas.

Voltar foi bom, mas levei vários dias para me ajustar outra vez a rotina

que eu tinha aqui e percebi que não dava. Então a rotina precisou ser

modificada. (V.M.A.)

Voltar e ver meus amigos daquele jeito, iguais, do jeito que eu era antes,

né, me desanimou. Vai ver que eu me toquei de como eu era, mas eu sentia

como se o mundo fosse um lugar tão grande, com tanta coisa pra ver e pra ser,

e eu não queria mais aquela vidinha de menininho mimado, de dormir na aula,

jogar vídeo game e ir pra balada. Eu quero ser digno da vida que tenho. Quero

explorar possibilidades, lutar e me esforçar para conquistar meus tesouros.

Acho que eu meio que não voltei, continuo no espírito da coisa. (G.S.A.)

A afirmação de que houve demora ou dificuldade para ajustar-se

novamente à vida cotidiana está presente no discurso de 5 dos participantes.

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Demorei várias semanas pra entrar nos eixos outra vez. Ou melhor,

ainda não entrei! Eu nunca mais fui o mesmo depois disso, num sentido bom.

(D.B.)

Outros 5 afirmaram que voltaram animados e com coragem de fazer

algum tipo de mudança em suas vidas.

Só quando voltei foi que eu vi quantas coisas eu tinha que mudar na

minha vida. Organizar meus gastos mas também rever minha relação com o

dinheiro e as pessoas, porque as pessoas não valem o que elas tem, elas

valem pelo que são. (P.G.)

Um grupo menor, de três pessoas, afirmam que a volta foi triste pelo fim

das férias.

Por fim, a questão final investiga as mudanças ou diferenças que o

sujeito percebe em si e/ou em sua vida após ter feito a peregrinação.

Novamente, a maioria dos participantes deu respostas que cabem em

diferentes áreas da vida, como citaremos a seguir.

E acho que tudo flui melhor por eu viver mais em paz comigo mesma.

(I.S.A.)

Hoje eu trabalho para viver, e antes eu acho que vivia para trabalhar.

(R.A.)

(...) Eu já tenho 18 anos, sei que não sou um cavaleiro medieval, mas

acredito que se eu tiver firme essas idéias, vou ser um homem melhor, ter uma

vida digna. (...) Não sei te explicar, mas eu sinto como se agora sim eu

estivesse aqui, vivendo minha vida. Antes eu só ia empurrando tudo, nem

ligava. Agora eu quero fazer minhas escolhas, lutar e conquistar meus

objetivos. Só serei digno dos meus sonhos se eu lutar por eles. Estou levando

as coisas mais a sério, acho que cresci. (G.S.A.)

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Acho que essa experiência (a peregrinação) me fez ver que somos todos

diferentes, e está tudo bem em ser diferente, não é uma coisa ruim, porque

comecei a acreditar que são as diferenças que nos fazem ser nós mesmos.

(L.A.H.W.)

Me senti parte de alguma coisa maior do que eu, é uma sensação que

eu nunca tive antes. (M.M.Z.S.)

(...) o que importa mesmo da vida é os momentos de alegria. Porque

quando chegar no fim da vida não vou lembrar do quanto eu me esforcei pra

fazer um bom trabalho, vou lembrar muito mais dos bons momentos que tive

com minha esposa, minha família, que são as pessoas que amo. (V.M.A.)

Porque eu sabia para onde eu ia, mas nem imaginava o que eu iria

encontrar. Eu sabia que eu voltaria, mas eu não tinha idéia de quem seria eu

quando eu voltasse. Com certeza já não sou o mesmo. (D.B.)

A seguir, discutiremos os dados que acabamos de apresentar, buscando

demonstrar que as transformações internas pelas quais os participantes

passaram ao longo da peregrinação marcam a forma como se percebe a

própria vida, modificando o sentido a ela atribuído, tal como em um rito de

passagem.

4.2.2- Leitura dos dados:

Para que se compreenda a forma como os participantes que

contribuíram com entrevistas e depoimentos atribuíram sentido às suas vidas

(ou, insistimos, o construíram?), o primeiro ponto a ser analisado deve ser a

motivação.

Notamos ao longo do processo de coleta de dados que quando

questionávamos algo como “o que o levou ao Caminho de Santiago?”,

normalmente os participantes mencionavam algum tipo de conflito. A seguir, o

que se passava na maior parte dos casos é que se punham a narrar suas vidas

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pregressas à peregrinação, destacando conflitos e dificuldades em diversos

setores da vida (trabalho, relacionamento conjugal/familiar, saúde, etc.).

Concluíam, por fim, que a vida não estava caminhando para o rumo que eles

gostariam que caminhasse e, ao perceberem isso, decidiam que precisavam

fazer algo que transformasse essa situação. L. explica que sentiu algo

semelhante ao que dissemos:

(...) o engraçado é assim, sempre quando se chega numa conversa de

bar e tal é “por que você está fazendo o Caminho?” e é uma coisa que ninguém

nunca consegue explicar por que... “ah! Estou fazendo por este motivo!” Não,

que faz o Caminho normalmente diz que teve um chamado... não é, é porque

todo mundo tinha alguma questão pra resolver, interna...

Assim, no questionário, incluímos uma questão anterior a essa,

abordando possíveis conflitos. A maior parte dos participantes se refere a

conflitos da vida pessoal, com destaque para conflitos na família ou entre o

casal, problemas de saúde física ou psicológica, entre outros.

É digno de nota que 25% dos participantes mencionaram que não

tinham conflito algum. Para Turner255, como mencionamos anteriormente, o

conceito de conflito pressupõe que haja estrutura social. Portanto, diante dos

dados trazidos pelo questionário, podemos pensar em duas hipóteses. A

primeira seria que ao não perceber conflito algum em sua vida, nem mesmo

conflitos menores, que alguns dos participantes denominam “conflitos comuns

do cotidiano”, a pessoa não se perceba (ou não se sinta) fazendo parte da

estrutura social seja por sentir-se excluído dela de alguma forma, seja por optar

por não se envolver, postura muito freqüente e valorizada na

contemporaneidade, como destacamos em capítulos anteriores ao abordar o

pensamento de Bauman256. A segunda hipótese seria que a pessoa não

perceba conflito algum em sua vida por não perceber-se como sujeito, isto é,

como alguém autônomo o suficiente para agir por si mesmo em sua vida, de

acordo com suas próprias escolhas. 255

Cf. TURNER, Victor. O processo ritual, pp. 153-154. 256

Cf. BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da pós-modernidade.

In: Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, passim.

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Retomando a análise das motivações, quando insistíamos em saber por

que optaram pelo Caminho de Santiago e não por outra rota de peregrinação,

ou alguma outra atitude, como uma psicoterapia ou mudanças menos drásticas

na vida cotidiana (caminhadas e alimentação mais saudável se o problema era

na saúde, mudança de trabalho se este fosse o conflito, passar mais tempo

com a família, ter mais momentos de lazer, etc.), o que geralmente respondiam

é que a mística do Caminho de Santiago lhes havia encantado, que

desconheciam a existência de outras rotas de peregrinação ou mesmo que no

momento em questão encontravam-se “paralisados”, sem saber que atitude

tomar para mudar suas histórias, fazendo com que percorrer o Caminho de

Santiago lhes parecesse a melhor atitude no momento, pois lhes permitiria o

autoconhecimento e algum tempo de reflexão que os participantes julgavam

não ter em suas rotinas. Como um ótimo exemplo disso, R. afirma que:

A idéia do caminho surgiu naturalmente na minha cabeça, como uma

certeza e uma vontade. Eu não traçava planos sobre percorrê-lo, não

pesquisava, não tinha informações sobre o mesmo, e não li Paulo Coelho!

Nada. Acabei por ver no Caminho de Santiago uma beleza histórica inigualável,

uma oportunidade de experiência pessoal e também um desafio físico.

Em outros casos, a motivação é o lazer e o turismo que a viagem

proporcionará. Isso não significa que não possam ocorrer reflexões e

mudanças na vida dessas pessoas. Destacamos os seguintes relatos de

alguns questionários:

Eu queria muito ganhar confiança pra ser eu mesma porque eu estava

vivendo uma mentira, eu não era aquela moça que eu mostrava pra todo

mundo que eu era. Mas não fique achando que foi uma coisa assim consciente.

O que eu sentia era uma grande insatisfação. Conheci o Caminho de Santiago

em um documentário na TV, me pareceu uma viagem interessante e comecei a

ler sobre ele na internet, até que em alguns meses acertei tudo e fui, mas

naquela época para mim era como se minha insatisfação e o interesse pelo

caminho fossem coisas separadas (...) (L.H.S.W.)

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Sabe quando seus pais inventam o maior programa de índio e te arrastam junto

mesmo você falando que não vai? Foi tipo assim. Até a véspera eu não queria

ir nem arrastado. Falei que eles podiam ir e eu ficava em casa de boa, falei que

podia ficar na casa de algum amigo, mas nem me ouviam. Indo pro aeroporto

eu ainda tinha esperança do vôo ser cancelado, da gente pegar um avião

errado e chegar em algum lugar bem louco, tipo Nova York, que nem em filme,

sabe? Ficava imaginando essas coisas só de zuera. Daí antes de embarcar

minha mãe me deu um livrinho sobre os cavaleiros templários que guardavam

o caminho antigamente. E fiquei imaginando que já que eu estava no vôo certo,

isso podia ser uma aventura, como se eu fosse um cavaleiro desses, em busca

de algum tesouro. (G.S.A.)

Indiretamente, portanto, a questão da motivação, seja ela qual fosse,

abordou o passado dos participantes. Ainda na esfera temporal do passado,

entram as preparações e expectativas sobre a peregrinação. Notamos que,

apesar da peregrinação ser uma experiência religiosa, poucos dos

participantes menciona nenhum tipo de preparação religiosa, que não a missa

dos peregrinos ao longo do Caminho de Santiago em alguns casos. Nos

questionários, dos nove participantes que descreveram algum tipo de

preparação, e entre eles, apenas um relatou ter se preparado espiritualmente,

com visualizações e meditações para que tivesse um bom caminho.

Para os participantes, a preparação normalmente gira ao redor de

aspectos práticos da vida: conseguir tempo para ir, falar sobre a decisão com a

família, buscar informações úteis para a viagem, treinar caminhadas, etc., e

mesmo ao redor de aspectos de consumo, como comprar mochila, calçados de

caminhadas, passagens e os demais itens necessários. Este processo fica

claro no depoimento de V.:

(...) ela (a mãe de V.) começou a pesquisar, a se preparar, a adquirir

equipamentos, a estudar, a falar muito sobre o assunto (...).

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Também nos questionários isso fica bem evidente conforme as pessoas

relatam como organizaram a vida diária em casa ou no trabalho durante suas

ausências; bem como outros tipos de preparação, geralmente ligados ao modo

de vida contemporâneo. Para exemplificar o que queremos dizer, separamos

um trecho do questionário respondido por K.L.

Eu fui fazer o caminho, mas não queria ter que arrastar aquela mochila

pesada por tantos quilômetros. Então escolhi um modelo desses próprios para

caminhadas de 1 ou 2 dias, pequeno. E antes de partir eu estudei muito bem

meu roteiro e separei mudas de roupas e barrinhas de cereais e outras coisas

que eu poderia precisar em algumas caixas. Então fui ao correio e despachei

cada caixa para uma cidade ao longo do caminho. Quando eu chegava a

alguma delas eu ia ao correio, retirava o pacote e tinha roupas limpas! Já

enchia a caixa com o que eu não fosse precisar e mandava para casa. (K.L.)

Isso levanta uma questão: ao transformar a peregrinação num produto

pronto para o consumo, a identidade de peregrino estaria também sendo

transformada em algo que “se compra”? Bauman257 afirma algo semelhante ao

dizer que atualmente o mundo é projetado a partir de produtos disponíveis para

o consumo imediato. Com isso, toda espera se torna uma demora, perdendo o

sentido. Mesmo as identidades, para o autor, dentro desse modo de vida,

seriam descartáveis e, portanto, acrescentamos, passíveis de serem

consumidas.

No nosso ponto de vista, o maior risco que isso traz é referente à forma

como essa identidade é vivenciada pelo sujeito, o que tem relação com o

sentido atribuído à própria identidade, a si mesmo. Assim, quando uma

identidade é construída ao longo da história da pessoa, sendo constantemente

marcada e transformada pelas vivências, emoções e reflexões de cada um, a

pessoa cria para si algo único, uma identidade “sob medida”, a pessoa terá

coerência entre como se percebe e como age no mundo, o que lhe conferirá

autonomia.

257

Ibidem, pp. 112-113.

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Por outro lado, ao ser meramente consumida, a identidade

provavelmente não vestirá bem na pessoa, pois é algo mais genérico, não tão

pessoal. Logo, não há tanta reflexão e autonomia para que se adote a

identidade em questão. Não é preciso ser, apenas parecer, tal como um ator a

encenar uma peça: naquele momento ele aparenta ser (e, se for um bom ator,

nos fará acreditar que de fato é!) determinada personagem. Entretanto, na

cena seguinte, ele pode ser outro, sem que haja vestígio algum daquele que

ele um dia fora. Não há envolvimento, a história de vida da pessoa não tem um

fio condutor, um sentido; fica perdida em pequenos aglomerados que não

dialogam entre si, levando a pessoa a perder-se no vazio.

A seguir, analisamos a narração sobre o Caminho em si, com ênfase

nos principais pensamentos, sentimentos e inquietações que os participantes

desta pesquisa (agora peregrinos) vivenciaram ao longo do Caminho de

Santiago. Esta é a parte que os participantes se preocuparam em contar com

mais riqueza de detalhes, e emoção. É como se o trajeto da peregrinação se

repetisse a cada dia em suas vidas e, justamente por este fato, equiparamos

esta época ao tempo presente. L. deixa isso claro ao dizer que:

O peregrino é peregrino a vida inteira. Hoje eu me sinto peregrina. Sou a

L. peregrina. Eu até brinco que se vou preencher um negócio e tem lá profissão

eu coloco “peregrina”! Então eu me sinto uma peregrina na vida. Porque vi que

minha vida esta sempre em transformação, eu estou sempre em busca de algo

melhor.

Apesar de a peregrinação estar já encerrada no momento em que todos

os participantes deram seus depoimentos para a pesquisadora, a intensidade e

presença constante de pensamentos, sentimentos e valores no discurso (e,

portanto, na mente) dos peregrinos permitem com que analisemos este tempo

como ainda presente (obviamente, não no aspecto físico, mas sim no psíquico).

Nos questionários, isso fica claro em diversos momentos, sobretudo ao

se discutir a volta, quando vários dos participantes afirmam que gostariam que

o caminho tivesse durado mais tempo, ou mesmo quando relatam que tiveram

dificuldades para se adaptar novamente à rotina diária, geralmente sentindo

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necessidade de modificá-la (mesmo nos casos em que, anteriormente à

peregrinação, o sujeito não percebia sua vida como conflitante). O trecho que

segue demonstra bem isso:

(...) eu queria que o caminho tivesse durado mais tempo, foi uma

experiência que me permitiu entrar em contato com lados meus que eu nunca

me permitia ou quando entrava era de um jeito muito rígido, que não me fazia

bem. (M.L.F.)

O teor dos pensamentos e sentimentos ao longo da peregrinação nos

permite observar o momento exato em que se passam as transformações na

atribuição de sentido à vida, o que veio a se refletir na própria identidade dos

participantes, visto que de “alguém com muitos problemas”, os participantes

passam a identificar-se como “peregrinos” (L. deixa isso muito claro no trecho

anteriormente citado). Tal mudança, aparentemente óbvia e corriqueira revela-

se muito mais profunda do que parece: para ter sido capaz de modificar a

forma como o sujeito se identifica e se apresenta ao mundo e ao outro, ele

deve ter refletido sobre seus valores, ato este que trará mudanças

consideráveis no sentido atribuído à existência.

No discurso de V. fica claro como, na opinião do participante, as

vivências ao longo da peregrinação, as reflexões e os novos valores podem

trazer transformações para o sentido percebido na existência e para a

identidade:

(...) encarei o desafio e de ultima hora fui junto. Aproximadamente um

mês depois eu faria 15 anos, no meio da peregrinação. Posteriormente ela me

confessou que de presente de “debutante” me mostraria o quão dura é a vida,

que a partir daquele momento eu seria um homem de verdade, com valores

ainda mais aguçados e espírito mais humano. Hoje devo tudo que sou à minha

mãe, ao meu pai e, com certeza, ao Caminho de Santiago que me moldou com

uma sutileza de um elefante para a vida.

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Também no questionário este aspecto pode ser avaliado, em diversas

questões, uma delas referente aos momentos mais marcantes da

peregrinação, outra referente aos pensamentos e valores freqüentes ao longo

do percurso, e por fim, na questão referente às mudanças que a pessoa

percebe em si e/ou em sua vida após ter feito o Caminho de Santiago. Nesta

última questão, era de nosso interesse perceber o “após”, entretanto, junto com

ele surgiram conteúdos do “durante”, mesclando diversos tempos em um.

Aprendi a viver com menos. Com menos roupas, com menos

preocupações em ter que ser que nem todo mundo, fiquei menos consumista e

já percebo que as meninas também estão ficando assim. (M.M.Z.S.)

Eu comecei carregando muito mais coisa do que podia e do que

precisava. E quando isso pesa nos seus ombros você percebe que pode

passar bem sem todas aquelas coisas e vai ser mais feliz sem elas e sem as

dores que carregar tudo aquilo traz. Também na vida a gente não tem que ficar

sempre carregando tantas coisas, dá pra ser feliz com muito menos. (P.G.)

Mudei meu jeito de ver a vida e a morte. A morte não é um fim. Comecei

a freqüentar um centro espírita e hoje sou kardecista. E tenho a certeza que

aconteça o que acontecer, Deus sabe o que faz na vida da gente. (N.L.H.)

Fiquei sendo uma pessoa mais prática, organizada e também mais

responsável e independente. Também passei a ter consciência de que as

pessoas comuns não vivem como eu vivo. Na 1ª vez que eu cheguei no

albergue pra você ter idéia, eu nem sabia lavar roupa e uma outra moça me

ensinou como era. Porque eu nunca precisei fazer essas coisas. (...) Foi uma

boa experiência para mim, passei a dar muito mais valor a vida que tenho e a

levar as coisas mais a sério. (K.S.P.D.)

Neste ponto, gostaríamos de retornar à questão da possível construção

do sentido (e não meramente atribuição de algum sentido “pré-moldado”, por

exemplo, como L. afirma que se identificava antes da peregrinação: “eu não era

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a L., eu era a mulher do E.”). O sentido só pode ser construído pelo sujeito, ao

nosso entender, quando existe a adequada reflexão e o questionamento

maduro acerca dos valores que orientam a vida do sujeito em questão. Como

menciona Frankl258, o sentido precisa ser algo buscado e, acrescentamos,

construído ao longo dessa busca, pois apenas desta maneira o sentido que se

dá à existência será forte o bastante para sustentar o sujeito como um ser

autônomo e psiquicamente saudável. Retornando ao exemplo que citamos,

quando L. não é L., mas sim “a mulher do E.”, notamos que ela não tem

possibilidade alguma de ser um sujeito, pois não tem autonomia (aqui, o termo

sujeito deve ser entendido não como um indivíduo, mas como aquele que age

ou tem o potencial para a ação). E., seu marido, é que seria o sujeito, L. seria

apenas um complemento, o objeto, não age por si, apenas através de E.

Apenas o sentido que é construído permite a reflexão e, portanto, a

transformação.

A seguir, o passo seguinte desta análise é referente às as decorrências

da peregrinação, que podemos entender como o futuro ou como a forma que

os novos valores e o sentido supostamente transformado se acomodaram na

vida cotidiana dos participantes (ainda identificados como “peregrinos”).

Pensamos nesta parte como futuro (apesar de, tecnicamente, ela já estar no

passado e presente) porque de acordo com o discurso observado nos

participantes, este é o lugar, para eles, do retorno. L. demonstra com clareza

este processo ao contar como as pessoas conhecidas reagiam frente às

atitudes que ela gostaria de tomar em sua vida logo após retornar:

E todo mundo diz pra mim “Passa, espera! Não toma atitude nenhuma

na sua vida...”. Não passa! Eu durmo pensando no Caminho, acordo pensando

no Caminho...

De fato, muitos dos participantes que responderam ao questionário

mencionaram que a volta foi mais marcante do que a partida. Analisamos que,

ao voltar e se deparar com a vida que tinha antes da partida, a pessoa, já

transformada, tem a oportunidade de olhar para si e para sua vida de antes de

258

Cf. FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração.

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maneira mais crítica do que o usual. Assim, tem a oportunidade de transformar

o que julga ser necessário. Selecionamos alguns trechos dos questionários

onde isso fica evidente.

(...) todos os dias eu acordo cedo e vou caminhar, mesmo que seja um

dia cheio de compromissos, eu faço isso. Também faço questão de ir surfar

nos finais de semana, eu não fazia isso nunca antes (...) Percebi que a carreira

não é tudo. A vida pode ser boa e feliz com isso, ou sem isso, ou ainda apesar

disso. (B.D.T.)

Eu mudei muito. Ou melhor, o jeito de encarar a vida é que mudou. Eu

rio mais, brinco mais, sei que para todo problema existe uma solução e que

tudo é possível. Hoje eu valorizo coisas que antes eu não dava importância,

estar com a minha família, com o meu netinho, e ter qualidade de vida antes de

tudo! Cuido da minha saúde, da minha alimentação e descobri que fazer

esportes me deixa mais feliz. Antes eu via essas coisas como implicância dos

meus médicos. E também parei de fumar. (V.M.A.)

Observamos um grande entusiasmo também nesta parte das narrações,

vista como o momento de colocar em prática tudo aquilo que foi vivenciado,

sentido e pensado ao longo da experiência da peregrinação. Tanto que, em

praticamente todos os casos, os peregrinos diziam rapidamente aquilo que se

passou quando voltaram e logo passam a discorrer sobre os novos valores, o

novo estilo de vida e, implicitamente, o novo sentido que encontraram para

significar suas existências.

Assim, percebemos o quanto é importante para a maior parte dos

participantes desta pesquisa reforçar a identidade de “peregrino”, pois é ela

que sustenta seu novo modo de vida, ao menos até que algo novo surja.

Talvez venha daí a vontade (ou necessidade?) que muitos dos peregrinos têm

de contar sua história, seja oralmente, seja através de livros, blogs na internet,

desenhos ou outras manifestações artísticas.

A questão da participação em grupos de discussão na internet também

foi marcante. Todos os participantes desta pesquisa foram localizados através

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da internet. Percebemos que a internet oferece um ambiente que, ao ser

virtual, é menos rígido que o mundo “concreto”. Assim, permite que

identidades, valores e modos de vida possam ser livremente construídos e

transformados, de acordo com a vontade/necessidade do sujeito. A

participação como “peregrino” nesses grupos virtuais faz com que o tempo da

peregrinação, juntamente com os ideais e valores a ela relacionados, bem

como a identidade de “peregrino”, se mantenha por um tempo muito maior e

duradouro do que a peregrinação em si.

Vendo as peregrinações como ritos de passagem, como propõem Van

Gennep259 e Turner260, podemos interpretar que o grupo virtual continue

cumprindo as funções do grupo/do outro com quem o peregrino se deparou ao

longo de sua caminhada. Para Turner261, sendo a peregrinação um rito de

passagem, o peregrino, enquanto alguém que está passando, encontra-se fora

da estrutura social.

Destacamos a seguir, alguns trechos em que os próprios participantes

vivenciaram a peregrinação como uma passagem para uma nova vida:

Uma coisa legal é que na véspera da viagem eu juntei toda a minha

família, meus amigos e fiz uma festa de despedida para mim mesma, meio que

terminando aquela parte da minha vida e me preparando, estando livre para o

que quer que fosse surgir para mim a partir dali. (L.A.H.W.)

(...) a chegada a Compostela e a missa dos peregrinos foram muito

emocionantes. Nem sou católica nem nada, mas foi uma cerimônia muito linda,

como se viesse fechar uma fase que eu passei e daqui para frente tudo ia ser

melhor. (H.G.)

Assim, as relações sociais entre peregrinos são diferentes das que

ocorrem na estrutura, pois apresentam a qualidade de communitas, conceito

que já explicamos em maiores detalhes nos capítulos anteriores. Em especial,

259

Cf. VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem, pp. 154 – 155. 260

Cf. TURNER, Victor W. Dramas, fields and metaphors: symbolic action in human society, passim. 261

Ibidem, pp. 166-167.

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isso ocorre nas peregrinações mais longas, como é o caso de Santiago de

Compostela. Turner262 menciona ainda que, inicialmente, surge entre os

peregrinos a communitas espontânea, porém, com o passar do tempo, é a

normativa que se estabelece. Destacamos a seguir um trecho de um dos

questionários aplicados em que um participante descreve com clareza as

relações na communitas:

(...) uma coisa que eu gostei muito no caminho de Santiago é que lá as

pessoas são diferentes. Tem mais cumplicidade, mesmo que ninguém se

conheça, lá estão todos juntos. Se alguma coisa acontecer, alguém vai te

ajudar, aqui não tem dessas coisas. E mesmo de dividir as coisas,

compartilhar. Lá é uma cumplicidade muito grande que aqui não tem. O certo

era ter, mas tem muita gente que nem na família tem isso. E essa amizade ou

cumplicidade, eu não sei que nome dar a ela, mas me fez sentir muito bem.

(D.K.F.)

Finalizando, o fim das narrações, mais do que propriamente um fim, tem

certo tom de início esperançoso, que os planos e sonhos para o futuro

costumam ter.

262

Ibidem, p. 169.

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Considerações Finais: a chegada

“(...) eu sabia para onde eu ia, mas nem imaginava o

que eu iria encontrar. Eu sabia que eu voltaria, mas eu

não tinha idéia de quem seria eu quando eu voltasse.”

(D.B.)

Esta dissertação de mestrado procurou abordar a atribuição de sentido

para a existência em peregrinos a Santiago de Compostela. Para isso, nos

valemos de pesquisa bibliográfica e de campo, englobando entrevistas e

depoimentos a partir dos quais formulamos um questionário.

Visamos no texto que segue dar uma resposta ao problema de pesquisa

proposto inicialmente: como ocorre a busca por sentido em pessoas que

tenham feito uma peregrinação a Santiago de Compostela?

Como já discutimos nos capítulos e na análise dos dados coletados,

atualmente o Caminho de Santiago de Compostela já não é uma rota apenas

cristã, visto que está cada vez mais abrigando discursos e crenças típicos da

Nova Era (e, portanto, do mundo contemporâneo).

Além disso, o Caminho tampouco é uma rota somente religiosa, se

fazem presentes elementos históricos, ecológicos, relativos a esportes como o

trekking. De fato, consta entre os participantes de nossa pesquisa uma série de

motivações laicas para percorrer esta antiga rota de peregrinação cristã:

turismo e lazer, desejo de entrar em contato com as origens familiares, de

superar algum problema pessoal ou de trabalho, ou mesmo de ter um tempo

para refletir. Enfim, esta é uma rota que transcendeu seu universo original

(religioso católico), servindo aos mais diversos interesses e objetivos ao se

tornar mais multicultural a cada dia, citando um termo de Bauman263.

Ou seja, o Caminho de Santiago é uma rota de peregrinação que

contem em si uma grande variedade de discursos e valores. Assim, ao realizar

esta peregrinação, o sujeito não estará somente passando por uma experiência

religiosa, está também abraçando uma oportunidade de refletir sobre sua vida,

sua realidade e sobre si mesmo, como se pudesse olhar para si do ponto de

vista do outro, de fora. Logo, a peregrinação se torna uma vivência plural e rica,

263

Cf. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.

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que permite a reflexão e o auto-questionamento acerca dos próprios ideais e

valores, contribuindo para que brote um novo sentido.

Quando o mediador da peregrinação deixa de ser o discurso religioso

cristão e passa a ser o mercado (seja na face do turismo e das agências de

viagem, seja o mercado de discursos disponíveis para que cada um escolha o

seu), o sentido religioso que permeava o ato de peregrinar se perde, deixando

uma lacuna, que os novos peregrinos preenchem com novos discursos, sejam

religiosos ou laicos. Com isso, o peregrino já não é alguém que faz um

sacrifício legitimado pelo discurso religioso cristão. Ele se torna uma pessoa

que confia na agência que lhe vendeu a viagem ou no novo discurso que lhe foi

vendido, afinal, é antes de tudo um consumidor!

Isso traz novamente à discussão uma questão que levantamos no final

do segundo capítulo, com base no belo texto de Hervieu- Léger264: os

peregrinos (ou ao menos os peregrinos participantes desta pesquisa)

começariam sua jornada como peregrinos e a terminariam como convertidos

(queremos deixar claro que utilizamos os termos desta questão na concepção

da autora, metaforicamente)? Se pensarmos apenas religiosamente, não.

Todos os participantes deixam claro que têm muitos conflitos e incertezas com

relação a suas crenças religiosas. Entretanto, se pudermos expandir os

conceitos da autora para as demais esferas da vida, comparando o peregrino

de Hervieu-Léger ao turista de Bauman, poderíamos dizer que sim. Como

dissemos anteriormente, ao longo da peregrinação, boa parte dos participantes

encontraram um novo sentido para suas vidas a partir das vivências e reflexões

que tiveram. Um sentido que nos parece ser forte o suficiente para que

superassem a mobilidade e o desengajamento, possibilitando que eles se

envolvessem com algo, consigo mesmos e com suas vidas. Pensamos que

envolver-se é um passo fundamental para se chegar à autonomia.

É importante destacar que a busca por sentido que o ser humano

empreende em sua vida é uma busca por transcendência, expressão da

vontade de ir além desta realidade em que vivemos. É a busca pela aventura

de conhecer novos mundos e novos discursos sendo que, ao deparar-se com o

transcendente, o sujeito terá esse contato gravado em si, nem que seja

264

Cf. HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento.

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“apenas” gravado em sua memória. Conhecer realidades além daquela em que

se vive, permite que transformemos nossa visão de mundo, pois passamos a

ter consciência de que nossa realidade não é acabada, muito menos única ou

fechada, mas é constantemente construída e reformada.

Assim, a mudança do sentido que o sujeito percebe em sua vida viabiliza

a transformação de suas atitudes e de sua postura frente aos desafios que a

vida lhe impõe. Cada um só pode agir e reagir no mundo de acordo com a

forma como o percebe e como percebe a si mesmo. Logo, ao mudar os

sentidos (e com isso, mudar/fortalecer os valores e ideais), também mudará a

percepção do mundo e, portanto, as ações e reações do sujeito em questão.

Com isso, queremos afirmar que o sentido precisa ser uma construção,

e não apenas uma atribuição. Para que o sentido que alguém percebe em sua

vida seja forte o suficiente, isto é, para que ele possa viabilizar a autonomia do

indivíduo (tornando-o um sujeito), é preciso que a própria pessoa o construa

com base em sua história, suas crenças, valores, ideais, pensamentos e

sentimentos; e não que meramente atribua um sentido aleatório a sua vida,

consumindo uma identidade pré-fabricada. Apenas um sentido totalmente

pessoal e totalmente construído pelo próprio sujeito poderia, ao nosso parecer,

sustentá-lo perante os desafios de sua vida, da sociedade e de situações de

anomia.

O sentido que alguém atribui a sua vida é encarnado nessa pessoa. É

um discurso que é constantemente reafirmado pela pessoa, é vivido por ela

nas diversas esferas de sua vida. Assim, o sentido atribuído à própria

existência é algo que não se descola de sua identidade, marcando o ser de

maneira integral: sua visão de realidade, seus valores, discursos, suas

escolhas e mesmo seu corpo. O corpo tem destaque nas peregrinações, pois

atua como mediador entre o sujeito e a realidade que o transcende. Não

pensamos no corpo apenas como um veículo da mente, nem apenas como

algo a ser sacrificado ao longo da caminhada. O corpo é, antes disso, o

símbolo de nossa identidade e do sentido atribuído à existência, pois se tudo

aquilo que fazemos o transforma, o corpo de cada um conta a história desse

sujeito.

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Construir algum sentido para si mesmo e para a própria existência é

sempre uma tarefa desafiadora. Entretanto, no mundo contemporâneo, cujas

sociedades vêm se tornando cada vez mais complexas e permeadas por

discursos bem diferentes uns dos outros, essa é uma tarefa cada vez mais

urgente e necessária para que os sujeitos contemporâneos não fiquem presos

a um vazio do qual não possam ou não saibam como se libertar.

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105

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1

ANEXOS

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2

Caso 1- R. M.

Troca de e-mails realizada ao longo do mês de agosto de 2010.

Caracterização do(a) entrevistado(a):

Iniciais: R. M.

Sexo: Masculino

Idade: 27 anos

Estado civil: solteiro

Crença / religião: R. vem de uma família luterana, mas afirma não ser

praticante e apenas acreditar em Deus.

Profissão / ocupação: web assistant, atualmente trabalha em uma empresa

que oferece cursos de idiomas no exterior e intercâmbio.

Forma de contato: O contato se deu apenas através da internet. Deixei um

recado no site de relacionamentos Orkut, numa comunidade relacionada ao

Caminho de Santiago de Compostela, perguntando se alguém que já fez a

peregrinação gostaria de participar da pesquisa. Algum tempo depois, R.

escreveu-me por e-mail, sempre contando sobre a peregrinação e sobre as

mudanças que se passaram em sua vida após isso.

Condições da aproximação: Ao longo das correspondências trocadas, R.

enfatizou que não teria tempo para agendar uma entrevista pessoalmente por

excesso de trabalho, porém estava à disposição para troca de e-mails, pois o

tema da pesquisa lhe interessa.

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3

Transcrição de trechos mais relevantes:

Beatriz – Olá! Obrigada pelo contato e pela disposição em me ajudar

com a coleta dos dados para minha pesquisa! Todas as informações que

possam te identificar serão mantidas sob sigilo.

Gostaria que você falasse um pouco sobre a experiência da

peregrinação a Santiago de Compostela, principalmente quanto à suas

motivações e aos fatos que mais te marcaram.

Muito obrigada!

R. – Olá, Beatriz!

Ok, entendi as informações.

Estou com uma agenda bastante corrida para esse semestre e não vou

poder marcar uma entrevista, mas acho que por essa boa causa eu poderei

encontrar espaço para uma troca de e-mails, sim!

Meus motivos para o caminho? O meu caminho começou de maneira

bastante inesperada, acho que o jeito como tudo começou para mim é bem

diferente da maioria dos peregrinos.

Fui desligado da empresa em que trabalhava de forma repentina e o

choque me deixou uma incógnita sobre o que fazer da vida. Nunca havia

deixado de trabalhar, nunca havia viajado para o exterior sozinho, nem sequer

havia aproveitado um período de férias.

A ideia do caminho surgiu naturalmente na minha cabeça, como uma

certeza e uma vontade. Eu não traçava planos sobre percorrê-lo, não

pesquisava, não tinha informações sobre o mesmo, e não li Paulo Coelho!

Nada.

Acabei por ver no Caminho de Santiago uma beleza histórica inigualável,

uma oportunidade de experiência pessoal e também um desafio físico. Muitos

trechos da caminhada são bem puxados e é preciso ter persistência para

superar. Sem dúvida todo esse esforço mexe com a gente, depois de um dia

inteiro caminhando por trechos difíceis, você se sente como se nada fosse

impossível para você, a confiança muda muito.

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4

Embarquei para a Espanha exatamente um mês após a minha

demissão, como um legítimo marinheiro de primeira viagem... Tendo recolhido,

às pressas, as informações e os equipamentos essenciais para a viagem.

Por enquanto acho que é isso!

Beatriz – Olá, R.!

Se possível, eu gostaria de conhecer um pouco sobre seu

posicionamento religioso. Qual a sua religião? Em que você acredita?

Eu também gostaria de saber quando você fez a peregrinação e qual a

sua idade.

Outra vez, muito obrigada!

R. – Oi, Beatriz!

Tenho 27 anos e fiz o caminho com 25.

Quanto à religião, sou batizado em igreja luterana, mas me considero

espiritualizado acima de tudo. Acredito em Deus de uma forma que, para mim,

se encontra acima das religiões.

Por isso, não gosto muito de freqüentar as missas, nunca gostei, tenho o

que imagino ser uma espiritualidade bastante reservada (mas aberta a

qualquer tipo de filosofia).

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Caso 2- V. S.

Caracterização do entrevistado:

Iniciais: V.S.

Sexo: Masculino

Idade: 25 anos

Estado civil: solteiro

Crença / religião: V. afirma já ter sido católico. Atualmente, diz não praticar

nenhuma religião, mas acreditar em Deus.

Profissão / ocupação: formado em administração de empresas, cuida dos

negócios de sua família

Forma de contato: O contato se deu inicialmente através da internet. Deixei

um recado no site de relacionamentos Orkut, numa comunidade relacionada ao

Caminho de Santiago de Compostela, perguntando se alguém que já fez a

peregrinação gostaria de participar da pesquisa. V. enviou-me um e-mail no

qual ofereceu-se para contribuir com a pesquisa, dizendo que nunca teve a

oportunidade de falar muito sobre a experiência da peregrinação e gostaria de

comigo.

Condições da aproximação: V. mostrou-se animado em participar, dizendo

que nunca teve a oportunidade de falar muito sobre a experiência da

peregrinação e gostaria de aproveitar meu trabalho para fazer isso.

Recentemente, enviou-me um depoimento sobre sua experiência no Caminho

de Santiago de Compostela, o qual segue na íntegra.

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Depoimento de V. na íntegra

É uma honra poder colaborar com um trabalho tão interessante!

Relatarei uma breve história para você entender a minha passagem pelo

caminho de Caminho de Santiago.

Eu tinha 14 anos de idade, no ano 2000, quando minha mãe, que é uma

mulher um pouco desafiadora e um pouco doida, colocou na cabeça que iria

fazer o Caminho de Santiago de Compostela, e ai de quem disse que ela não

conseguiria! Que era mais uma de seus mimos e maluquices.

Ela começou a pesquisar, a se preparar, a adquirir equipamentos, a

estudar, a falar muito sobre o assunto, e eu sem entender muito bem o que

estava acontecendo, observava e participava de tudo aquilo sem grandes

pretensões.

A viagem estava marcada para junho do mesmo ano com retorno em

agosto, no meio do ano letivo e eu estava cursando o 1º ano do ensino médio o

que fazia ainda mais não passar pela minha cabeça a possibilidade de ir junto,

além da “aventura” não ter me causado interesse algum.

Um belo dia, estávamos no shopping comprando alguns materiais

necessários para o Caminho, quando não me lembro bem ao certo, minha mãe

propôs que eu fosse com ela, devia faltar umas duas semanas para ela

embarcar. Não me recordo claramente a minha resposta, só sei que encarei o

desafio e de ultima hora fui junto. Aproximadamente um mês depois eu faria 15

anos, no meio da peregrinação. Posteriormente ela me confessou que de

presente de “debutante” me mostraria o quão dura é a vida, que a partir

daquele momento eu seria um homem de verdade, com valores ainda mais

aguçados e espírito mais humano. Hoje devo tudo que sou à minha mãe, ao

meu pai e, com certeza, ao Caminho de Santiago que me moldou com uma

sutileza de um elefante para a vida.

As aventuras no Caminho foram muitas, fomos inclusive entrevistados

pela ESPN Brasil. Hoje tenho 25 anos, sou formado há 3 em Administração de

Empresas, administro os negócios da família.

Vivo um dilema quanto à religião. Não pratico nenhuma, já fui católico,

porém tenho fé em Deus. Minha consciência tranqüila é minha filosofia de vida

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e não tive um motivo especial para iniciar o caminho, porém ao terminar, tenho

milhões de motivos para fazê-lo novamente.

Nesses dez anos, nunca escrevi sobre isso e quase nunca consegui me

expressar sobre esse assunto, algo me chamou atenção no seu pedido na

comunidade.

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Caso 3- L. B. G.

Data: 26/11/2009

Local da entrevista: a pedido da entrevistada, a entrevista foi realizada num

café na região do Tatuapé, São Paulo.

Caracterização da entrevistada:

Iniciais: L. B. G.

Sexo: Feminino

Idade: 30 anos

Estado civil: Casada

Crença / religião: A família de L. é de origem católica, porém ela não se

identificou desta maneira. Afirma que acredita na natureza e em energias que

regem o mundo.

Profissão / ocupação: Empresária. Formada em pedagogia.

Forma de contato: Inicialmente, o contato se deu através da internet. Deixei

um recado no site de relacionamentos Orkut, numa comunidade relacionada ao

Caminho de Santiago de Compostela, perguntando se alguém que já fez a

peregrinação gostaria de participar da pesquisa e, entre outras pessoas, L. se

candidatou. Algumas pessoas escreveram sugerindo que a entrevistada fosse

L., por ser uma pessoa de destaque nesse meio. A seguir, foi mantido contato

por e-mail, explicando os objetivos da entrevista e, por fim, telefonei para L.

marcando um horário para a realização da entrevista.

Condições da aproximação: desde o início L. se mostrou bastante

entusiasmada em participar da pesquisa, dizendo inúmeras vezes que gosta de

recordar a experiência da peregrinação e que depois disso é uma nova pessoa.

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Transcrição integral da entrevista:

L. – Você tem as perguntas?

Beatriz – Não! (risos) Na verdade eu tinha pensado em fazer uma coisa

mais aberta, deixar você falar sobre a peregrinação, as coisas que te marcaram

mais...

L. – É só eu ir falando?

Beatriz – Isso! Abordando os temas que foram mais significativos para

você. (pausa)

L. – O primeiro motivo de eu fazer a peregrinação foi realmente tentar

buscar um outro sentido pra minha vida, chegou uma parte da minha vida que

eu parei e falei “meu, quem sou eu? Eu não faço nada que eu gosto...”. Eu não

estava feliz com a minha vida, eu estava com problemas na minha carreira

muito sérios... então eu precisava fazer alguma coisa. E eu não sei por que,

surgiu a vontade de fazer o Caminho de Santiago. Eu já tinha ouvido falar, já

tinha lido o livro do Paulo Coelho quando eu era adolescente (mas não foi por

causa dele que eu fui, realmente foi uma questão que eu precisava fazer

alguma coisa, e essa “alguma coisa” que me apareceu foi o Caminho de

Santiago).

Então eu fui pesquisar a respeito da peregrinação, aí comecei... porque

até então eu não sabia nem quantos quilômetros eram, onde ficava direito, não

sabia nada. Eu decidi em dezembro fazer o Caminho, e em maio eu já estava

no Caminho. Então foi uma coisa muito rápida, eu não tive... não treinei muito

pra ir, foi uma coisa bem assim de supetão. Realmente eu precisava eeh...

decidir alguma coisa pra mim, fazer alguma coisa diferente da minha vida.

Eu tinha... eu casei muito cedo, então eu perdi totalmente a minha

identidade, eu era totalmente dependente do meu marido, então eu tinha vários

hum... uma série de problemas no meu casamento e eu ia me sentindo

perdida: não tinha amigos, não tinha ninguém, eu precisava encontrar um

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sentido para aquela vida. E foi aí que eu resolvi fazer a peregrinação.

Beatriz – Você mencionou que estava com problemas na carreira, que

tinha problemas no seu casamento... Você poderia falar um pouco sobre esses

problemas?

L. – Tá! Então, o que acontece? Eu casei muito cedo, eu perdi meu avô,

meus pais... (pausa). Deixa eu começar desde o começo! Foi assim: meus pais

se separaram quando eu era bem novinha, então pra mim isso nunca foi um

problema, nunca tive trauma por causa da separação, foi sempre muito

tranqüilo pra mim. Então quem... cuidava na verdade de mim era o meu avô. E

quando eu tinha 17 anos meu avô faleceu na minha frente. Essa foi uma coisa

bem traumática pra mim. (pausa)

Beatriz – O que aconteceu?

L. – Ele teve um enfarte fulminante do coração e morreu em casa. E foi

uma coisa bem traumática que até então eu nunca tinha conseguido superar.

Deve ter ficado no meu inconsciente, eu não pensava mais nisso, não tinha

problemas com relação a isso.

E eu sempre cresci só com mulheres em casa, o meu pai não era um pai

presente, só mulheres. Ficamos eu, minha mãe, minha avó e minha irmã. E aí

eu casei muito cedo. (pausa)

Beatriz – Que idade você tinha quando seus pais se separaram?

L. – 3 anos. Eu tinha... eu não tinha... pra mim é até esquisito um pai e

uma mãe juntos, eu nunca tive isso, foi uma coisa tranqüila. Meu pai casou

várias vezes, tenho vários irmãos e eu me dou bem com todo mundo.

E eu casei muito nova, com 22 anos, eu tinha acabado de fazer

faculdade, tinha uma vida legal já, eu tinha uma escola de educação infantil

(sou pedagoga), e eu conheci meu marido e ele era... (pausa) pintor de parede!

Então ele foi pintar minha escola e eu me apaixonei por ele, ele se apaixonou

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por mim, e a gente casou muito cedo.

Só que por essa diferença cultural (hoje em dia eu acredito que seja por

isso) ele se sentia muito inferior. Então ele acabava me pondo muito pra baixo.

Por eu ser muito nova e não ter alguém que me orientasse legal, eu fui

entrando na dele e acabei perdendo minha identidade: me afastei dos meus

amigos, ia me sentindo inferior, acabei largando tudo o que eu fazia por causa

dele...

Beatriz – Ele era muito mais velho que você?

L. – Não, não... ele é só um pouco (ênfase) mais velho que eu, mas ele

já tinha sido casado antes, já tinha dois filhos...

Então assim, eu fui me anulando como pessoa e fui me dedicando só a

ele. Então a dependência ficou muito grande.

E ele era uma pessoa muito enrolada na vida! Ele... ele... era

atrapalhado... e aí a gente acabou passando por vários problemas conjugais.

Se você perguntasse pra mim “fale dos seus momentos bons”, nossa, eu não

me lembro. Realmente foi um casamento muito... conturbado.

Eu tive filho logo que eu casei, não casei grávida, mas já engravidei

depois de 6 meses de casada, então assim, eu me dediquei muito à família. E

aí acabei me anulando como pessoa.

(pausa)

E aí ele... eu... a gente... mudou o ramo de profissão, começamos a

trabalhar com roupas de surf. Eu fui trabalhar com ele. Então fechei... vendi a

minha escola e comecei a trabalhar junto com ele. E sempre me... me

sentindo... muito pra baixo, porque ele me punha muito pra baixo. Então eu me

sentia feia, me sentia envergonhada, achava que ele era lindo, que ele era

muito paquerado... então eu sempre fui muito insegura, e acabei ficando meio

neurótica. Sabe aquelas mulheres que ficam atrás o tempo inteiro, de olho no

celular, vendo se tem recado? Então, e assim no final do ano passado eu

descobri uma traição. (pausa) Pra mim foi a gota d‟água, eu me senti muito

mal, mas eu não queria deixar ele, ele... a minha vida era ele! Eu amava mais

ele do que os meus próprios filhos. Era uma coisa... assim... chegava a ser

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doentia.

E foi aí que eu resolvi fazer o Caminho. Eu precisava encontrar um

sentido nisso tudo, eu precisava fazer alguma coisa. E aí, quando eu decidi

fazer o caminho, as coisas já começaram a mudar na minha vida: comecei a

pensar mais em mim, comecei a pensar em treinar pra fazer o Caminho, aí

comecei a conhecer pessoas (ênfase) relacionadas ao Caminho, e então

comecei a ter amigos, coisa que eu não tinha mais, porque meus amigos eram

os amigos dele, eu deixei de ser a L. pra ser a esposa do E., não era “a L.”, era

“a mulher do E.”, então eu acabei perdendo minha identidade, e quando eu

decidi fazer o Caminho, fui resgatando tudo isso. Eu comecei a ver que tinha

pessoas legais, que tinha pessoas que eram muito amigas, e elas começaram

a me dar muita força, muito apoio pra fazer o Caminho, e as coisas começaram

a acontecer. Eu não tinha grana pra fazer, as coisas... acho que de tanta

vontade que eu tinha, as coisas começaram a surgir na minha vida. Até que em

maio eu já estava com a minha passagem, já estava tudo comprado, e foi a

primeira vez que eu saí para um outro país, sozinha, sem falar nenhuma outra

língua a não ser o português (que só tinha o inglês básico de escola, então,

quer dizer, não é nada).

Beatriz – Mas deve ter te trazido muita confiança depois...

L. – Exatamente, exatamente!

Beatriz - ...tendo voltado e superando todas essas questões na sua vida,

e ainda a barreira da linguagem...

L. – Exatamente! Então assim: eu fui! Fui pra Portugal, que era a terra

natal do meu avô, e foi um choque muito grande porque eu já não pensava no

meu avô em momento nenhum da minha vida, já tinha sido... sabe... como se

um capítulo tivesse sido trancado, mas não bem resolvido, porque eu sempre

tive: “puxa, meu avô foi pra mim como se tivesse sido meu pai, morreu na

minha frente e eu nunca disse „eu te amo‟”. Então eu tinha isso dentro de mim,

uma mágoa muito grande por nunca ter demonstrado o quanto eu gostava

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dele, o quanto ele era importante pra mim. Na verdade, eu já nem pensava

mais nisso, não tinha isso na minha cabeça. Mas aí, quando cheguei em

Portugal, que era a terra natal dele porque ele era português, me veio um

sentimento muito forte, eu tive uma crise de choro, e aí me veio à tona, eu

comecei a resgatar tudo que a gente já tinha passado na minha juventude, tudo

que eu já tinha feito na minha vida. E aí, não era pra eu ficar mas eu fiquei um

dia lá em Portugal, conheci um pouquinho de Lisboa e aí, no dia seguinte, eu

comecei a fazer o Caminho.

Fui pra... pra França... Saint Jean Pied de Port, foi de onde eu comecei,

e aí comecei a fazer o Caminho. E o engraçado é que o Caminho... quando eu

comecei a treinar aqui no Brasil, eu tinha dor no joelho, nos treinos, e eu tinha

muito receio de não conseguir fazer a primeira etapa, que é a travessia dos

Pirineus, que é realmente muito complicado, é muita subida, são 24 km sem

quase lugar pra parar, tem um albergue no meio do caminho, mas não tem

lanchonete... é... uma montanha que parece que não tem fim! Quando eu

olhava e pensava “agora acaba!”, vinha mais subida! Eram mais ou menos 20

km de subida e 4 de decida. Então era muito subida... muito! E eu tinha receio

por causa do meu joelho, que doía muito aqui no Brasil quando eu ia andar, se

eu andava um pouco mais.

Beatriz – E você não tinha nenhum problema de saúde...

L. – Não!

Beatriz - ...no joelho, nada?

L. – Não, não, nada! Começou esse problema quando eu fui treinar. Eu

comecei a querer treinar aí eu fui subir escada com peso nas costas, enfim,

sem nenhuma orientação e acabei machucando o joelho.

O mais incrível é que quando eu cheguei lá e comecei a fazer o

Caminho, eu não senti absolutamente nada. Eu levei antiinflamatórios,

analgésicos, joelheira, um monte de coisa, porque eu achei que realmente ia

ter problemas, mas nada! Nenhuma dor sequer, nada, nada, nada, subi e desci

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numa boa, cheguei... saí 8 horas da manhã mais ou menos e cheguei 4 horas

da tarde no próximo pueblo, e começou aí a minha surpresa no caminho, eu

me senti muito bem. Uma sensação muito boa de liberdade, uma sensação

que, até então, eu já não sentia mais, por ser sempre dependente de alguém, e

lá eu era dependente de mim mesma. Não tinha ninguém pra me dizer que

horas eu tinha que levantar, que horas eu tinha que levantar, como eu tinha

que me portar, o que eu tinha que fazer, pra que lado eu tinha que olhar

(porque antes eu só andava olhando pra baixo, porque se eu olhasse pra

algum lado era porque eu devia estar olhando pra alguém, tinha aquele ciúme

todo...). (pausa)

Então foi uma sensação de liberdade muito grande. Então eu comecei a

fazer muitos amigos no Caminho, muitos! Eu... eu... eu estava... eu estava tão

feliz, tão radiante no meu caminho que eu acho que as pessoas se atraiam.

Então, assim, eu comecei a ter muitos amigos no Caminho e assim... a maioria

não eram brasileiros. E era muito legal porque eu... assim... eu não falava

nenhuma outra língua, e eu conseguia me comunicar perfeitamente com todo

mundo. Então eu voltei falando um pouco de espanhol, um pouco de inglês, e

até um pouco de alemão! Então pra mim, uma pessoa que não tinha amigo

nenhum aqui, de repente ter amigos no mundo inteiro... é muito gratificante,

muito gostoso!

Mas realmente, o que me... o que me fez ir a Santiago foi o meu

casamento. Mas quando eu cheguei lá foi que eu percebi que havia questões

na minha vida muito mais amplas que o meu casamento. Então eu pouco

pensei no meu casamento e resgatei outras coisas que estavam adormecidas

em mim e que eram importantes eu zerar.

Então eu tive um encontro com meu avô no caminho, então eu zerei

todo aquele problema de ele ter morrido sem eu ter demonstrado o quanto eu

gostava dele, isso já... já... não é mais problema pra mim, eu consigo falar

sobre isso tranquilamente.

Alguns traumas que eu tinha e consegui descobrir o porquê durante o

Caminho e consegui resolver também...

Encontrei pessoas maravilhosas e que tinham tudo a ver comigo...

Então, assim, eu encontrei a minha identidade, quem é a L., o que eu

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gosto de fazer, qual a minha personalidade... Hoje eu sei perfeitamente me

descrever como mulher, o que antes eu não sabia. Então... hoje eu sou

realmente uma outra pessoa, é como se eu tivesse feito um tratamento de

choque! Uma terapia que demoraria uns 10 anos, eu fiz em 30 dias, então foi

realmente um tratamento de choque.

Eu costumo dizer que o Caminho dá para as pessoas aquilo que elas

precisam. E eu acredito que eu precisava encontrar as pessoas que eu

encontrei e fazer o Caminho do modo que eu fiz.

E eu não tive bolhas, não tive tendinite, não tive dores, não tive

absolutamente nada no meu caminho. As pessoas que vêem as fotos hoje

dizem “nossa, mas você transborda alegria!”, “onde você arranjou maquiagem

durante o Caminho? Sua unha estava feita, seu cabelo estava arrumado” e não

tinha nada, minha unha não estava feita e meu cabelo não estava arrumado!

Então assim, muitas coisas que tinham importância antes deixaram de

ter, eu comecei a dar valor a outras coisas. Então hoje eu prezo muito mais

estar com as pessoas, o relacionamento interpessoal... Eu deixei de ser tão

materialista e passei a dar mais importância pras coisas da natureza, pras

pessoas, pro amor, pra caridade, pra esse tipo de coisa, porque... eu digo

assim: eu passei 30 dias com 3 camisetas, duas bermudas e uma calça e

nunca fui tão feliz na minha vida! Eu dormi em albergue, não tinha conforto

nenhum... é... andava muito, então eu me sentia muito cansada, mas depois de

um banho, é como se eu não tivesse nada. Então eu bebia muito, coisa que

aqui no Brasil eu não fazia, não tinha com quem sair, não tinha amigos mais há

muitos anos... E eu continuo mantendo esses amigos até hoje.

Só que assim, eu digo: a volta foi muito mais difícil, está sendo (ênfase)

muito mais difícil do que a ida, porque mexe muito com a gente, e as pessoas

que cercam a gente (meu marido, minha mãe...) não aceitam que a gente

voltou transformada, querem que a gente seja do jeito que a gente era antes, e

não tem como... não dá mais!

Beatriz – Eu imagino...

L. – E eu estou enfrentando um problema difícil porque aí eu resolvi...

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quando eu voltei... eu retornei... eu percebi... eu vi que na verdade, no meu

casamento o que tinha era uma dependência muito grande, e que amor não

existia.

Beatriz – Você continua com o seu marido?

L. – Não! Continuo! (pausa) Eu quero me separar dele. (pausa) Aí... O

que acontece? Eu acho que ele percebeu que eu fui, que eu tive essa coragem

e aí ele começou a admirar coisas que ele não admirava em mim. Então essa

minha independência e tal... e ele começou a dar importância a coisas em mim

que ele não dava ate então, porque eu me sentia tão inferior, tão inferior, que

ele achava que eu faria qualquer coisa por ele, e quando ele percebeu que eu

faria qualquer coisa por mim mesma (ênfase), eu acho que ele ficou com medo.

Então quando eu voltei pro Brasil, ele tinha feito uma tatuagem pra mim,

tinha reformado minha casa, coisas que... sabe... mas infelizmente o que eu

sentia por ele acabou. Então no Caminho eu descobri que o que eu tinha era

uma dependência muito grande e... que... que eu não tenho mais essa

dependência.

Eu estou tentando me separar hoje em dia, não estou conseguindo

porque ele não aceita... então a gente está num processo bem complicado, eu

estou numa situação complicada de vida, de quer seguir a minha vida pra

frente e ele... ele não... ele...

Beatriz – Ele bloqueia?

L. – Ele bloquear, exatamente! E que como eu voltei com outra cabeça...

eu tinha uma loja de surf. Então eu vendi a minha loja, eu não queria continuar

trabalhando nisso, então assim, não estou trabalhando agora, porque estou tão

envolvida com peregrinação que não consegui me encontrar ainda

profissionalmente. Como pessoa eu já estou bem definida, mas

profissionalmente eu não sei ainda o que fazer.

Beatriz – Mas de repente é aí que pode surgir um ramo na vida

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profissional, a partir da questão da peregrinação.

L. – Pode, então... exatamente, eu estou em busca disso, mas eu não

sei ainda o que. Então eu organizei esse encontro de peregrinos que eu até

comentei com você, eu estou sempre em contato com peregrinos, escrevi pro

blog (e foi uma coisa bem legal que eu fiz!), tenho vontade de escrever um livro

sobre peregrinação... não passava pela minha cabeça, mas de tanto receber

incentivo das pessoas, tenho essa vontade também... Então são projetos que

eu tenho para o futuro relacionados à peregrinação, e eu quero fazer alguma

coisa nesse sentido, tá? Ajudando as pessoas, auxiliando, nesse sentido

mesmo de peregrinação. E não vou parar de andar! Quero continuar fazendo

outras peregrinações, em outros lugares...

Beatriz – Há quanto tempo você voltou de Santiago?

L. – Eu fiz em maio deste ano.

Beatriz – Recente!

L. – Recente! Pouco mais de seis meses atrás... E todo mundo diz pra

mim “Passa, espera! Não toma atitude nenhuma na sua vida...”. Não passa! Eu

durmo pensando no Caminho, acordo pensando no Caminho... Pra cada

pessoa, se você conversar com outras pessoas, é diferente, né? Pra mim foi

tão especial, que eu não tive nada, eu fiz o Caminho... porque normalmente os

brasileiros fazem em 45 dias, eu fiz em 28, então foi muito rápido, foi muito

bem...

Tive dois amigos alemães que me acompanharam praticamente o

Caminho inteiro e que me ensinaram muitas coisas, apesar de não falarem a

minha língua e nem eu a deles.

Então assim, o Caminho foi muito legal justamente por isso, porque

como eu andava muito rápido, poucos brasileiros conseguiam me acompanhar.

Normalmente... porque como brasileiro não tem o costume de andar (eu

também não tinha o costume de andar), não é como o europeu que anda

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muito, aqui no Brasil tudo é condução e tal! E a minha vida também, mas lá,

meu, eu andava muito rápido! Então os brasileiros normalmente sentiam muitas

dores, cansaço, não conseguiam me acompanhar. Então pra mim isso era

bom, porque quando eu encontrava um brasileiro, eu falava muito! Falava da

minha vida, falava de mim... e pensava pouco! Então eu sentia que eu tinha

essa necessidade de não andar com brasileiros pra poder refletir mais sobre a

minha vida. Então com os estrangeiros eu falava o básico, mas não conseguia,

por exemplo, falar de sentimentos... porque como eu não falo outra língua, eu

só conseguia falar “estou cansada”, “que horas são?”, “vamos comer”, essas

coisas básicas, mas eu não conseguia aprofundar em nenhum assunto.

Então eu evitava... quando um brasileiro falava “vamos fazer o caminho

juntos” passava dois dias e eu falava “olha, sinto muito, mas eu tenho que

seguir meu caminho, você segue o seu”, ia embora e a gente se

desencontrava. E assim, o Caminho é um mar de encontros e reencontros,

desencontros... Encontrava alguém num pueblo, depois de 4 ou 5 dias

encontrava de novo lá na frente, muito gostoso esse encontro e desencontro.

E no Brasil eu consegui encontrar todos os brasileiros que eu encontrei

pelo Caminho... todos!

Beatriz – Que super!

L. – É... eu encontrei ou eles me encontraram, através da comunidade

do Orkut, que foi ode você me achou também... então acabei encontrando com

todos eles, foi bem legal.

E é legal porque eu encontrei pessoas com cabeças muito diferentes.

Quando eu comecei a fazer o Caminho, logo em St. Jean, eu encontrei dois

brasileiros. Então eu cruzei os Pirineus com dois brasileiros de Recife, e tinha

um que era ateu! Eu achei engraçado, porque eu vou fazer o caminho de

Santiago e a primeira pessoa que eu encontro não acredita em Deus! Tudo

bem... depois encontro mais dois brasileiros no próximo pueblo, pai e filho, e os

dois eram ateus também! Eu falei: “não é possível! É alguma mensagem pra

mim! Eu estou só encontrando pessoas descrentes”. (risos)

Beatriz – Qual era sua religião?

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L. – Eu não... na verdade, eu não tinha nenhuma religião.

Quando meu avô morreu, eu fiquei muito revoltada com Deus, eu não

acreditava mais em Deus, eu não acreditava mais em nada. Eu passei um

período da minha vida assim. Um período curto. Logo depois eu já comecei a

restabelecer... Mas eu não tenho nenhuma religião... assim... concreta. Eu

acredito em algumas coisas... eu não acho que eu sou cristã, eu não acredito

em Jesus, eu acho que ele tenha existido, mas não acredito que ele tenha sido

filho de Deus como a maioria das pessoas acredita.

Mas eu acredito em muita coisa, eu sou muito espiritualizada, assim...

acredito em muita coisa, e depois do Caminho acredito em mais coisas ainda,

na natureza, nas forças do universo... mas eu não tenho uma religião... ah! Eu

sou católica, espírita... não! Não tenho nenhuma religião certa.

Beatriz – E a sua família, seguia alguma religião?

L. – Católica. Mas também não era nada assim... ah! Católicos

brasileiros! Sabe, que adora uma cartomante, aquelas coisinhas básicas!

(risos). É o católico brasileiro mesmo, mas assim... a formação da minha

família é católica.

Beatriz – é interessante essa parte da religião, porque a minha pesquisa

é também perceber como pessoas de diferentes religiões vão a Santiago... De

repente eu comecei a conversar com algumas pessoas que fizeram o Caminho

e dizem que foram pra emagrecer, ou porque estava tendo problemas com o

filho e a família achou que assim passaria mais tempo junta e...

L. – É!

Beatriz - ...e aí resolveria...

L.- Na verdade eu conheci duas pessoas aqui no Brasil, mãe e filho, que

foram inclusive comigo fazer o Caminho só que aí lá a gente se separou... e

eles estavam fazendo o Caminho juntos e depois conheci mais dois pais e

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filhos. Então eu acho legal porque tem bastante assim, de família... (pausa)

Mas eu... é... eu acho meio complicado fazer o Caminho com alguém! Não me

arrependo de ter feito sozinha e... eu acho que foi bom pra mim! Porque...

imagina você estar o tempo inteiro com uma pessoa? Você acorda... caminha...

e o tempo inteiro com a pessoa! E é complicado!

Porque apesar de eu ter feito... eu fiz o caminho com esses dois

alemães, por exemplo, que eu sempre falo que foram meus anjos do

Caminho... e até hoje mantenho contato com eles. Mas não era aquela coisa

assim, que eu era obrigada (ênfase) a ficar com eles... se eu estivesse a fim de

ficar sozinha eu ficava sozinha e a gente se encontrava lá na frente, num

pueblo, não tinha nada combinado ou marcado, então foi uma coisa que

aconteceu. Bem interessante, no início tiveram várias coisas que me

marcaram... não sei, você chegou a ler todo o blog?

Beatriz – Sim, li.

L. – Então, uma das coisas que me pegou bastante logo no início do

Caminho foi que eu perdi minha máquina fotográfica. E aí um desses alemães

que andaram comigo quase o Caminho inteiro me cedeu a máquina dele.

Beatriz – Puxa, que inusitado!

L. – É, pra mim também, foi uma... uma lição que eu aprendi e que até

hoje eu continuo utilizando na minha vida. Ele disse uma coisa que... (pausa)

agora, assim, eu sempre levo comigo: “a gente precisa perder algumas coisas

para encontrar outras. Ele estava falando da minha máquina fotográfica, mas a

gente usa isso pra tudo... então foi uma coisa bem importante.

Depois outro... outra coisa importante foi quando eu encontrei a A. que

era uma brasileira que estava com o pé muito machucado e eu ajudei a

carregar a mochila dela. Naquele dia eu andei mais de 40 km, porque eu fui até

onde eu tinha que ir, voltei pra poder carregar a mochila dela. Foi um dia que

eu me senti muito bem, porque eu percebi que eu não tinha nada, não tinha

dores nenhuma e tinha reclamado o dia inteiro... e ela assim, num estado

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assim, andando de havaianas, com o pé machucado, a mochila e sem reclamar

de nada. As minhas dores perto das dores de outras pessoas não eram nada.

Essas são coisas que eu continuo aplicando na minha vida até agora.

Então tiveram várias coisas que eu aprendi, várias lições que eu tomei... E a

gente conversa realmente com muita gente porque... mas o engraçado é

assim, sempre quando se chega numa conversa de bar e tal é “por que você

está fazendo o Caminho?” e é uma coisa que ninguém nunca consegue

explicar por que... “ah! Estou fazendo por este motivo!” Não, que faz o Caminho

normalmente diz que teve um chamado... não é, é porque todo mundo tinha

alguma questão pra resolver, interna... dificilmente... eu, por exemplo, não

conheci ninguém que queria fazer o Caminho pra emagrecer, por exemplo. É

lógico que a gente emagrece porque anda muito, mas as pessoas que vão pra

lá é sempre porque têm uma questão interna mal resolvida, alguma coisinha

que não está legal.

O F., que era esse alemão, era a única pessoa que... eu... assim... eu...

não tinha nenhuma assim... não parecia ter nenhum problema, era uma pessoa

super de bem com a vida (pausa). Ele não tinha um braço, mas ele lidava

super bem com isso, ate eu me esquecia que ele não tinha um braço, porque

era tão natural, ele fazia de tudo (e me ajudava muitas vezes). Então, é... acho

que foi a única pessoa que encontrei que...

Tem um lugar lá que se chama Cruz de Ferro, você já deve ter ouvido

falar, que é onde o peregrino leva uma pedra do seu país de origem, e que

simboliza todos os pesos, os pecados, as coisas que quer deixar, quer zerar. E

ele falava que ele não tinha nenhuma pedra, que ele estava trazendo a pedra

da irmã dele, porque ele não tinha nenhum problema assim, que ele quisesse

deixar pra trás... Mas é um momento bem legal, de muita emoção, porque... eu

digo assim, aqui no Brasil, eu chorava todos os dias de tristeza, todos os dias.

Lá eu chorei muito, quase todos os dias, mas de muita alegria! Era um choro

assim, que vinha, mas de tanta felicidade, era tanta alegria, que eu não

conseguia me conter. E eu digo: se não fosse o amor que eu tenho pelos meus

filhos, que é muito grande, talvez eu não tivesse nem voltado. Talvez... eu

tivesse ficado por lá. Porque eu me encontrei de uma forma, fui tão feliz, tão

feliz! Foram os dias mais felizes da minha vida! Eu me encontrei por completo.

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Então, se eu não tivesse esse vínculo com os meus filhos, talvez eu não

tivesse voltado, tivesse ficado por lá.

Beatriz – Duas coisas que eu queria saber: como foi deixar a vida do

Brasil durante um mês, fazendo a peregrinação, deixar filhos, marido, trabalho,

tudo e... que coisas você deixou para trás com a sua pedrinha? Fiquei

curiosa...

L. – Então, eu... é... justamente... no Caminho eu... todo mundo me

perguntava “você é casada?” porque eu comecei a fazer o Caminho de aliança,

depois minha mão começou a inchar muito, daí eu tirei a aliança. Depois voltou

ao normal, porque o corpo vai se acostumando, mas aí eu não... porque eu

pensava, toda vez que eu telefonava pro Brasil pra falar com o meu marido, a

gente brigava, então eu evitava.

Na verdade eu me desliguei muito da vida aqui e fiquei lá, consegui me

desligar bastante. Então todo mundo falava pra mim: “você é casada?”, e eu:

“antes do Caminho eu sou, depois eu não sei”. “Você trabalha no que?”, “olha,

eu tenho uma loja, mas depois do Caminho eu já não sei mais”... então assim,

minha vida se divide em antes do Caminho e depois do Caminho. Realmente

foi uma transformação muito grande.

Então os problemas que eu deixei lá foram justamente essa

dependência... Eu encontrei um brasileiro, e eu falei: “quando chegar na Cruz

de Ferro, eu vou deixar a minha aliança, porque é o fardo mais pesado que eu

tenho”. Mas na verdade meu maior problema mesmo era essa dependência

emocional no meu casamento, que até então eu achava que era um amor e

que eu descubro que não era amor, era uma dependência muito grande.

Beatriz – E alguma vez você já sentiu essa dependência antes de casar,

em outros contextos, com outras pessoas...

L. – Não. Não, eu acho que eu era até uma pessoa bem independente.

Eu tive um certo problema na minha vida, porque sempre, tudo que eu quis, eu

consegui muito fácil. Então desde nova, todas as coisas que eu me propus a

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fazer, eu tive muito sucesso, então eu não sabia lidar muito com frustrações,

porque eu não tive frustrações!

Então desde novinha, por exemplo, eu entrava num concurso de

beleza... ganhava! Primeiro lugar! Eu ia procurar um emprego e conseguia o

emprego que eu queria! Ia prestar vestibular... o primeiro que tentei eu passei!

Então assim, eu nunca tive problemas de frustrações na minha vida. Eu não

sabia lidar com frustrações e... o meu casamento foi uma frustração atrás da

outra! Não consegui nunca... sabe... me sobrepor.

Eu sou uma pessoa que eu gosto... eu sou muito competitiva, gosto

muito sabe... de fazer as coisas, e eu... ele... meu marido eu acho que é como

eu. Então ele começou a se sobressair, e eu comecei a perder minha

identidade. Então eu comecei a deixar de fazer tudo que eu gostava.

Eu sempre fui uma pessoa muito aventureira, eu gosto de praticar

esportes radicais... Depois que casei, não fiz mais nada. Deixei de conversar,

deixei de sair, eu tinha... não tinha amizades... Eu adoro... adoro sabe, sair,

bater papo, tomar uma cervejinha, coisas que meu marido não faz. E eu me

sentia muito rejeitada porque ele saia, mas ele nunca saia comigo. Então eu

comecei a me sentir muito rejeitada e... e aí eu acho que essa foi a importância

do meu caminho, que eu percebi o quanto eu podia ser importante. Eu digo

assim: antes do Caminho, eu era a mulher do E., hoje eu sou a L. Então eu

acho assim, muito legal, porque as pessoas comentam muito esse tipo de

coisa... Tanto que acho que pra você alguém comentou “conversa com a L.”.

Beatriz – Sim, no Orkut me falaram isso na comunidade sobre

Santiago...

L. – Nossa, então, quando eu vejo isso fico muito feliz... Meu, as

pessoas estão comentando de mim! Então eu fico realmente muito contente

porque são pessoas que estão...

Então eu converso com pessoas que já têm livro publicado e que me

elogiam demais, e eu me sinto muito bem, coisa que antes eu não... Sabe,

larguei minha profissão, minha carreira, tudo por conta do casamento, NE, pra

me dedicar a uma vida que não era minha, eu quis viver uma vida de outra

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pessoa. E hoje eu percebo claramente que ninguém pode viver a vida de

ninguém. E eu achava que a única pessoa que poderia me fazer feliz era o

meu marido, hoje eu entendo que a única pessoa que pode me fazer feliz sou

eu mesma. Ninguém pode ser responsável pela felicidade de ninguém.

Beatriz – E só de perceber isso já valeu, não tem preço!

L. – Não tem! São coisas que ficaram claras pra mim e que eu levo hoje

e que... é até complicado! Porque ele tem muito ciúme do Caminho, muito!

Porque eu voltei realmente transformada. Então eu não tenho... por exemplo,

tudo que eu faço tem que ser escondido. O blog, por exemplo, se ele lê, ele fica

louco da vida com o blog! Morre de ciúmes! Ele não... ele não lê. É... esses

meus amigos da Alemanha, ele não tem nem idéia de que eu continuo me

correspondendo com eles, porque ele morre de ciúme, nem torta alemã eu

posso comer mais, porque ele lembra da Alemanha! Outro dia passou falando

do muro de Berlim, que fez 20 anos que caiu... ele não me deixou assistir! E é

uma coisa que... eu quero fazer e ele... ele está me puxando. E eu quero

realmente essa liberdade pra eu... né... poder fazer as coisas que eu gosto.

E é muito legal, porque lá na Alemanha eles lêem o blog, comentam,

tem comentários no blog do A., que era alemão e falava português, e a gente

conversava e era um barato, porque na verdade ele falava um pouco de

espanhol, mas de tanto conversar comigo, aprendeu português! O alemão

aprende as coisas muito rápido... e era... são coisas muito gostosas! Tinha uma

música que eu cantava que era do... “Viver e não ter a vergonha de ser feliz...”

e no final o alemão já cantava junto comigo! Então era um barato!

E tinha as pessoas que me viam e achavam que eu não era brasileira,

porque eu andava muito rápido. E eu comecei a ficar conhecida no Caminho!

Eu chegava em algum pueblo que tinha um hospitaleiro brasileiro e dizia “ah!

Você que é a brasileira que está caminhando com os alemães!”, então as

pessoas já começavam a comentar de mim, e isso... lá dentro do próprio

Caminho eu já comecei a ficar conhecida. Então era muito legal, porque aqui

eu era muito envergonhada, não falava com ninguém, eu era super

introspectiva... lá eu conversava com todo mundo! Eu era super... sabe,

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aberta... e era esse negócio mesmo, eu me entreguei ao Caminho de coração

aberto, eu não pensava isso é certo, isso é errado, se eu fizer isso meu marido

não vai gostar... não pensava! Eu me preocupava com os meus filhos, então eu

procurava sempre saber como eles estavam no Brasil, ligava normalmente pré

minha mãe, pra saber como estavam, tal...

Beatriz – Que idade eles têm?

L. – Eu tenho dois filhos, um de 5 anos e um de 6. E aí eu fui muito

criticada por pessoas que nunca fizeram o caminho: “nossa, como você viajou

30 dias e deixou eles assim!”. Mas assim, eu sabia que eu não estava sendo

uma boa mãe aqui. Eu estava... sabe quando você está tão pra baixo que pra

você, acordar no dia seguinte ou não tanto faz?

Beatriz – É, as pessoas às vezes precisam de um tempo... E

independente do que você fizer ou deixar de fazer, sempre vai ter gente pra te

criticar.

L. – Eu não ligo. Não ligo porque acho assim: eu precisava fazer alguma

coisa. E eu tenho certeza de que hoje sou uma mãe. Uma mãe muito melhor

que a que eu era antes. Porque hoje eu percebi o quanto eu posso ser eu

mesma pra educar os meus filhos. Antes... antes eu não conseguia nem falar

não pra eles, eu... eu era uma pamonha! Não conseguia fazer nada, só fazia o

que precisava fazer. Comia porque tinha que comer, levantava porque tinha

que levantar, ia trabalhar porque tinha que trabalhar, quer dizer, não tinha

vontade de viver. Hoje não, sou muito dona de mim, entende, tenho muita

vontade de ser feliz. Essa é que é a diferença: tenho muita vontade de ser feliz!

E eu sei que se eu consigo ser feliz, meus filhos também serão. Eu não quero

ser pra eles um exemplo de mãe que não foi atrás do que precisava pra ser

feliz. Mas é difícil, eu escuto do meu marido que eu estou destruindo a minha

família, que... que eu não quero dar uma chance pra gente continuar, então

está sendo complicado... Estou tentando levar ele pra terapia, mas ele não

aceita de maneira nenhuma, tá?

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Eu estou passando por uma fase que eu digo: a volta pra mim foi muito

mais difícil, muito mais difícil (ênfase) do que a ida, muito mais!

Beatriz – E durante o seu caminho quais eram os sentimentos,

pensamentos mais freqüentes? (pausa) Ou então planos que você fazia,

lembranças que te vinham...

L. – Era... é... como eu falei pra você, eu me entreguei ao Caminho.

Então eu não tinha nenhum roteiro “hoje eu vou pensar em tal coisa na minha

vida!”, não! As coisas fluíam... sabe... fluíam!

Então eu pensava... mesmo sem eu querer, eu... lembrava coisas da

minha infância, por isso que eu achei engraçado, porque eu fui lá pra pensar no

meu casamento e eu não conseguia pensar no meu casamento. Eu não

conseguia nem pensar no meu marido! Na verdade, lá, é como se eu nem

fosse casada, como se eu fosse totalmente livre!

Então assim, na verdade, o que me veio de lembrança foi o meu avô,

então teve um momento que eu até escrevi no blog, que foi o momento que

eu... encontrei... eu tinha... eu tinha recebido recomendações pra ficar no

albergue do Jesus Jato, que é um espanhol que adora brasileiros, totalmente

místico, ele dedicou a vida inteira à peregrinação... E foi muito legal lá, eu

encontrei um brasileiro, o F., a gente já tinha se encontrado em alguns lugares,

e a gente se entregou bastante ao albergue, então a gente ajudou a lavar a

louça, a servir o jantar, então a gente ficou trabalhando um dia de hospitaleiros,

a gente se doou pra... pra... contribuir lá com o albergue.

Aí meus amigos saíram mais cedo (que eram os alemães) e eu disse

que ia ficar um pouco mais porque eu queria conversar com o Jesus Rato, que

era o hospitaleiro. Eu fiquei pra trás, e o F. mais pra trás ainda, porque ele não

acordava cedo, gostava de andar até mais tarde um pouco e aí ficava até mais

tarde na cama, aí me despedi do F. e fui. E aí tinha duas vertentes pra seguir

no Caminho: uma seguia pela Carretera, que era um trecho mais tranqüilo, ou

você seguia pelas montanhas... e tinha uma plaquinha que era pra tomar

cuidado, que pelas montanhas só peregrinos experientes, mas aquela altura eu

já estava me sentindo “a super peregrina”, né? Eu falei “não, vou pelas

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montanhas!”. E eu não sei porque, mas as montanhas me atraíam, tinha um

fascínio muito grande, eu me sentia muito bem quando eu subia as montanhas.

Sempre me dava crises de choro com a paisagem, com as coisas que eu via,

me sentia muito emocionada nas montanhas. E subi. E foi o único dia que eu

não vi nenhum peregrino, nem na minha frente nem atrás, eu ia absolutamente

sozinha, ninguém subiu pelas montanhas.

Aí o tempo começou a fechar, eu não enxergava nada na minha frente!

A sorte é que tinha uma trilha que não tinha como se perder, você só podia

seguir por aquele caminhozinho, e era montanha de um lado, montanha do

outro, e eu sozinha comecei a ficar... um pouco... com receio. Deu um pouco

de medo de ficar sozinha. Daí resolvi parar um pouco e esperar, eu pensei “o

F. vai passar aqui daqui a pouco, e a gente vai se encontrar!”, e comecei a

esperar e aí comecei a lembrar... Sentei no chão e comecei a lembrar da minha

infância, como se fosse um vídeo da minha vida passando. E comecei a

lembrar... as viagens que eu fazia com o meu avô, como eu era parecida com

ele, esse espírito aventureiro que ele tinha, o quanto ele era importante... Aí eu

peguei um monte de pedrinha e escrevi o nome dele com pedrinhas no chão.

Então foi como se eu tivesse tido um... não sei, eu... eu entrei num transe. E

fiquei lá, naquele meu momento, até passar e eu continuar meu caminho, então

eu digo que foi lá que eu zerei, foi como se eu tivesse conversado com meu

avô, eu sentia muito a presença dele, como se ele estivesse caminhando

comigo, como se ele... se ele fosse a única pessoa que estivesse vendo o que

eu estava fazendo, ele tinha muito orgulho de mim, então eu me sentia

orgulhosa de estar fazendo o que eu estava fazendo.

Depois teve um trecho de subida que, pra mim, foi a parte mais difícil do

meu caminho, não pelo fator físico, mas acho que psicológico. Eu tinha que

subir um trecho... é um trecho complicado que se chama Cebrero. Então a

subida do Cebrero pra mim foi a mais complicada porque eu encostava o

cajado (eu tinha ganhado um cajado!) e pensava “meu, não vou conseguir, eu

não acredito que cheguei até aqui e não vou”. Quando eu cheguei no albergue

eu estava muito cansada, todas as pessoas que eu conhecia já estavam lá, até

o F. já estava lá! Os alemães também já estavam lá! Foi um dia que estava

muito frio, muito frio, uma neblina que eu não enxergava nada, mas foi um dia

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de muita felicidade. Aliás, não teve um dia que não era só felicidade mesmo.

Não teve nenhum dia que “ah, as dificuldades...”, meu, pra mim não teve! Só

realmente alegria, felicidade, não tive dor, não tive nada! Só alegria no meu

caminho.

Beatriz – E o foco era sempre no Caminho mesmo, nunca pensava

sobre quando voltasse, o que ia fazer...

L. – Eu até tentava. Eu encontrei um psicólogo lá, que era até um

brasileiro que também estava fazendo o Caminho, e a gente começou a

conversar. Meu, foi uma coisa assim... a gente conversou muito, chorei muito, e

ele também, sabe, a gente se deu muito bem. A gente ficou dois dias juntos só,

porque ele também não conseguia andar e a gente acabou se separando. E ele

falava pra mim: “meu, você precisa pensar, né... você precisa saber no que

você quer trabalhar, o que você vai buscar”. Mas eu não conseguia! Acho que

o Caminho estava me consumindo tanto, acho que eu estava tão voltada ao

Caminho que eu não conseguia pensar aqui. Não conseguia fazer planos para

o futuro. Eu sabia que queria fazer alguma coisa com relação a turismo, tinha

me sentido muito bem naquele ambiente. Mas eu não conseguia pensar, fazer

planos: “ah! Vou montar um negócio!”, “vou procurar emprego em tal área!”,

não... não conseguia pensar na vida.

Beatriz – E hoje, passado esse tempo, você tem algum plano?

L. – Então, continuo sem planos! (risos) Não, eu sei... eu quero... eu...

na verdade, o que eu gostaria de fazer, é trabalhar com turismo. Relacionado

com esse tipo de turismo, ecoturismo, voltado pra ecologia e tal. Só que é

complicado porque eu tenho dois filhos pequenos então eu vivo num... num

dilema. Porque eu não posso ficar viajando e deixando eles. Eu sei que eu

tenho que ter um emprego fixo, mas eu não quero nada que me prenda muito,

porque eu sou uma pessoa que eu não consigo ter muita rotina. Então se eu

trabalho muito tempo com determinada coisa eu começo a me... me...

entendeu? Eu quero fazer alguma outra coisa! Então é complicado, eu não vou

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investir muito em uma coisa porque eu sei que lá na frente me... eu... ah! Me

enche o saco e eu quero mudar de ramo!

Isso foi uma coisa que eu entendi no Caminho, sobre mim mesma,

porque até então eu achava que era frustrada: tive uma escola. Pô! Por que

não consegui ir em frente com a minha escola? Aí depois trabalhei como

coordenadora pedagógica. Pô! Por que não segui nesse ramo? Daí fui

trabalhar com as roupas... E hoje... eu sei que sou assim! Eu... eu não gosto de

trabalhar sempre com a mesma coisa, eu preciso estar sempre mudando!

E eu sempre procuro estudar e me aperfeiçoar em tudo que faço. Então,

quando eu tinha a escolinha, eu procurava ser a melhor! Depois quando fui ser

coordenadora pedagógica, eu também procurava ser a melhor, então eu

procurava sempre fazer cursos de aperfeiçoamento, fiz na PUC também um

curso de especialização... então eu procurava sempre me aperfeiçoar naquilo

que eu fazia.

Eu não consigo trabalhar muito tempo na mesma coisa, então eu preciso

arrumar alguma coisa que não tenha uma rotina. Sabe... Então eu acho que o

turismo pra mim seria ótimo, porque você um dia está num lugar, outro dia está

em outro, vê cada vez pessoas diferentes...

Eu sei que eu preciso trabalhar com pessoas, não consigo me ver

fechada num escritório, ou numa empresa, eu não conseguiria de maneira

nenhuma. Então não sei ainda, eu quero trabalhar com peregrinação, com

turismo, quero fazer agora o Caminho de Machu Pichu, que eu tenho muita

vontade... quero fazer porque é bem mais curto que Santiago, em uma semana

dá pra fazer, então meus filhos não vão sentir tanto, né, porque eu sei que eles

sentiram bastante. Até hoje eles comentam.

Beatriz – E quando você conversava com eles, eles te perguntavam

alguma coisa assim?

L. – Não. Era só... “Mãe, quando você volta?”, “quantos dias faltam pra

você voltar?”, mas eles pouco falavam comigo, mesmo eu perguntando

algumas coisas, eles pouco falavam. Então eu conversava mais... E era assim,

era complicado por causa do fuso horário. Então assim, o horário que eu

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levantava lá, era madrugada aqui, quando eu começava a caminhar lá, aqui era

madrugada. Então eles estavam dormindo ainda. Quando eu chegava em

algum pueblo que tinha telefone (porque eu não levei celular nem nada!) aqui

era o horário que eles estavam na escola. E os albergues fecham às 10 horas

da noite... então 10 horas da noite você já tem que estar na cama, e eram

umas 5 da tarde aqui (são cinco horas de diferença!), eles ainda estavam na

escola, porque eles só chegam em casa 6 e pouco e... assim, o horário não

batia! Então não eram todos os dias que eu conseguia falar com eles.

Mas eu sempre ligava, falava com a empregada, com a minha mãe,

perguntava como eles estavam... e pouco falava com meu marido. Toda vez

que eu falava com ele a gente brigava, a gente... Chegou na metade do

caminho eu liguei pra ele, eu já tinha caminhado 400 km. Aí cheguei num lugar

em que o hospitaleiro era um brasileiro que morava lá já há 7 ou 8 anos e aí

liguei pra saber como é que estava e ele falou pra mim: “olha, é o seguinte,

você está folgando comigo!”, eu falei: “como estou folgando?”, ele falou assim:

“olha, vou te falar uma coisa, hoje é domingo. Se você não estiver de volta aqui

na 3ª feira, nosso divórcio já vai estar assinado!”. (pausa) Eu falei: “E., eu não

andei 400 km pra pegar um avião e voltar! Eu não vou desistir no meio do

caminho!”, ele falou: “Tá, você quem sabe...” e eu já: “olha, tenho que desligar

porque vai cair a linha!” e já pum! Peguei e desliguei!

Eu voltei pro albergue super chateada, sabe, eles estavam lá, porque

era hora do jantar. E eu voltei super chateada e fui conversar com o

hospitaleiro.

Ele falou: “que que foi”, tal... aí eu contei “meu marido falou que se eu

não voltasse, o divorcio...”, e aí ele (ele é baiano) ele falou: “pô! Por que não

disse pra ele mandar o divórcio pelo correio e aí você assinava, era mais

rápido! Imagina, você já andou ate aqui e o cara quer que você volte?” (pausa)

É mesmo, né? Aí eu já me animei, já me arrumei, continuei... eram coisas

que... imagina! Se ele dissesse uma coisa dessas pra mim antes, eu me

acabava! Chorava três dias sem parar! Antes eu tinha olheiras que as pessoas

falavam assim: “nossa, você está maquiada?”, “dormiu mal?”, não! Era de

tristeza! Era uma pessoa triste! Não tinha alegria de viver.

Eu fiz... há mais ou menos uns 3 anos atrás eu fiz uma cirurgia e

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coloquei silicone. Mas sabe quando você faz um negócio pra querer agradar ao

outro? Todo mundo falava “mas você não tem medo da cirurgia?”, mas eu: “pra

mim tanto faz, se eu morrer, sei lá!”. (pausa) Meu, pra mim... na época, tanto

faz, eu estava vivendo uma vida tão vazia que não tinha sentido, nada pra mim

tinha sentido! Nem os meus filhos! E eu me sentia muito mal por isso. “Nossa,

como pode? Uma mãe que gosta mais do marido do que dos filhos!” e aí eu

percebi que não era nada disso, na verdade era uma dependência, eu não

sabia viver sem ele. Eu comecei muito nova a viver com ele, casei com 22 anos

e a partir daí era só ele pra mim. E agora não! Agora eu percebo que não pode

ser ele e nem ninguém, só eu! Então eu quero ser feliz, e ele, infelizmente, não

dá pra continuar, apesar de ele dizer que mudou, que me aceita, que me

admira, o amor... o amor que eu sentia ou não era amor ou acabou! Porque eu

não sinto.

Eu até conversei com a psicóloga (meu filho faz terapia) e ela disse:

“você não acha que está muito magoada...” eu falei: “não, meu, não é!” Perdoei

o que tinha pra perdoar, não tenho mágoa de nada, entendo o que aconteceu,

por que ele me traiu, não tenho nenhum problema com isso, mas não amo

mais! E sem amor, pra você seguir com um relacionamento, não dá! (pausa)

Beatriz – Eu costumo dizer quando aparece esse tipo de conflito que só

a gente mesmo pode escolher a nossa vida. Porque aí fica fazendo tudo em

função do outro, o outro que decide, escolhe... E quando a gente olha em volta

esse outro foi fazer as coisas dele e ficamos nós lá, tristes, com uma vida que

não é nossa (porque não fomos nós que escolhemos)... Tipo, e aí só pra não

falar “não” pro outro acaba falando não para si mesmo!

L. – Exatamente, exatamente! Era bem o que acontecia, pra não frustrar

meu marido eu me frustrava!

E assim... a minha transformação já começou na hora que eu decidi

fazer o Caminho de Santiago. Então mesmo antes de ir eu já comecei a me

modificar.

Então assim... eu... nunca... depois que casei, eu nunca comemorei um

aniversário meu. Nunca. Ou, se comemorava, ele me levava pra jantar, mas

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era só eu e ele. Nunca comemorei com família, com amigos, nada. E aí eu ia

viajar em maio e o meu aniversário é em abril. Um mês antes. E eu resolvi

fazer uma festa de aniversário. Nunca tinha feito isso! E já estou casada há 8

anos. Então foram 8 anos sem nada, né. E eu resolvi fazer uma festa de

aniversário. Falei: “quer saber, vou comemorar! Vou num barzinho e vou

chamar todos os meus amigos” (quer dizer, na verdade eram amigos dele). E

chamei! Chamei o pessoal envolvido com esse negocio de roupas, que eram

amigos dele, a família dele, porque na minha... não tinha ninguém... e... chamei

os sobrinhos dele, aí chamei umas pessoas que eu conhecia, por exemplo, do

salão de cabeleireiro, e chamei a manicure e... e então fomos no barzinho.

(pausa) ah! E o meu marido também, é lógico! Era a pessoa mais importante

pra mim... e me deixou sozinha. No dia do meu aniversário, no barzinho. Mas

eu me diverti tanto! E as pessoas me abraçando, com dó de mim, e eu me

divertia, cheguei em casa super tarde...

Então assim, comecei a me transformar antes de fazer o Caminho.

Decidir ir já foi... ter a atitude de ir... eu tenho uma amiga que fala que não

basta querer, tem que ter atitude! Então a partir do momento que eu comprei a

primeira coisinha (comprei a mochila), a minha vida já começou a se

transformar, eu comecei a me transformar interiormente. Então... aí eu comecei

a pesquisar, a fazer outros amigos, a caminhar...

Beatriz – E a decisão também é uma preparação. Porque a gente

sempre pensa em preparação como caminhar com um monte de coisas na

mochila, mas decidir é um passo importante...

L. – Sim! Importante...

Beatriz - ...porque muda a postura da pessoa. Em qualquer situação,

mas no caso da peregrinação, só de ter que pensar em como vai ajeitar as

coisas que dependem de você enquanto você não está, em como vai se

preparar, como vai fazer quando chegar lá...

L. – É, mas sabe que na verdade, a minha vida estava tão sem sentido

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que eu pensei assim: “meu, eu estou vivendo até agora só pro outro e eu

nunca ganhei nada em troca” (pausa). Na verdade eu fui traída, fui humilhada,

brigava o tempo inteiro, ficava pra baixo... E sinceramente, fui mesmo sem me

importar. “Quero que se dane! Que se dane a loja, que se dane as contas, eu

vou cuidar de mim!”. Então eu não pensei muito nesse lado e até hoje escuto

dele: “você me abandonou! Você me deixou os problemas...” e deixei mesmo!

Porque tudo que eu tinha eu perdi em função de ter me anulado enquanto

pessoa. Então quando ele me conheceu, eu tinha uma escola, eu tinha meu

carro, eu tinha minha faculdade, eu era totalmente independente. Eu era

solteira e independente, não dependia de ninguém pra ter o meu dinheiro. E fui

perdendo tudo, perdendo tudo, perdendo tudo... Então hoje em dia, não tenho

mais minha escola, não tenho mais meu carro, não tenho mais vida financeira,

não tenho nada. “O que você tem?” nada! Ele sujou meu nome, então nem

nome eu tinha mais! Depois a gente resgatou, mas foi... foi uma doação, eu me

doei... “ah! Pega aí! Toma minha vida pra você!”, sabe? E hoje em dia não, eu

quero resgatar, e eu sei que sozinha eu vou conseguir muito mais do que com

ele do meu lado. Muito mais!

Então eu tenho certeza que a partir do momento que ele sair de casa, as

coisas vão... um emprego vai aparecer mais facilmente... tudo vai começar a

acontecer, porque vou poder me dedicar mais às coisas que eu gosto de fazer.

O que eu não faço com ele. Porque tenho que ficar sempre dando satisfação

do que eu faço ou deixo de fazer, ele tem muito ciúme de tudo...

E assim, até o encontro de peregrinos foi muito difícil pra acontecer e só

deu porque assim, a gente está se separando, agora ele entendeu que não dá

mais! Porque assim, desde que eu voltei, é muito complicado, porque ele não

aceitava, ele até já me agrediu fisicamente, fui na delegacia, fiz BO, foi assim...

terrível, porque ele não aceita, então ele entra em desespero. E eu tenho medo

do que ele possa fazer, porque a gente escuta tanta loucura por aí, o cara que

matou o filhinho e se jogou e tal, e eu fico preocupada, porque ele é uma

pessoa que pra mim acaba parecendo um pouco desequilibrada... acaba

percebendo que está perdendo tudo que tem... E é uma coisa que

simplesmente pra mim não dá mais. (pausa) Eu quero seguir minha vida com

os meus filhos.

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Beatriz – É... e nessas horas tem que ter autonomia! É igual quando

decide fazer a peregrinação, tem que ter junto com a decisão, a atitude. Eu

percebo assim, que a gente fala da peregrinação... mas a vida da gente hoje,

aqui, também é uma peregrinação!

Vejo pacientes com problemas físicos de saúde, que chegam à terapia...

e pra essas pessoas, como é a peregrinação de médico em médico; de

especialista em especialista...

E eu percebo que essa decisão (de melhorar, de mudar, de partir, o que

for) conta muito, é muito importante pra pessoa porque é decidindo,

escolhendo, que ela se transforma, muda atitudes, comportamentos... Decide

que rumo tomar na vida dela...

L. – E é o que acontece na peregrinação, você toma essas decisões.

E muita coisa eu percebi... por exemplo, se quero chegar a algum lugar,

preciso andar! Então são coisas que eu aprendi que eu... até o alemão falou

pra mim, que eu contei pra ele por e-mail que estava difícil em casa, que eu

quero me separar mas não estou conseguindo, e ele me respondeu: “olha,

você não começou em Saint Jean e chegou a Santiago em um dia. Precisou

andar 800 km pra chegar ao seu objetivo. Então na volta também não vai ser

assim, não vai ser em um dia que resolve tudo, a gente precisa continuar

andando”.

Então são coisas que eu continuo aplicando, e isso é a peregrinação

realmente. O peregrino é peregrino a vida inteira. Hoje eu me sinto peregrina.

Sou a L. peregrina. Eu até brinco que se vou preencher um negócio e tem lá

profissão eu coloco “peregrina”! então eu me sinto uma peregrina na vida.

Porque vi que minha vida esta sempre em transformação, eu estou sempre em

busca de algo melhor.

E os peregrinos são pessoas muito legais, que gostam muito de sempre

ajudar uns aos outros. Se você entrar sempre na comunidade de Santiago (do

Orkut) vai ver que as pessoas estão sempre lá, e sempre estão preocupadas

com as outras, mas sem julgar. Sabe, sem se preocupar com o que é certo ou

errado, aceitar o outro e ajudar! Sem nada em troca. Pelas dificuldades do

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caminho, são pessoas que acabam ficando bem solidárias com os outros.

Beatriz – Percebi um pouco disso quando deixei os recados nas

comunidades falando sobre o mestrado, perguntando se alguém poderia

colaborar, mas eu nem achava que iam responder. E de repente, no mesmo

dia já chegaram vários recadinhos no meu Orkut, e-mails de pessoas que

gostariam de colaborar, de conversar, até de conhecer meu trabalho! Isso me

surpreendeu bastante!

L. – E é legal que começamos a pensar em encontros de peregrinos

porque muitos acabam ficando amigos, conversando sempre, mas sem nunca

ter se visto pessoalmente. E aí vem a vontade de conhecer essas pessoas, de

poder se encontrar com elas.

E eu organizei o encontro de peregrinos a princípio pensando nessa

vontade de reunir todas essas pessoas. Marquei em São Paulo, mas é legal

que a maioria das pessoas acabaram vindo de outros estados! Tem gente da

Bahia, do Rio, de Santa Catarina... Então assim, tem gente do Brasil inteiro!

A gente se encontra na sexta à noite, faz uma fogueira, aproveita pra se

conhecer, e depois no outro dia tem a caminhada, de 23 km, de Piracicaba até

Águas de São Pedro, daí a gente dorme em Águas de São Pedro... e é legal

que vão peregrinos que já fizeram o Caminho e futuros peregrinos, que

aproveitam pra treinar e pra aprender mais sobre o Caminho. Eu também antes

de ir conheci pessoas que já tinham feito, e isso é bem legal.

Beatriz – Então conhecer essas pessoas que já tinham passado pela

experiência foi uma coisa que te ajudou.

L. – Sim, me ajudou muito... muito! Tenho uma amiga que já fez o

Caminho umas oito vezes, depois se você quiser te passo o contato dela,

porque é uma história bem legal, era uma pessoa que tentou suicídio e a

peregrinação foi o que salvou ela... e ela trabalha hoje com peregrinação!

E é uma pessoa que eu peguei muita amizade, tanto que quando fui pra

lá, eu fui junto com ela, só que aí ela fez o caminho português e eu fui fazer o

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caminho francês.

Nós fomos em cinco pessoas juntas pra Portugal, fui eu, essa amiga,

que é a K. e o H., que fizeram o caminho português mas foram a trabalho, pra

traçar rotas e tal... e aí eu fiz o Frances com o A. e a dona M. que são mãe e

filho, só que pra não levar tanto tempo fazendo a peregrinação, eles

começaram um dia antes e um pueblo na minha frente. Só que como eu

andava muito rápido, eu acabei não só alcançando como ainda passando eles

no Caminho! E acabou que eles tiveram que pegar ônibus num trecho do

Caminho, senão não ia dar tempo e eu fiz o Caminho inteiro a pé.

E é interessante na peregrinação que a maioria das pessoas acaba não

fazendo o caminho inteiro a pé. Porque as vezes tem bolhas, tendinite, e aí não

consegue. Eu me sinto mais vitoriosa ainda porque não peguei ônibus em

momento nenhum! Só a pé o tempo inteiro, o tempo inteiro.

E assim... Quando eu cheguei em Santiago, eu não conseguia parar de

andar. E aí depois de Santiago eu andei até Finisterra a pé, que é onde

realmente acaba a peregrinação, que é conhecida como o fim do mundo, e tem

um ritual que a gente queima uma peça de roupa, que simboliza a morte da

antiga pessoa e um ressurgimento, como se fosse a fênix. Então, nossa! É uma

sensação!

E nesse caminho até Finisterra eu já estava me sentindo muito mais

leve, era uma coisa que não tinha aquela obrigação, eu estava fazendo porque

eu queria. Então foi muito gostoso. Mas é um caminho com pouca infra-

estrutura, porque são poucos os peregrinos que fazem, não tem muito

albergue, teve um dia que não tinha lugar pra dormir e eu tive que dormir do

lado de fora, no saco de dormir, lá fora mesmo! Mas foi uma experiência muito

gostosa pra mim, eu adorei!

Beatriz – Quanto tempo de Santiago até Finisterra?

L. – Três dias. Mas a maioria faz em quatro. São 100 km, mas teve um

dia que eu caminhei mais de 40 km, eu andei bastante!

E foi mais um reencontro com o meu avô também, porque ele era uma

pessoa que vivia acampando na praia, então ele era muito ligado à praia, então

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chegar a Finisterra, que é no litoral, foi realmente como encerrar esse ciclo. Foi

muito, muito gostoso!

Beatriz – Sua relação com seu avô era bem próxima, né?

L. – Então, quando ele era vivo, eu não conseguia perceber isso. Que

era tão próxima. Mas era. Era muito, mas eu não tinha consciência. Eu sou

muito parecida com ele, com o espírito de aventura dele, eu digo que ele era

alguém que veio pra Terra a passeio, não a trabalho! Então ele era aventureiro,

gostava de acampar, ele até tinha um trailer, vivia viajando, ele era um cigano!

E eu era... eu sou muito parecida com ele, mas eu não percebia isso. Muito

pelo contrário, eu criticava! “Imagina, ele fica em trailer, não tem conforto

nenhum, não tem nem higiene!”, eu falava mal, mas na verdade a gente era

muito parecido. Quando ele morreu, eu tinha 17 anos, e eu era o xodó dele! Ele

procurava fazer de tudo pra mim e eu nunca agradeci, nunca disse pra ele que

eu o amava, nunca! E ele ter morrido dessa forma tão inesperada, ele nem

estava doente, não tinha nada! Pra mim foi um choque muito grande. E era

uma coisa que eu não tinha conseguido superar.

Então até coisas assim... Eu tinha um problema engraçado: eu não

conseguia falar em telefone público que já me dava vontade de fazer xixi! E era

uma coisa que me incomodava, porque eu pegava no orelhão e já tinha que

desligar. E aí conversando com um psicólogo no Caminho eu disse “você que é

psicólogo, me explica o que acontece”, e ele falou assim: “olha, é engraçado

isso acontecer... mas me diz uma coisa, o que você estava fazendo quando

seu avô morreu?” e de repente me veio: eu estava no orelhão! Meu, e aí eu

entendi o porquê! E era uma coisa que eu já nem lembrava mais, e aí passou,

hoje consigo falar no orelhão mais tranquilamente! (risos)

Então mexeu com muitas coisas que eu nem imaginava, e que quando

saí do Brasil nunca pensei que indo lá iria resolver.

Beatriz – E me diz uma coisa, por que Santiago de Compostela e não o

Caminho do Sol, ou os Passos de Anchieta...

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L. – Não sei! (risos) Na verdade eu não sabia que existiam caminhos no

Brasil. Eu só tomei conhecimento dos caminhos brasileiros depois que decidi

fazer o Caminho de Santiago.

Quando decidi ir eu comecei a freqüentar a Associação de Amigos do

Caminho, porque lá eles informam, dão palestra, e lá eu fiquei sabendo dos

caminhos brasileiros, que são vinte e poucos caminhos. Mas ate então eu não

conhecia. E eu não sei por que, foi... é... Santiago apareceu! É uma coisa que

eu tinha que fazer, na época eu até comentei com o meu marido, eu falei: “vou

fazer o Caminho de Santiago”. Ele falou: “ah, legal! Vou com você! Quantos

quilômetros são?”. E eu: “800”. “Você é maluca! Pensei que fosse uns 30...

Imagina se eu vou andar isso!”. E o tempo inteiro ele ficava “você não vai

conseguir! Imagina... não vai conseguir!”. E aí eu fui pra lá achando que não ia

conseguir. Quando eu estava lá eu pensei: “meu, eu consigo! Já vim até aqui!”.

E me deu uma crise de choro quando cheguei a Santiago. Porque quando eu

cheguei, eu... foi... foi como se eu tivesse chegado em mais um pueblo. Mas

depois que eu fui pro albergue, caiu. Tudo que eu tinha feito, tudo que eu tinha

passado veio. E eu comecei a chorar, chorar, chorar... Pensei, se eu vim até

aqui, eu posso qualquer coisa na minha vida. Eu sou uma vencedora mesmo,

porque consegui o que ninguém acreditava, nem eu mesma acreditava! E eu

fiz! Então eu posso fazer qualquer coisa, nada me segura. Foi, nossa, uma

sensação muito boa. E ao mesmo tempo, muito ruim, porque tinha acabado.

A volta à realidade é muito difícil, eu não queria voltar. Eu tinha fugido do

mundo. Todos os meus problemas ficaram e lá só tinha coisas boas. Então,

assim, ao mesmo tempo que eu queria voltar pra ver meus filhos, arrumar a

casa, eu tinha muito medo de voltar, eu queria ficar. Eu parei... eu poderia ter

chegado em Santiago um dia antes, eu parei a 5 km de Santiago, isso pra mim

não era nada! Eu estava só... sabe... tentando segurar mais um pouco? Aí eu

parei 5 km antes, dormi lá e no dia seguinte andei até Santiago. Eu não queria

que acabasse. E quando ia chegar à Finisterra foi a mesma coisa, comecei a

andar devagarzinho... (risos). Mas foi muito legal, lá em Finisterra encontrei

com todos os amigos do Caminho, que estavam lá me esperando, eles foram

de ônibus e ficaram me esperando! O F., o alemão... foi de ônibus e ficou me

esperando. Foi muito emocionante.

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Beatriz – E as pessoas se aproximam muito...

L. – Muito!

Beatriz - ...quando se conhecem...

L. – Eu conheci um hospitaleiro brasileiro, e ele falava: “meu, alemão é

um povo muito frio”. E eu pensei, eu tinha essa visão dos alemães! No país

deles, até pode ser, mas aqui no Caminho eles são diferentes! O Caminho faz

as pessoas serem muito parecidas. Todo mundo acaba se aproximando, se

doando... Porque eu digo: no Caminho, somos todos iguais. Nem mais nem

menos, iguais! A gente não sabe quem é rico, pobre, está todo mundo na

mesma situação, dormindo no mesmo lugar, são todos iguais... Então, é isso o

que aproxima as pessoas. Cada um com uma história, mas lá, naquele

momento, todos iguais. Pra você ter idéia, a noite no albergue ficava todo

mundo de papete e meia, aquela coisa que meu Deus! Eu nunca sairia na rua

assim! Mas lá era normal... e a gente jantava e passava o pão no prato, e era

tanta fome que se alguém deixava alguma coisa no prato o outro comia... eram

coisas tão gostosas, e que se você olhava as pessoas muitas tinham dinheiro,

eram bem sucedidas... Lá as máscaras vão caindo e se vive de forma muito

simples.

E tem outra coisa que lembrei pra te falar! O Caminho de Santiago é

chamado “caminho da 3ª idade”, a maioria das pessoas que fazem são idosos.

A grande maioria, conheci poucos jovens. Da minha idade já tinham poucos,

não era comum. Tanto que no encontro de peregrinos a faixa etária é 45, 50

anos, veio uma de Santa Catarina que já tem 70 anos, ela já fez o Caminho e

vai de novo em 2011. Então normalmente é um caminho pra pessoas mais

velhas. Tem vezes, a pessoa trabalhou a vida toda, daí aposenta, e agora?

Tem que buscar alguma coisa, daí vai fazer o Caminho de Santiago. São

pessoas normalmente aposentadas, que já viveram muito e acabam

descobrindo muita coisa no caminho. É muito interessante isso.

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Beatriz – E uma coisa que tenho percebido nos peregrinos é como isso

mexe mesmo com eles, dá pra ver na necessidade de contar a experiência...

Quantas pessoas que fizeram uma peregrinação e depois montam blog,

escrevem livro, publicam as fotos...

L. – É, acho que é a troca de experiências mesmo e estar em contato

com outros peregrinos é muito gostoso. Parece que a gente pertenceu a um

mundo e agora pertence a outro. E as pessoas que não pertencem a esse

mundo de peregrinos não entendem o que a gente fala! Só quem ta nesse

mundo consegue entender.

Quando eu comecei a fazer o Caminho, e mesmo antes de ir, eu

pensava, são 800 km! É muita coisa, é pra se fazer uma vez na vida. E é

incrível, porque você volta e já quer ir de novo. Lá eu conheci um peregrino que

é do Rio de Janeiro, e ele já fez o Caminho oito vezes! E ano sim ano não ele

vai. E tem seus sessenta e poucos anos. Tem site sobre o Caminho, livro...

Alguns não, mas a grande maioria que faz tem vontade de ir de novo. É bem

comum encontrar pessoas lá que não estão pela primeira vez no Caminho.

Muito comum.

Lá na associação (é legal você ir, porque lá você vai conhecer bastante

gente), tem pessoas que já fizeram muitas vezes. E aí começam a buscar

outros caminhos. Eu agora tenho vontade de fazer todos os caminhos do

Brasil, outros internacionais também, o Caminho de Santiago por outras rotas

(apesar que o caminho francês pra mim foi maravilhoso).

Tem partes mais maçantes porque... a paisagem não muda muito. E é

interessante que eu não me sentia bem em cidades grandes. Acho que por

morar em São Paulo, que já é uma grande metrópole, eu me sentia

incomodada. Eu gostava de ficar naqueles “pueblozinhos” bem pequenininhos,

pra mim pareciam cidadezinhas de contos de fadas! E assim, os meus

antepassados são daquela região da Espanha, e minha avó me contava

historinhas de lá, e vendo a paisagem, as montanhas, dá pra entender muito

mais a imaginação daquelas pessoas! Menina, eu viajava! Eu passava em

cidades medievais, e eu me sentia naquela época, dava até pra imaginar

cavaleiros de armaduras! Eu conseguia me transportar a essas épocas.

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E tem cidades lá que diziam que eram cidades amaldiçoadas, como

Foncebadon, teve uma praga de um cigano... Ele morreu lá e jogou uma praga,

disse que toda a cidade morreria e a cidade foi mesmo morrendo! E os

peregrinos morriam de medo de passar lá, porque diziam que tinha cães

ferozes, que na verdade eram os demônios que tomavam conta da cidade...

E... eu tinha muita curiosidade de passar por lá. E eu me senti tão bem, como

se... como se na outra vida eu tivesse vivido lá! Parecia que eu fazia parte

daquele lugar, sabe? Eu me sentia muito familiarizada.

A paisagem da Espanha é bem diferente da mossa vegetação. Mas pra

mim, eu me sentia tão familiarizada com aquele lugar que parecia que eu tinha

nascido ali, crescido ali. Era uma sensação muito gostosa. Como se eu

voltasse à minha infância. Só que na verdade eu nunca havia estado lá.

Beatriz – Isso é interessante! Outro dia eu estava lendo que a

peregrinação é sempre para um lugar sagrado, ou como Santiago de

Compostela, um lugar religioso, ou pra terra natal da pessoa, da família, que

por ser o lugar das origens passa a ser sagrado. E eu acho isso... bonito! Tipo,

de depois trazer essas coisas para a vida...

L. – É... Santiago é um lugar sagrado por ter os ossos do apóstolo, mas

também tem muitas lendas... Eu não sei por que (aliás, acho que ninguém

sabe!), mas é um lugar que atrai gente! São muitos peregrinos que fazem,

muitos! Os albergues todos lotados no Caminho. Muito cheio, muita gente

fazendo peregrinação em todas as épocas do ano. Mesmo no inverno que é

mais difícil. Mas em 2011 eu quero fazer no inverno.

Ah! E eu não sei o que faz as pessoas irem a Santiago. Pra mim não foi

o santo, eu não tinha promessa nenhuma pra Santiago! Eu nem acredito muito

em santos! Chegar a Santiago foi chegar a um objetivo, mas não chegar na

catedral (isso pra mim foi mais uma coisa), porque eu prefiro as igrejas

pequenininhas, as grandes me incomodam. Sabe, esse negócio de muita

riqueza em nome de Deus me incomoda!

Se você for ver, é um caminho de sangue! Porque... os mouros e os

cristãos lutavam e... não é uma coisa que me atrai! Esse lado, porque não sou

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católica, mas o caminho me atraiu. Não sei se é porque lá estamos debaixo da

Via Láctea e tem uma energia diferente, é um caminho que milhares de

pessoas percorrem há milhares de anos. É uma coisa que tem uma força

espiritual muito grande. Mas pra mim não é católico! Conheci muita gente La

que não era católico. Os alemães, por exemplo, eram protestantes. Então é um

lugar que atrai muita gente, tanto faz de qual religião.

Essa coisa de religião, você vê a peregrinação pra Machu Pichu... pra

mim, espiritualmente, tem mais força que Santiago, porque é mais parecido

com o que eu acredito. Na verdade Santiago surgiu porque a Igreja precisava

de alguma coisa forte, porque os mouros estavam tomando conta de tudo! E aí

fizeram esse negocio do corpo de Santiago, que pra mim eu nem acho que é

ele! Dizem que é o corpo de uma mulher que encontraram lá... então, assim,

tem muita história que se conta sobre lá.

É o caminho que importa. Chegar é chegar a um objetivo. Pra mim foi

mais importante chegar a Finisterra do que a Santiago. Santiago foi importante

enquanto cidade, mas não pela coisa toda de igreja... claro, na missa eu me

emocionei, mas é porque é uma coisa que arrepia! E tem aquele negócio de

abraçar a estatua de Santiago... eu fui, eu fiz todos os rituais, mas eu me senti

meio ridícula fazendo aquilo! (risos). Pra mim foi muito mais importante a Cruz

de Ferro, outros rituais que fiz durante o Caminho foram mais marcantes que o

próprio ritual de abraçar o santo, enfim, me senti ridícula fazendo aquilo. É

engraçado... E as pessoas vão fazendo montinhos de pedra durante o

Caminho, que representam seus problemas, as promessas que fazem... E

aqueles montinhos de pedra que você vê quando passa, te arrepia! Coisas que

as pessoas vão abandonando pelo caminho, é muito interessante.

E eu ia me desprendendo tanto das coisas materiais que literalmente eu

ia perdendo tudo pelo caminho! Perdia roupa, perdia toalha, perdia tudo! Teve

um italiano que falou: “cadê seus óculos de sol?”, e eu: “perdi!”. E ele: “mas

não é possível, isso é patológico!” (risos). Porque eu perdia tudo no caminho!

Porque eu realmente não dava importância às coisas materiais. E eu acho que

ia largando! Comecei perdendo a câmera. Depois perdi uma calça, perdi a

toalha, os óculos... Eu levei os sticks pra andar, que eram bastões de

caminhada que eu nem usava e acabei doando num albergue, porque de

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repente alguém podia estar precisando, então deixei lá. Daí ganhei um cajado,

que ate trouxe comigo pro Brasil, e aquilo pra mim tem um sentido que nossa!

Vale muito mais que os sticks que eu paguei uma nota!

Beatriz – Deixa eu ver, o que mais... Ai! A sua idade! Eu ia perguntar no

começo, mas esqueci! (risos)

L. – Trinta.

Beatriz – E pra gente terminar aqui, como você se definiria?

L. – Sabe que depois do Caminho eu sinto mais necessidade de

encontrar uma religião? Mas uma religião que tenha a minha cara. E eu não sei

bem ainda, vou continuar em busca, não me considero cristã, mas acredito em

muitas coisas. Acredito nas energias, nas energias que as pessoas passam,

acho isso muito importante. E acredito que tudo tem um porquê, tudo na vida

tem a hora e o motivo pra acontecer...

O que eu posso te dizer assim, de mim, é que sou uma pessoa que está

sempre em busca de encontrar a felicidade e a liberdade. E depois do Caminho

eu vi que a única pessoa que pode fazer isso por mim sou eu mesma.

E ganhar dinheiro... lógico, é importante porque sem ele eu não tenho

como viajar! Mas... não é tudo na vida. Sou uma pessoa aventureira, que não

gosta de rotina e que valoriza muito o contato com os outros. A gente não pode

viver pro dinheiro, é ele que tem que servir a gente!

Mesmo com todos os problemas que tenho passado hoje, na minha

vida, eu sou uma pessoa feliz. E todo dia eu acordo e agradeço o sol, o céu... e

consigo perceber detalhes que eu não percebia antes. Vai, pôr do sol! Mesmo

com a poluição, da janela do meu prédio é lindo de ver! E são coisas que antes

passavam e que agora dou muito mais importância... o por do sol, a chuva...

coisas que acontecem e que antes eu nem percebia, hoje percebo muito mais.

Eu mudei muito o meu estilo de vida. Eu vivia todo final de semana em

shopping! Hoje eu evito! Porque é um lugar que me incomoda. Porque as

pessoas passam pelas outras sem ver ninguém! Sabe, isso que eu achei

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engraçado! Olha, no metrô é lotado e ninguém olha pro lado. La no Caminho

não tem um que passe por você sem dizer “bom caminho!”. E eu pensava:

“quando eu voltar pro Brasil, vou continuar falando „bom caminho‟ pra todo

mundo”, e é um costume que a gente adquire lá... quando voltei eu ia caminhar

no parque, e sempre “bom caminho!” (risos) é engraçado, mas é muito bom!

E eu dizia que quando voltasse para o Brasil ia ter que fazer muitas

coisas. Dizer “bom caminho” e arrumar uma máquina que ronca e solta “pum”,

porque eu não conseguia mais dormir sem isso! Vender minha cama de casal e

comprar um beliche! Porque acostumei a correr pra pegar a cama de baixo,

porque era uma disputa! (risos). A gente chega tão casada que ate a escadinha

do beliche desanima! (risos). E são coisas engraçadas que a gente comentava

no caminho... a gente vivia muito na simplicidade. Era varalzinho no albergue,

tinha que lavar a roupa na mão, e aí caminhava com a roupa molhada

pendurada fora da mochila. Você leva bem pouca coisa, e aí mesmo chegando

cansada, tem que lavar sua roupa, cuidar das suas coisas...

E outra coisa: um peregrino só ajuda o outro se for solicitado. Se não,

cada um tem o seu limite, sua cruz pra carregar... só ajuda se vê que está

precisando mesmo, ou se é solicitado.

Que nem agora que vim conversar com você... eu falei pro meu marido

que ia vir aqui, porque conheci uma menina que está pesquisando sobre o

Caminho... e ele falou: “mas ela vai te pagar?” e eu falei: “não, porque não

custa nada eu ir lá contar minha história”. Aqui todo mundo espera alguma

coisa em troca, lá não, ninguém esperava nada! E isso é a coisa mais gostosa

que tem!

A mesma coisa com o encontro de peregrinos que eu organizei... “O que

você vai ganhar com isso?”. Nada, nada além de amigos!

Tem um filósofo que fala que as pessoas nascem boas... (pausa).

Beatriz – Rousseau!

L. – Isso, Rousseau! É exatamente isso, as pessoas são boas! O mundo

é bom! É essa porcaria de capitalismo que a gente vive, que é tudo por

dinheiro, que faz a gente deixar de lado coisas tão importantes... e as coisas

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que deixam a gente méis feliz não têm preço, são de graça. Mas a gente nem

sempre enxerga! Só vive pra trabalhar, trabalhar, trabalhar, depois fica doente,

não tem amigos pra dividir... e isso não vale nada!

Essas são as coisas que aprendi e que aplico na minha vida, e que não

tem mais jeito de voltar a ser como antes. A L. de antes... não! A L. que parecia

existir antes, não existe mais! Agora eu sou assim, não tem como voltar atrás

mais. O tempo não anda pra trás!

E o importante é a liberdade, claro, respeitando os outros, mas liberdade

de ser você, de ser feliz, porque a gente só está aqui pra isso, pra ser feliz. E

eu me entreguei nesse caminho de coração.

Não é pra usar a razão, pensar o que é certo ou errado, porque isso

mora no coração de cada um.

E é o que eu quero deixar pros meus filhos. Essa visão do que é ser

humano, o que é ajudar o próximo... Com isso, o resto eles com certeza

conseguem. Deixar estudo e valores (de não enganar ninguém, de ser sincero

com os outros e com eles) é mais importante do que deixar bens.

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Questionários Respondidos

QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: I.S.A. Sexo: F Idade: 47

Profissão: professora (Ensino Medio) Escolaridade: superior

Estado civil: casada Filhos: 1 filho

Religião: simpatizo com o budismo.

Quando fez o Caminho de Santiago?

Em julho de 2008.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Sim, meu trabalho é estressante, porque dou aulas de matemática para

adolescentes de ensino médio. Eu também estava tendo alguns problemas

familiares com meu filho adolescente, que estava muito rebelde.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Eu já estava pensando em fazer o caminho há alguns anos. No prédio em

que moro, uma moça amiga minha fez e sempre falou como uma coisa que fez

muito bem a ela (posso te passar o contato dela, ela ama falar sobre isso).

Então, quando meu marido sugeriu uma viagem de férias, fazia muito tempo

que a nossa família não viajava junta, e eu acabei sugerindo que a gente fosse

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os 3 juntos fazer o caminho de Santiago, porque imaginei que a gente acabaria

ficando uma família mais unida e amorosa, por termos de passar muito tempo

juntos. Trabalhando com adolescentes eu sabia que quando eles ficam

rebeldes é porque querem atenção, e no caminho achei que a gente podia

acabar resolvendo de algum jeito esse problema do nosso filho, ou pelo menos

seria melhor do que ir viajar para algum lugar que cada um vai para um lado

fazer o que quiser. Lá a família precisaria ficar junta e unida.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Muitos momentos me emocionaram. No avião estava tudo bem, eu acho

que só quando vi que estava no caminho, com a mochila nas costas e que teria

que andar por tanto tempo é que me dei conta do que estava fazendo. Mesmo

sobre o meu filho, se eu ficasse nervosa, não podia só mandar ele de castigo

para o quarto, eu teria que conversar com ele e resolver o problema! E isso

aconteceu muitas vezes, acho que nunca conversamos tanto. E escrevendo

para você agora, acho que antes disso eu mal conhecia meu filho, não o

escutava nem dava a atenção que os jovens sempre precisam nessa fase.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Um sentimento de vitória e de que os desafios que passo podem parecer

grandes, mas que tenho o poder de superar cada um deles. Se estão na minha

vida é porque eu dou conta.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Normal. Para nós foi tranqüilo, porque a gente estava em família. Eu e meu

marido conseguimos tirar férias do trabalho ao mesmo tempo e junto com as

férias escolares do nosso filho. Então foi bem tranqüilo, uma viagem de férias

em família, só que num lugar bem diferente.

6- E como foi voltar?

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Essa viagem foi diferente, talvez porque muitas coisas mudaram para mim,

e também porque foi a viagem mais longa que já fiz, e a primeira para outro

país. Eu estava cansada e com vontade de chegar em casa. Mas eu amei ter

ido. Durante o caminho parece que só existe aquilo lá, que aquele é o mundo,

mas sabe que quando terminei me deu uma saudade de casa! De tomar banho

no meu banheiro, dormir na minha cama, comer minha comida... Viajar é bom,

mas só se você sabe que vai voltar.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Mudei bastante. Acho que estou mais próxima do meu filho e do meu

marido. Antes não, tudo me irritava, eu vivia estressada. Por exemplo hoje a

gente faz mais coisas em família. Coisas simples até, mas que antes não fazia.

Um almoço de domingo, na mesa com os 3 juntos, sabe um momento gostoso.

A gente não tinha isso antes, cada um comia quando e onde queria, quase

sempre vendo TV. Era como se eu nem fosse mãe do meu filho, esposa do

meu marido, a gente acabava discutindo muito. Agora acho que nossa família

está mais amorosa, e isso me deixa viver melhor. Mesmo no meu trabalho,

acho que sou uma professora melhor, me estresso menos com a garotada,

acho que entendi, convivendo mais com meu filho, que nessa fase eles são

agitados mesmo, não fazem de propósito para me irritar. E acho que tudo flui

melhor por eu viver mais em paz comigo mesma.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: R.A. Sexo: M Idade: 50

Profissão: engenheiro Escolaridade: superior

Estado civil: casado Filhos: 1

Religião: minha família se converteu ao budismo recentemente.

Quando fez o Caminho de Santiago?

7/2008

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Minha vida era boa. Eu tinha e ainda tenho um bom emprego, minha família

tem uma condição de vida confortável. De problemas a gente tinha mais é de

brigar muito na família, qualquer coisinha que a gente não concordava já era

motivo para discutir.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Na verdade eu sugeri viajar todos juntos nas férias, tinha muitos anos que a

gente não viajava. E foi minha esposa que sugeriu o caminho de Santiago.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Teve um dia, a gente já estava quase chegando no albergue e eu torci meu

pé. Fiquei bastante inseguro sobre o que fazer naquela situação em uma

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estradinha no meio do nada! E então meu filho carregou minha mochila por

todos os quilômetros que faltavam. Sem ninguém pedir, foi uma atitude dele

mesmo. Foi quando eu parei de ver ele como um moleque irresponsável, ele

não era isso, ele era um homem! E merecia todo o meu respeito.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Pensar que eu cruzei um país inteiro a pé é uma coisa muito forte pra mim.

E também todo esse sentimento de família, minha esposa falava e ainda fala

muito sobre isso, e eu vi que a gente tem que abrir mão de algumas coisas

para conquistar outras maiores.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Foi maravilhoso, as merecidas férias que eu não tirava há muitos anos!

6- E como foi voltar?

A volta também é parte do caminho. Eu se pudesse ficava lá em algum

lugar do caminho por mais um bom tempo, vivendo sem chefe, sem relógio,

tomando vinho.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Eu já não levo o trabalho tão a sério. Hoje eu trabalho para viver, e antes eu

acho que vivia para trabalhar. Sei apreciar um final de semana gostoso com a

família, os amigos. E já não brigamos tanto, acho que vi que sou parte da

família e não o dono dela.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: G.S.A. Sexo: M Idade: 18

Profissão: estudante Escolaridade: fazendo cursinho

Estado civil: solteiro Filhos: não

Religião: acredito em deus, mas não tenho uma religião. Todas são boas, acho

que o mais importante é ser justo e ter a consciência limpa.

Quando fez o Caminho de Santiago?

Julho/2008.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Eu não vou mentir pra você falando que minha vida era legal porque não

era não. Eu estava numa fase que eu não queria nem saber de nada. Meus

pais achavam que eu era um moleque mimado, revoltado sem motivo. A escola

não fazia sentido nenhum pra mim, então eu matava todas as aulas que podia

ou então ficava dormindo. Daí ia mal e arrumava mais problemas ainda, meus

pais ficavam falando e eu já me enchia e saia ou me fechava no meu quarto e

aí eles já começavam a alucinar que eu estava com os amigos errados, que eu

usava drogas. Eu estava naquela fase que você pensa que ninguém te

entende, como se alguém tivesse que me entender.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

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Na época nenhuma. Eu vi o seu Orkut e sei que você é nova, então vai me

entender. Sabe quando seus pais inventam o maior programa de índio e te

arrastam junto mesmo você falando que não vai? Foi tipo assim. Até a véspera

eu não queria ir nem arrastado. Falei que eles podiam ir e eu ficava em casa de

boa, falei que podia ficar na casa de algum amigo, mas nem me ouviam. Indo

pro aeroporto eu ainda tinha esperança do vôo ser cancelado, da gente pegar

um avião errado e chegar em algum lugar bem louco, tipo Nova York, que nem

em filme, sabe? Ficava imaginando essas coisas só de zuera. Daí antes de

embarcar minha mãe me deu um livrinho sobre os cavaleiros templários que

guardavam o caminho antigamente. E fiquei imaginando que já que eu estava

no vôo certo, isso podia ser uma aventura, como se eu fosse um cavaleiro

desses, em busca de algum tesouro.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Nos primeiros dias eu não estava animado não. Meu pai se irritava e andava

sozinho mais pra frente e minha mãe ficava falando que eu devia tentar

aproveitar, e várias coisas que eu nem ouvia. No 3º dia, quando paramos para

comer numa vilinha que eu não lembro o nome, acabei conversando com um

cara que era espanhol e que sabia muito dos cavaleiros templários. E ele falou

pra mim que mais do que proteger o caminho ou buscar tesouros, como eu

achava, o que todo cavaleiro deveria fazer era lutar por honra e justiça, e que

só assim ele ia conquistar os maiores tesouros, que estavam dentro dele

mesmo. E eu acho que foi aí que entrei mesmo na idéia da peregrinação. Lutar

por justiça e honra me pareceu uma luta que valia a pena.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

A idéia de lutar por justiça e por honra. Eu já tenho 18 anos, sei que não

sou um cavaleiro medieval, mas acredito que se eu tiver firme essas idéias, vou

ser um homem melhor, ter uma vida digna.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

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No meu caso foi um grande alívio, vendo a coisa hoje. Na época fiquei

muito de saco cheio de ter que ir, mas logo que entrei no espírito da coisa,

fiquei muito grato pelos meus pais terem me levado mesmo que a força.

6- E como foi voltar?

Foi ruim. Eu faria tudo outra vez, o caminho. Voltar e ver meus amigos

daquele jeito, iguais, do jeito que eu era antes, né, me desanimou. Vai ver que

eu me toquei de como eu era, mas eu sentia como se o mundo fosse um lugar

tão grande, com tanta coisa pra ver e pra ser, e eu não queria mais aquela

vidinha de menininho mimado, de dormir na aula, jogar vídeo game e ir pra

balada. Eu quero ser digno da vida que tenho. Quero explorar possibilidades,

lutar e me esforçar para conquistar meus tesouros. Acho que eu meio que não

voltei, continuo no espírito da coisa.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Nossa, muitas mudanças! A 1ª é que eu vi que meu pai estava certo, eu era

um moleque mimado. Não sei te explicar, mas eu sinto como se agora sim eu

estivesse aqui, vivendo minha vida. Antes eu só ia empurrando tudo, nem

ligava. Agora eu quero fazer minhas escolhas, lutar e conquistar meus

objetivos. Só serei digno dos meus sonhos se eu lutar por eles. Estou levando

as coisas mais a sério, acho que cresci.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: H.G. Sexo: F Idade: 36

Profissão: tenho uma loja de produtos esotéricos

Escolaridade: superior incompleto

Estado civil: divorciada Filhos: 0

Religião: apenas acredito em Deus e na força do nosso pensamento, que pode

mexer com energias mais poderosas do que nós mesmos.

Quando fez o Caminho de Santiago?

Abril de 2004

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Eu tinha acabado de me separar quando decidi fazer o caminho. Estava

passando por um momento muito delicado.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Era um sonho que eu tinha desde adolescente, mas que nunca dava certo.

Ou não tinha dinheiro, aí quando tinha não dava tempo. Quando me separei eu

precisava de um tempo para mim e pensei, por que não realizar este sonho?

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

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Vários momentos foram tocantes para mim, mas a chegada a Compostela e

a missa dos peregrinos foram muito emocionantes. Nem sou católica nem

nada, mas foi uma cerimônia muito linda, como se viesse fechar uma fase que

eu passei e daqui para frente tudo ia ser melhor.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Persistência para superar as dificuldades.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Eu precisava de um tempo. Deixar o trabalho foi mais difícil, eu organizei

tudo antes de ir, e de vez em quando telefonava para saber se tudo estava

bem. Mas foi bom ter ido, me fez pensar sobre muitas coisas do meu

casamento e da separação, da minha vida que aqui eu só engolia e depois

ficava me sentindo mal, meio deprimida, e nem sabia ao certo porque.

6- E como foi voltar?

Eu não queria voltar. Mas me senti com mais coragem para enfrentar minha

vida do que eu tinha antes de ir.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Fiquei uma pessoa mais reflexiva, penso mais nas coisas de minha vida e

em como elas me afetam ao invés de só deixar pra lá. Também sou mais

persistente hoje.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: B.D.T. Sexo: M Idade: 42

Profissão: publicitário Escolaridade: MBA

Estado civil: solteiro Filhos: 0

Religião: minha família é católica, mas não tenho nenhuma religião.

Quando fez o Caminho de Santiago?

09/2009.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Não era bem um conflito. Eu trabalhava na diretoria de uma grande

empresa, me dedicava demais ao trabalho, e para mim estava tudo bem. Era

uma dessas pessoas viciadas em trabalho, para você entender, eu chegava a

tomar remédios para não dormir e poder trabalhar mais. Até que um dia fui

demitido.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

De repente me vi desempregado e foi quando percebi que fora o trabalho,

eu não tinha exatamente uma vida. E é bem difícil quando você percebe isso.

Fui fazer terapia (eu li no seu perfil que você é psicóloga). Resolvi montar a

vida que eu não tinha vivido até então. Descobrir o que gosto e o que não

gosto, quem sou eu, fazer amigos, me divertir... coisas que fui deixando de lado

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cada vez mais e que quanto mais eu deixava de lado, mais me pareciam ter

pouca importância. Sem o trabalho eu tinha tempo e tinha boas economias,

então pensei em viajar. Eu queria ir para algum lugar diferente. Pesquisando eu

conheci o Caminho de Santiago e resolvi ir.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Quase todos os dias acontecia algo, na realidade ou mesmo nos meus

pensamentos, que me emocionava. Mas para mim, o que mais mexe comigo é

quando penso que essa atitude deve ter sido a primeira que tomei por livre

vontade e para mim mesmo, sem cobranças ou necessidades. Apenas resolvi

e coloquei em prática algo de bom para minha vida fora do trabalho, bem da

vida pessoal mesmo.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Que se eu mesmo não viver por mim e tomar as atitudes que julgo certas,

mais ninguém poderá fazer isso.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Eu não deixei nada porque eu já não tinha nada. Eu fui buscar alguma coisa

que eu nem saberia, e acho que ainda não sei, explicar o que.

6- E como foi voltar?

Foi bom, voltei muito satisfeito e orgulhoso de mim, não apenas por ter

conseguido fazer todo o caminho, que tem alguns trechos bem difíceis para

pessoas sedentárias como eu era na época, mas por ter feito algo por mim, por

começar a dar alguma forma para mim. Pude me ver como uma pessoa que

tem tudo nas mãos para viver a vida que quiser.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

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Agora tenho mais autonomia. Também dou mais valor a coisas que antes

eu não me importava, vi que a vida é muito mais que uma carreira de sucesso.

Por exemplo, todos os dias eu acordo cedo e vou caminhar, mesmo que seja

um dia cheio de compromissos, eu faço isso. Também faço questão de ir surfar

nos finais de semana, eu não fazia isso nunca antes, acho que desde quando

eu era adolescente. Percebi que a carreira não é tudo. A vida pode ser boa e

feliz com isso, ou sem isso, ou ainda apesar disso.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: L.N. Sexo: F Idade: 28

Profissão: nutricionista Escolaridade: superior

Estado civil: solteira Filhos: 0

Religião: católica não praticante

Quando fez o Caminho de Santiago?

Outubro de 2010.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Não, nenhum conflito muito sério. Meu maior drama é que eu queria sair da

casa dos meus pais, eu até já tinha meu apartamento, mas ficava insegura de

morar sozinha. Algumas vezes me dava um medo muito grande que me

paralisava! Assim, sem nenhum motivo. Eu ficava muito mal, tinha crises de

choro, não dormia de jeito nenhum, sentia como se alguém me observasse.

Quando eu tinha essas crises, quase sempre era meu irmão quem me

acalmava, eu tinha muito medo de sair de casa e algo acontecer enquanto eu

estivesse só. Repensando agora, sempre fui uma pessoa com muitos medos,

mas era esse medo sem motivo que mais me doía.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

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Meu irmão ia fazer o Caminho porque ele corta todo o norte da Espanha.

Nossa família é de origem espanhola, e ele queria conhecer o local de origem

dos nossos avós. Ele me convidou para ir junto e no começo, quando ele foi

me contando como era, achei uma loucura. Andar aquilo tudo com uma

mochila tão pesada, dormir de qualquer jeito, ficar tanto tempo longe... Mas

acabei aceitando o convite, nem eu mesma sei por que.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Dentre todos, a Cruz de Ferro, quando coloquei uma pedrinha no pé da

cruz, parece que tirei uma tonelada das costas! Nunca mais tive aquelas crises

de medo, acho que descarreguei tudo lá. Outro momento bom foi a chegada,

olhei para trás e não pude acreditar que eu tinha mesmo conseguido!

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Encontrei minha coragem. Falando assim parece uma coisinha boba, mas

estou falando da coragem de seguir meu próprio caminho, viver a minha vida.

Eu jamais pensaria algo assim antes, vivia com medo de tudo, desde coisas

concretas como dirigir, tempestades, de morrer, de perder minha família até

esse medo que eu não sei de onde vinha.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Foi muito difícil, se meu irmão não estivesse comigo eu não iria. Difícil

deixar meus pais, nossa casa, a rotina que eu tinha todos os dias... eu pensava

que o dia da viagem estava chegando e já me dava uma ansiedade muito

grande, medo do avião, de estar longe, de me machucar, de estar por tanto

tempo num lugar aberto, de não conseguir andar tanto... Chorei muito,

principalmente no aeroporto me despedindo dos meus pais.

6- E como foi voltar?

Fiquei aliviada de estar de volta, e também feliz de ter conseguido fazer

todo o caminho e de ter superado meus medos.

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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

A maior mudança é que agora não tenho mais as crises nem os medos de

outras coisas, ou quando tenho, eles já não me paralisam, eu consigo

enfrentar. Com isso fiquei uma pessoa mais leve, rio mais, saio mais, durmo

melhor, porque antes eu tinha muitos pesadelos, e nunca mais tive aquela

sensação estranha de que alguém me observava. Hoje eu sou uma pessoa

muito mais em paz comigo mesma, mais espiritualizada até. Acredito muito no

poder de pensar positivo e tentar ver as coisas de um jeito melhor.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: D.N. Sexo: M Idade: 30

Profissão: advogado Escolaridade: pós-graduação

Estado civil: solteiro Filhos: 0

Religião: católico não praticante

Quando fez o Caminho de Santiago?

Outubro de 2010.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Nenhum conflito, era uma vida normal. Eu tinha uma boa relação com a

minha família, trabalho em algo que gosto, tenho bons amigos, minha família

tem uma boa condição financeira, tudo normal.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Sou descendente de espanhóis e queria muito conhecer a região de onde

vieram meus avós. A Espanha é um país muito bonito e cheio de cultura, vale a

pena conhecer, é uma viagem que sempre digo a todos, se um dia puder ir, vá!

E eu também queria levar minha irmã, estava muito preocupado com ela e

como somos muito próximos um do outro, pensei que uma viagem para um

lugar bonito lhe faria bem.

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3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Quando cheguei me senti um vencedor! Eu tinha ido mais pelo caminho do

que pensando mesmo numa peregrinação, eu queria conhecer o lugar. Mas

mesmo assim, quando eu terminei foi uma emoção muito grande.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Um sentimento que eu não saberia que nome dar. Algo como ter entrado

em contato com as minhas origens e me sentir protegido por causa disso, me

sinto mais forte.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Normal, tirei férias do trabalho e parti em viagem.

6- E como foi voltar?

A volta foi mais emocionante que a ida. Reencontrar meus pais, meus avós,

depois de ter visto onde eles viviam, me senti mais próximo deles e da nossa

história. Antes a história da nossa família era só algo que se passou, hoje não,

é algo concreto e que faz parte de quem eu sou. E outra coisa da volta, que

acho que é normal em toda viagem agradável, é que é bem estranho retomar o

dia a dia depois, parecia que eu já não era parte dele.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

O que eu mais percebo e essa relação com minha família e nosso passado.

Uma coisa mais concreta e que tem relação com isso também é o meu

sobrenome espanhol. Antes eu sempre o pronunciava de forma

aportuguesada, para facilitar a escrita e compreensão dos outros. Agora não,

uso a pronúncia espanhola e, se necessário, soletro!

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: L.A.H.W. Sexo: F Idade: 31

Profissão: terapeuta holística Escolaridade: superior

Estado civil: tenho uma relação estável Filhos: 0

Religião: wicca

Quando fez o Caminho de Santiago?

10/2005

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Eu tinha muita dificuldade de me assumir como sou. E acho que por causa

disso, era bem insatisfeita com a minha vida, parecia que nada nunca ia para

frente! Um conflito que eu tinha é que eu sou homossexual e era bem difícil

assumir isso até para mim mesma. Eu escondia! E mesmo quando não

consegui mais esconder de mim, escondia dos outros. Eu achava que ninguém

entenderia, minha família, por exemplo, que é toda evangélica, seria bem difícil

dizer isso para eles. Eu não tenho nada contra os evangélicos, vejo muitas

bruxas falando mal dos cristãos, mas toda minha família é cristã e são pessoas

boas, que muitas vezes me surpreendem, só pensamos de jeitos diferentes.

Essa parte da religião também era meio que um problema para mim. Eu ia

na igreja com a minha família desde criancinha, e sempre achava chato. Daí fui

ficando mais velha e comecei a questionar as coisas para mim mesma, não era

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uma coisa que me deixava bem. Comecei a pensar em como seria ter outra

religião, mais com a minha cara e cheguei até a pesquisar algumas delas pela

internet. Foi quando conheci a wicca, que é a religião do povo celta e me

encantei muito, por exemplo em adorar a uma deusa e não a um deus. Mas na

época eu só estudava, não praticava, porque pra minha família se eu falasse

que sou uma bruxa, nossa, eu nem sabia como que ia ser. E sempre continuei

indo na igreja, como se nada estivesse acontecendo. Mas estava e o caminho

que minha vida estava tomando acabava me frustrando, porque era como se

eu não fosse a pessoa que na verdade sou.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Eu queria muito ganhar confiança pra ser eu mesma porque eu estava

vivendo uma mentira, eu não era aquela moça que eu mostrava pra todo

mundo que eu era. Mas não fique achando que foi uma coisa assim consciente.

O que eu sentia era uma grande insatisfação. Conheci o Caminho de Santiago

em um documentário na TV, me pareceu uma viagem interessante e comecei a

ler sobre ele na internet, até que em alguns meses acertei tudo e fui, mas

naquela época para mim era como se minha insatisfação e o interesse pelo

caminho fossem coisas separadas, só hoje eu consigo perceber que na vida da

gente nada é separado, tudo é parte do mesmo todo e dança conforme a

harmonia da Deusa.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Não sei se você conhece a história de uma cidade fantasma que existe no

caminho. Foi um cigano que antes de morrer rogou uma praga e aí desde

então não tem mais ninguém que vive lá. Passar por lá me deu uma emoção

muito grande, não sei nem dizer bem o que. Mas eu chorava de um jeito como

não lembro de ter chorado nunca antes na minha vida. Sabe o que é quando

você imagina um lugar com vida, com pessoas que eram felizes ou tinham

problemas e de repente não tem mais nada lá. Acho que reconheci na cidade

fantasma a vida que eu estava levando até então.

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4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

No caminho você encontra quase de tudo. Se você me perguntasse o que

mais me chamou a atenção no caminho de Santiago, eu te responderia que foi

a diversidade. Você encontra pessoas dos mais diferentes lugares, raças,

religiões... e isso tudo lá. Se você pensa no mundo inteiro, você começa a

reparar que existe mais variedade ainda! Acho que essa experiência me fez ver

que somos todos diferentes, e está tudo bem em ser diferente, não é uma coisa

ruim, porque comecei a acreditar que são as diferenças que nos fazem ser nós

mesmos.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Foi estranho. Não é como partir para uma viagem turística. A partir do

momento que eu fechei a viagem eu já comecei a me preparar. Eu tinha um

bom condicionamento físico, então não estava preocupada com a caminhada

como muita gente que eu encontrei me dizia que estava. Todas as noites antes

de dormir e todas as manhãs antes de tocar meus pés no chão eu meditava e

fazia uma visualização para que tudo fosse bem no caminho. Sem nem

perceber eu já estava sendo mais eu, já estava fazendo essas coisinhas da

wicca e que eu não ousava fazer antes. Eu tirei uma licença no trabalho para

poder ir, e depois acabei saindo do emprego que eu estava porque ele não

tinha nada a ver comigo, resolvi mudar de área. Uma coisa legal é que na

véspera da viagem eu juntei toda a minha família, meus amigos e fiz uma festa

de despedida para mim mesma, meio que terminando aquela parte da minha

vida e me preparando, estando livre para o que quer que fosse surgir para mim

a partir dali.

6- E como foi voltar?

Queria que tivesse durado mais. Mas ao mesmo tempo eu também estava

ansiosa pra voltar e tomar algumas atitudes na minha vida que antes eu não

tinha coragem.

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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Sou outra pessoa! Se você olhasse para mim antes e agora não

reconheceria. Eu cheguei e logo fui contando as velhas novidades: olá turma,

eu sou homossexual. Ah, e também sou uma bruxa! E fazer isso foi tirar das

costas um peso ainda maior que a minha mochila. Achei que teria brigas e

discussões, mas me surpreendi bastante quando minha mãe me abraçou e me

disse que o importante era eu estar feliz. Antes eu não tinha coragem de falar

isso pra ninguém, e vivia frustrada. Porque no fundo, era eu mesma que não

aceitava as diferenças, todo mundo tinha que ser igual! E eu acho que nem

tinha consciência disso. Então, se eu sou homossexual, tinha que ter algo de

errado comigo. Se minha família é cristã, eles não vão me aceitar, porque eu

acho que só via as pessoas como caricaturas, então nenhum cristão me

aceitaria! Mas ainda bem que somos todos diferentes uns dos outros!

Também saí do meu emprego, eu tinha estudado administração, profissão

em que nunca atuei, e eu trabalhava em um escritório, um serviço mecânico e

chato que não tinha nada a ver comigo. E então abri um espaço holístico, com

terapias e cursos e nessa eu acabei conhecendo minha namorada. Hoje tenho

uma relação estável com minha namorada e estamos começando a pensar em

adotar uma menininha.

E outra mudança é que não sou mais evangélica, na verdade acho que eu

nunca fui. Praticamos a wicca em casa, temos um coven apenas de mulheres

que celebram juntas os Sabas, que são as festividades da nossa religião, e as

luas cheias. É uma religião em que me encontrei e que sou aceita como sou.

Nossa proposta, pelo menos no nosso coven, é praticar a verdadeira religião

dos celtas que era um povo com uma cultura muito rica e mitos que continuam

atuais para as pessoas de hoje.

Acho que a maior mudança é que não tenho medo de ser quem sou, de me

assumir. Se me aceitam, claro que fico feliz, mas não ser aceita não é mais

aquele drama. Posso dizer que sou uma pessoa realizada hoje.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: M.M.Z.S. Sexo: F Idade: 44

Profissão: não estou trabalhando Escolaridade: bacharel em direito

Estado civil: casada Filhos: 2

Religião: católica – não praticante

Quando fez o Caminho de Santiago?

08 de 2010

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Minha vida era normal. Meu marido sempre foi um homem que fez todas as

minhas vontades, ele me mima muito. E também tenho uma relação bem legal

com as minhas filhas, falo que sou mais amiga delas do que mãe, falamos

sobre tudo e fazemos muitas coisas juntas.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Eu sempre quis emagrecer, porque sempre fui gordinha. Sempre tive muitos

problemas com meu peso e com comida, desde bem novinha. Mas quando

você é criança, na minha época, todo mundo achava até saudável uma criança

gordinha e te estimulam a comer mais. Quando fui crescendo eu me achava

muito feia por ser gordinha. Pela sua foto acho que você é bem novinha e bem

bonita, mas pensa alguém da sua idade tendo que comprar roupas em lojas de

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tamanhos grandes, não podendo usar coisas da moda e que suas amigas

usam... é ruim, você fica se achando quase um ET. E depois de mais alguns

anos você passa dos 30, tem filhos e o problema não é mais só de estética,

você começa a ter problemas de saúde. Eu tentava de tudo para emagrecer:

dieta da sopa, da salada, da lua, mas nunca funcionava. Tentava tomar

remédios e eu até emagrecia, mas logo que parava voltava tudo outra vez. Eu

sentia um vazio tão grande, sentia que precisava ter alguma coisa dentro de

mim e comia mais e mais... O caminho foi uma tentativa de emagrecer

também. Até hoje eu nunca conversei com mais ninguém que fez para

emagrecer, mas antes eu ouvia muitas pessoas falarem que andaram muito e

acabavam emagrecendo um pouco. E também tem toda aquela parte mística

sobre o caminho que eu acho super bacana.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Acho que foi perceber que no caminho as coisas não são como quase

sempre é na vida da gente. O tempo passa diferente, não tem essa correria.

Você acorda quando quer, caminha o quanto pode e come o que precisa. Você

não tem preocupações, você não precisa de nada e nem precisa ser nada.

Você é só alguém que está andando por ali. E aí você pensa quanta gente já

passou por lá em mil e tantos anos, e você vê que você é apenas mais um. Me

senti parte de alguma coisa maior do que eu, é uma sensação que eu nunca

tive antes. Deve ser a energia. O caminho tem uma energia muito forte, fica

debaixo da Via Láctea, todo mundo acaba se emocionando.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Que ser uma pessoa bonita não significa ser magra. Tem gente bonita que

é magra e também gente bonita que é gordinha, do mesmo jeito que tem gente

magra e feia. E também que a beleza não é só o que fica por fora, é o que a

gente é por dentro.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

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Bom, eu acho que foi normal. Eu não tenho um trabalho, não tenho esses

problemas de chefe, compromissos de empresa ou negociar férias. Meu marido

cuidou de tudo enquanto estive viajando e a gente também tem uma

empregada de muita confiança, está com a nossa família desde que a gente se

casou, ela cuida bem da casa e me ajuda com as meninas. As meninas não me

preocupavam muito porque já são grandinhas, elas tem 12 e 14 anos e ficam

no colégio em período integral, não são meninas dessas que ficam por aí

arrumando confusão, nunca foram dessas coisas, então eu fui bem tranqüila.

Mas é claro que sempre telefonava pra falar com elas e com meu marido,

saber se estava tudo bem, coisas de mãe.

6- E como foi voltar?

Foi maravilhoso, a viagem foi muito bonita, mas eu estava com saudades

da minha família e de casa, do meu país...

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Aprendi a viver com menos. Com menos roupas, com menos preocupações

em ter que ser que nem todo mundo, fiquei menos consumista e já percebo

que as meninas também estão ficando assim. Quanto a emagrecer, me

decepcionei um pouco. Eu achava que ia começar o caminho gordinha e ia

chegar magra, linda e jovem que nem uma modelo, que nem a Gisele

Bündchen! E é claro que não foi bem assim. Emagreci um pouquinho, claro,

porque antes eu era muito sedentária, mas não tanto assim. Só que depois que

voltei comecei a levar a sério de verdade esse negócio de emagrecer. Estou

fazendo um acompanhamento com uma nutricionista, não mais fazendo essas

dietas malucas que eu via por aí, comendo direito e também estou fazendo

esportes numa academia. Pensando na minha saúde, porque agora sei que

beleza não depende de ser magra.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: H.C.M. Sexo: M Idade: 26

Profissão: engenheiro Escolaridade: superior

Estado civil: solteiro Filhos: não

Religião: acredito em Deus

Quando fez o Caminho de Santiago?

Julho de 2010

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Era normal. Eu fazia engenharia na Poli-USP. Vivia na USP, estudava muito

mais do que eu gostaria, tinha vários amigos, minha namorada que amo muito.

Não que tudo fosse perfeito, mas não tinha nenhum problema tão ruim. Era

uma vida normal de um jovem universitário.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Começou com uma zueira. La pelo 1º ou 2º ano de Poli estava eu e o meu

amigo D. (acho que ele também vai te mandar isso, mostrei o questionário e o

seu perfil do Orkut pra ele e ele disse que ia responder) então num fim de

semana a gente estava assistindo um filme que se chama Diários de

Motocicleta, que mostra a viagem do Che Guevara e do amigo dele pela

America do Sul e eu zuei que a gente podia fazer alguma coisa do tipo quando

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terminasse a facu. Fomos amadurecendo a idéia, acabamos conhecendo o

Caminho de Santiago e pra surpresa de nós 2 a gente foi mesmo! Mas não

tinha nenhum motivo religioso não, ate porque naquela época eu era ateu. A

gente ia pela aventura, pelo sentimento de liberdade.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Passando por Foncebadón, se não me falha o nome. Era uma cidade

abandonada. Não sei te dizer o que rolou, mas foi muito louco! Me deu uma

emoção diferente, me fez ter certeza pela primeira vez na minha vida de que

existe algo maior que nós, e que esse ser, Deus, deve ter poder sobre a gente.

E o mais engraçado é que a gente só parou para explorar essa cidade porque

ouvimos um pessoal dizendo que ela era cheia de demônios e pareceu uma

boa aventura. Não que eu acreditasse, se eu acreditasse eu nem ia, mas me

deu vontade de ficar um tempo lá, dar uma boa olhada. Eu estava lá, sozinho

em silencio e eu sentia uma presença que logo me pareceu ser muitas

presenças diferentes. Eu sei que tinha coisa lá, e eles (as presenças) eu tinha

a sensação que vinham pra cima de mim, que iam me fazer mal e eu não vou

mentir, me deu muito medo, só não saí correndo porque senão o D. ia me zuar

pra sempre! Mas eu tinha que fazer alguma coisa e não sabia o que. Peguei a

concha que eu usava na mochila, como a maioria dos peregrinos e me

concentrei em Santiago. Eu precisava de ajuda lá, e se tanta gente acredita

nele, tem que ter algum poder né. E logo as presenças sumiram e tudo que

restou era uma paz muito grande em mim. Me deu uma crise de choro muito

forte. Não sou de ficar por aí chorando, não pense isso de mim! Mas a emoção

foi muito grande, eu sei que era Deus. Maior adrenalina, fui procurar demônios

e encontrei deus. A vida é irônica algumas vezes.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Encontrei Deus no caminho. Não o Deus dos cristãos, acho que não é o

Deus de nenhuma religião, porque todas elas foram inventadas pelos homens,

não são reais. Mas em diversas oportunidades acho que entrei em contato com

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uma força maior do que eu. Uma coisa boa, que me fez sentir muito protegido e

especial.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Eu tinha terminado a faculdade e ainda não tinha um emprego, então não

deixei isso para trás. A família e os amigos eu deixei normal, sabendo que logo

voltaria, na minha cabeça era só uma viagem. Mas tive saudades da minha

namorada, porque ela é muito especial pra mim e infelizmente não pode vir

junto.

6- E como foi voltar?

Voltei muito animado, cheio de aventuras para contar.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

A maior diferença é que agora acredito em Deus. Não gosto de religiões, de

instituições, mas gosto muito de Deus e todos os dias agora eu me concentro e

falo com Ele do meu jeito. Antes não, se viesse alguém me falar dessas coisas

eu nem ia acreditar e ainda ia zuar a pessoa, rir pra caramba de alguém adulto

e inteligente que acredita nesse tipo de coisa. As vezes minha namorada e eu,

a gente acabava discutindo um pouco por essas coisas. Não brigando, mas

saia uns bons quebras! Porque ela é uma moça muito espiritualizada, não tem

religião, mas fala muito nessas coisas de pensamento positivo e energias e eu

sempre falava pra ela como que uma moça da idade dela, inteligente, ela faz

economia aqui na USP e como que ela poderia acreditar nessas coisas? Pra

mim naquela época era só um monte de besteiras, agora não, eu respeito

muito isso. Mesmo quando não é o que eu acredito eu respeito, porque sei que

pra pessoa aquilo deve ajudar ela de algum jeito.

Uma mudança menor e mais boba, mas que minha família comemorou

muito é que agora eu sou muito mais organizado, antes eu deixava tudo

bagunçado!

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: D.B. Sexo: M Idade: 25

Profissão: engenheiro Escolaridade: MBA em andamento

Estado civil: solteiro Filhos: não

Religião: paganismo

Quando fez o Caminho de Santiago?

Julho de 2010.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Na época minha maior preocupação é que eu estava me formando na

faculdade, fiz engenharia na USP junto com o H., ele que me mostrou esse

questionário e entrei no seu Orkut e quando vi acabei me interessando muito

pela sua pesquisa. Então eu ia me formar e não tinha idéia do que queria fazer.

Não queria um emprego, pensava em abrir meu próprio negócio, ou em

trabalhar por conta própria, mas não sabia, todos me diziam que era

complicado, que podia não dar certo. Mas não era bem um conflito, eu só não

sabia o que queria fazer dali pra frente.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

O H. e eu somos da mesma cidade e estudamos na mesma escola. Daí

entramos os 2 na Poli e viemos pra SP, dividimos um apartamento. Então a

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gente era quase irmãos, ainda somos, e um sábado sem ter o que fazer

assistimos um filme em que o Che viaja de moto pela América e ficamos

brincando sobre fazer uma viagem parecida. Mas não dava pra trancar a

faculdade e ir, daí a gente zuava que depois de terminar a gente ia viajar pra

algum lugar bem inusitado para comemorar. E isso não era um projeto, era só

de farra mesmo que a gente falava, só pra ficar se distraindo, pra ver a cara

que as pessoas faziam quando a gente falava isso, de brincadeira mesmo.

Então a gente já estava no último ano e meio que por acaso acabamos

conhecendo o Caminho de Santiago. Eu já tinha ouvido falar, mas não sabia

quase nada sobre isso. Então mostrei pra ele e resolvemos ir. Porque acredito

que tem algumas coisas que a gente faz quando é jovem, mas se eu for pensar

daqui uns 10 ou 15 anos, eu já vou ter família, filhos, vou ter que sustentá-los,

ter um trabalho sério (não que eu não seja um cara sério agora, mas não posso

dizer que tenho tantas responsabilidades na vida quanto um homem que tem

família), e aí não daria pra fazer esse tipo de coisa.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Foi engraçado. Porque eu não sou cristão, eu sou um bruxo, sigo o

paganismo. Não sei se você conhece, nós acreditamos em muitos deuses e

nossos cultos são voltados principalmente para a natureza. E o caminho de

Santiago é católico. Eu ia por ir, para comemorar o fim da faculdade e

descansar dos estudos um pouco, e também pela aventura que seria, me

imaginava quase como se fosse um cavaleiro medieval indo por aquelas

estradas, dormindo por aí ou pedindo abrigo, solucionando mistérios e

ajudando mocinhas indefesas. Falei isso para dizer que o caminho não tem

tempo, nem parecia que a gente estava no século XXI, você poderia estar em

qualquer época e nem se dar conta disso. La tudo é possível, encontros com

seres sobrenaturais, a magia acontece lá de verdade, é um lugar com muita

energia. Ir até lá e vivenciar isso sendo um bruxo foi algo muito interessante.

Teve uma noite que não conseguimos chegar ao albergue e tivemos que

dormir na beira da estrada. Era uma estradinha de terra que cortava um campo

muito grande. Fazia calor, então não seria uma coisa ruim dormir la fora. E eu

me deitei olhando as estrelas e não conseguia dormir de jeito nenhum. Fiquei

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várias horas acordado olhando para as estrelas e percebendo como somos

seres tão pequenos e que se dão uma importância tão maior do que realmente

tem. Fiquei pensando na magia que mantém a ordem das coisas, que faz o

mundo ser como é. E também pensei nos caminhos que escolhemos seguir e

naqueles que a gente escolhe não seguir – e que nunca vai saber como ia ter

sido caminhar por eles.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Comecei a ver a magia de um jeito diferente. Não é aquela coisa sisuda,

cheia de preparações e um roteirinho para você seguir. Magia é uma coisa que

flui, é uma coisa que precisa ser livre, e aí sim ela inunda você e tudo a sua

volta. E você vê que a magia não é algo tão especial como mostram nos filmes,

a magia é tudo o que existe, e tudo o que existe é mágico. Todos nós somos

seres mágicos, e é essa a magia. Esse poder de criar novas realidades é o que

nos liga aos deuses.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Cara, para ser bem sincero, tudo o que eu deixei para trás foram minhas

dúvidas. Não, foi um pouco estranho, na verdade. Só pensei nisso agora,

escrevendo pra você. Porque eu sabia para onde eu ia, mas nem imaginava o

que eu iria encontrar. Eu sabia que eu voltaria, mas eu não tinha idéia de quem

seria eu quando eu voltasse. Com certeza já não sou o mesmo.

6- E como foi voltar?

Demorei várias semanas pra entrar nos eixos outra vez. Ou melhor, ainda

não entrei! Eu nunca mais fui o mesmo depois disso, num sentido bom. Porque

lá as coisas passam diferentes, o tempo é outro, como eu falei antes. E acabei

chegando à conclusão que as coisas são estranhas aqui fora, e não no

caminho.

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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Eu sou um ser mágico, vivo num mundo cheio de magia. E isso me faz

sentir em paz e me faz ser uma pessoa melhor. Acho que só por mudar isso já

valeu. Porque antes eu era duas pessoas, ou eu era o bruxo ou eu era o

estudante da Poli, sério, sisudo e racional. Acho que consegui juntar mais as

coisas. Mesmo que eu tenha vários compromissos, posso ter magia no meu

cotidiano, seja fazendo meus rituais, acendendo um incenso, ou só fazendo

mentalizações, nosso pensamento tem muita força, e saudando o sol e a lua.

Eu tinha um pouco de medo de expor meu lado espiritual, quando eu era mais

novo o pessoal me zuava, achavam que eu estava lendo muito Harry Potter.

Não que hoje eu saia por aí dizendo pra todos que sou um bruxo, mas não é

algo que preciso esconder. E se me perguntam, eu respondo mesmo!

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: K.L. Sexo: M Idade: 33

Profissão: administrador Escolaridade: pós-graduado

Estado civil: divorciado Filhos: 1

Religião: agnóstico

Quando fez o Caminho de Santiago?

Maio de 2007.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Não tinha conflitos. Minha vida era comum. Eu trabalho em uma grande

empresa do ramo alimentício, viajo muito (quase sempre a trabalho) e nas

minhas horas vagas gosto de jogar tênis.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Minhas férias chegaram e eu pensei em fazer uma viagem diferente, foi

quando conheci o caminho de Santiago, que me atraiu pela beleza das

paisagens, e pela cultura da Espanha, que é muito bonita.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Não teve uma situação específica. Passar por construções históricas é algo

que me emociona, lá tem lugares muito bonitos de conhecer e visitar.

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4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

A praticidade e o pensamento que não preciso de tantas coisas quanto eu

imaginava que precisaria. Eu fui fazer o caminho, mas não queria ter que

arrastar aquela mochila pesada por tantos quilômetros. Então escolhi um

modelo desses próprios para caminhadas de 1 ou 2 dias, pequeno. E antes de

partir eu estudei muito bem meu roteiro e separei mudas de roupas e barrinhas

de cereais e outras coisas que eu poderia precisar em algumas caixas. Então

fui ao correio e despachei cada caixa para uma cidade ao longo do caminho.

Quando eu chegava a alguma delas eu ia ao correio, retirava o pacote e tinha

roupas limpas! Já enchia a caixa com o que eu não fosse precisar e mandava

para casa. Foi bem tranqüilo, encontrei essa idéia na internet e hoje recomendo

a todos que vão para lá fazer isso também. Porque é prático. Você não precisa

carregar tanto peso e evita muitas filas: para despachar e pegar a bagagem, e

nos albergues você não é obrigado a ficar lá lavando roupas ou coisa assim, o

que é bom, porque você chega tão cansado que só quer tomar um bom banho,

comer e dormir.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Não me senti deixando nada. Porque eu estava de férias e eu não tenho

uma família. Quer dizer, eu tenho meus pais, que moram em Santos então não

nos vemos com tanta freqüência, e tenho meu filho, que mora em Salvador

com minha ex-esposa, praticamente só o vejo nas férias escolares, quando ele

vem passar aqui em São Paulo. Claro que o amo, mas não posso dizer que

temos uma relação muito próxima.

6- E como foi voltar?

Tão triste quanto costuma ser quando as férias terminam.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

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Não sei. Se tenho que dizer alguma coisa, acho que fiquei um pouco menos

estressado. Minha vida é muito corrida e às vezes é difícil manter a calma.

Claro que eu preferia viver como era no caminho de Santiago, sem agenda,

sem problemas para resolver, mas preciso encarar a realidade que vivo e ela é

outra bem diferente.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: M.L.F. Sexo: F Idade: 28

Profissão: historiadora Escolaridade: mestrado

Estado civil: solteira Filhos: 0

Religião: minha espiritualidade é muito forte, mas não sigo uma religião.

Quando fez o Caminho de Santiago?

04/2011

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Sim, eu tinha alguns conflitos, quem é que não tem? O conflito mais recente

que eu tinha, que também era o mais simples, é que eu tinha acabado de

terminar um relacionamento que eu tinha há vários anos. Você se sente

horrível quando pensa que conhece alguém e acredita que este homem te

ama, faz planos... e então você descobre que estava enganada. Muito

enganada. Mas não sei se seria apropriado chamar isso de conflito, foi um fato

que aconteceu e que resolvemos terminando o namoro, mas o fim do

relacionamento era uma coisa que me deixava triste. Não por ter terminado,

mas por ter sido daquele jeito, terminando mal e com brigas.

Mas eu tinha outro conflito que me acompanhava há muito mais tempo, e

que me deixava ainda mais apreensiva. Isso não é uma coisa que se ouve com

freqüência, ou pelo menos não a sério. Eu sou especial. Claro que cada

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pessoa é única e isso as torna especiais. Mas o que eu quero dizer é que tenho

habilidades que a maioria das pessoas não tem. Eu vejo e converso com seres

espirituais e também tenho sonhos e visões sobre coisas que vão acontecer.

Por vários anos eu freqüentei um psicólogo para tentar conviver com isso, mas

ele me tratava como se essas coisas fossem sintomas de que algo está errado

comigo. Você é psicóloga, mas sei que sua mente é muito aberta nesse

sentido, me parece que você irá acreditar em mim, não tem nada de errado

com a minha mente. Fora isso eu tenho uma vida normal, e as pessoas com

quem convivo nem desconfiam dessas minhas capacidades. Depois que aceitei

essas coisas, saí da terapia e comecei a buscar respostas em religiões,

conheci várias como o cristianismo (minha família é católica, mas não somos

praticantes), o kardecismo, a umbanda... e nada funcionava para mim. Conheci

então o esoterismo e no começo era legal, mas também acabei me

decepcionando. Porque no fundo essas crenças todas me traziam dogmas e

não me respondiam a sério o que estava acontecendo, enquanto que a postura

da psicologia era de que eu tenho alguma doença mental.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Eu sou apaixonada por história medieval! Uma das motivações foi essa, ver

tudo aquilo de perto. Sou formada em história e nunca havia tido a

oportunidade de viajar para o exterior. Pareceu-me uma boa oportunidade de

unir esses dois projetos e ainda passar um tempo longe de tudo.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Muitos momentos me emocionaram. Um deles foi logo no início do caminho.

Eu fiz o caminho francês. E quando eu estava em St. Jean, onde começa o

caminho, eu tive uma visão. Não tenho certeza se você está habituada a ter de

lidar com visões, mas elas são como flashes, é bem rápido e depois que se vai

nos deixa uma sensação engraçada e ficamos um bom tempo a pensar sobre

ela e sobre o que está querendo nos dizer. Nessa visão eu vi um homem se

aproximando depressa a cavalo, um grande machado na mão, até que, com

um grito ele cortava a cabeça de alguém e me tirava daquele estado de transe

(não sei se esta é a palavra adequada). Foi uma visão que se repetiu todos os

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dias, assim que eu iniciava a caminhada. Sempre do mesmo jeito. Foi para

mim algo novo, pois é bem raro eu ter visões que se repetem e durante tanto

tempo. E ela sempre me deixava muito pensativa, porque minhas visões quase

nunca são literais e essa claramente não era. Eu ficava o dia todo imaginando

o que estaria querendo me dizer, lembrando de frases. “Perder a cabeça”.

“Cabeças irão rolar”. “Onde eu estava com a cabeça?”. Comecei a ver que eu

estava mesmo “perdendo a cabeça” com essas coisas! Tinha que mudar minha

postura, ficar um pouco mais leve porque o que for para ser será, mesmo que

nós não queiramos. Às vezes é melhor apenas se entregar à vida e deixar que

ela faça de nós aquilo que precisamos ser, ou aquilo que já somos nos nossos

corações.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Cada pessoa deve seguir seu próprio caminho com coragem, pois ninguém

jamais escapará impunemente se não atravessá-lo. Ao mesmo tempo que

ninguém jamais sairá ileso de sua caminhada pela vida.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Eu estava muito animada até o caminho começar. Gostei da viagem, é um

lugar lindo, com uma história riquíssima e que me fez repensar muito sobre a

minha postura na vida. Mas em alguns momentos, principalmente durante o por

do sol, eu olhava envolta e pensava “não acredito que estou mesmo aqui!

Como estão todos no Brasil?” e me dava uma sensação estranha, como se eu

nunca mais fosse sair de lá. Mas logo passava, porque você chega no albergue

e tem coisas para fazer, arrumar suas coisas, lavar sua roupa, e com isso eu

me envolvia nessas tarefas e a sensação passava.

6- E como foi voltar?

Foi bom e foi ruim. Foi bom porque eu tinha saudades daqui, da minha

família e dos meus amigos, da minha cidade, acho que de viver mais de um dia

no mesmo lugar. Mas foi ruim porque eu queria que o caminho tivesse durado

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mais tempo, foi uma experiência que me permitiu entrar em contato com lados

meus que eu nunca me permitia ou quando entrava era de um jeito muito

rígido, que não me fazia bem.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Não levo nada tão a sério mais. E isso me faz bem, porque antes eu

“perdia a cabeça” fácil demais. Principalmente com essas minhas

habilidades. Quando se é como nós, as coisas são diferentes. É como viver

num mundo totalmente diferente do mundo onde todos que você conhece

vivem. É quase um universo paralelo. Eu sentia muita falta de falar com

alguém como eu, alguém que iria me entender e me levar a sério. Não me

olhar como uma pessoa imatura que quer chamar a atenção ou como

alguém que tem algum problema mental. Acabei me aceitando melhor.

Afinal, cada um de nós vive em seu próprio universo paralelo, e se o meu

inclui a paranormalidade, o que é que tem?

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: O.I.X. Sexo: M Idade: 36

Profissão: autônomo. Eu filmo e fotografo eventos Escolaridade: técnico

Estado civil: casado Filhos: 1

Religião: não acredito em um Deus, acredito numa força positiva, numa energia

maior que nós e que está por trás da vida.

Quando fez o Caminho de Santiago?

Junho e Julho de 2005.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Era normal. Tinha alguns problemas, mas nada sério, coisas do dia a dia

mesmo.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Antes do caminho de Santiago eu já tinha feito alguns outros caminhos

como o caminho do sol, no interior de SP, Machu Pichu no Peru e a Estrada

Real que liga Minas a Paraty. Fazer o caminho de Santiago surgiu como mais

uma das minhas viagens.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

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A missa dos peregrinos lá em Compostela foi muito bonita. Não sou católico

mas mesmo assim a cerimônia me emocionou.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Falando apenas do caminho de Santiago eu não sei te responder. Acho que

tanto faz o caminho, o que sempre eu sinto durante é uma sensação de ter

garra e no fim você se sente vitorioso.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Na época eu já trabalhava como autônomo e meu negócio era juntar

dinheiro e viajar! Então eu pegava vários trabalhos e aí viajava e quando

voltava eu já começava a planejar minha próxima viagem e ia juntando dinheiro

e as coisas que precisava para ir. Minha esposa que naquela época era minha

namorada nunca quis vir comigo. Quando era alguma viagem mais comum ela

vinha, mas pra fazer essas trilhas não. É mais coisa de homem. Você vê

mulheres lá, mas deve ser mais difícil pra elas e aí ela não me acompanhava.

Alguns homens descansam indo pescar ou no futebol, eu gosto de viagens e

principalmente de fazer essas trilhas e ela sempre respeitou isso do mesmo

jeito que eu respeito quando ela quer ir no shopping com as amigas, porque

isso é coisa de mulher mesmo. Essas viagens são duras, você se cansa,

carrega peso, coisas que uma mulher não iria gostar.

6- E como foi voltar?

Sempre vejo as voltas das minhas viagens como uma pausa. O que me

importa é viajar, conhecer lugares novos, passar por experiências que eu não

passaria vivendo só aqui. Voltar não é uma parte que eu gosto, mas se eu

quiser viajar mais, é uma parte necessária.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

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Toda viagem muda a gente, não sei dizer uma coisa que me mudou indo

pra Compostela, mas sobre as trilhas em geral, me sinto muito mais persistente

quando volto.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: V. M. A. Sexo: M Idade: 54

Profissão: empresário Escolaridade: superior

Estado civil: casado Filhos: 3

Religião: católico mas não vou a igreja.

Quando fez o Caminho de Santiago?

Abril de 2010.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Minha vida era corrida. Eu trabalhava demais, comia errado e era um

homem muito sedentário. Eu brinco sempre que o esporte que eu praticava era

levantamento de garfo. E por conta da vida que eu vinha levando comecei a

ficar doente. Colesterol alto, stress e eu tinha também um problema no joelho

que eu precisei operar. Se não fosse a boa vontade da minha esposa tenho

certeza que nossa família ia ter se desmantelado, porque eu era um homem

muito ranzinza!

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Depois que operei o joelho precisei me afastar do trabalho por um tempo e

acabei revendo muitas coisas da minha vida. Fui fazendo fisioterapia, voltando

a caminhar e mesmo não sentindo mais dores, eu não conseguia ter confiança.

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O caminho de Santiago foi como o meu teste final. Embarquei 1 ano depois da

cirurgia, junto com a minha esposa, na verdade eu já vinha pensando em fazer

uma dessas grandes caminhadas quando estivesse bem, mas foi ela quem

sugeriu Compostela.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

A chegada me emocionou demais, eu chorei muito porque eu não

acreditava que iria mesmo conseguir.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Com boa vontade e dedicação tudo é possível. E que o que importa mesmo

da vida é os momentos de alegria. Porque quando chegar no fim da vida não

vou lembrar do quanto eu me esforcei pra fazer um bom trabalho, vou lembrar

muito mais dos bons momentos que tive com minha esposa, minha família, que

são as pessoas que amo.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Pela minha esposa ter me acompanhado foi mais fácil porque ela é alguém

que lida com as coisas do dia a dia muito melhor do que eu. Meus filhos já são

todos adultos, cada um já tem sua própria vida. Minha filha mora em Madri,

então ela nos buscou no aeroporto e quando terminamos a peregrinação

aproveitamos para passar um tempo com ela. Meu filho mais velho cuidou de

tudo na empresa enquanto estive fora e fez isso muito bem. E o caçula faz

faculdade no Rio, já mora sozinho e tem sua própria vida. Por isso quando parti

eu estava muito seguro do que ia fazer, não foi uma loucura, estava tudo

acertado. E sentir esse apoio da minha família foi muito bom para mim. Até

meu netinho que tem 3 anos fez um desenho e me deu antes de eu ir.

6- E como foi voltar?

Voltar foi bom, mas levei vários dias para me ajustar outra vez a rotina que

eu tinha aqui e percebi que não dava. Então a rotina precisou ser modificada.

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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Eu mudei muito. Ou melhor, o jeito de encarar a vida é que mudou. Eu rio

mais, brinco mais, sei que para todo problema existe uma solução e que tudo é

possível. Hoje eu valorizo coisas que antes eu não dava importância, estar com

a minha família, com o meu netinho, e ter qualidade de vida antes de tudo!

Cuido da minha saúde, da minha alimentação e descobri que fazer esportes

me deixa mais feliz. Antes eu via essas coisas como implicância dos meus

médicos. E também parei de fumar.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: P.G. Sexo: F Idade: 29

Profissão: veterinária Escolaridade: especialização

Estado civil: casada Filhos: 0

Religião: católica mas não sou praticante

Quando fez o Caminho de Santiago?

Em 2009.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Sim, eu tinha muitos problemas financeiros. Eu tinha um emprego e

ganhava um salário muito bom, até acima do valor do mercado, porque

trabalho em uma clínica de um bairro de classe alta de São Paulo. Mas eu era

bem impulsiva na hora de gastar e acabava me endividando. Não entrava na

minha cabeça por exemplo eu sair e não comprar nada. E comprava por

impulso mesmo! Coisas que eu nem precisava, que eu já sabia que nem iria

usar. Eu não estava com o nome sujo nem nada disso, mas já me aconteceu

de estar. Mas eu fazia malabarismos com o dinheiro pra poder pagar todos os

gastos que fazia, pegava emprestado com a família e com amigos e até já

perdi amigos por isso.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

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Minhas férias chegaram e eu queria viajar. Mesmo com problemas

financeiros eu não conseguia pensar ah, vou ficar aqui, porque eu até podia,

né? Mas não, eu tinha que ir. Foi mais uma das minhas compras por

impulsividade, essa viagem, mas também foi uma das poucas que eu não me

arrependi.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Me emocionou quando passei pelo Cebreiro, que é uma montanha muito

alta no caminho. Lá tem uma igrejinha muito linda, toda de pedra, e tem uma

lenda que conta que está lá o Santo Graal, o mesmo que os cavaleiros do rei

Arthur procuravam naquelas histórias. E a lenda conta que muitos séculos

atrás, no meio do inverno, tinha só um camponês na missa, porque com a neve

deve ser bem ruim de passar por ali. Então, e quando o padre estava rezando

a missa o pão e o vinho viraram carne e sangue. Não sei porque isso me

emocionou, porque eu nem sou de ir na missa nem nada, mas quando entrei

na capelinha me emocionei muito e fiquei um bom tempo lá, eu não queria ir

embora dali. Era uma paz muito grande como eu nunca tinha sentido.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Que eu posso viver com menos. Felicidade é estar bem com você mesma,

estar bem com as pessoas que você gosta. Tanto faz o que você tem ou deixa

de ter. Eu comecei carregando muito mais coisa do que podia e do que

precisava. E quando isso pesa nos seus ombros você percebe que pode

passar bem sem todas aquelas coisas e vai ser mais feliz sem elas e sem as

dores que carregar tudo aquilo traz. Também na vida a gente não tem que ficar

sempre carregando tantas coisas, dá pra ser feliz com muito menos.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

No começo eu tive um pouco de medo de ficar muito isolada, porque fui

sozinha. Mas logo eu entrei no clima e já nem pensava muito em tudo e todos

que ficaram no Brasil. Fora isso foi normal. Eu estava de férias e fui viajar. E

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quase que eu esqueci de contar, na época eu não tinha ninguém e conheci

meu marido no vôo de volta para o Brasil. E eu sei que isso só aconteceu

porque eu mudei, porque senão mesmo que a gente se conhecesse do mesmo

jeito, eu não acho que ia dar certo.

6- E como foi voltar?

Voltar foi esquisito. Só quando voltei foi que eu vi quantas coisas eu tinha

que mudar na minha vida. Organizar meus gastos mas também rever minha

relação com o dinheiro e as pessoas, porque as pessoas não valem o que elas

tem, elas valem pelo que são. Antes não, se eu via alguém que não andava

com roupas de marcas boas, que não ia a lugares badalados, eu já nem levava

a sério.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Me acalmei, antes era como se eu vivesse competindo com todo mundo,

ate comigo mesma. Também fiquei mais organizada e mais humana.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: D.K.F. Sexo: F Idade: 34

Profissão: contadora Escolaridade: superior

Estado civil: solteira Filhos: 1

Religião: não tenho religião

Quando fez o Caminho de Santiago?

Outubro de 2008.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Não, era tudo normal.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Não tive assim uma motivação. Eu tinha lido o Paulo Coelho, foi onde eu

conheci o caminho e achei que seria uma boa experiência.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Não sei. Mas uma coisa que eu gostei muito no caminho de Santiago é que

lá as pessoas são diferentes. Tem mais cumplicidade, mesmo que ninguém se

conheça, lá estão todos juntos. Se alguma coisa acontecer, alguém vai te

ajudar, aqui não tem dessas coisas. E mesmo de dividir as coisas,

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compartilhar. Lá é uma cumplicidade muito grande que aqui não tem. O certo

era ter, mas tem muita gente que nem na família tem isso. E essa amizade ou

cumplicidade, eu não sei que nome dar a ela, mas me fez sentir muito bem.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Se eu quero que as pessoas gostem de mim e me considerem, eu tenho

que gostar e considerar as pessoas. Acho que assim é que aparece aquela

cumplicidade que eu falei.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Foi normal. Eu deixei minha filha na casa da minha mãe e fui. Se ela fosse

maiorzinha eu levava ela, mas na época ela só tinha 5 anos, então não ia dar

certo. E sempre que eu podia eu ligava para saber se ela estava bem.

6- E como foi voltar?

Também foi um momento emocionante, eu nunca tinha feito uma viagem

tão longa e nem tinha estado tanto tempo longe da minha filha. Mas foi

estranho voltar a viver fora do caminho, sem aquele jeito de lidar com as

pessoas que eu falei antes. Aqui as pessoas são distantes umas das outras e

quando alguém vai ser diferente já acham que é algum oportunista, algum

golpe.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Percebo que sou mais atenta ao que eu sinto, antes eu não me importava

nada com isso.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: N.L.H. Sexo: F Idade: 46

Profissão: dona de casa Escolaridade: ensino médio

Estado civil: casada Filhos: 2

Religião: kardecismo

Quando fez o Caminho de Santiago?

Maio de 2001.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Eu estava muito deprimida porque eu tinha perdido meu sobrinho quase um

ano atrás. Esse sobrinho era muito especial para mim, porque fui eu que criei

ele, era como um filho para mim. E ele morreu atropelado. Foi horrível, eu não

tinha força nem para sair da cama, não comia, não cuidava da casa, não fazia

nada. Foi muito de repente, eu não estava preparada. Fiz terapia e quando

comecei a melhorar meu marido me levou para fazer o caminho de Santiago.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

A morte do meu sobrinho. Mas antes disso meu marido e eu já pensamos

em fazer, muitos anos antes, mas nunca dava certo. Então depois que

aconteceu isso achamos que talvez fosse esse o tempo de ir.

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3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

Teve uma noite que eu não conseguia dormir de jeito nenhum. E deitada na

cama ouvi a voz do meu sobrinho, como se ele estivesse lá do meu lado

dizendo “tia, não chora. Eu estou bem e quero que a senhora volte a sorrir”.

Chorei muito depois disso, mas de alegria, por saber que ele estava bem onde

quer que ele estava. Eu tive certeza na mesma hora que era ele.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

A certeza de que Deus é bom e sabe o que faz. Que nada é por acaso e

que um dia todos vamos nos encontrar outra vez.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Para ser muito sincera, eu não lembro. Acho que eu estava tão deprimida

que eu já não sentia mais nada. Meu marido acertou todos os detalhes da

viagem, cuidou de tudo.

6- E como foi voltar?

Voltei muito melhor. Com ânimo, com vontade de viver.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Mudei meu jeito de ver a vida e a morte. A morte não é um fim. Comecei a

freqüentar um centro espírita e hoje sou kardecista. E tenho a certeza que

aconteça o que acontecer, Deus sabe o que faz na vida da gente.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: A.Y.A. Sexo: M Idade: 29

Profissão: administrador de empresas Escolaridade: pós-graduação

Estado civil: casado Filhos: 1

Religião: não sigo nenhuma religião. Acredito na força do pensamento de atrair

situações para a nossa vida e em uma energia criadora.

Quando fez o Caminho de Santiago?

2010.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Não tinha nenhum conflito ou problema sério. Sempre fui uma pessoa de

muita sorte. Não é que eu não tenho problemas, mas são sempre coisas

corriqueiras, nada digno de muito stress. Levo a vida com muito bom humor.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Quando eu tinha uns 16 anos ou coisa assim eu li O diário de um mago, do

Paulo Coelho. Na época eu achei que o Caminho e a história toda era uma

ficção. Mas olhando na internet eu descobri que existia mesmo e a partir daí eu

sempre ficava pensando em ir algum dia. É uma experiência muito boa e que

recomendo muito, em especial para pessoas que buscam uma ampliação da

consciência como eu sempre busquei.

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3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

É complicado escolher um momento porque o caminho todo tem uma

energia muito boa que faz cada momento que você passa nele ser especial.

Mas um momento especial para mim foi passar pela ermida de Santa Maria de

Arnotegui. É um ponto do caminho onde antigamente uma moça da nobreza

construiu uma cabana para acolher e tratar de peregrinos feridos. Ao descobrir

isso seu pai mandou o irmão da moça buscá-la, mas ele se enfureceu porque

ela não se convencia e então ele a matou. Ele ficou muito arrependido e fez a

peregrinação em busca de perdão. Já voltando para casa, resolveu ficar por ali

e continuar o trabalho de sua irmã. Essa é a história de santa Felícia, que me

emociona demais. Passar por ali, lembrar dessa história foi bem especial. Me

fez pensar muito sobre a caridade, não no sentido de sair por aí dando o peixe,

mas ensinando a pescar. O mundo tem tanta gente que precisa de ajuda e

poderia ser um lugar melhor se todos tivessem boas oportunidades.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Ajudar o próximo é uma coisa muito boa, que me faz um homem melhor e

faz do mundo um lugar melhor. Eu fui para lá querendo ampliar minha

consciência num sentido espiritual, e não é que isso não aconteceu, mas

comecei a ter mais consciência da vida material. Ajudar alguém em dificuldade

a ter uma vida mais digna, sentir e respeitar as dores do outro é uma coisa que

me dá força para levar a minha vida de um jeito melhor. Percebi que para eu

estar bem, as outras pessoas precisam ficar bem também, eu seria um

hipócrita tendo uma vida legal e deixando todos a minha volta sofrendo quando

muitas vezes eu tenho o poder de dar oportunidades para essas pessoas terem

uma vida melhor.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

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Eu fui durante as minhas férias então não tive que me ausentar do trabalho.

E fui junto com a minha esposa, que também queria fazer o Caminho de

Santiago há bastante tempo.

6- E como foi voltar?

Voltar foi ruim. Quase fiz como Santa Felícia e fiquei por lá! Meu corpo

voltou, mas meu coração continua lá, procuro manter aqui o estilo de vida que

a gente tem no caminho, dentro do possível.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Passei a dar mais atenção ao bem estar das outras pessoas, tanto no meu

cotidiano, mas também fazendo trabalhos voluntários com jovens de uma

comunidade próxima de onde moro, ensinando inglês. Também me tornei pai.

Na época da peregrinação eu ainda não tinha filho, mas mesmo assim eu sei

que aquela experiência me fez ser um pai melhor para ele, tenho bem firmes

em mim os valores que quero passar ao meu filho, justiça, honestidade, ver as

adversidades da vida com bom humor e ser um homem de paz. Outra

mudança é que desde então nunca mais parei de caminhar.

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QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: K.S.P.D. Sexo: F Idade: 23

Profissão: estudante Escolaridade: superior - cursando

Estado civil: solteira Filhos: 0

Religião: acredito que o nosso pensamento pode trazer coisas para nós. E

gosto muito de acender incensos para purificar minha vida e deixar só energias

boas.

Quando fez o Caminho de Santiago?

Em julho de 2010.

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

Não, sempre fui uma pessoa muito tranqüila.

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

Não tive um motivo. Eu vi alguns programas na TV sobre o caminho, fui

pesquisando e acabei me interessando de conhecer.

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

O caminho todo emociona, tem paisagens e construções lindas. Passar por

uma cidade fantasma que tem lá me deu medo, tem várias histórias que eles

contam de demônios que tem lá. Eu não acredito nessas coisas, mas passar

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por lá depois de ouvir esse tipo de coisa dá um medinho. E também me

emocionou subir o Cebreiro, que é uma subida muito grande e difícil, que

olhando de baixo você acha que não vai conseguir e olhando de cima você

nem acredita que conseguiu.

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

Força de vontade. Eu sempre consegui tudo muito fácil, de mão beijada,

como dizem, porque a condição financeira da minha família é muito boa então

nunca tive que lutar mesmo por alguma coisa. Eu queria e eu tinha. No

caminho não, eu fui sozinha e eu tinha que andar tudo aquilo e carregar minhas

próprias coisas, lavar minha roupa, as vezes fazer comida e eu nunca tinha

cozinhado nada antes disso, então eu tinha que me resolver porque não tinha

ninguém lá pra fazer nada por mim. Ganhei muita independência e confiança

em mim mesma. Pode parecer legal ter um monte de gente envolta de você

fazendo tudo que você quer, mas lá eu vi que isso não me deixou aprender a

ter confiança em mim mesma.

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

Normal, as férias chegaram e eu fui viajar.

6- E como foi voltar?

Foi ruim, quando vi que ia terminar eu andava devagarzinho pro caminho

durar mais. Ninguém gosta quando as férias terminam. Mas não foi só isso,

não sei falar, é que me senti muito bem lá no caminho. Eu sentia que eu posso

tudo, que eu consigo.

7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?

Fiquei sendo uma pessoa mais prática, organizada e também mais

responsável e independente. Também passei a ter consciência de que as

pessoas comuns não vivem como eu vivo. Na 1ª vez que eu cheguei no

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albergue pra você ter idéia, eu nem sabia lavar roupa e uma outra moça me

ensinou como era. Porque eu nunca precisei fazer essas coisas. Então agora

sou mais independente e sei como a maioria das pessoas vivem. Foi uma boa

experiência para mim, passei a dar muito mais valor a vida que tenho e a levar

as coisas mais a sério.

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Tabelas e gráficos referentes aos questionários

1- Amostragem:

1.1- Gênero:

Gênero Quantidade

Feminino 10

Masculino 10

1.2- Faixa etária:

Faixas etárias Quantidade

Até 29 anos 08

30 a 39 anos 06

40 a 49 anos 04

50 anos ou mais 02

Gênero

Feminino

Masculino

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1.3- Estado civil:

Estado civil Quantidade

Solteiro 09

Casado ou relação estável 09

Divorciado 02

1.4- Filhos:

Tem filhos? Quantidade

Sim 11

Não 09

Faixa etária

Até 29 anos

30 a 39 anos

40 a 49 anos

50 anos ou mais

Estado civil

Solteiro

Casado ou relação estável

Divorciado

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106

1.5- Escolaridade:

Nível de escolaridade Quantidade

Ensino Médio 02

Ensino técnico 01

Superior incompleto 02

Superior completo 09

Pós-graduação 06

1.6- Crenças religiosas:

Tem filhos?

Sim

Não

Nível de escolaridade

Ensino Médio

Ensino técnico

Superior incompleto

Superior completo

Pós-graduação

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107

Crença/Religião Quantidade

Católico não praticante 05

Kardecismo 01

Budismo 02

Paganismo 01

Wicca 01

Agnóstico/Sem religião 05

Apenas crê em Deus 03

Crença no “pensamento positivo” 04

Crença em energias 06

2- Questões:

2.1- Conflitos:

Conflitos mencionados Quantidade

No trabalho ou estudo 05

Na família 05

Entre o casal 02

0 1 2 3 4 5 6 7

Crença Religiosa

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Problemas de saúde 03

Luto 01

Conflito religioso 02

Conflito ligado à sexualidade 01

Frustração com a vida que vinha

levando

01

Problemas financeiros 01

Dificuldade em lidar com

habilidades paranormais

01

Conflitos “comuns” da vida

cotidiana

03

Não tem conflitos 05

2.2- Motivação:

Motivação religiosa ou não

religiosa

Quantidade

Religiosa 01

Não religiosa 19

0

1

2

3

4

5

6

Conflitos mencionados

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Natureza da motivação Quantidade

Turismo, viagem de férias 05

Motivos culturais, pela história do

Caminho de Santiago

03

Aventura da condição de

peregrino

03

Mística do Caminho de Santiago 02

Ampliação da consciência

espiritual

01

Origens familiares na Espanha 01

Emagrecer 01

Motivação relacionada ao conflito 05

Queria fazer a peregrinação há

muitos anos

04

Nenhum motivo/não soube dizer 04

Motivação religiosa ou não religiosa

Religiosa

Não religiosa

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110

2.3- Momentos marcantes da peregrinação:

Momento Quantidade

Partida 01

Chegada a Compostela 04

Missa dos peregrinos 02

Passar por Foncebadón 03

Cruz de Ferro 01

Subida do Cebreiro 02

Passar pela Ermida de Santa

Maria de Arnotegui

01

Encontro com o outro 03

Poder agir com autonomia 01

Relação com o tempo 02

Relato de experiência mística 04

Não sabe dizer ou não especifica 05

0

1

2

3

4

5

6

Natureza da motivação

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111

2.4- Valores, pensamentos e emoções ligadas à peregrinação:

Valores Quantidade

Persistência, superação,

coragem de continuar

06

Ter sucesso, ser vitorioso 03

Mais humano e/ou mais

espiritualizado

06

Autonomia 05

Ideal de justiça, de um mundo

melhor para todos

03

Praticidade 01

Respeito pela diversidade e pelas

(próprias) diferenças

01

Beleza como algo interno e não

apenas externo

01

Contato com as origens foi

fortalecedor

01

0

1

2

3

4

5

6

Momentos mais marcantes

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112

2.5- Partida:

Reação à partida Quantidade

“Normal”, sem conflitos 14

Disparadora de conflitos 01

Partida percebida como um

“alívio”

04

Outros dados mencionados sobre Quantidade

0 1 2 3 4 5 6 7

Valores adquiridos na peregrinação

0

2

4

6

8

10

12

14

16

“Normal”, sem conflitos Disparadora de conflitos Partida percebida como um “alívio”

Reação à partida

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113

a partida

Descreve como organizou a

rotina cotidiana antes de partir

08

Relata algum tipo de preparação

espiritual anterior à partida

01

2.6- Retorno:

Como reagiu ao retornar Quantidade

Triste pelo fim das férias 03

Desejo de que o Caminho

durasse mais

06

Animado, com coragem de

enfrentar a vida

05

Demora em ajustar-se à rotina 05

Necessidade de modificar a

rotina

06

Feliz em voltar, saudades de

casa e da família

07

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

Descreve como organizou a rotina cotidiana antes de partir

Relata algum tipo de preparação espiritual anterior à partida

Outros dados sobre a partida

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114

2.7- Transformações que a pessoa percebe em si e/ou em sua vida:

Natureza da mudança Quantidade

Na vida familiar 07

Na rotina 04

Inclusão exercícios físicos 04

Na crença religiosa 04

No trabalho ou estudo 03

Maior autonomia 04

Tornou-se mais reflexivo 03

Tornou-se mais persistente 03

Tornou-se mais espiritualizado 03

Tornou-se mais organizado 04

É mais saudável atualmente 03

Maior autoconfiança 04

Dedica mais tempo ao lazer 03

Tem maior paz interior 08

Maior vínculo com as próprias

origens

01

Menos consumista 01

Mais preocupado com o bem 01

0

1

2

3

4

5

6

7

8

Triste pelo fim das férias

Desejo de que o

Caminho durasse mais

Animado, com

coragem de enfrentar a

vida

Demora em ajustar-se à

rotina

Necessidade de modificar

a rotina

Feliz em voltar,

saudades de casa e da

família

Reações ao retorno

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115

estar dos outros

Não sabe dizer 02

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9

Transformações em si e/ou na vida

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APÊNDICE

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Modelo do questionário

QUESTIONÁRIO

Este questionário é parte de minha pesquisa de mestrado realizada no

Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, sobre atribuição de sentido

para vida em peregrinos a Santiago de Compostela.

As questões foram baseadas em entrevistas e depoimentos colhidos ao

longo da pesquisa, com peregrinos brasileiros. Nenhuma informação que possa

te identificar será divulgada na pesquisa. Sua participação é voluntária.

Muito obrigada!

IDENTIFICAÇÃO

Iniciais: Sexo: Idade:

Profissão: Escolaridade:

Estado civil: Filhos:

Religião:

Quando fez o Caminho de Santiago?

1- Como era sua vida antes de fazer o Caminho de Santiago? Havia algum

tipo de conflito?

2- Quais foram suas maiores motivações para realizar o Caminho?

3- Quais momentos da peregrinação mais te emocionaram?

4- Que pensamentos, sentimentos, valores, idéias, etc. adquiridos no

Caminho ainda te acompanham?

5- Como foi partir, deixando para trás a família, os amigos, o

trabalho/estudos, etc.?

6- E como foi voltar?

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7- Que diferenças ou mudanças você percebe em si e/ou na sua vida após

a peregrinação?